Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
236/14.7T8PRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: CONTA BANCÁRIA SOLIDÁRIA
PROCURAÇÃO OUTORGADA POR UM DOS TITULARES
SEM AUTORIZAÇÃO DO OUTRO
MOVIMENTAR CONTA
RESPONSABILIDADE DA ENTIDADE BANCÁRIA
Nº do Documento: RP20171128236/14.7T8PRT.P2
Data do Acordão: 11/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º198-206)
Área Temática: .
Sumário: I - Ao apresentar junto do banco demandado uma procuração que lhe foi conferida por seu pai para movimentar todas as contas bancárias, aceitou o banco a sua ordem de mobilização de títulos depositados numa conta bancária solidária sem indagar da autorização ou consentimento da restante contitular.
II - Essa procuração mina a relação de confiança que subjaz ao regime de solidariedade escolhido pelos contitulares da conta, cujo traço característico de «um vínculo de mútua representação» não admite, sem o consentimento dos demais, que um dos contitulares confira a terceiro poderes para livremente a movimentar.
III - Sem embargo de o banco estar legitimado a retificar a indevida mobilização dos títulos para a conta da Autora, não pode deixar de ser contratualmente responsabilizado perante esta quando os mobilizou para a conta inicial sem ordem ou autorização suas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 236/14.7T8PRT
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 1
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
B…, casada, residente na Travessa …., n.º …, em …, Vila Nova de Gaia, instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra C…, com sede na Rua …, n.º …/…, em Lisboa, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €51.500,00, bem como os juros de mora sobre tal quantia, já vencidos no montante de €4.166,60 e vincendos até efetivo e integral pagamento. Alegou, para tanto e em síntese, que a Ré lhe retirou de uma sua conta de depósito títulos no valor de €51.500,00, contra a sua vontade e sem o seu conhecimento.

Contestou a Ré aduzindo, em síntese, que a Autora obteve o depósito de tais títulos com fundamento numa procuração de um cotitular de uma outra conta de depósito e que, após a sua constatação da ausência de intervenção de outro cotitular da conta de depósito, “retificou” o erro que cometeu, consubstanciado no facto de ter aceitado uma procuração emitida por apenas um dos cotitulares.

Realizada tentativa de conciliação e reputando que os autos continham todos os elementos imprescindíveis à decisão de mérito, foram as partes convidadas a oferecer alegações, mas apenas a Autora alegou de direito.

Proferida sentença, que julgou a ação procedente e condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de €51.500,00, acrescida dos juros moratórios, calculados à taxa legal, contados desde 25 de maio de 2010, interpôs a Ré interpôs recurso da sentença, o que ditou a sua anulação, ordenando a prolação de despacho pré-saneador, convidando a Autora a aperfeiçoar a petição e seguindo-se os adequados trâmites da lei processual civil.
No cumprimento do decidido no acórdão deste Tribunal da Relação, foi proferido despacho a convidar a Autora a aperfeiçoar a petição inicial, o que fez, com a subsequente resposta da Ré.
Realizada a audiência prévia com definição do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, foi realizada a audiência de discussão e julgamento, com observância de todas as formalidades legais e pronunciada sentença com o seguinte dispositivo: «Em face do exposto, julgo a presente acção procedente e, em consequência, condeno a Ré “C…” a pagar à Autora B… a quantia de €51.500,00 (cinquenta e um mil e quinhentos euros), acrescida dos juros moratórios, calculados à taxa legal, contados desde 25 de Maio de 2010 e até efectivo e integral pagamento».

De novo irresignada, a Ré apelou da sentença com as seguintes conclusões alegatórias:
«1- A faculdade de qualquer dos co-titulares (ou autorizados por estes) do depósito solidário poder, sem a autorização dos demais, levantar a totalidade da quantia depositada, exprime um regime de solidariedade activa;
2- Esta possibilidade, ou faculdade, reconduz-nos ao problema que se discute nos presentes autos, qual seja, o de saber se um desses co-titulares pode, por si só, outorgar procuração em favor de terceiro, por via da qual confira a este poderes para a livre movimentação da conta;
3- Salvo o devido respeito por opinião contrária, é entendimento da recorrente que a resposta a uma tal questão terá de ser necessariamente negativa. Com efeito,
4- Apesar de numa visão simplista nada parecer obstar a tal outorga, até porque cada um dos co-titulares se encontra numa privilegiada situação de liberdade que lhe permite movimentar isoladamente todos os montantes aí depositados, mesmo os depositados por outros, que não ele;
5- A verdade é que, precisamente em razão dessa faculdade, desse privilégio, a resposta terá necessariamente de ser negativa;
6- Com efeito, ao acordarem na abertura de uma conta com estas características de movimentação, cada um dos co-titulares aceita tacitamente uma ilimitada liberdade recíproca, através da qual se sujeitam ao arbítrio de todos os demais;
7- Vale isto dizer que, o direito de cada um está, deste modo, sujeito a uma condição meramente potestativa: levantarei, ou levantarás, quando e quanto o quiser, ou quiseres;
8- Ponderada que seja esta liberdade “ilimitada”, justifica-se a seguinte pergunta: “poderá qualquer um dos co-titulares, de per se, transferir essa liberdade para terceiro?”; “dar-lhe-á esse direito a alegada mútua aceitação da condição meramente potestativa?”;
9- Considera a recorrente que não, fundamentando-se essa sua convicção na compreensão, ou se preferirmos, na apreensão, da mecânica da solidariedade activa.
Senão vejamos:
10- Um dos traços que marca a solidariedade activa (traço essencial, há que dize-lo) é a existência do que a doutrina costuma denominar de mandato recíproco entre os credores, ou de um vínculo de mútua representação;
11- Vínculo que assenta na circunstância de cada credor agir em representação de todos os outros, embora também o faça em nome próprio;
12- Para que esse vínculo (ou esse mandato recíproco) exista e, em consequência, possa existir solidariedade activa voluntária, será essencial que lhe anteceda uma confiança mútua, pois que cada credor (cada co-titular) sabe que o seu direito de crédito está pendente de uma condição potestativa, mas aceita tal contingência em razão da confiança que deposita nos demais;
13- Fá-lo ciente do risco que assume. Do risco de um outro, porque menos consciencioso, mas mais lesto, venha a tornar-se proprietário da totalidade de quantia depositada.
14- O mandato recíproco assenta, pois, na confiança, pelo que esta justifica a solidariedade;
15- Acresce que, o mandato conferido não é apenas recíproco. Ele é também exclusivo e de objecto definido;
16- De objecto definido, na medida em que apenas poderá ser utilizado para efeito de movimentação da conta. Exclusivo pois que o facto de A confiar em B não significa que confie em quem B venha a constituir como seu mandatário;
17- Em tese, A pode até mesmo ter todas as razões para não confiar nesse mandatário, pelo que a aceitação da tese vertida na douta sentença a quo representaria nesse caso violação das mais elementares regras que regulam a autonomia da vontade, pelo que e,
18- Em suma, assentando o traço característico da solidariedade activa no vínculo da mútua representação e ancorando-se esta no requisito da mútua confiança, não se mostrará legítimo que o co-titular de uma conta solidária por si só, sem a intervenção dos demais co-titulares, possa conferir a terceiros poderes para a livre movimentação dessa conta;
19- Como de igual forma e pela mesma ordem de razões, não será legítimo que apenas um desses co-titulares possa nomear autorizado sem o agrément dos demais. Ao que acresce que:
20- De igual modo, com respaldo no requisito da confiança, também a doutrina que sobre esta matéria se debruça nega a possibilidade de um co-titular poder conferir mandato a um terceiro sem o acordo dos demais -, vide por todos Paula Ponces Camacho, in Do Contrato de Depósito Bancário”;
Sem prescindir,
21- A conta solidária assume-se como uma modalidade de carácter excepcional dom depósito plural, sendo certo que a modalidade regra é a de depósito conjunto;
22- Como já reiteradamente alegado, a abertura de um depósito solidário assenta na confiança mútua dos seus titulares, sem a qual o regime (de excepção) da solidariedade não poderá subsistir;
23- Mas, tal como qualquer outra conta de depósito, seja ela singular ou plural, ela firma, antes do mais, numa relação de confiança entre os titulares (depositantes) e o seu banco;
24- Até porque sobre este impendem obrigações genéricas, destas se destacando, as relativas à lealdade e respeito consciencioso dos interesses dos seus clientes;
25- A par de lhe ser vedado violar as fundadas expectativas e os legítimos interesses dos seus clientes;
26- Conforme já exaustivamente referido, a cláusula de solidariedade assenta na confiança mútua dos titulares, sem a qual o regime (de excepção) da solidariedade não poderá subsistir;
27- No caso vertente essa múltipla confiança foi posta em causa a partir do momento em que os titulares da conta de depósito nº ………… (D… e E…) dirigiram à recorrente a carta/reclamação datada de 30/03/2010, através da qual põem em causa a legitimidade da procuração utilizada pela A., não sem que aí esgrimam o argumento da inexistência do acordo da co-titular E… naquele mesmo instrumento;
28- Ponderado o teor desta comunicação, ademais subscrita pro ambos os titulares da conta, duas conclusões se permitiu a recorrente extrair de imediato: primum que a relação de confiança, sem a qual a solidariedade não pode subsistir, havia sido posta em causa; secundum que os titulares da conta, mas em particular a co-titular E…, não aceitavam qualquer procuração que não fosse outorgada por ambos. Pelo que,
29- Tão assertiva manifestação de vontade sempre teria como consequência prática a imediata recondução (ou, reconversão) daquela conta da modalidade de depósito solidário, para a modalidade de depósito conjunto;
30- Dito de outro modo, confrontada com aquela manifestação de vontade, em todo o tempo competiria à recorrente repor o regime geral que caracteriza o depósito plural, ou seja o de depósito conjunto;
31- Regime esse que, como é consabido, exige a intervenção de todos os titulares para a sua movimentação;
32- Sendo que esta até se poderia materializar mediante a outorga conjunta de procuração para o efeito a favor de terceiro, assim o quisessem ambos os titulares da conta. Pois bem,
33- Confrontada com um tal quadro de desavença, em cumprimento do dever de diligência que lhe é exigível, cuidou a recorrente de proceder à (re)transferência das Obrigações de C…, da conta titulada apenas pela A. (onde haviam sido depositadas por força da procuração indevidamente aceite) para uma conta, destarte titulada pelos identificados D… e E…;
34- Sob pena de, caso assim não o fizesse, aí sim, (i) incumprir com as obrigações que sobre ela impendem, nomeadamente as que relevam para efeitos de neutralidade, lealdade e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados- vide arts 73º, 74º e 76º do RGICFS e (ii) violar de forma irreparável as fundadas expectativas e os legítimos interesses de um seu depositante;
35- Daquela que, inclusive, punha em causa a existência e legitimidade da procuração sub judice;
36- Em suma, destruída que se encontrava a relação de confiança mútua, matriz da solidariedade activa, e sendo agora conhecedora dos interesses expressamente manifestados pelos seus clientes, outra alternativa não restava à recorrente, que não aquela por que efectivamente optou;
37- Qual fosse a de proceder à transferência das Obrigações de C… da conta titulada pela A. para uma outra titulada por ambos os co-titulares;
38- Desta sorte repondo a situação, tal como ela estaria antes da data de aceitação da aludida procuração e dos movimentos que dela resultaram;
39- A sentença recorrida violou assim e entre outros, o artigo 512º do Código Civil e os artigos 73º, 74º e 76º do RGICSF.

Respondendo, ajuizou a Autora, em síntese:
1. A recorrente não põe em causa os poderes conferidos pelo representado ao representante para prática do ato e só depois da reclamação do representado é que a recorrente terá mudado de opinião e passou a ter outro entendimento.
2. Contudo, sem qualquer razão. As contas bancárias solidárias são uma das modalidades de contas de depósito conjuntas. Caracterizam-se pelo facto de poderem ser movimentadas por qualquer um dos seus titulares isoladamente. Dentro das contas de depósito, o Banco de Portugal distingue as contas singulares das contas coletivas. As contas bancárias solidárias encaixam-se na classificação de contas coletivas, uma vez que tem mais que um titular.
3. A Jurisprudência vem entendendo:
I – Nas contas bancárias conjuntas a mobilização e disponibilidade dos fundos depositados exige a simultânea intervenção da totalidade dos titulares, enquanto nas contas solidárias basta para o efeito a intervenção de qualquer dos titulares, indistinta e isoladamente subscrevendo cheques ou acordos de pagamento independentemente da autorização ou ratificação dos restantes: e isto independentemente de quem seja de facto e juridicamente o proprietário desses valores» ou seja, a natureza solidária das contas releva apenas nas relações externas entre os seus titulares e o banco, quanto à legitimidade da sua movimentação a débito, e nada tem a ver com o direito de propriedade das quantias depositadas.
II – Nesta vertente, as contas solidárias estão sujeitas ao regime de solidariedade ativa definido no artigo 512 nº 1 do C.C., cujo efeito predominante, nas chamadas relações externas», entre os credores solidários e o devedor, é o que cada um daqueles tem o direito de exigir deste a prestação integral, sem que o devedor comum possa aduzir exceção de que este não lhe pertence por inteiro.
4. Também o Ac. do STJ proc. 04B1464, de 10.12.2003:
I - As contas bancárias à ordem podem, ser singulares e coletivas; sendo que as coletivas, por sua vez, podem ser solidárias ou conjuntas.
II – Nas contas coletivas solidárias qualquer cotitular delas as pode movimentar, total ou parcialmente, independentemente de ser seu depositante; enquanto que as contas conjuntas elas só podem ser movimentadas por todos ou com autorização de todos.
III – A titularidade das contas solidárias não predetermina a propriedade dos fundos nelas contidos, a qual (a propriedade dos fundos ou valores) pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou cotitulares ou mesmo até, porventura, a terceiros. Identicamente, o Ac. Rel. Coimbra, no processo n.º 1233/09.0TBAVR.C1.
5. Estava a recorrida legitimada a representar um dos titulares da conta solidária e usar os poderes que por ele lhe foram conferidos, sem necessidade de intervenção da cotitular da conta, o que faz improceder o recurso.
II. OBJETO DO RECURSO
Sendo o thema decidendum delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 635º e 639º do Código de Processo Civil, daqui em diante denominado “CPC”), cabe apreciar da responsabilidade da Ré pela mobilização dos títulos depositados na conta bancária da Autora.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1 - A Ré é uma instituição de crédito legitimada para a prática do comércio bancário;
2 - A Autora é cliente da Ré possuindo a conta de depósitos à ordem … ‐ …….. ‐ ., tendo‐lhe sido associada a conta de títulos … ‐ ......... ‐ . em novembro de 2009;
3 - Em 30 de abril de 2010 era a A. titular de uma conta de títulos na qual se encontrava depositado o produto “Obrigações de C… Aforro …./….”, no valor de 51.500,00€;
4 - Em 25 de maio de 2010, a Ré indicou por extrato de maio de 2010, a venda de tal produto fora de bolsa;
5 - A Autora tomou conhecimento desse facto unicamente através da receção de extrato enviado pela Ré relativo a maio de 2010;
6 - A Ré tomou tal atitude sem consultar a Autora, não tendo esta dado qualquer ordem ou autorização para tal decisão;
7 - A Ré não procedeu ao depósito do produto da comunicada venda na conta de depósitos à ordem da Autora, nem em qualquer outra que lhe pertença;
8 - A Autora, vendo‐se desprovida da quantia de 51.500,00 euros relativa ao produto “Obrigações de C… Aforro …./….”, viu‐se obrigada a mandatar um Advogado, Dr. F…, para entender o esvaziamento da sua conta e falta de comunicação por parte da Ré;
9 - Face a tal intervenção, a Ré respondeu informando que em 25/05/2010 efetuou a correção do movimento referente à alteração da titularidade da conta de títulos, justificando que a procuração emitida em nome da Autora não conferia poderes para aquele ato;
10 - Em fevereiro de 2009 o pai da A. conferiu‐lhe poderes para, entre outros, em seu nome e representação, movimentar todas as contas bancárias de que fosse titular ou cotitular, ordenando transferências, qualquer que fosse a natureza e montante;
11 - E fê‐lo conscientemente, tendo assinado a citada procuração, assinatura que foi objeto de reconhecimento;
12 - Foi em função da reclamação apresentada pelo pai da Autora, D…, que a aqui Ré entendeu que a procuração emitida por D… à Autora em 16/02/2009 e entretanto por aquele revogada, deveria ter sido emitida com intervenção e acordo expresso da cotitular E…, atento o regime de solidariedade das contas bancárias em causa;
13 - Em função de tal entendimento, a Ré procedeu à transferência da Obrigações de C… da conta titulada pela Autora para uma nova conta titulada pelos identificados D… e E…;
4. Corresponde à transferência das Obrigações de C… para uma conta de valores mobiliários titulada e apenas movimentável por D… e E…;
15 - A procuração aludida em 10. não foi emitida com a intervenção da referida E…;
16 - Em 24/11/2009 o Sr. D…, pai da Autora, entregou ao Balcão de … da Ré o instrumento de revogação lavrado no dia anterior no Cartório Notarial de … a cargo da Notária G…, aí declarando: ”Que por este instrumento revoga a procuração de dezasseis de Fevereiro de 2009, com termo de autenticação feito na mesma data pelo advogado H…, com cédula profissional número ….-., com escritório no Largo …, nº …, na cidade do Porto, em que é mandante o aqui outorgante, D… e mandatária sua filha B…, residente na Rua …, nº …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, ou qualquer outra procuração em que seja mandatária sua filha B….”;
17 – D… apresentou reclamação à Ré afirmando que a Autora não tinha poderes de gestão do seu património;
18 – As referidas “Obrigações de C… Aforros …” foram reembolsadas e o respetivo valor foi creditado na conta de depósitos à ordem associada à conta de títulos titulada pelos D… e E…, que assumiu o nº ………….-..
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
É apodítico, porque documentalmente provado e sem discussão das partes, que D… e E… contratualizaram com a Ré a abertura de uma conta bancária no regime de solidariedade. Consabido que, em razão do número de titulares, as contas bancárias podem configurar-se como singulares ou coletivas, distinguindo-se na segunda espécie as contas conjuntas e as contas solidárias. Enquanto nas contas conjuntas, a mobilização e disponibilidade dos fundos depositados exige a simultânea intervenção da totalidade dos titulares, nas contas solidárias basta a intervenção de qualquer dos titulares, indistinta e isoladamente, para proceder a qualquer ato que sobre elas incidam, mobilizando fundos, subscrevendo cheques ou acordos de pagamento, independentemente da autorização ou ratificação dos restantes contitulares.
É esta segunda modalidade que aqui está em causa e, por isso, qualquer daqueles titulares, relativamente à Ré, tinha o direito de dispor, como entender, de todas as somas ou valores em crédito da conta, sozinho, bastando a assinatura de um dos titulares para a sua movimentação, levantamento de todos os fundos e mesmo para o seu encerramento, independentemente de quem seja, de facto e de direito, o proprietário desses valores[1]. Proposição que significa que a natureza solidária da conta apenas releva nas relações externas entre os seus titulares e o banco, mas é alheia ao direito de propriedade das quantias depositadas. O mesmo é dizer que, independentemente da propriedade dos títulos depositados na conta em causa, qualquer dos seus titulares estava legitimado a mobilizá-los, resgatando-os, isoladamente e sem qualquer intervenção do outro contitular. Porém, tudo isto apenas em face do banco, porque, no domínio das relações internas, os contitulares podem discutir a propriedade dos títulos e se a sua mobilização por um deles afeta ou não o património do outro. É o regime da solidariedade ativa, em que cada credor tem o direito de exigir a prestação integral sem que o devedor comum possa aduzir a exceção de que esta não lhe pertence por inteiro, mas na relação interna os credores podem discutir entre si a relação jurídica que os vincula, embora se presuma que comparticipam em partes iguais no crédito (artigos 512º/1 e 516º do Código Civil). Logo, o credor solidário que viu o seu direito satisfeito para além do que lhe cabia na relação interna entre concredores terá de satisfazer aos outros a parte que lhes pertence no crédito comum (artigo 533º do Código Civil)[2].
A questão que nos cabe decidir situa-se exatamente no âmbito da solidariedade nas relações externas, ou seja, entre o credor solidário e o devedor, em concreto entre o detentor de procuração que lhe foi conferida por um dos titulares da conta – D…, pai da Autora e a C…, agora demandada. Com efeito, em fevereiro de 2009, o pai da Autora conferiu‐lhe poderes para, em seu nome e representação, movimentar todas as contas bancárias de que fosse titular ou contitular, ordenando transferências, qualquer que fosse a natureza e montante (n.º 10 dos factos provados). Portanto, um único titular da conta solidária outorgou procuração a favor de terceiro para movimentar as suas contas bancárias, incluindo essa conta solidária, sem estar alegado e provado que tivesse o consentimento do outro contitular.
É axiomático que procuração e mandato são figuras jurídicas distintas, que podem coexistir, mas não coexistem necessariamente. Sendo a procuração um ato unilateral, o mandato é um contrato que impõe a obrigação de celebrar atos jurídicos por conta de outrem, ao passo que a procuração confere o poder de os celebrar em nome de outrem[3]. Vale por dizer que o mandato é um contrato de prestação de serviço, mediante o qual o mandatário assume a obrigação de praticar atos jurídicos de acordo com as indicações e instruções do mandante, quer quanto ao objeto, quer quanto à própria execução, podendo ser com ou sem representação (artigos 1178º e 1180º do Código Civil). A procuração é, diversamente, um negócio jurídico unilateral autónomo, pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos (artigo 262º/1 do Código Civil).
No caso, face à factualidade apurada, estamos perante uma procuração mediante a qual um titular da conta bancária sob destaque conferiu a sua filha, a Autora, poderes para livremente a movimentar e, usando tais poderes, esta ordenou à Ré, em 18/11/2009, a transferência dos títulos nela depositados para conta aberta na mesma instituição bancária exclusivamente em seu nome, o que foi por aquela executado. Na verdade, a finalidade da atribuição de poderes de representação ateve-se à movimentação de contas bancárias do representado «movimentar todas as contas bancárias de que fosse titular ou contitular, ordenando transferências, qualquer que fosse a natureza e montante» , sem referir qualquer obrigação de dar um específico destino aos produtos/dinheiros movimentados; a relação de confiança assim expressa permite concluir que estamos perante uma mera procuração e não um mandato representativo[4].
Portanto, tudo está em saber se, numa conta solidária, um dos titulares pode conferir procuração a terceiro para livremente a movimentar, problemática a que a sentença recorrida respondeu afirmativamente, numa solução que vem impugnada pela Ré C…, aqui recorrente. Resposta que, a nosso ver, deverá ser pesquisada no plano das relações internas do regime da solidariedade ativa, elemento que é essencial na compreensão desta matéria.
A solidariedade ativa numa conta bancária confere a qualquer dos contitulares uma ampla liberdade de atuação, permitindo-lhe fazer o que entender com os valores/títulos depositados, pelo que, ao abrirem uma conta nessas condições, aceitam tacitamente uma ilimitada liberdade recíproca na disposição de tais valores. Por isso, se diz que essa solidariedade pressupõe um mandato recíproco entre os credores, «um vínculo de mútua representação», que tem como fundamento o facto de cada credor agir em representação dos demais concredores, o que supõe uma relação de recíproca confiança[5]. É nesse clima de confiança e lealdade que os contitulares conferem uns aos outros um amplo mandato recíproco e exclusivo para movimentação da conta, mas o mandato tem um objeto definido que não pode ser usado senão para esse efeito[6].
Este enquadramento doutrinário não colhe consenso, porque autores há que reputam a obrigação solidária caracterizada pela unidade da prestação, não só sob o ponto de vista objetivo como subjetivo. Outros há que defendem que a cada credor (ou devedor) compete uma parte da prestação, mas há uma relação acessória entre os vários concredores (ou condevedores) que explica a possibilidade da prestação ser exigida integralmente por qualquer deles. Relação acessória que a maioria da doutrina configura como «uma mútua representação», embora haja quem nela veja uma relação de mandato, de fiança, de sociedade, de gestão de negócios[7].
A prerrogativa de livre exercício da parte da Autora de uma conta bancária mediante procuração que lhe foi conferida por seu pai, num ato unilateral, em que não interveio a outra contitular da conta, e sem a prova de que a mesma deu o seu consentimento (matéria que nem sequer foi alegada pela Autora) mina a relação de confiança que subjaz ao regime de solidariedade escolhido pelos contitulares da conta. Esta focagem do regime da solidariedade ativa de uma conta bancária no característico traço de «um vínculo de mútua representação» não admite, sem o consentimento dos demais, que um dos contitulares confira a terceiro poderes para livremente a movimentar[8]. Com efeito, a convenção de solidariedade assente na confiança que cada um dos credores coloca na boa fé do seu parceiro, a ponto de lhe conceder a faculdade de dispor de todo o ativo sem o consentimento dos demais. A relação jurídica é, portanto, intuitu personae, o que conduz à impossibilidade de um dos credores, sem o consentimento dos restantes, conferir a terceiro poderes para movimentar a conta[9].
Contudo, a Ré, aceitando a procuração que lhe foi exibida pela Autora, executou a sua ordem de transferência dos títulos depositados naquela conta solidária em conta bancária aberta exclusivamente em seu nome e, perante a reclamação apresentada pelo pai da Autora, reconsiderou a valia da procuração e ajuizou que a mesma deveria ter sido emitida com intervenção e acordo expresso da contitular E…, atento o regime de solidariedade da conta bancária. Dando conta desse erro, procedeu à transferência da Obrigações de C… da conta titulada pela Autora para uma nova conta titulada pelos identificados D… e E… (n.º 12 dos fundamentos de facto). A Ré, ao transferir os títulos para a conta do pai da Autora e da E…, mais não fez do que agir sob ordens e instruções dos titulares da conta da qual anteriormente tinham sido retirados, a mando da Autora e com base na referenciada procuração.
É esta atitude da Ré que a Autora contesta e que considera causa da sua responsabilização contratual, olvidando que a conta coletiva solidária, no âmbito das relações externas entre os titulares e o banco, releva exclusivamente para efeitos de gestão e movimentação da conta, sendo irrelevante para o banco a questão da titularidade jurídica relativa à propriedade das disponibilidades monetárias/valores mobiliários depositados. Portanto, foi atuando a tal luz que o banco aceitou a procuração a favor da Autora, transferiu os títulos para a sua conta, sem cuidar de indagar, por lhe ser indiferente, a questão da propriedade dos títulos. Porém, recebendo, ulteriormente, uma ordem do próprio titular da conta, emitente da procuração, entretanto revogada, cremos que o banco não pode deixar de executar essa ordem, designadamente face à reclamação apresentada. Ao aceitar a procuração e a transferência dos títulos para uma conta da Autora o banco assumiu um procedimento contrário às normas que regem o depósito em regime de solidariedade da conta, violando o contrato de depósito bancário estabelecido com os dois titulares da conta.
O contrato de depósito de valores mobiliários pode assumir duas modalidades: aquele em que há apenas uma obrigação de custódia e de restituição do mesmo objeto e aquele em que, ao lado desta obrigação de custódia, existe uma obrigação de administração dos títulos, característica do mandato e que se traduz na escrituração, conservação e recebimento de juros ou dividendos[10].
Divergindo quanto à natureza jurídica destes contratos, a generalidade da doutrina reputa um depósito de simples custódia como um depósito regular e um depósito também com obrigação de administração como um mandato, porque o banco se vincula a praticar atos jurídicos em nome do cliente (artigo 1157º do Código Civil).
Não estamos seguros quanto à verdadeira natureza jurídica do contrato de depósito em causa, mas admitimos que, por terem sido, entretanto, vendidos pelo banco, estivesse em jogo um contrato da segunda modalidade, ou seja, para além da obrigação de custódia, a Ré assumiu também a obrigação de administração dos títulos, o que o caracteriza como mandato.
Esta proposição aporta a abordagem de uma questão subsequente, que é a de saber se o banco, ao consciencializar a sua errónea aceitação da procuração para a transferência dos títulos para uma conta bancária da Autora, está legitimada, de motu proprio, a retificar o seu erro, repondo a situação inicial através da retransferência dos títulos para os titulares da conta inicial.
Prima facie, somos tentados a asseverar que o banco não pode mobilizar qualquer conta bancária de motu proprio; antes espera e cumpre as ordens que recebe dos seus clientes. Aliás, como ressalta do disposto no artigo 65º/1 a 3 do Regime Jurídico Relativo ao Acesso à Atividade das Instituições de Pagamento e à Prestação de Serviços de Pagamento[11], uma operação de pagamento ou um conjunto de operações de pagamento só se consideram autorizadas se o ordenante consentir na sua execução. Consentimento que deve ser dado previamente à execução da operação, salvo se for acordado entre o ordenante e o respetivo prestador do serviço de pagamento que o mesmo seja prestado em momento posterior, e que deve ser dado na forma acordada entre ambos, pois, em caso de inobservância da forma acordada, considera-se que a operação de pagamento não foi autorizada.
A ré não demonstra (e nem sequer alega), que aquela retransferência dos títulos foi consentida pela Autora; ao invés, a alegação da demandante e a posição assumida pela Ré antes registam que esta não deu autorização a tal operação. Logo, parecem estar consubstanciados os pressupostos da responsabilidade contratual da Ré: ato ilícito, que se presume culposo (artigo 799º/1 do Código Civil) de que derivou, em termos de causalidade adequada, danos para a Autora. Responsabilidade que resulta do preceituado no artigo 71º/1 do identificado regime legal, ao prever que, em relação a uma operação de pagamento não autorizada, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve reembolsá-lo imediatamente do montante da operação de pagamento não autorizada e, se for caso disso, repor a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se a operação de pagamento não autorizada não tivesse sido executada. E se uma ordem de pagamento for emitida pelo ordenante, a responsabilidade pela execução correta da operação de pagamento perante o ordenante cabe ao respetivo prestador de serviços de pagamento. Se o mesmo não puder provar ao ordenante e, se for caso disso, ao prestador de serviços de pagamento do beneficiário que este último recebeu o montante da operação de pagamento, a responsabilidade pela execução correta da operação de pagamento perante o beneficiário caberá ao prestador de serviços de pagamento do beneficiário. Caso a responsabilidade caiba ao prestador de serviços de pagamento do ordenante, ele deve reembolsar o ordenante, sem atrasos injustificados, do montante da operação de pagamento não executada ou incorretamente executada e, se for caso disso, repor a conta de pagamento debitada na situação em que estaria se não tivesse ocorrido a execução incorreta da operação de pagamento (artigo 86º).
Assim sendo, tendo a Ré movimentado a conta da Autora sem esta o ter ordenado, cabe-lhe a correspondente responsabilidade pela indevida execução daquele ato e, verificados, como acentuámos, os pressupostos da responsabilidade civil, tem de indemnizá-la, creditando na sua conta o montante correspondente aos valores mobiliários vendidos e respetivos juros (artigo 86º, 4 e 6 do citado regime jurídico).
A esta luz poderemos contrapor que a Ré, antes de mais, encetou a primeira execução indevida do pagamento quando aceitou a procuração apresentada pela Autora e, com base nela, mobilizou os títulos sem cuidar de indagar do consentimento da outra contitular da conta solidária onde os mesmos estavam depositados. Problemática que é alheia à questão que nos ocupa, por não estarem sob discussão os interesses dos titulares da conta solidária afetada. E quanto a esse indevida execução, logrou o titular da conta solidária alcançar a retificação por parte do banco, nos termos conferidos pelo artigo 69º do predito regime, mas isso não evita que tenha de assumir os danos consequentes à indevida retransferência e venda dos títulos sem ordem ou autorização da Autora.
Ademais, no âmbito da representação voluntária, dispunha o banco de amplos poderes para “controlar” a ordem de transferência que lhe foi dada pela Autora, pois se uma pessoa dirigir em nome de outrem uma declaração a terceiro, pode este exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes, sob pena de a declaração não produzir efeitos. Se os poderes de representação constarem de documento, pode o terceiro exigir uma cópia dele assinada pelo representante (artigo 260º do Código Civil). Portanto, cabia ao banco apreciar da admissibilidade/ou suficiência dos poderes constantes da procuração e não cumpriu esse ónus, cabendo-lhe a consequência natural do risco da ineficácia do contrato face ao representado.
O banco demandado tinha também para com a Autora uma relação bancária derivada do contrato de abertura de conta, correspondente ao contrato celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias. Trata-se do contrato que marca o início de uma relação bancária complexa e duradoura, fixando as margens fundamentais em que ela se irá desenrolar. A abertura de conta não deve ser tomada como um simples contrato bancário, a ordenar entre outros contratos dessa natureza: ela opera como um ato nuclear cujo conteúdo constitui, na prática, o tronco comum dos atos bancários subsequentes[12]. Associado à abertura de conta, o depósito bancário surge como uma operação genericamente aceite pelo banqueiro, que dá origem a movimentos, a crédito e débito, gerando uma espécie de conta-corrente sustentada pela prestação de diversos serviços bancários. Donde as exigíveis cautelas ao banco na movimentação da conta da Autora sem que ela a tenha autorizado, pelo que a omissão desses deveres de cuidado transportam a correspondente responsabilidade, em confirmação do decidido em primeira instância.
A relação subjacente à procuração emitida a favor da Autora define o seu conteúdo material, delimita os poderes e modela a atuação do procurador, sempre no interesse do dominus. Por isso, pode a Autora ter atuado em abuso de poderes, isto é, em desvio dos poderes que lhe foram conferidos pelo seu pai, mas essa questão não pode ser discutida nesta sede; nem foi colocada pelas partes nem o representado foi chamado a intervir.
Em epítome, estando a matéria da causa circunscrita à relação banco/cliente e tendo a Ré executado operação bancária em conta da Autora sem que esta lho tivesse ordenado ou autorizado, impende sobre aquele o correspondente dever de indemnização, quantificada no valor dos títulos mobilizados e juros, conforme decidido na sentença impugnada.
V. DISPOSITIVO
Perante o exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da Ré (artigo 527º/1 do CPC).
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Porto, 28 de novembro de 2017.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] José Maria Pires, Direito Bancário, vol. 2º, Editora Rei dos Livros, 1995, pág. 149.
[2] Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4.ª ed., pág. 454; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª ed. revista e atualizada, pág. 545.
[3] Inocêncio Galvão Telles, Contratos Civis, pág. 7.
[4] In www.dgsi.pt: Ac. STJ de 01/04/2014, processo 279/06.4TBOFR.S1.
[5] Paulo Cunha, Direito das Obrigações, Tomo 1, pág. 124.
[6] Vítor Coimbra Torres, in ROA, www.https://portal.oa.pt/upl/%7B522ffd92-b472-46c8-99c8-635612300404%7D.pdf, pág. 190.
[7] Almeida Costa, ibidem, pág. 456.
[8] Vítor Coimbra Torres, ibidem, pág. 191.
[9] Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, pág. 138, nota 396.
[10] Paula Ponces Camanho, ibidem, pág. 88.
[11] Aprovado pelo decreto-lei n.º 317/2009, de 30 de outubro.
[12] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, 3.ª ed., pág. 412.