Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2719/17.8YLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: DESPEJO
FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
Nº do Documento: RP201806272719/17.8YLPRT.P1
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º140, FLS.27-29)
Área Temática: .
Sumário: Nos processos especiais de despejo com fundamento na falta de pagamento de rendas, a exigência legal de prestação de caução por parte de quem deduziu oposição não é extensível a quem beneficia de apoio judiciário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2719/17.8YLPRT.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos: José Manuel de Araújo Barros; Filipe Caroço
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
1.1 No processo n.º 2719/17.8YLPRT do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, J1, da
Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/Ré: B…

Recorrido/Autor: C…

foi proferido despacho em 28 de março de 2018 (Citius 391257398), a fls. 40 e verso, no qual se decidiu que não tendo a requerida, conjuntamente com a sua oposição, efectuado o pagamento da caução respeitante às rendas em dívida, ainda que goze de apoio judiciário, tal oposição deve
ter-se como não deduzida, face ao preceituado no artigo 15.º-F, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/fev., em conjugação com o artigo 10.º, 2 da Portaria n.º 9/2013.
1.2 Na presente acção tinha sido formulado o pedido de despejo, através do Balcão Nacional de Arrendamento, com base na falta de pagamento de rendas.
2. A Ré interpôs recurso daquele despacho em 03 de abril de 2018 a fls. 41 - 44, sustentando essencialmente que o disposto no artigo 15.º-F, n.º 3 e 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/fev., vai no sentido de que o Requerido deve proceder à junção do documento comprovativo do pagamento de caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, no valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, pelo que a decisão recorrida, em virtude de ter violado tais disposições, deve ser revogada.
3. O recorrido não apresentou contra-alegações, tendo sido admitido o recurso e os autos remetidos para esta Relação em 05 de junho de 2018, sendo apresentados para exame em 07 de junho de 2018.
4. Não existem questões prévia ou incidentais a conhecer e que obstem à apreciação do mérito do recurso.
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O objecto do recurso cinge-se em saber se com a oposição à acção de despejo, com base na falta do pagamento de rendas, tem igualmente a parte requerida de prestar caução relativamente às rendas em dívida.
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II. FUNDAMENTOS
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) introduzido pela Lei n.º 6/2006, de 27/fev. (DR I-A, n.º 41), que veio alterar o Código Civil no que concerne ao regime da locação, foi posteriormente revisto pela Lei 31/2012, de 14/ago. (DR I, n.º 157), que, entre outras coisas, visou criar um procedimento especial de despejo do arrendado com o intuito de dinamizar o mercado de arrendamento. Na disciplina deste procedimento especial ficou estabelecido no aditado artigo 15.º - F ao NRAU, no qual se regula a oposição ao pedido de despejo, através do seu n.º 3, que “Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 1083 do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo corresponde a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”. Por sua vez, a Portaria n.º 9/2013, de 10/jan. (DR I-A, n.º 7), veio precisamente regulamentar a disciplina do procedimento especial de despejo, com os propósitos enunciados no seu artigo 1.º, entre elas o referenciado na sua alínea b), ou seja, “Formas de apresentação da oposição, e modo de pagamento da caução devida com a oposição”.
A propósito enuncia no seu artigo 10.º, n.º 1 que “O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, ..., é efetuado através dos meios electrónicos ..., após a emissão do respetivo documento único de cobrança”, acrescentando no seu n.º 2 que “O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário”.
Como se pode constatar, existe uma acentuada divergência entre o estabelecido no artigo 15.º - F do NRAU, segundo o qual a oposição é acompanhada do “documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida” e do “pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo corresponde a seis rendas”, surgindo uma excepção relativamente aos “casos de apoio judiciário” e o preceituado no mencionado artigo 10.º, n.º 1 e 2 da citada Portaria, porquanto aqui a comprovação da prestação de caução surge sempre como obrigatória, haja ou não lugar a apoio judiciário.
A jurisprudência não tem tido uma posição unânime na leitura destas disposições, porquanto tanto tem sustentado que a existência de apoio judiciário dispensa a prestação de caução, como precisamente o contrário – no primeiro sentido vejam-se os Acs. TRL de 28/04/2015, Des. Rosa Ribeiro Coelho, e 19/02/2015, Des. Ezaguy Martins; TRP de 03/03/2016, Des. Leonel Serôdio,
e 26/10/2017, Des. Carlos Portela; em sentido contrário Ac. TRE de 25/04/2014, Des. Canela Brás; Ac. TRL 02/06/2016, Des. Maria de Deus Correia; no Ac. TRL de 17/12/2015, Des. Jorge Leal, considerou-se que sendo a requerida uma sociedade comercial a mesma não beneficiava de apoio judiciário, estando todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Para a interpretação da lei, temos de começar por atender aos critérios constitucionais, como sejam o princípio da prevalência ou supremacia da lei em relação a quaisquer actos regulamentares, pois como se afirma artigo 112.º, n.º 5 da Constituição “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”. Conforme jurisprudência firme do Tribunal Constitucional “o princípio da prevalência ou proeminência da lei significa que o regulamento não pode contrariar um acto legislativo ou equiparado” (TC 274/93). Daqui decorre que qualquer Portaria, enquanto acto subordinado e meramente regulamentador, encontra-se jurídico-legalmente vinculada e ordenada pela respectiva lei-habilitante, não podendo estabelecer regras que contrariem a disciplina desta última. A inobservância dessa vinculação corresponde ao vício da ilegalidade (TC 113/88, 247/93, 404/09 e 779/13).
Por sua vez, na ordenação de um processo, o legislador deve ser leal no estabelecimento da respectiva disciplina, não devendo criar barreiras desajustadas ou opacidades inusitadas, atento o preceituado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição e 6.º da CEDH. A mesma vinculação está dirigida aos tribunais, na interpretação que os mesmos fazem das leis.
Acrescem ainda os critérios legais enunciados no Código Civil, mais precisamente no seu artigo 9.º, pelo que na exteriorização da lei devemos atender aos seus elementos literais (“mínimo de correspondências verbal, ainda que imperfeitamente expresso” com a letra da lei), históricos (“as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”), sistemáticos (“a unidade do sistema”) e teleológicos (“reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo”).
Assim sendo, o que sobressai é que o legislador excepcionou em bloco e para quem beneficiasse de apoio judiciário, a desnecessidade de comprovação do pagamento da taxa de justiça e de prestação de caução relativamente às rendas devidas – caso quisesse excepcionar apenas uma destas situações, deveria ter tido o cuidado de o fazer. É certo que o apoio judiciário está dirigido, numa das suas modalidades, para as custas do processo e não para a inexigibilidade de prestação de cauções. Mas o legislador pode muito bem ter sido sensível, numa área tão melindrosa como é do contrato do arrendamento e das respectivas resoluções contratuais, que queira ter estendido essa excepcional prerrogativa de não prestar caução de rendas a quem não tenha disponibilidade para suportar as custas processuais. Esta discriminação positiva tem todo o sentido e não se mostra irrazoável. Assim, se o legislador não diferenciou, não cabe aos tribunais distinguir, face ao princípio constitucional de reserva de lei.
Perante este quadro de princípios constitucionais e de regras interpretativas legais, a leitura que mais se ajusta vai no sentido de considerar que quem beneficia de apoio judiciário, está dispensado de comprovar tanto o pagamento de taxa de justiça, como de prestação de caução das rendas consideradas como devidas.
No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso interposto por B… e,
em consequência, revoga-se o despacho recorrido.

Custas da presente apelação a atender a final.

Notifique.

Porto, 27 de junho de 2018
Joaquim Correia Gomes
José Manuel de Araújo Barros
Filipe Caroço