Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2717/12.8TBPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: PETIÇÃO DE HERANÇA
CONTRATOS DE SEGUROS DE VIDA
Nº do Documento: RP201802212717/12.8TBPVZ.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 812, FLS 223-238)
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter ou alterar, consoante se mostre, ou não, apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
II - A acção de petição da herança tem como objecto o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do autor e a restituição dos bens da herança, indevidamente retidos pelo demandado.
III - Os seguros ligados a fundos de investimento são instrumentos de captação de aforro estruturado e assumem a natureza jurídica de contratos de seguros de vida.
IV - Estruturalmente, são contratos a favor de terceiro e estando a aquisição do direito à prestação do seguro, pelo terceiro beneficiário, dependente da morte do segurado, não integra o património deste o capital objecto do seguro.
V - Havendo beneficiários designados na respectiva apólice e sobrevivendo eles à pessoa segura, os herdeiros desta não podem obter a prestação do capital seguro, pelo que não podem exigir a sua entrega à herança do segurado.
VI - O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, manifesta-se pela violação do princípio da confiança e a sua proibição reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte, servindo de válvula de segurança para impedir ou paralisar situações de grave injustiça, o que não ocorre quando o beneficiário de um seguro se limitou a receber uma prestação que adquire directamente da seguradora e a que tem direito por ter sido designado beneficiário dela.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2717/12.8TBPVZ.P1
Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2 e inicialmente do 3.º Juízo de Competência Cível da mesma localidade, onde deu entrada em 11/12/2012.

Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:

I. Relatório

B..., residente no ..., freguesia ..., concelho de Barcelos, instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra:
1. C...... e mulher D..., residentes na Rua ..., n.º .., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Famalicão;
2. E... e mulher F..., residentes na Rua ..., n.º .., freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim;
3. G... e mulher H..., residentes na Rua ..., n.º ..., freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim; e
4. I... e mulher J..., residentes na Rua ..., n.º .., Póvoa de Varzim,
pedindo:
A) Que os réus sejam condenados a reconhecer que as quantias que discriminou na petição inicial, no valor total de 701.486,67 €, eram propriedade de K..., falecido em 17 de Fevereiro de 2008;
B) Que se declare que os réus se apropriaram de tais quantias, por acordo mútuo e em benefício de todos;
C) Que os réus sejam condenados, solidariamente, a devolver tais quantias ao património da herança deixada pelo falecido K...;
D) Que os réus sejam condenados a restituir também, nos termos dos pedidos anteriores, as quantias que ainda se venham a liquidar quando houver informação nos autos de todos os movimentos das contas bancárias de depósito do K... no “L..., SA” e de outras aplicações financeiras ou seguros na “Companhia de Seguros M...”.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
É herdeira de K..., falecido em 17/2/2008, de quem também são herdeiros os terceiros e quartos réus, enquanto os primeiros eram caseiros e os segundos filho e nora destes.
Aqueles herdeiros e estes conluiaram-se entre si por forma a sonegarem à partilha bens e valores, no total de 701.486,67 €, e, ainda, outros valores resultantes de aplicações financeiras que ainda não lhe foi possível quantificar.
Aquela quantia engloba os seguintes valores parciais:
1 - 137.500,00 €, referentes a parte do preço de um contrato de compra e venda celebrado verbalmente entre K... e os réus C... e mulher D..., tendo por objecto um prédio urbano, mas que o K... acabou por declarar transferir por testamento, em que os instituiu legatários do mesmo prédio, sendo que era sua vontade manter a anterior venda;
2 - 37.500,00 €, referentes a parte do preço de um contrato de compra e venda celebrado entre K... e os réus E... e mulher F..., tendo por objecto dois prédios rústicos;
3 - 150.000,00 €, referentes a cheques entregues a K... pelos réus C... e mulher e E... e mulher, de que os réus G... e I... se apropriaram;
4 - 70.000,00 €, referentes a parte do preço da venda de um prédio de K... a N..., que os réus receberam e de que se apropriaram;
5 - 75.000,00 €, referentes a parte do preço da venda de uma casa, sita na Rua ..., n.º .., na Póvoa de Varzim, que os réus receberam e de que se apropriaram;
6 – 98.290,30 €, referentes a uma prestação convencionada em virtude de um seguro de vida celebrado por K... com a Companhia M1..., correspondente à apólice n.º .........., Poupança Valor L1...;
7 - 143.196,37 €, referentes a quantias de que era proprietário K..., retiradas pelos RR. G... e mulher e I... e mulher da conta de depósitos à ordem n.º ..........., do L....
8. A estes valores parciais, acrescem as quantias que ainda não conseguiu quantificar resultantes das aplicações com os números .........., Renda Segura, .........., e .........., Renda Crescente 2007 8A 4S, .........., .........., .........., ..........., e .........., Renda Certa 2005 8A, .........., .........., .........., e .........., Renda Certa 2005 8A 6S, .......... e .........., L1... Renda +, .........., .........., .........., .........., .........., Renda Certa 2004 5A 3S, .........., Renda Certa 2003 5A 3S, e ........., Poupança 125 – 1.ª Série.

Os réus contestaram, conjuntamente, excepcionando a ilegitimidade activa, a ineptidão, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, e a coligação indevida, e impugnando grande parte da factualidade alegada, concluindo pela procedência das excepções ou pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do pedido, pedindo, ainda, a condenação da autora como litigante de má fé em multa e indemnização.

A autora replicou, sustentando a improcedência das excepções, impugnando os factos alegados e concluindo como na petição inicial.

Os réus treplicaram, pugnando pela redução do pedido para o valor do quinhão da autora (25.980,98 €) em face do “esclarecimento” da causa de pedir no sentido de que apenas pretende o que lhe cabe nos bens da herança relativamente aos quais foram remetidos para os meios comuns e reiteraram o pedido de condenação como litigante de má fé.

Na audiência prévia, realizada depois da adequação processual ao novo CPC, em 22/1/2014, foi proferido despacho saneador, onde foram julgadas improcedentes as excepções da ineptidão, da ilegitimidade activa e da coligação indevida, bem como foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.
No entanto, posteriormente, em 17/9/2015, foi conhecida parte do mérito da causa, tendo sido decidido julgar a acção parcialmente improcedente e, em consequência, absolver os réus dos seguintes pedidos:
A) Da quantia de 137.500,00 €, respeitante a parte do preço de um contrato de compra e venda celebrado verbalmente entre K... e os réus C... e mulher D..., tendo por objecto um prédio urbano, depois titulado por um legado em testamento;
B) Da quantia de 37.500, 00 €, respeitante a parte do preço de um contrato de compra e venda celebrado entre K... e os réus E... e mulher F..., tendo por objecto dois prédios rústicos;
C) Da quantia de 20.000,00 €, respeitante a parte do preço de uma venda de um prédio de K... a N...;
D) Da quantia de 98.290,30 €, respeitante a uma prestação convencionada em virtude de um seguro de vida celebrado por K... com a “Companhia M1...”, correspondente à apólice n.º .......... – Poupança Valor L1...;
E) Referente à parte do pedido a liquidar em decisão ulterior, respeitante a “aplicações financeiras os seguros na “Companhia de Seguros M...””.
No mesmo despacho, foram descritos “factos assentes” e foram enunciados novamente temas de prova para apreciação dos itens 3, restante parte do 4, 5 e 7.

Daquela decisão sobre o conhecimento do mérito parcial, foi interposto recurso de apelação, em separado, pela autora, o qual foi julgado parcialmente procedente, por douto acórdão desta Relação de 4/2/2016, que revogou parte da decisão recorrida e determinou “a prossecução dos autos também quanto aos pontos D) e E) do seu dispositivo”, ou seja, para apreciação também dos pedidos referentes à quantia de 98.290,30 €, respeitante a uma prestação convencionada em virtude de um seguro de vida celebrado por K... com a “Companhia M1...”, correspondente à apólice n.º .......... – Poupança Valor L1..., e à parte do pedido a liquidar em decisão ulterior, respeitante a aplicações nos seguros na “Companhia de Seguros M...”.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, em várias sessões, ao longo do ano de 2016, com observância do formalismo legal aplicável.

Finalmente, em 10/3/2017, foi lavrada douta sentença em que se decidiu julgar a acção improcedente e absolver os réus do pedido.

Inconformada com essa sentença, a autora interpôs recurso para este Tribunal e apresentou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“1. Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 1, al. a) do CPC, vem a presente apelação interposta da douta sentença de 10/03/2017, que julgou a acção totalmente improcedente;
2. Com recurso à reapreciação da prova gravada, a Apelante impugna a decisão da matéria de facto dos pontos 4 e 18 dos factos julgados provados, assim como das alíneas a), c), d) e e) dos factos julgados não provados, pretendendo que sobre eles seja proferida a seguinte decisão:
4-) PROVADO QUE a conta de depósitos à ordem n.º ..........., do L..., agência ..., era contitulada por K... e pelos RR. G... e I..., sendo os respectivos saldos propriedade exclusiva de K....
18-) NÃO PROVADO.
d-) PROVADO QUE os RR., em conluio, apropriaram-se do montante de €50.000,00 referentes à venda aludida em 8);
a-) PROVADO QUE antes do óbito do autor da herança, e sem autorização deste, os RR. G... e I... retiraram e apropriaram-se do montante de €143.196,37 da conta de depósitos à ordem n.º ..........., do “L...”, agência ...;
e-) PROVADO QUE os RR. G... e I... sabiam que apenas constavam como beneficiários das aplicações indicadas em 12) para mais facilmente poderem levantar o dinheiro das mesmas e o partilhar com os herdeiros.
c-) PROVADO QUE os RR. I... e G..., em conluio, apropriaram-se do montante de €75.000,00, proveniente da entrega referida em 7).
3. O legislador ao afirmar que a Relação reaprecia as provas, acrescentando que na reapreciação se poderá atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão, pretende que o tribunal de 2.ª instância faça novo julgamento da matéria de facto, vá à procura da sua própria convicção e, assim, assegure o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto;
4. Quanto ao ponto 4 dos factos provados, a resposta do tribunal a quo peca por defeito, porquanto ao mesmo tempo que reconhece que o de cujus é “o primeiro titular da conta (e o verdadeiro e único dono do dinheiro)”, não leva aos factos provados o que vem alegado pela A. sob o artigo 48.º da Petição Inicial;
5. Quanto ao ponto 18 dos factos provados e à alínea d) dos factos não provados, a Apelante invoca os seguintes meios de prova:
a. Depoimento de O...;
b. Depoimento de P...; e
c. Depoimento de Q..., todos compatíveis com o teor da escritura pública de fls. 206 a 210.
6. O “documento de confissão de dívida” outorgado por N... e pelos pais, nos termos constantes de fls. 108, não é susceptível de abalar aqueles meios de prova, porquanto trata-se de um mero documento particular controlável pelos RR., subscrito apenas por aquela N... e pelos pais, sem qualquer intervenção do autor da herança;
7. Quanto às alíneas a) e e) dos factos julgados não provados, a Apelante formula os seguintes reparos:
a. Como explicar que todo o dinheiro das apólices fosse para partilhar pelos herdeiros, excepto a de valor de €98.290,30?
b. Testemunha O... reportou-se expressamente às aplicações financeiras e às “contas de seguro”, afirmando peremptoriamente que, tal como sucedia com a conta bancária, em que os RR. G... e I... era contitulares, também nas “aplicações de seguro” ou nas “contas de seguro” figuravam como beneficiários apenas e só para, à morte do autor da herança, levantarem ou resgatarem o dinheiro, para o juntar e partilhar;
c. O depoimento de O... é secundado pelo de P...;
d. Embora formalmente distintas (as contas bancárias e as apólices de seguro), materialmente trata-se de “dinheiro” aplicado pelo de cujus, seja em depósito, seja em aplicação financeira, seja em apólice de seguro;
8. Ainda em relação às alíneas a) e e) dos factos julgados não provados é importante salientar que:
a. Pese embora as pretensas “liberalidades” e despesas do autor da herança, fica por explicar como é que este, em tão poucos anos e perante vendas de imóveis de valor superior a €500.000,00, reduz os seus depósitos à quantia de €7.104,37, à data da morte;
b. Os extractos bancários juntos aos Autos revelam que após 07/09/2007, data em que o autor da herança sofreu uma queda que o “acamou” até à sua morte, os RR. movimentaram a conta do “L...” a débito num total de €450.295,00, tendo apenas relacionado no Inventário aplicações e depósitos, verbas 9 a 12 do inventário, no valor total de € 307.098,63;
c. Sabendo-se que o dinheiro era do autor da herança e que este já não tinha capacidade de locomoção, encontrando-se acamado, e que os RR. enquanto contitulares da conta podiam movimentá-la a seu bel-prazer, competia aos RR. demonstrar que aqueles movimentos que realizaram foram para pagar contas do de cujus ou efectuadas sob as ordens deste (art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil ou, quando assim não se entenda, art.º 344.º, n.º 1 do Código Civil);
9. Quanto à alínea c) dos factos julgados não provados, a Apelante invoca os seguintes meios de prova:
a. Depoimento de AJ...;
b. Escritura pública de 17/12/2007;
c. Extractos bancários juntos aos Autos (da conta do L...) onde resulta um movimento a crédito em 17/12/2007, com o descritivo “depósito de cheques OIC”, no montante de €102.500,00;
d. Extractos bancários juntos aos Autos (da conta do L...) onde resulta a realização de 6subscrições com o descritivo “subscrição (…) DE RND CR MAIS 4 SR”, no montante total de €76.000,00, em 26/12/2007, que permaneciam em 31/01/2008;
e. Depoimento o Réu I..., na parte que admite que, “no que concerne às aplicações na seguradora «M... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S,A,» (…) o Réu I... (…) estava convencido que o dinheiro das apólices, excepto a de valor de €98.290,30 seria para distribuir pelos herdeiros”;
10. Ainda quanto à alínea c) dos factos julgados não provados, é importante salientar que a aludida apólice “Renda Crescente 2007 8A 4S”, ..........., .........., .........., .......... e .........., no total de €76.000,00, que resultou na quase totalidade do depósito do cheque de €75.000,00 relativo ao negócio descrito em 5-) e 7-) da fundamentação de facto, não foi relacionado no Inventário;
11. Face ao exposto, é mister concluir que:
a. Os RR. se locupletaram e apoderaram do montante de €143.196,37 da conta do “L...” n.º ...........;
b. Os RR. I... e G..., em conluio, apropriaram-se da aludida quantia de €75.000,00 da venda, a AJ..., do prédio situado na Rua ..., n.º .., do concelho da Póvoa de Varzim;
c. Os RR. se locupletaram e apropriaram da quantia remanescente de €50.000,00 da venda, a N..., do prédio situado na Rua ..., n.º .., do concelho da Póvoa de Varzim; e
d. Os RR. abusam de direito ao invocar em seu benefício as cláusulas do contrato celebrado com a «M... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A.», que identificam os RR. I... e G... como beneficiários das apólices, na proporção de 50% para cada, à morte de K..., quando têm perfeita consciência de que tal só sucede por conveniência daquele K..., para que mais facilmente pudessem resgatar e partilhar com todos os herdeiros identificados no testamento as aludidas quantias, isto é, perfeitamente consciente de que figuravam como beneficiários das ditas aplicações com o encargo de, posteriormente, o partilhar nos sobreditos termos;
e. Os RR. I... e G... locupletaram-se da quantia de €98.290,30 e dos montantes relativos às apólices .......... – “Renda Segura”, .......... e .......... – “Renda Crescente 2007 8A 4S”, ........., .........., .........., .......... e .......... – “Renda Certa 2005 8ª”, .........., .........., .......... e .......... – “Renda Certa 2005 8ª 6S”, .......... e ......... – “L1... Renda +”, .........., .........., .........., .........., ......... – “Renda Certa 2004 5A 3S”, .......... – “Renda Certa 2003 5A 3S” e .......... – “Poupança 125 – 1.ª Série”, de que o de cujus era titular na seguradora “M... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A.”.
12. Como tal, devem ser condenados a restituir tais quantias à herança;
13. Assim não decidindo, a douta sentença recorrida viola os art.ºs 334.º e 2075.º a 2078.º do Código Civil.
Termos em que deve a presente apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogada a douta sentença recorrida, proferindo-se douto acórdão que julgue a acção parcialmente procedente e:
a-) Condene os RR. a reconhecer que as quantias supra referidas, no valor total de 366.486,67, eram propriedade de K..., falecido em 17/02/2008;
b-) Declare que os RR. se apropriaram de tais quantias, de mutuo acordo e em benefício de todos;
c-) Condene os RR., solidariamente, a devolver tais quantias ao património da herança deixada pelo falecido K...; e
d-) Condene os RR. a restituir também à dita herança as quantias relativas às apólices ......... – “Renda Segura”, ......... e .......... – “Renda Crescente 2007 8A 4S”, .........., .........., .........., .......... e .......... – “Renda Certa 2005 8ª”, .........., .........., .......... e .......... – “Renda Certa 2005 8A 6S”, .......... e .......... – “L1... Renda +”, ..........., .........., .........., ........, .......... – “Renda Certa 2004 5A 3S”, .......... – “Renda Certa 2003 5A 3S” e .......... – “Poupança 125 – 1.ª Série”, de que o de cujus era titular na seguradora “M... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A.”
Assim decidindo, farão V.as Ex.as Venerandos Desembargadores, a habitual JUSTIÇA.”

Os réus contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir, consistem em saber:
1. Se deve ser alterada a matéria de facto impugnada pela recorrente;
2. E se os réus estão obrigados a restituir à herança do K... as quantias de 143.196,37 €, 75.000,00 €, 50.000,00 € e 98.290,30 €, acima referidas, respectivamente, sob os n.ºs 7, 5, parte do n.º 4 e 6, bem como as quantias, a liquidar, respeitantes às apólices identificadas no n.º 8, por se terem apropriado delas ou por agirem com abuso de direito relativamente a tais apólices.

II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
1- No dia 23 de Novembro de 2007, no Cartório Notarial de S..., em Vila do Conde, K... outorgou o testamento constante da certidão de fls. 174 a 177, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
2- No dia 8 de Fevereiro de 2008, no Cartório Notarial de S..., em Vila do Conde, K.... fez aditamento àquele testamento, nos termos constantes da certidão de fls. 194 a 196, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
3- Por escritura pública de 27 de Maio de 2008, exarada de fls. 33 a 36 no livro de escrituras n.º 104-F, do Cartório Notarial de S..., em Vila do Conde, T..., U... e V... declararam, em simultâneo com a apresentação das correspondentes certidões, que K... falecera em 17 de Fevereiro de 2008, no estado de viúvo, sem ascendentes nem descendentes sobrevivos, sucedendo-lhe como herdeiros, entre outros, a A. B..., nos termos constantes da certidão de fls. 9 a 13, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
4- A conta de depósitos à ordem n.º ..........., do L..., agência ..., era contitulada por K... e pelos RR. G... e I...;
5- Por escritura pública de 17 de Dezembro de 2007, exarada a fls. 93-94 no livro de escrituras n.º 91-F, do Cartório Notarial de S..., em Vila do Conde, K... declarou doar ao Réu AJ... as fracções autónomas identificadas sob as letras A, B, C, D, E e F, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., nº .., na Póvoa do Varzim, nos termos constantes da certidão de fls. 116 a 119, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
6- Por escritura pública de 8 de Fevereiro de 2008, exarada a 41 a 42-verso, do livro de escrituras n.º 96-F, do Cartório Notarial de S..., em Vila do Conde, K... declarou vender a E..., pelo preço global de € 235.000, que já recebera, o prédio rústico sito no ..., freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º 5085, e o prédio rústico denominado “W...” ou “X...”, sito no ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 219, tendo aquele E... declarado, no mesmo acto, aceitar tal contrato, nos termos constantes da certidão de fls. 197 a 201, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
7- Na sequência da escritura referida em 5), e não obstante o aí declarado, o Réu AJ... entregou € 75.000 a K...;
8- Por escritura pública de 1 de Fevereiro de 2008, exarada a fls. 8 a 9, do livro n.º 96-F, do Cartório Notarial de S..., em Vila do Conde, K... declarou vender a N..., pelo preço global de € 150.000, que já recebera, a raiz ou nua propriedade do prédio urbano, composto de casa de habitação, sito na Rua ..., nº .., P. Varzim, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o nº 3948, tendo aquela N... declarado, no mesmo acto, aceitar tal contrato, nos termos constantes da certidão de fls. 206 a 210, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
9- Não obstante o declarado em 8), N... pagou a K... apenas € 25.000 do preço em questão;
10- Por sentença transitada em julgado e proferida em 30 de Maio de 2011, no âmbito dos autos de processo especial de inventário por óbito de K..., que correram termos sob o n.º 2310/08.0TBPVZ, do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca da P. Varzim, foi adjudicado a todos os herdeiros, nomeadamente à A., na proporção dos respectivos quinhões, um “direito de crédito no montante de € 75.000 sobre N..., a pagar em seis prestações anuais, iguais e sucessivas de € 12.500 cada uma, no dia 31 de Janeiro de cada ano, vencendo-se a primeira prestação no dia 31 de Janeiro de 2009 e a última no dia 31 de Janeiro de 2014”;
11- No âmbito desse processo foi relacionado o saldo da conta mencionada em 4), à data da morte do inventariado, no valor de € 7.104,37;
12- Entre 16 de Março de 1999 e 10 de Maio de 2007, K... subscreveu na seguradora “M... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA” as apólices de seguro nºs .......... – “Poupança Valor L1...” (no valor de € 98.290,30), .......... – “Renda Segura”, .......... e ........... – “Renda Crescente 2007 8A 4S”, .........., .........., .........., .......... e .......... – “Renda Certa 2005 8ª”, .........., .........., .......... e .......... – “Renda Certa 2005 8A 6S”, .......... e .......... – “L1... Renda +”, .........., .........., .........., .........., .......... – “Renda Certa 2004 5A 3S”, ........... – “Renda Certa 2003 5A 3S” e .......... – “Poupança 125 – 1.ª Série”;
13- Em tais subscrições, a “M... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA” declarou garantir o pagamento a K..., ou no caso de morte deste aos RR. I... e G..., na proporção de 50% para cada, do valor de unidades de participação em fundos de investimento colectivo aí nomeados subscritas pelo primeiro, à cotação em vigor no momento do termo de cada apólice, indicando uma valorização provável do capital aprovado, subordinando tal assunção às cláusulas constantes das condições gerais de cada uma das apólices, nos termos constantes dos instrumentos de fls. 156 a 173, 344 e 503 a 572, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
14- Após a morte de K..., os RR. I... e G... procederam ao levantamento da quantia referente à apólice nº .......... – “Poupança Valor L1...”, no valor de € 98.290,30;
15- À data de 15 de Fevereiro de 2008, a conta de depósitos à ordem n.º ..........., do “L...”, tinha o saldo positivo de € 7.104,37;
16- Previamente à outorga do testamento mencionado em 2), os RR. C... e mulher e E... e mulher acordaram com K... a compra da quinta ali referida, com o propósito de os RR. C... e mulher ficarem com a parte urbana e os RR. E... e mulher ficarem com a parte rústica;
17- Por conta de tal acordo, os RR. adquirentes emitiram e entregaram a K... dois cheques, no valor global de € 150.000;
18- Não obstante o declarado na escritura referida em 8), K... e N... pretenderam realizar a venda pelo preço de € 100.000, ficando a adquirente obrigada a pagar a quantia de € 75.000 em seis prestações anuais, para além do valor indicado em 9).

2. De direito

2.1. Da alteração da matéria de facto

O art.º 662.º, n.º 1, do CPC dispõe que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como temos vindo a escrever em vários acórdãos, por nós relatados, desta norma resulta que a modificação da decisão de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância, devendo, para tanto, os recorrentes observar os ónus impostos pelo art.º 640.º do mesmo Código[1].
Tais ónus foram observados pela recorrente, pelo que nada obsta à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Na reapreciação que agora importa efectuar, procedendo a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da nossa própria convicção, por forma a assegurar o duplo grau de jurisdição sobre a mesma matéria, teremos em conta que a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
O Prof. José Alberto dos Reis já ensinava, há muito, que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[2].
A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil.
Dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes.
Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 413.º do CPC).
Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 607.º, n.º 5, do CPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”[3].
Dito isto, vejamos o caso dos autos.
A recorrente impugnou os factos dados como provados sob os n.ºs 4 e 18 e os factos dados como não provados nas alíneas a), c), d) e e).
Encontrando-se transcritos supra, mais propriamente na fundamentação de facto, dispensamo-nos de reproduzir aqui novamente tais factos provados.
Os factos não provados e impugnados são os seguintes:
a) Que, antes do óbito do autor da herança, e sem autorização deste, os RR. G... e I... retiraram e apropriaram-se do montante € 143.196,37 da conta de depósitos à ordem n.º ..........., do “L...”, agência ...;
c) Que todos os RR., em conluio, se apropriaram do montante de € 75.000 proveniente da entrega referida em 7);
d) Que todos os RR., em conluio, se apropriaram do montante de € 50.000 referente à venda aludida em 8);
e) Que os RR. G... e I... sabiam que apenas constavam como beneficiários das aplicações indicadas em 12) para mais facilmente poderem levantar o dinheiro das mesmas e o entregarem aos herdeiros.”
A autora/recorrente pretende a sua alteração nos termos que indica na conclusão 2.ª, ou seja, que:
- ao n.º 4, seja aditado “sendo os respectivos saldos propriedade exclusiva de K...”;
- o n.º 18 seja dado como não provado;
- os factos das alíneas a) e d) sejam dados como provados;
- o facto da alínea c) seja dado como provado quanto aos réus G... e I...;
- o facto da alínea e) seja dado como provado, substituindo apenas a expressão final “entregarem aos herdeiros” por “partilhar com os herdeiros”.
Na motivação da decisão de facto impugnada, o Ex.mo Juiz que presidiu à audiência de discussão e julgamento e elaborou a sentença escreveu o seguinte:
“A decisão do tribunal, no que concerne à matéria controvertida consignada a fls. 737-verso, assentou na conjugação dos depoimentos prestados em audiência com os documentos juntos aos autos e as regras de experiência comum.
Assim, atendemos aos seguintes elementos:

- Depoimento da testemunha Y..., filho do Réu C... e irmão de N..., o qual, de forma isenta, devidamente circunstanciada do ponto de vista espácio-temporal e denotando pleno conhecimento de causa (por ter intervindo no negócio como procurador da irmã), explicou os contornos da venda, por K..., da casa sita na Rua ..., nº .., P. Varzim, mormente a circunstância de o preço inserto na escritura ter servido para evitar o exercício do direito de preferência por parte da inquilina do prédio, com quem o de cujus tinha má relação (inclusivamente com processo judicial entre ambos) – facto provado sob o nº 18 e facto não provado sob a al. d);
- Com relevância, Y... aludiu também ao afecto especial que K... nutria por N..., que conhecia desde tenra idade por ser filha do seu caseiro C..., daí a razão de lhe ter vendido a casa por um preço inferior ao de mercado;
- Tal versão foi confirmada em larga medida (ao menos nos aspectos essenciais) pela própria N... (não obstante não ter intervindo directamente no negócio, por estar a residir no estrangeiro), pela testemunha Z... (pessoa muito próxima do de cujus, tendo-o inclusivamente ajudado na elaboração da relação de bens por morte da mulher), bem como pelos RR. C... e E... (em sede de declarações de parte), que também acompanharam o negócio, não tendo nenhuma outra testemunha ouvida em audiência infirmado de forma cabal tal versão;
- Os termos do aludido negócio acabam também por ser corroborados pelo documento de confissão de dívida outorgado por N... e pelos pais, nos termos constantes a fls. 108;
- Relativamente à apropriação, pelos RR., do montante de € 143.196,37 da conta de depósitos à ordem n.º ..........., do “L...”, agência ..., é de referir, desde logo, que os movimentos em questão ocorrem na sua totalidade ainda em vida de K... (cfr. art.º 43º da p. i.);
- Ora, sendo o de cujus o primeiro titular da conta (e o verdadeiro e único dono do dinheiro), e tendo o mesmo estado sempre na posse das suas faculdades mentais (como asseverado em audiências pelas testemunhas AC... – enfermeiro que lhe ofereceu os seus préstimos por várias vezes –, AB... – vizinho de K... –, N... e Y...), nada obstava a que tivesse dado utilização à conta da forma que entendesse adequada, nenhuma prova (testemunha, documental ou outra) tendo sido feita em audiência ou nos autos no sentido de que as saídas de dinheiro em questão tenham ocorrido à revelia do de cujus;
- Acresce que K... fez várias liberalidades em vida, oferecendo dinheiro a vários familiares, amigos e instituições, através de entrega de cheques (o que tem respaldo nos instrumentos de fls. 178 a 188, 190, 191 e 664 a 691 – cópia de cheques sacados sobre aquela conta), para além de várias despesas a que tinha de fazer face, como sejam despesas médicas, de medicamentos e de internamento (como na “AD...” e no “Lar” AE..., como resultou abundantemente em audiência de julgamento – cfr. missiva de fls. 189);
- Daí o facto não provado sob a al. a);

- Depoimento/ declarações de parte da A., ao reconhecer que o Réu E... pagou tudo o que lhe competia por conta da compra do prédio rústico acima mencionado;
- Teor da relação de bens do inventário, concretamente a verba nº 7, referente ao montante em dívida pelo Réu E..., a qual corresponde ao teor do documento de confissão de dívida assinado pelo de cujus e por aquele Réu (fls. 109);
- Nenhuma outra prova (testemunhal, documental ou de outra natureza) foi feita pela A. (a quem incumbe tal ónus – art.º 342º, 1, C. Civil) quanto à apropriação do valor pago pelo Réu E... a K...;
- Daí o facto não provado sob a al. c);
- No que concerne às aplicações na seguradora “M... – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, SA”, quanto à questão de saber se os RR. que figuraram como beneficiários das mesmas sabiam ou não que essa menção servia apenas para mais facilmente retirarem o dinheiro e o distribuírem pelos herdeiros, temos, desde logo, que o Réu I... admitiu que estava convencido que o dinheiro das apólices, excepto a de valor de € 98.290,30, seria para distribuir pelos herdeiros (cfr. assentada de fls. 892 e 893-verso);
- Porém, esse Réu não declarou expressamente que sabia que essa era a vontade do de cujus (mormente pelo facto de o mesmo lhe ter transmitido isso de forma expressa), sendo que o co-Réu G... negou que essa incumbência lhes tenha sido feita e que, outrossim, ficou convencido que os valores em questão revertiam efectivamente para os beneficiários dos seguros;
- Por outro lado, quer a A., quer as diversas testemunhas por si arroladas, reiteraram, com veemência, que o autor da herança declarou diversas vezes que os RR. G... e I... eram contitulares das “contas” apenas para o ajudarem a movimentar as mesmas (pois, a partir de certa altura, K... já sentia dificuldades para escrever e assinar) e para, posteriormente, levantarem o dinheiro e o distribuírem da forma que o autor da herança definisse no testamento;
- Ora, nenhuma das aludidas testemunhas se reportou expressamente às apólices de seguro (que são coisa diversa de contas bancárias), sendo que o testamento outorgado pelo de cujus é omisso quanto aos valores que possuía naquelas aplicações (referindo-se genericamente ao “remanescente da herança” – fls. 175);
- Não ficou clarividente, assim, se o autor da herança pretendeu favorecer os RR. G... e I... ao investi-los na qualidade de beneficiários das apólices de seguro, ou se tal menção não pretendia significar que, em caso de morte do subscritor, os beneficiários recebiam os montantes em questão sem terem de os dividir com os demais herdeiros;
- Tal non liquet probatório teve de resolver-se desfavoravelmente à A., em vista da repartição do ónus da prova quanto a tal matéria (art.º 342º, 1, C. Civil);
- Daí o facto não provado sob a al. e).”
Relativamente ao pretendido aditamento ao n.º 4 de matéria sobre a propriedade do dinheiro depositado, cremos que lhe assiste razão, porquanto resulta de toda a prova e da experiência comum que o primeiro titular da conta – o de cujus – era o único dono do dinheiro nela depositado, tal como foi, aliás, afirmado na motivação da decisão de facto, onde se escreveu que ele era “o verdadeiro e único dono do dinheiro”.
Daí que, sem necessidade de mais considerações, se adite ao n.º 4 dos factos provados o seguinte:
“… sendo o primeiro o único dono do dinheiro que aí depositou”.
Quanto ao mais, afigura-se-nos que nenhuma razão assiste à recorrente.
A apreciação das provas feita pelo tribunal é livre e mostra-se proficientemente fundamentada.
Os depoimentos das testemunhas indicadas na motivação da decisão de facto foram correctamente apreciados.
E os depoimentos e documentos invocados não permitem, muito menos impõem, qualquer alteração.
Mas vejamos cada um dos factos impugnados e a prova oferecida para a sua alteração:
- Quanto ao n.º 18 dos factos provados e alínea d) dos factos não provados:
A apelante invoca os depoimentos das testemunhas O..., P... e Q....
Estas testemunhas são irmãs da autora, têm interesse igual ao dela no desfecho da acção e estão de relações cortadas com todos os réus, apesar de também serem irmãs da ré J... e cunhadas do réu I.... Estas relações afectaram os seus depoimentos, que se revelaram tendenciosos, parciais e sem o mínimo de isenção. Ainda assim, limitaram-se a afirmar, quanto a esta matéria, que ouviram dizer ao tio K... que tinha vendido a casa à N... por 30.000 contos (150.000,00 €), que era o valor da proposta que tinha feito à Aurora, e que desconheciam se tinha sido pago aquele preço.
Ao invés do afirmado pela recorrente, o documento de “confissão de dívida”, de fls. 108, faz prova plena contra a confitente, na parte em que confessa dever a quantia de 75.000,00 €, nos termos do art.º 376.º, n.º 1, do Código Civil.
Aqueles depoimentos não são susceptíveis de abalar a convicção deste Tribunal, tal como não foram na 1.ª instância, fundada, e bem, no depoimento da testemunha Y....
Este, apesar de ser filho dos réus C... e D..., e irmão da N..., depôs com isenção e de forma convincente, revelando ter conhecimento directo dos factos sobre que versou o seu depoimento. Acompanhou as negociações da compra e venda da casa e a celebração da escritura a que se alude no ponto 8 da matéria de facto e foi peremptório em afirmar que o preço da venda foi de 100.000,00 €, a pagar em seis prestações anuais, de 12.500,00 € cada. Explicou os motivos da declaração na escritura de preço superior, relacionados com o exercido do direito de preferência da inquilina que nela habita. Adiantou que a sua irmã acabou por pagar, além da quantia de 25.000,00 € aludida no ponto 9, os 75.000,00 € que faltavam, após ter contraído um empréstimo na AF.... Acrescentou que o preço acordado se deveu ao carinho e estima que o K... tinha para com a sua irmã.
Este depoimento vem no seguimento das declarações, no mesmo sentido, dos réus C... e E... e foi confirmado pelo depoimento da testemunha N..., aquirente da referida casa, que assumiu ter assinado a confissão de dívida de fls. 108, mas acrescentando que pagou tudo, após a contracção de um empréstimo na AF.... A testemunha Z..., pessoa das relações do K..., desde o tempo em que exerceu as funções de inspector tributário, também confirmou o apreço que aquele tinha para com a N... e a sua intenção em querer beneficiá-la.
- Quanto às alíneas a) e e) dos factos não provados:
A recorrente invoca, mais uma vez, os depoimentos das referidas testemunhas O... e P..., afirmando que estes ouviram dizer ao tio K... que tinha um milhão de contos, incluindo depósitos e aplicações, que seriam para repartir pelos herdeiros, em partes iguais, tal como constava no testamento, e que nunca queria beneficiar o G... nem o I....
Para além de aqueles depoimentos não serem credíveis, pelas razões que se deixaram ditas, o seu conteúdo não comprova a matéria dada como não provada, aqui em reapreciação.
Refira-se, desde já, que a alteração do n.º 4 dos factos provados, nos termos acima referidos, só por si, não permite dar como provada tal matéria, designadamente da enunciada na alínea a), porquanto o facto de o K... ser o único proprietário do dinheiro depositado não significa que os réus G... e I... se tivessem apropriado dele, nomeadamente da quantia de 143.196,37 €, contra a vontade daquele e sem sua autorização.
Tendo sido levantada tal quantia, e outras, ainda em vida do K..., como, de resto, foi alegado pela autora na petição inicial no art.º 43.º, nada obsta a que este tivesse dado utilização às quantias levantadas segundo a sua vontade, tanto mais que esteve lúcido até à hora da morte, como referiram as testemunhas AC..., enfermeiro que com ele privou e ajudou no âmbito da sua profissão, e AB..., vizinho e sacristão, que também o ajudou. Os autos também contêm prova documental, donde se depreende que o K... fez várias liberalidades, oferecendo dinheiro a familiares, amigos e instituições, mediante a entrega de cheques (cfr. fls. 178 a 188, 190, 191 e 664 a 691) e, bem assim, que teve de suportar despesas, designadamente médicas, medicamentosas e com internamento na AD... e no “Lar” de AE... (cfr. fls. 189).
Além disso, não é normal que tivesse andado a anunciar, por onde passava ou sempre que se encontrava com os familiares em festas como disseram as referidas testemunhas, que tinha aquela quantia em dinheiro e participações, tanto mais que a testemunha Z... que com ele conviveu e que depôs de forma isenta, disse que era uma pessoa reservada e que nunca falava no dinheiro que tinha, nem quando elaborou a relação de bens por morte de sua esposa. Muito menos normal é, sendo mesmo inverosímil, que anunciasse que o dinheiro era para repartir em partes iguais pelos herdeiros como tinha feito no testamento, quando este ainda não existia, pois só foi elaborado em 23/11/2007 (cfr. n.º 1 dos factos provados) e aquele anúncio fora feito em momentos anteriores, logo a partir da morte da sua esposa AI..., que terá falecido, como também disseram, em 2002.
Não se vislumbra como possa funcionar aqui qualquer presunção judicial, uma vez que ela, por definição, pressupõe um facto conhecido para se poder firmar o facto desconhecido e, no caso, desconhece-se aquele facto (cfr. art.º 349.º do Código Civil).
- Quanto à alínea c):
Relativamente a esta alínea, a recorrente invocou o depoimento da testemunha AJ....
Para além de este depoimento padecer dos mesmos vícios já apontados aos dos seus irmãos O..., P... e Q..., limitou-se a afirmar, no que a esta matéria respeita, que comprou o prédio por 350.000,00 € e entregou 75.000,00 € por cheque, que não entrou na partilha.
No entanto, no n.º 7 dos factos provados, não impugnado, consta que entregou esses 75.000,00 € a K..., pelo que, na falta de outra prova, não vislumbramos como seja possível sustentar, agora, que os réus I... e G... se apropriaram dessa quantia.
Da reapreciação efectuada por este Tribunal, procedendo a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da nossa própria convicção, considerada a prova em causa no seu conjunto, não há razões para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, relativamente aos factos impugnados, com excepção do n.º 4, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade notória entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios que devem presidir à apreciação da prova, ou seja, critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
Da análise crítica da prova indicada como fundamento da impugnação, bem como da restante prova, não pode ficar-se com a convicção indicada pela recorrente.
E é essa análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, muito menos truncados e interessados, como é o caso dos indicados pela recorrente.
A fundamentação da decisão de facto mostra-se criteriosa, bem fundamentada e tem pleno suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos, tendo sido feita uma correcta análise do seu valor probatório.
Por isso, não pode este Tribunal alterar os factos impugnados, pelo que se mantêm, com excepção do aditamento feito ao n.º 4, como se deixou dito.
Improcedem, assim, ou são irrelevantes as respectivas conclusões da autora/recorrente.

2.2. Da restituição

Está já assente que estamos perante uma acção de petição da herança prevista e regulada nos art.ºs 2075.º a 2078.º do Código Civil.
Assim foi entendido na sentença recorrida e já o havia sido no referido acórdão desta Relação que também versou sobre a legitimidade da autora.
E assim é efectivamente, em face da matéria provada.
Como ali foi escrito e é habitual dizer-se, a acção de petição da herança, tal como está configurada no n.º 1 do citado art.º 2075.º, tem um duplo objecto, envolvendo os inerentes pedidos, a saber:
- o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do autor; e
- a restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, indevidamente retidos pelo demandado.[4]
O primeiro pedido pode estar implícito, pois que é um requisito do pedido de restituição, bastando que o autor invoque a sua qualidade de herdeiro e que esta esteja comprovada nos autos.[5]
Não se suscitam questões relativamente à qualidade sucessória da autora, pois, embora não tivesse formulado expressamente o reconhecimento dessa qualidade, invocou e comprovou a sua qualidade de herdeira.
Em causa está a restituição à herança do K... das seguintes quantias:
- 50.000,00 € referentes a parte do preço da venda do prédio feita pelo K... a N... pela escritura a que se alude no n.º 8 dos factos provados;
- 75.000,00 € referentes a parte do preço da venda do prédio sita na Rua ..., a que alude a escritura de “doação” do n.º 5 dos factos provados, feita pelo mesmo K... a AJ...;
- 143.196,37 € referentes a levantamentos de quantias da conta de depósito à ordem referida no n.º 4 da fundamentação de facto;
- 98.290,30 € levantados pelos réus I... e G... e referente à apólice aludida no n.º 14 dos factos provados;
- resultantes das aplicações referidas no n.º 12 da fundamentação de facto.
Acontece, porém, que a autora não provou, como lhe competia, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, que os réus, todos em conluio, como alega, ou algum deles, isoladamente, se tivessem apropriado ou retenham indevidamente alguma daquelas quantias.
Quanto à parte do preço da venda do prédio urbano sito na Rua ..., n.º .., Póvoa de Varzim, feita pelo K... à N..., através da escritura de 1/2/2008, provou-se até que já foi paga. Com efeito, apesar de naquela escritura terem declarado o valor total de 150.000,00 €, o preço real foi de 100.000,00 € e destes a compradora pagou ao K... o valor de 25.000,00 €, tendo os restantes 75.000,00 € sido relacionados no inventário, como direito de crédito, que foi partilhado e adjudicado a todos os herdeiros, na proporção dos respectivos quinhões, por sentença transitada em julgado (cfr. factos provados sob os n.ºs 8, 9, 10 e 18). Por isso, não podia ser provado, como não foi, que os réus, “em conluio, se apropriaram” do aludido montante de 50.000,00 €.
Relativamente aos 75.000,00 € referentes a parte do preço da venda do prédio sita na ..., feita pelo K... a AJ..., a autora não provou, como lhe competia e havia alegado, que “todos os réus, em conluio, se apropriaram” daquele montante, pelo que jamais podiam ser, como não foram, condenados a restituir à herança tal montante [cfr. resposta negativa dada à matéria da alínea c)].
Quanto ao levantamento da quantia de 143.196,37 € da conta à ordem identificada no n.º 4 dos factos provados:
Não tendo provado a autora, como lhe competia, que os réus G... e I... se apropriaram daquela quantia sem autorização do K..., é óbvio que jamais poderiam ser condenados a restituí-la à herança.
E, tendo sido levantada em vida do K... como alegara e consta da motivação da decisão de facto, também é evidente que não integra a sua herança, porquanto esta é constituída pelas relações jurídicas patrimoniais existentes na titularidade daquele à data da sua morte, momento em que se deu a abertura da sucessão e o chamamento dos seus herdeiros (cfr. art.ºs 2024.º, 2031.º e 2032, todos do Código Civil).
De nada serve a alteração ao n.º 4 dos factos provados, no sentido de que o K... era o único dono do dinheiro depositado naquela conta.
É que, muito embora não possa, nem deva, confundir-se titularidade do dinheiro com titularidade da conta bancária, o que releva é o montante monetário nela depositado da titularidade do K... no momento da sua morte, como se disse, e, no caso, tal quantia já não existia por ter sido levantada ainda em vida do K..., sendo o saldo daquela conta, na data da abertura da sucessão – 17/2/2008 – constituído pelo valor de 7.104,37 €, o qual foi relacionado no inventário que correu termos para partilha sua herança (cfr. factos provados n.ºs 3, 11 e 15).
No que respeita à quantia de 98.290,30 € que os réus G... e I... levantaram após a morte do K... (cfr. n.º 14 dos factos provados) e às aplicações referidas no n.º 12 da fundamentação de facto:
Diga-se, desde logo, que a autora não provou, como mais uma vez lhe competia, que os réus G... e I... “sabiam que apenas constavam como beneficiários das aplicações indicadas…, para mais facilmente poderem levantar o dinheiro das mesmas e o entregarem aos herdeiros” [resposta negativa à matéria da alínea e)].
Ao invés, dos factos provados resulta que eles foram designados beneficiários em caso de morte do tomador de seguro, na proporção de 50% para cada um, em todas as apólices de seguro referidas no n.º 12 da fundamentação de facto, onde se inclui a apólice n.º .......... e donde levantaram a quantia de 98.290,30 € depois da morte do K... (cfr. n.ºs 12, 13 e 14).
Também resulta de tais apólices, cujo teor foi dado como reproduzido no n.º 13 dos factos provados, bem como da factualidade provada neste número e no n.º 12, que o tomador de seguro foi o K... e que a seguradora foi a M...-Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A., a qual declarou garantir o pagamento àquele tomador ou, por morte deste, aos réus I... e G..., na proporção de 50% para cada, o valor das unidades de participação detidas em fundos de investimento colectivo aí designados, subscritas pelo primeiro, à cotação em vigor no termo de cada apólice, com uma valorização provável.
Os contratos assim celebrados são verdadeiros contratos de seguro.
Não são contratos de seguro do ramo vida tradicional, que garantem, como cobertura principal, o risco morte ou de sobrevivência ou ambos, mas contratos de “seguro de vida grupo contributivo do tipo capitalização”.
Esta modalidade de contrato é do ramo vida ou, pelo menos, segue o seu regime.
O art.º 124.º do DL n.º 94-8/98, de 17/4[6], já considerava os seguros de capitalização como submodalidade legal típica de seguro de vida, prevendo no n.º 4 as “Operações de capitalização, que abrangem toda a operação de poupança, baseada numa técnica actuarial, que se traduza na assunção de compromissos determinados quanto à sua duração e ao seu montante, como contrapartida de uma prestação única ou de prestações periódicas préviamente fixadas.”
O art.º 455.º do Código Comercial[7], também vigente na data da celebração dos contratos em causa, dispunha que “os seguros de vida compreenderão todas as combinações que se possam fazer, pactuando entregas de prestações ou capitais em troca da constituição de uma renda, ou vitalícia ou desde certa idade, ou ainda do pagamento de certa quantia, desde o falecimento de uma pessoa, ao segurado, seus herdeiros ou representantes, ou a um terceiro, e outras quaisquer combinações semelhantes ou análogas”.
A amplitude deste normativo leva-nos a concluir que acolhe o seguro de capitalização entre os seguros de vida.
O Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16/4[8], regulamenta o seguro de vida nos art.ºs 183.º a 209.º.
No art.º 183.º dá a noção de seguro de vida estabelecendo que “No seguro de vida, o segurador cobre um risco relacionado com a morte ou a sobrevivência da pessoa segura”.
E, no art.º 184.º, sobre o seu âmbito, dispõe que:
“1 - O disposto relativamente ao seguro de vida aplica-se aos seguintes contratos:
a) Seguros complementares dos seguros de vida relativos a danos corporais, incluindo, nomeadamente, a incapacidade para o trabalho e a morte por acidente ou invalidez em consequência de acidente ou doença;
b) Seguros de renda;
c)… ;
d)…”.
2 - O disposto nesta secção aplica-se ainda aos seguros ligados a fundos de investimento, com excepção dos artigos 185.º e 186.º”
O art.º 206.º prevê a associação de instrumentos de captação de aforro estruturados e o art.º 207.º, sobre a extensão das operações de capitalização, determina que “O regime comum do contrato de seguro e o regime especial do seguro de vida são aplicáveis subsidiariamente às operações de capitalização, desde que compatíveis com a respectiva natureza”.
Desta panóplia de normas resulta que o contrato de seguro pode assumir, hodiernamente, “uma multiplicidade de especialidades, de entre elas também uma componente de aforro, sem por isso perder essa mesma qualidade ou natureza”.[9]
Temos assim como certo que, apesar de os contratos em causa não consubstanciarem contratos do ramo vida tout court, não deixam de cobrir o risco de vida e de morte da pessoa segura, pois que, ocorrendo a sua morte durante a vigência desses contratos, a prestação do segurador decorrente desse risco reverte a favor das pessoas singulares designadas como “beneficiários”, pelo que são, em rigor e também, contratos de seguro de vida.
Relativamente à designação beneficiária, o art.º 198.º do RJCS prevê:
1 - Salvo o disposto no artigo 81.º, o tomador do seguro, ou quem este indique, designa o beneficiário, podendo a designação ser feita na apólice, em declaração escrita posterior recebida pelo segurador ou em testamento.
2 - Salvo estipulação em contrário, por falecimento da pessoa segura, o capital seguro é prestado:
a) Na falta de designação do beneficiário, aos herdeiros da pessoa segura;
b) Em caso de premoriência do beneficiário relativamente à pessoa segura, aos herdeiros desta;
c) Em caso de premoriência do beneficiário relativamente à pessoa segura, tendo havido renúncia à revogação da designação beneficiária, aos herdeiros daquele;
d) Em caso de comoriência da pessoa segura e do beneficiário, aos herdeiros deste.
3 - Salvo estipulação em contrário, no seguro de sobrevivência, o capital seguro é prestado à pessoa segura, tanto na falta de designação do beneficiário como no caso de premoriência do beneficiário relativamente à pessoa segura.
Daqui resulta que, havendo beneficiários designados, na apólice, como é o caso, e sobrevivendo eles à pessoa segura, como também se verifica, os herdeiros desta não podem obter a prestação do capital seguro.
A designação só poderia ser afectada nos casos previstos no art.º 200.º do RJCS que dispõe:
As relações do tomador do seguro com pessoas estranhas ao benefício não afectam a designação beneficiária, sendo aplicáveis as disposições relativas à colação, à imputação e à redução de liberalidades, assim como à impugnação pauliana, só no que corresponde às quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador”.
De forma idêntica dispunha o art.º 460.º do Código Comercial, estipulando que “no caso de morte…daquele que segurou, sobre a sua própria vida…, uma quantia para ser paga a outrem que lhe haja de suceder, o seguro subsiste em benefício exclusivo da pessoa designada no contrato, salvo, porém, com relação às quantias recebidas pelo segurador, as disposições do Código Civil relativas a colações, inoficiosidade nas sucessões…”.
O art.º 450.º, n.º 1, do Código Civil também estatui que “Só no que respeita à contribuição do promissário para a prestação a terceiro são aplicáveis as disposições relativas à colação, imputação e redução das doações e à impugnação pauliana”.
E cremos não haver dúvidas de que os contratos de seguro em causa constituem, estruturalmente, verdadeiros contratos a favor de terceiro, cuja noção é dada pelo art.º 443.º do Código Civil.
Como tal, os terceiros beneficiários – I... e G... –, porque assim foram designados “em caso de morte”, adquiriram o direito à prestação depois da morte do promissário e tomador de seguro/segurado (o K...), como se presume nos termos do art.º 451.º, n.º 1, do Código Civil.
Deste modo, a aquisição do direito à prestação dos seguros, por aqueles terceiros beneficiários, “estava dependente da morte do segurado, evento de que dependia a exigibilidade daquela prestação, como termo suspensivo da sua atribuição[10]. E só surgindo após o falecimento do promissário (o referido K...), não integra o seu património o capital segurado[11]”.
Como se escreveu no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/12/2005, processo n.º 3669/05[12]:
“Por esta razão, entende-se que o valor do seguro não transita pelo património do segurado para o património do beneficiário, não é recebido, pelo beneficiário, do «de cujus», mas, directamente, da seguradora, não havendo, por isso, lugar, quanto a este bem, à aplicação das regras gerais da sucessão, designadamente, em matéria de cálculo do valor total da herança, de inoficiosidade e de colação, exceptuando a situação dos prémios de seguro pagos à seguradora, que se encontram sujeitos ao regime civilístico da colação e da inoficiosidade, porquanto a lei comercial os considera como doações indirectas (Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 1992, 163 e ss.; R. Capelo Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2000, 4ª edição renovada, 314 e 315; Galvão Teles, Direito das Sucessões, 1991, 78 e ss.; Oliveira Ascensão, Direito das Sucessões, 2000, 250; RLJ, Ano 41º, 39 e 40; Ano 50º, 391 e 392; RT, Ano 52º, 340 e 347 ”[13].
Ora, não fazendo parte do acervo hereditário do K..., e não se colocando sequer questões de inoficiosidade, não se vê como é possível sustentar a condenação dos réus I... e G... a entregar à herança daquele, a quantia de 98.290,30 € que receberam ou qualquer outra que hajam recebido, entretanto, a título de prestações dos seguros resultantes das apólices aludidas no n.º 12 da fundamentação de facto, que adquiriram por direito próprio, de forma lícita, directamente da seguradora, sem transitar pelo património daquele segurado.
Por isso, a acção tinha de improceder, como improcedeu, na sentença recorrida.

Em sede de recurso, a recorrente vem insistir na restituição, invocando o abuso de direito por parte daqueles réus ao invocarem em seu benefício as cláusulas contratuais em que foram designados beneficiários, sabendo que essa designação tinha sido feita para “mais facilmente poderem levantar o dinheiro” e o “entregarem aos herdeiros”.
Mais uma vez, sem razão.
Como é sabido e temos vindo a repetir em vários acórdãos[14], «o actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos[15].
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.”
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Segundo Menezes Cordeiro[16], “O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”
E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“ (...) 1.º Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.º Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.º Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.º Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”[17]
A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.
Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural”[18].
O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se, assim, “como verdadeira «válvula de segurança» vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuridicidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito.
Quando tal sucede, isto é, quando o direito que se exerce não passa de uma aparência de direito, desligado da satisfação dos interesses de que é instrumento, e se traduz «na negação de interesses sensíveis de outrem»[19], então haverá que afastar as normas que formalmente concedem ou legitimam o poder exercido”[20] ».
Ora, isso não se verifica no presente caso.
Desde logo, porque não se provou que a designação como beneficiários se restringisse à facilidade do levantamento do dinheiro para o entregar aos herdeiros [cfr., mais uma vez, a resposta negativa dada à alínea e)].
Depois, porque nenhuma confiança há a proteger com a celebração dos contratos de seguro a que se reportam as apólices identificadas no n.º 12 da fundamentação de facto.
Aliás, neles nem sequer tiveram intervenção os beneficiários, já que os mesmos foram celebrados entre o K..., enquanto tomador de seguro/segurado, e a seguradora.
Os beneficiários foram meros terceiros e adquiriram o direito à prestação da seguradora depois da morte do segurado, directamente daquela sem passar pelo património deste, como se disse.
Por isso, nenhuma confiança se criou, nada havendo a tutelar.
Improcede, por conseguinte, também esta questão.

Destarte, improcede a apelação e a sentença deve ser mantida.

Sumariando:
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III. Decisão

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
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Custas pela apelante.
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Porto, 21 de Fevereiro de 2018
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 221 e 222.
[2] In Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570.
[3] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27.
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora, pág. 131.
[5] Cfr. acórdão d STJ de 29/10/2009, processo n.º 577/04.1TVLSB in dgsi.pt.
[6] Do qual foram posteriormente revogados os art.ºs. 132.º a142.º e 176.º a 193.º pelo art.º 6.º, n.º 2, al. d) do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16/04, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro, em vigor desde 1/1/2009 (cfr. seu art.º 7.º).
[7] Revogado pelo art.º 6.º, n.º 2, al. a) do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16/04.
[8] Entrado em vigor, como se disse, em 1/1/2009, mas aplicável “ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes” (cfr. art.º 2.º, n.º 1, do citado D.L n.º 72/2008).
[9] Cfr. acórdão do STJ de 12/11/2013, processo n.º 530/10.6TJPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, sobre uma situação análoga, onde é citada doutrina e jurisprudência, para a qual remetemos.
[10] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9.ª ed., pág. 432.
[11] Refere Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 10.ª ed., págs. 351e 352, que o terceiro não é um simples destinatário da prestação, antes adquire “um direito de crédito ou um direito real autónomo”, citado pelo já mencionado acórdão do STJ de 12/11/2013, donde foram extraídas as citações acabadas de mencionar. Cfr., ainda no mesmo sentido, ao acórdão da RC de 19/12/2012, processo n.º 1890/10.4T2AVR.C1, in www.dgsi.pt, também citado na decisão recorrida.
[12] Disponível no respectivo sítio da internet, em www.dgsi.pt.
[13] No mesmo sentido já se havia pronunciado, há muito, José António Lopes Cardoso, nas suas Partilhas Judiciais, vol. I, 3.ª ed., págs. 416/417.
[14] Cfr., por todos, o de 10/7/2013, processo n.º 821/10.6TVPRT.P1, in www.dgsi, de 19/11/2013, processo n.º 1857/09.5TJVNF.S1.P1, de 17/6/2014, processo n.º 148/11.6TBMSF.P1, no mesmo sítio da internet e de 24/2/2015, processo n.º 46/14.1TBAMT.P1, ainda no mesmo sítio, que aqui reproduzimos na parte para aqui relevante e, ainda, 21/2/2017, processo n.º 121/16.8T8PRD.P1.
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536.
[16] In “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, citado no acórdão do STJ de 15/1/2013, processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Cfr., ainda, o mesmo autor, no Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão, pág. 292, onde menciona as mesmas quatro proposições para a concretização da confiança.
[18] Citado acórdão do STJ, de 15/1/2013.
[19] Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, pp. 43.
[20] Citado acórdão do STJ, de 16/12/2010.