Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0824024
Nº Convencional: JTRP00041645
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: PENHORA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
APREENSÃO
Nº do Documento: RP200809090824024
Data do Acordão: 09/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 281 - FLS 96.
Área Temática: .
Sumário: I - No regime introduzido pelo DL 38/2003, de 8/3, a penhora de veículo automóvel faz-se por comunicação à conservatória competente para efeitos da sua inscrição no registo e só depois de certificada esta inscrição é que se procede à apreensão do veículo (arts. 851º nºs 1 e 2 e 838º nº 1 do CPC).
II - A lei não obsta, antes permite, que, previamente à comunicação à conservatória, o agente de execução colha informações sobre a existência do veículo e o seu estado e valor comercial (art. 832º do CPC), mas não permite que se proceda à apreensão prévia do veículo com o fim de averiguar da sua existência, do seu estado e do seu valor comercial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 4024/08-2
1.ª Secção Cível
NUIP …/07.8TBSTS-C

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I

1. O B………., S.A., exequente nos autos de execução para pagamento de quantia certa que corre termos no ..º Juízo Cível da comarca de Santo Tirso com o n.º …/07.8TBSTS-A, em que são executados C………. e D………., tendo sido notificado para os fins do disposto no art. 837.º do Código de Processo Civil, requereu o seguinte:
«… que o solicitador de execução diligencie imediatamente pela apreensão do veículo automóvel com a matrícula ..-..-GD, propriedade do executado C………., apreensão a ser levada a efeito antes do mero registo formal da penhora, uma vez que só com a referida apreensão prévia será possível ao exequente, ora requerente, averiguar se o estado do veículo justifica os gastos inerentes ao registo da penhora».
Este requerimento do exequente foi indeferido na parte em que requeria a apreensão do veículo antes do registo, com a seguinte fundamentação:
«Conforme claramente resulta dos disposto nos arts. 851.º, n.º 1 e 2, e 838.º, do Código de Processo Civil, a penhora de veículo automóvel, que é uma penhora de bens móveis sujeitos a registo, começa pelo registo da mesma seguido da imobilização.
Os argumentos apresentados pela exequente não se nos afiguram pertinentes para inverter a ordem que o legislador quis dar à forma de efectivação da penhora, tanto mais que a penhora se considera feita com o registo e não com a apreensão (art. 838.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Pedir para apreender e depois não querer registar é praticar um acto inútil, que a lei não consente, sendo certo que, em última análise, as despesas com o registo são meramente adiantadas pela exequente, mas efectivamente pagas pelo executado.
Assim, indefere-se a pretendida apreensão antes do registo.»
Não se conformando com esta decisão, o exequente recorreu para esta Relação, extraindo das suas alegações as conclusões seguintes:
1.º - A penhora consiste na efectiva apreensão dos bens, no seu desapossamento em relação ao executado devedor.
2.º - O artigo 137.º do Código de Processo Civil, mau grado todas as alterações introduzidas no referido normativo legal em sede de execução, continua a dispor que: “Não é licito realizar no processo actos inúteis, incorrendo em responsabilidade disciplinar os funcionários que os pratiquem”.
3.º - O artigo 851.º, n.º 2, do Código de Processo Civil não obsta a que se proceda ao registo da penhora de veículos automóveis só após a respectiva apreensão e a respectiva avaliação pelo que consequentemente o registo de penhora deve ser feito apenas após se ter procedido à apreensão do veiculo e à sua avaliação.
4.º - A interpretação e aplicação prática e correcta da norma ínsita no artigo 137.º do Código de Processo Civil, com o disposto no n.º 2 do artigo 851.º do mesmo normativo legal, tudo conjugado com a realidade prática do que se passa no que respeita à penhora/apreensão de veículos automóveis, justifica a plena razão que ao recorrente, exequente em 1.ª instância, assiste, no sentido de que o Sr. Solicitador de Execução só deverá proceder ao registo de penhoras de veículos automóveis após se ter procedido à respectiva apreensão e avaliação, donde o presente recurso dever ser julgado procedente e provado e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido e substituir-se o mesmo por acórdão que defira o que nos autos requerido foi pelo exequente, ora agravante no que respeita à apreensão do veículo.
Os executados não apresentaram contra-alegações.
Foram cumpridos os vistos legais.
II

2. A única questão a resolver, tendo em conta o teor do despacho recorrido e o objecto do agravo, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões (arts. 684.º, n.º 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), consiste em saber se, na penhora de veículo automóvel, os actos relativos à apreensão material do veículo e à sua avaliação devem preceder a comunicação à conservatória competente para efeitos da sua inscrição no registo.
A divergência que a recorrente manifesta com o despacho recorrido não radica, propriamente, em qualquer desconformidade deste despacho com as normas legais que prevêem as formalidades a observar na realização da penhora de veículos automóveis, ou seja, em concreto, com as normas constantes dos arts. 851.º e 838.º do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08/03, mas na discordância que o recorrente opõe ao regime instituído por este diploma legal para a realização da dita penhora. Trata-se, assim, de uma divergência de cariz dogmática com a própria lei, e não, propriamente, de uma desconformidade da decisão recorrida com a lei aplicável e aplicada. E neste contexto, as mui respeitosas razões da recorrente, não se colocando num patamar supra legal susceptível de as poder sobrepor às opções do legislador, não podem prevalecer sobre a lei, mesmo que pudessem merecer a nossa adesão.
Efectivamente, o Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08/03, introduziu importantes alterações no regime e no esquema da acção executiva, e, de modo particular, nos actos relativos à penhora. Alterações caracterizadas, segundo o que é dito no respectivo preâmbulo, pela “simplificação dos seus procedimentos” e pela atribuição “a agentes de execução a iniciativa e a prática dos actos necessários à realização” da penhora, função que é normalmente exercida por solicitador de execução (art. 808.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Para o efeito, foi criado o registo informático das execuções (art. 806.º do CPC e Decreto-Lei n.º 201/2003, de 10/09), “que disponibilizará informação útil sobre os bens do executado, assim como sobre outras execuções pendentes contra o mesmo executado”; foi instituído o processamento electrónico da penhora no tocante a certos bens ou direitos, designadamente quanto à penhora de bens imóveis e de bens móveis sujeitos a registo (arts. 838.º, n.º 1, e 851.º, n.º 1, do CPC), como é o caso dos veículos automóveis; e foi concedido ao agente de execução o acesso directo ao registo informático das execuções (arts. 807.º, n.º 3, al. b), e 832.º, n.º 2, do CPC) e à consulta de outras bases de dados, designadamente da segurança social, das conservatórias do registo e de outros registos ou arquivos semelhantes (art. 833.º, n.º 1, do CPC), com a ressalva das sujeitas a regime de confidencialidade, que carecem de previa autorização judicial (art. 833.º, n.º 3, do CPC).
É no âmbito deste quadro de opções do legislador que terá que ser interpretado o regime legal relativo à penhora de veículos automóveis decorrente do Decreto-Lei n.º 38/2003, que se encontra regulado nos arts. 851.º e 838.º do Código de Processo Civil (este por remissão expressa daquele).
Assim, enquanto que no regime que vigorou anteriormente ao Decreto-Lei n.º 38/2003, a penhora de veículos fazia-se “com a apreensão do veículo e dos seus documentos” (art. 848.º, n.º 5, do CPC), imediatamente seguida da avaliação do veículo e da sua entrega a depositário, de que tudo era registado no respectivo auto de apreensão que valia como auto de penhora (art. 849.º, n.ºs 1 e 4, do CPC e art. 17.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/02), e só depois de concluídas todas essas diligências é que se procedia ao registo da penhora, para ter eficácia em relação a terceiros, a que servia de base o auto de apreensão (arts. 5.º, n.º 1, al. e), do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/02), no regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, ora constante dos actuais arts. 851.º e 838.º do Código de Processo Civil, a realização da penhora de veículo, como a de outros bens móveis sujeitos a registo, passou a processar-se como a penhora de bens imóveis (art. 851.º, n.º 1, do CPC), ou seja, “por comunicação electrónica à conservatória do registo predial competente, a qual vale como apresentação para o efeito da inscrição no registo” (art. 838.º, n.º 1, do CPC), e só depois de inscrita a penhora é que o agente de execução lavra o auto de penhora com base no certificado do registo que a conservatória lhe enviará (art. 838.º, n.ºs 2 e 3, do CPC), e solicita à autoridade administrativa ou policial a apreensão do veículo e dos documentos para efeitos da sua imobilização à ordem da respectiva execução (art. 851.º, n.º 2, do CPC).
Como se constata, é o próprio conceito de penhora que foi alterado. De modo que já não é exacto afirmar, no tocante à penhora de bens móveis sujeitos a registo, que “a penhora consiste na efectiva apreensão dos bens” como diz a recorrente. É que, como resulta das disposições legais anteriormente citados e como escreve JOSÉ LEBRE DE FREITAS (em A Acção Executiva – Depois da Reforma, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2004, p. 247-248), a penhora destes bens faz-se “por comunicação à conservatória do registo competente”, a que só depois se segue, no caso de veículo automóvel, a imobilização do automóvel. Pelo que o efeito da penhora destes bens radica “numa transferência de posse meramente jurídica” que decorre da comunicação à conservatória competente para efeitos de inscrição no registo, e já não na apreensão material do veículo, como sucedia no regime anterior.
Assiste, pois, inteira razão ao Sr. Juiz quando diz, no despacho recorrido, que “pedir para apreender e depois não querer registar é praticar um acto inútil, que a lei não consente”.
Idêntica interpretação foi assumida no acórdão da Relação de Lisboa de 21-04-2005 (em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ proc. n.º 3062/2005-8), em que se afirma que “permitir que um veículo seja apreendido e imobilizado a fim de o exequente poder depois decidir se lhe vale a pena penhorá-lo, traduz-se numa injustificada alteração do regime legal, um uso jurisprudencial contra legem que apenas se destinaria a permitir ao exequente poupar os gastos com a penhora … (mas que, a não ser seguida de penhora), seria, ela sim, susceptível de causar prejuízos elevadíssimos ao executado, … da responsabilidade do Estado por prática judicial flagrantemente violadora da lei”.

3. A exequente contra-argumenta que inútil é proceder ao registo da penhora antes de se saber se o estado e o valor do veículo justificam a efectivação da penhora e os gastos com o registo e que o n.º 2 do artigo 851.º do Código de Processo Civil não obsta a que se proceda ao registo da penhora só após a apreensão do veículo e a respectiva avaliação.
De facto, o preceito do n.º 2 do art. 851.º do Código de Processo Civil não obsta à apreensão do veículo previamente à comunicação para efeitos do registo, mas o n.º 1 do mesmo artigo, ao remeter para as formalidades previstas no art. 838.º do mesmo código, impõe que se proceda de maneira diferente: que primeiro se comunique à Conservatória para efeitos de inscrição da penhora no registo e só depois de feita esta inscrição no registo é que se procede à apreensão do veículo.
E o argumento de que é inútil proceder ao registo da penhora antes de se saber se o estado e o valor do veículo justificam a efectivação da penhora e os gastos com o registo corporiza uma visão de interesse pessoal do exequente que não corresponde ao interesse que o legislador quis prosseguir com o novo procedimento legal de realizar a penhora.
É que no regime resultante do Decreto-Lei n.º 38/2003, a iniciativa e a opção sobre os bens a penhorar deixou de pertencer ao executado e ao exequente, como sucedia no regime anterior (arts. 833.º, 836.º e 924.º do CPC então vigente), e passou a pertencer ao agente de execução (arts. 808.º, n.º 1, 832.º, n.º 1, do CPC), o qual, independentemente de qualquer indicação por parte do exequente no requerimento executivo, deve começar a penhora “pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostre adequado ao montante do crédito do exequente” (art. 834.º, n.º 1, do CPC).
E se o valor do bem ou bens penhorados for insuficiente para garantir o pagamento do crédito exequendo e das despesas previsíveis da execução (art. 821.º, n.º 3, do CPC), pode a penhora ser reforçada com uma nova penhora de mais bens ou substituída pela penhora de outro ou outros bens de maior valor (art. 834.º, n.º 3, do CPC).
E quanto aos gastos com o registo da penhora, se algum encargo comporta para o exequente, resume-se ao seu adiantamento (art. 454.º, n.º 3 do CPC), como é dito no despacho recorrido, já que, a final, tais gastos são efectivamente suportados pelo património do executado, nos termos previstos nos arts. 454.º, n.º 3, in fine, 455.º e 821.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, art. 5.º do Decreto-Lei n.º 204/2003, de 12/09, e art. 33.º, n.º 3, do Código das Custas Judiciais.

4. É certo que alguma jurisprudência da Relação de Lisboa, designadamente os dois acórdãos que a recorrente juntou aos autos (de 06-07-2006, proc. n.º 3043/06, e de 23-11-2006, proc. n.º 6123/06-8, este com um voto de vencido), embora reconhecendo que a penhora de bens móveis sujeitos a registo se faz como a penhora de bens imóveis, por comunicação electrónica à conservatória do registo competente, veio a concluir que “a lei não impede que, atentas as circunstâncias concretas, antes da comunicação ao registo, se proceda à apreensão de veículo automóvel, ou se colha informação sobre se o bem existe ou tem valor comercial, desde que factos objectivos levem a duvidar da sua existência ou valor comercial”.
Como se constata e diferentemente do que sugere a recorrente, a bondade desta jurisprudência quanto à interpretação das normas constantes do art. 851.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na parte aplicáveis à penhora de veículos automóveis, não leva a concluir que a lei não impede que, em qualquer caso de penhora de veículo automóvel, se possam inverter as formalidades ali prescritas, começando pela apreensão do veículo e só depois de apreendido e avaliado é que se procederá ao registo da penhora. O que ali se admite é que, em certos casos, “atentas as circunstâncias concretas … desde que factos objectivos levem a duvidar da sua existência ou valor comercial”, pode proceder-se à apreensão de veículo automóvel antes da comunicação ao registo ou pode colher-se informação sobre se o bem existe e tem seu valor comercial.
Quanto a colher informações prévias sobre a existência do veículo e o seu estado e valor comercial, concordamos que a lei não só não obsta como até permite que tais diligências sejam realizadas, no âmbito das consultas prévias a que alude o art. 832.º do Código de Processo Civil. Mas não foram estas informações prévias que a recorrente solicitou ao tribunal recorrido, mas sim e tão somente a apreensão prévia do veículo.
Quanto à apreensão material do veículo previamente à penhora é que nos parece que se trata de diligência que vai além do que a lei consente e, neste âmbito, corroboramos o entendimento expresso no despacho recorrido e no acórdão da relação de Lisboa de 21-04-2005, supra citado.
De qualquer modo, neste caso, a exequente nenhum facto objectivo invocou que pudesse por em causa a existência do veículo, a qual se presume perante o que consta do registo (art. 7.º do Código do Registo predial), ou a fazer duvidar do seu valor comercial. E, por isso, nem perante a bondade daquela jurisprudência se justificava alterar as formalidades legais da realização da penhora.
Ademais, ao que se depreende dos elementos que instruíram o presente agravo, neste caso, a penhora do veículo foi requerida pela própria exequente, depois de notificada pelo solicitador de execução nos termos do disposto no n.º 1 do art. 837.º do Código de Processo Civil. O que pressupõe que as informações que a exequente pretendia colher com a apreensão prévia do veículo deveria tê-las indagado previamente ao requerimento para penhora. E não depois.

5. Assim, e concluindo:
1) No regime introduzido pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, a penhora de veículo automóvel faz-se por comunicação à conservatória competente para efeitos da sua inscrição no registo e só depois de certificada esta inscrição é que se procede à apreensão do veículo (arts. 851.º, n.ºs 1 e 2, e 838.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção dada por aquele decreto-lei).
2) A lei não obsta, antes permite, que, previamente à comunicação à conservatória, o agente de execução colha informações sobre a existência do veículo e o seu estado e valor comercial (art. 832.º do Código de Processo Civil), mas não permite que se proceda à apreensão prévia do veículo com o fim de averiguar da sua existência, do seu estado e do seu valor comercial.
III

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo.
Custas pela agravante (art. 2.º, n.º 1, al. a), do Código das Custas Judiciais).
*

Relação do Porto, 09-09-2008
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues