Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2122/11.3TBPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RP201204112122/11.3TBPVZ.P1
Data do Acordão: 04/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Na decisão da autoridade administrativa, o elemento subjetivo da conduta pode presumir-se da descrição do elemento objetivo.
II – O regime geral das contraordenações e coimas [DL n.º 433/82 de 27-10] apresenta uma nítida autonomia face ao Código Penal, decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2122/11.3TBPVZ.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunto: Carlos Espírito Santo

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. No processo n.º 2122/11.3TBPVZ do 1.º Juízo Criminal do Tribunal da Póvoa do Varzim, em que são:

Recorrente: Ministério Público

Recorrido: B…

foi proferida decisão em 2011/Nov./11, a fls. 109-114, que julgou procedente a impugnação judicial e declarou nula a decisão administrativa, por falta de fundamentação referente aos elementos subjectivos das infracções imputadas.
2. O Ministério Público interpôs recurso em 2011/Nov./24 a fls. 77-81 pugnando pela revogação daquela decisão e a sua substituição por outra que considere verificados os requisitos previstos no artigo 58.º do Dec.-Lei n.º 433/82, de 27/Out., concluindo do seguinte modo:
1.º) A decisão proferida pela Câmara Municipal desta cidade não é nula, pois contém, de forma sucinta, mas suficiente, fundamentação de facto e de direito;
2.º) A decisão administrativa insere-se na fase administrativa do processo de contra-ordenação, sujeita às características da simplicidade e da celeridade, onde prevalecem os princípios próprios do direito administrativo;
3.º) O art. 58 do RGCOC (DL nº 433/82 de 27-10) apenas exige que uma decisão administrativa contenha uma fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta, que seja suficiente para demonstrar o raciocínio da entidade administrativa, transcrevendo a respectiva factualidade, indicando as norma jurídicas violadas e a coima aplicada, possibilitando um conhecimento perfeito dos factos e normas imputadas;
4.º) Verificados aqueles requisitos, que estão presentes na decisão administrativa em causa, tal é suficiente para que o arguido possa exercer os seus direitos de defesa;
5.º) As contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de diversos interesses, que ao Estado cumpre regular impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social;
6.º) A culpa nas contra-ordenações não se baseia em qualquer censura ético-penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto a agente, bastando-se por isso com a mera imputação do facto ao agente;
7.º) A decisão recorrida violou o disposto nos art. 58 e 41 do DL nº 433/82 de 27-10, 379/a e 374/2 do C.P.P.
3. O arguido respondeu por fax expedido em 2011/Dez./19 a fls. 86-88 pugnando pela manutenção da decisão recorrida concluindo que o tribunal da 1.ª instância fez uma adequada aplicação do Direito no caso vertente ao considerar que a completa omissão da imputação subjectiva da decisão administrativa constitui a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1 alínea a), com referência ao artigo 374.º, n.º 2 do C. P. Penal, ora aplicável por força do artigo 41.º, n.º 1 do RGCO.
4. O Ministério Público nesta Relação emitiu parecer em 2012/Jan./30 a fls. 99-103, o qual se pode resumir nas seguintes considerações:
1.º) A decisão administrativa é completamente omissa quanto aos pressupostos do elemento subjectivo da conduta ilícita descrita, não sendo indiferente o grau de culpa determinante das condutas (8.º e 9.º RGCO), impondo-se que a autoridade administrativa decisora se pronuncie e fundamente de forma suficiente tal elemento subjectivo tipificador do ilícito contra-ordenacional, pelo que o recurso não deve proceder, sem prejuízo de serem devolvidos àquela entidade administrativa os presentes autos para sanar tal vício, ao abrigo do artigo 122.º do C. P. Penal;
2.º) A decisão recorrida não pode integralmente manter-se, pois uma vez que tendo havido procedimento criminal pela desobediência ao embargo, onde se lançou mão do instituto de suspensão provisória, aceite pelo arguido e que determinou o arquivamento dos autos, não pode, por força do artigo 20.º do RGCO, aquele ser punido também a título contra-ordenacional quanto a essa mesma desobediência por violação do princípio ne bis in idem, impondo-se a alteração do arguido na coima parcelar de € 1.5000€;
5. Cumpriu-se o artigo 417.º, n.º 2 do C. P. Penal, não tendo havido réplica do arguido, tendo sido colhidos os vistos legais.
*
O objecto do recurso passa assim pela questão suscitada em recurso da nulidade da decisão administrativa, por omitir a descrição do elemento subjectivo [a)] e a nulidade da decisão judicial recorrida [b)].
*
* *
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Nulidade da decisão administrativa por falta de descrição do elemento subjectivo
α) A motivação das decisões administrativas
A primeira vertente suscitada nos fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público coloca-nos no dever de fundamentação das decisões.
Como se sabe o RGCO[1] consagra fases processuais distintas, contemplando uma de incidência administrativa (48.º a 58.º) e outra de incidência judicial (59.º a 75.º), pelo que o processo contra-ordenacional é normalmente referenciado como tendo uma natureza mista [Ac. TC 62/2003].
Assim, tendo o legislador distinguido, tanto sob o ponto de vista teleológico, como sistemático, estas duas fases processuais – a administrativa e a judicial – é natural que, em tudo o que o regime contra-ordenacional não contenha disposição especial, se sujeite a primeira aos princípios fundamentais de direito e ao processo administrativo e se submeta a segunda aos princípios processuais penais e ao correspondente procedimento [41.º; Ac. TC 62/2003][2].
A propósito convém recordar que a aplicação subsidiária do processo penal (41.º), apenas significa que o mesmo é auxiliar e não conformador ou dominante do processo contra-ordenacional, pelo que a respectiva regulação suplementar não é de aplicação automática e, sempre que se mostre necessário, está sujeita a adaptações.
Tal não sucederá apenas quando o processo contra-ordenacional for convertido em processo penal [76.º] ou ocorrer o conhecimento da contra-ordenação em processo penal [77.º], pois nestes casos o regime das contra-ordenações é como que “consumido” “pelas regras mais exigentes consagradas no Código de Processo Penal” [Ac. TC 31/2000, fundamento 10, parte final].
i) A decisão administrativa
A Constituição estabelece no seu art. 268.º, n.º 3 que “Os actos administrativos …carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos”.
Densificando legalmente esta injunção constitucional o Código de Procedimento Administrativo, estabelece no seu art. 125.º, n.º 1 que “A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição de fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso integrante do respectivo acto”.
Por sua vez, o art. 58.º do RGCO, indica quais são os elementos que devem constar de uma decisão condenatória, proferida pela autoridade administrativa, estando essa descrição formal essencialmente contida no seu n.º 1, que consiste: na identificação dos arguidos [a)]; na descrição dos factos imputados, com a indicação das provas [b)]; na indicação das normas puníveis e a fundamentação da decisão [c)]; mencionando ainda a coima e as sanções acessórias aplicadas [d)].
Assim e no que concerne à fundamentação propriamente dita de uma decisão da autoridade administrativa em processo de contra-ordenação, a mesma passa essencialmente, atento os princípios fundamentais do direito administrativo, pela sua suficiência, clareza e congruência.
Daí que a exigência legal contida no art. 58.º do RGCO, apenas imponha que as decisões administrativas condenatórias obedeçam aos requisitos aí descritos, não estabelecendo quaisquer outros requisitos de forma. Assim e atenta a autonomia do processo contra-ordenacional, não tem sentido nem fundamento importar do Código de Processo Penal para as decisões administrativas as imposições formais a que estão sujeitas as sentenças [374.º; 375.º C. P. Penal].
Tem sido, de resto, esta a posição acolhida pelo Tribunal Constitucional, ao considerar que a fundamentação expressa dos actos administrativos se basta, por exemplo, com a remissão para peça do processo (v.g. parecer ou proposta) que contenha tal fundamentação, o mesmo sucedendo quanto a decisão administrativa condenatória remeter para proposta que contenha os requisitos previstos no citado art. 58.º do RGCO [Ac. TC 50/2003, 62/2003, 136/2003, 249/2003, 469/2003 e 492/2003].
Assim, o que se impõe é que a correspondente fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta ou por remissão para todos os factos do processo contra-ordenacional, transcreva a respectiva factualidade, indique as normas jurídicas violadas e a coima aplicada, possibilitando, assim, um conhecimento perfeito dos factos e das normas imputadas.
ii) Os vícios da decisão administrativa
Mais uma vez, temos que distinguir, pelas razões anteriormente enunciadas em proémio, as decisões administrativas, das decisões judiciais, no âmbito do processo de contra-ordenação.
A propósito temos desde logo que reconhecer que o RGCO não estabelece qualquer disciplina para a infracção ou inexecução dos actos processuais contraordenacionais.
Porém, sempre o processo contra-ordenacional está sujeito ao princípio da legalidade [43.º], pelo que tanto o seu procedimento, como os seus vícios devem resultar da lei.
Por sua vez e como já referimos, a natureza subsidiária do processo penal [41.º, n.º 1], significa que o mesmo é auxiliar do processo contra-ordenacional e não preponderante em relação a este.
Daí que seja plenamente aceitável transpor para a sua regulação o princípio da legalidade dos actos processuais e da tipicidade dos seus vícios, que se encontra consagrado no art. 118.º do Código de Processo Penal.
Assim e segundo o seu n.º 1 “A violação ou inobservância das leis do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.
A sentença recorrida transpôs para a decisão administrativa o enquadramento legal que o processo penal dá para as sentenças, seguindo, de resto, o posicionamento de alguma jurisprudência dos tribunais superiores, alguma com registo no STJ, mas que aqui não tem sido unânime.
A propósito, enquanto alguns arestos têm seguido essa identidade entre decisão administrativa e sentença [Ac. STJ de 2007/Jan./10; 2007/Jan./29][3], outros preferem considerá-la homologa a uma acusação, sendo por isso sanável a existência de qualquer vício de que a mesma padeça [62.º, n.º 1; Ac. STJ de 2006/Dez./21; 2008/Nov./11].[4]
No entanto, somos de crer que existem sérios obstáculos decorrentes da razão de ser do processo de contra-ordenações e da sua autonomia, como do enquadramento da decisão administrativa que nos afastam do vício da nulidade.
De um modo geral, podemos constatar que não existe no domínio do processo contra-ordenacional a obrigatoriedade de serem observados e nos mesmíssimos termos os princípios e o regime legal do processo penal, porquanto isso seria transformar um regime subsidiário e auxiliar num regime predominante ou primordial, contrariando a filosofia daquele e os propósitos legislativos [43.º; Ac. TC 469/97; 278/99 e 522/2008].
Assim, a autonomia do processo contra-ordenacional possibilita-lhe a existência de certos desvios nos níveis de asseguramento das garantias de defesa, designadamente quanto ao não registo da prova em 1.ª instância judicial [66.º; Ac. TC 50/99; 73/2007] ou quando restringe à matéria de direito o recurso destes últimos tribunais para a Relação [75.º, n.º 1; Ac. TC 632/2009].
Mais acresce que a consagração constitucionalmente expressa dos direitos de audiência e de defesa [32.º, n.º 10 da Constituição], tem sido perspectivada mediante a concessão ao imputado de uma infracção contra-ordenacional do direito a ser previamente ouvido e na sua presença, bem como o de defender-se daquelas imputações, conhecendo-as atempadamente e apresentando ou requerendo os meios de prova tidos por convenientes [Ac. TC 659/2006].
Afastou-se assim desta injunção constitucional para as contra-ordenações a subsistência de um duplo grau de jurisdição com a mesma consistência ou tutela constitucional tal como existe para o processo penal [Ac. 189/2001; 377/2003; 2/2006; 313/2007], não se incluindo aqui o tal direito a um segundo grau [Ac. TC 659/06] e muito menos a um terceiro grau de jurisdição.
O que se deve assegurar é a recorribilidade genérica para as decisões administrativas que afectem direitos e interesses dos administrados [32.º, n.º 10 e 20.º Constituição; 55.º do RGCO; Ac. R Porto de 2012/Jan./18].
Por outro lado, mesmo no Código de Processo Penal não existe sempre um vício de nulidade para qualquer decisão quando a mesma se apresente sem motivação ou deficientemente motivada, pois o mesmo é privativo das sentenças ou dos acórdãos [379.º; 420.º, 4 C. P. P.], só sendo nestes casos susceptível de fundamentar a sua impugnação mediante recurso [379.º, n.º 2 C. P. P.].
Por força do princípio da tipicidade da legalidade dos actos em processo penal, as decisões judiciais [vg medidas de coacção ou de garantia patrimonial (194.º, n.º 4 C. P. P.); decisão instrutória (308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3; 309.º C. P. P.)] ou os actos do Ministério Público [v. g. a acusação (283.º, n.º 3 C. P. P.)], só são nulos se tal consequência estiver expressamente contemplada.
Por último e como toda a interpretação legislativa deve preservar a integridade do Direito e a unidade do sistema jurídico [9.º n.º 1 Código Civil], não se percebe como é que uma decisão administrativa a dado momento pode equivaler a uma acusação, quando a entidade administrativa envia os autos ao Ministério Público [62.º, n.º 1] e ao mesmo tempo é equiparada a uma sentença.
Nesta conformidade e reconhecendo-se a autonomia do processo de contra-ordenações e a natureza subsidiária do processo penal, o vício da falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve corresponder ao vício genérico acometido a uma qualquer decisão judicial, ou seja, equivale a uma irregularidade e não a uma nulidade [Ac. R. P. de 2011/Fev./09] – e muito menos a uma nulidade insanável, por não integrar o catálogo do artigo 119.º do C. P. P. e não estar especificadamente prevista como tal em mais nenhuma disposição legal, as quais são sempre susceptíveis de ser conhecidas oficiosamente [410.º, n.º 3 C. P. P.].
Tratando-se de uma irregularidade – o mesmo sucederia se se concebesse tal vício como uma nulidade sanável de uma decisão que não fosse sentença – a mesma teria de ser previamente suscitada perante a autoridade administrativa que a praticou, sob pena de se considerarem tais vícios sanados [120.º, 121.º e 123.º C. P. P.].
Mas aqui a questão é outra e passa por saber se existem factos na descrição da conduta do recorrido que se enquadram na contra-ordenação pelo qual o mesmo foi condenado pela decisão administrativa, pois se não existem então não existe qualquer vício, mas antes a inexistência de uma conduta ilícita em termos contra-ordenacionais.
β) O elemento subjectivo nas contra-ordenações
i) A autonomia do direito contra-ordenacional
O regime das contra-ordenações foi instituído no nosso ordenamento jurídico através do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24/Julho, justificando-se essa opção, tal como foi enunciado no seu preâmbulo, pela “necessidade de dotar o nosso país de um adequado “direito de mera ordenação social” …. Tanto no plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal. Ordenamento que permita libertar este ramo de direito das infracções que prestam homenagem a dogmatismos morais ultrapassados e desajustados no quadro de sociedades democráticas e plurais, bem como do número inflacionário e incontrolável das infracções destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da ressonância moral característica do direito penal. E que permita, outrossim, reservar a intervenção do direito penal para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais e salvaguardar a sua plena disponibilidade para retribuir e prevenir com eficácia a onda crescente de criminalidade, nomeadamente da criminalidade violenta” [Ponto 1].
Aí também se disse mais à frente que “Hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (Eduardo Correia, ibidem, p. 268)”[5] (ponto 2), acrescentando-se “Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal” (ponto 4).
Estes propósitos de autonomia do direito de mera ordenação social foram reiterados quando foi instituído o actual regime das contra-ordenações, através do Decreto-Lei n.º 433/82, ao manifestar, como se afirma no seu preâmbulo, que as considerações ali expendidas “conservam plenamente a sua pertinência” (ponto1, § 3.º).
Ficou, de resto, também aí expresso que “a urgência de conferir efectividade ao direito de ordenação social, distinto e autónomo do direito penal, apontam as transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-criminal”.
A primeira alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 359/89, continuava a reconhecer que “deu-se um passo fundamental no sentido de dar tratamento jurídico autónomo a infracções verificadas em domínios nos quais se assiste a uma crescente intervenção conformadora do Estado e que, submetidas à tutela do direito penal, o vinham descaracterizando retirando-lhe eficácia persuasiva e preventiva”.
Mas foi com a revisão de 1995, realizada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/Set., que perante a “inerente transformação em contra-ordenações de muitas infracções anteriormente qualificadas como contravenções ou como crimes, …com o alargamento notável das áreas que agora são objecto de ilícito de mera ordenação social e, do mesmo passo, com a fixação de coimas de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias especialmente severas” (§ 1.º) que se sentiu a necessidade “[d]o efectivo reforço das garantias dos arguidos perante o crescente poder sancionatório da Administração”, a par de cumprir “a eficácia do sistema punitivo das contra-ordenações” (§ 2.º).
Também aqui surgiu um propósito de “proceder ao aperfeiçoamento da coerência interna do regime geral de mera ordenação social, bem como de coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal” (§ 2.º), os quais incidiram na “distinção clara entre apreensão, as medidas de natureza provisória e a perda com efeitos definitivos, a clarificação do regime de perda e apreensão de objectos perigosos, a fixação de regras sobre a suspensão da prescrição do procedimento e a interrupção da prescrição da coima, para além da substituição do chamado processo de advertência pela previsão da sanção de admoestação” (§ 10.º).
O Tribunal Constitucional tem feito eco desta autonomia, tendo vindo a afirmar a “diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções” entre o ilícito contra-ordenacional e o ilícito penal, considerando que os princípios e as regras do direito penal não se aplicam automaticamente ao direito de mera ordenação social [Ac. 344/93; 278/99; 160/2004; 537/2011 e 85/2012].
O Supremo Tribunal de Justiça também tem dado conta e reafirmado essa mesma autonomia [Assento 1/2003, de 2002/Nov./28, DR I-A, de 2003/Jan./25], sem prejuízo de ter optado pela aplicação subsidiária do Código Penal ao RGCO nos casos dos limites do prazo de prescrição [Acórdão 6/2001, DR I-A, de 2001/Mar./30], na situações que levam à sua suspensão [Acórdão n.º 2/2002, DR I-A, de 2002/Mar./05] ou quanto à aplicação da lei que em concreto se mostre mais favorável ao arguido [Ac. 11/2005, DR I-A, de 2005/Dez./19].
Do que fica transposto, teremos naturalmente que reconhecer que existe uma nítida autonomia entre o RGCO e o Código Penal, decorrente de uma manifesta valoração e opção política por parte do legislador.
A mesma advém desde logo de uma diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal (1), seja numa perspectiva da censura ético-penal, seja do bem jurídico protegido, mais precisamente da sua inexistência ou existência, a que se segue a gravidade das reacções sancionadoras (2), através da aplicação de uma coima ou de uma pena de prisão e, por último a natureza distinta dos órgãos competentes decisores que aplicam a lei em primeiro lugar (3), autoridades administrativas, num caso, tribunais, noutro caso.
ii) A responsabilização do infractor
O actual RGCO abandonou aquilo que se poderia considerar a admissibilidade da imputação objectiva de um facto contra-ordenacional, na medida em que a verificação de uma contra-ordenação poderia ocorrer independentemente da sua imputação subjectiva.
E isto porque não transpôs para o actual regime o preceituado no artigo 1.º, n.º 2, que deveria ler-se conjugadamente com o artigo 8.º, n.º 1 ambos do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24/Jul. – no primeiro segmento normativo dispunha-se que “A lei determinará os casos em que uma contra-ordenação pode ser imputada, independentemente do carácter censurável do facto” e no segundo referia-se que “Salvo na hipótese a que se refere o n.º 2 do artigo 1.º só é sancionável o facto praticado como dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
O RGCO manteve apenas no seu artigo 8.º, n.º 1 que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, mantendo aqui literalmente a disciplina do Código Penal existente no seu artigo 13.º.
Em conformidade, a culpabilidade continua a ser um elemento típico das condutas contra-ordenacionais [Ac. R. C. de 2009/Mai./13], afastando-se a possibilidade de punição de uma contra-ordenação independentemente do carácter censurável do facto cometido [Ac. STJ de 2003/Jun./26].
Daí que a imputação de um facto contra-ordenacional e a sua responsabilização, exija sempre um nexo de imputação subjectiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente [Ac. R. C. de 2009/Mar./11 e Ac. R. E. de 2011/Dez./06].
Mas a questão que se coloca é se é necessário que o respectivo auto e a subsequente decisão administrativa transcrevam expressamente essa imputação subjectiva ou se se basta com a sua descrição objectiva, podendo presumir-se desta aquela.
O TEDH tem se manifestado sobre esta temática a partir do direito a um processo justo e equitativo, contemplado no artigo 6.º da CEDH, tanto na vertente do significado de uma “acusação em matéria penal” (“criminal charge”) [n.º 1], como na amplitude do princípio da presunção de inocência, mais precisamente ao âmbito da referência “A qualquer pessoa acusada de um infracção” (“Everyone charged with a criminal ofense”) [n.º 2].
Relativamente ao conceito de que se entende por “acusação em matéria penal”, tem sido considerado que o mesmo tem um significado autónomo, independente das categorizações dadas pelas leis nacionais [Ac. Adolf c. Áustria, de 1982/Mar./26].
Assim, acusação (“charge”) será sempre qualquer notificação ou comunicação oficial, efectuada pela entidade competente, do cometimento de uma infracção criminal [Ac. Deweer c. Bélgica, 1980/Fev./27; Eckle c. Alemanha, de 1982/Jul./15].
Porém, o significado de “criminal” não poderá sempre estar contido ou ter uma natureza estritamente criminal, aceitando-se também aqui um conceito autónomo [Ac. Öztürk c. Alemanha, de 1984/Fev./21], partindo-se para o efeito de três critérios [Ac. Engel e outros c. Holanda, de 1976/Jun./08]: 1. a classificação das leis nacionais; 2. a natureza da ofensa; 3. a severidade ou a gravidade da reacção ou da pena a que a pessoa pode incorrer.
A propósito estendeu-se o conceito de “criminal charge” às sanções administrativas ou contravenções, que antes eram infracções penais [Ac. Öztürk c. Alemanha], às sanções disciplinares graves militares [Ac. Engel e outros c. Holanda, de 1976/Jun./08], prisões disciplinares graves prisionais [Ac. Campbell e Fell c. U K, 1984/Jun./28], às leis aduaneiras customs law [Salabiaku c. França, 1988/Out./07], à lei da concorrência [Société Stenuit c. França, 1992/Fev./27], às sanções impostas por um tribunal com jurisdição em matéria financeira [Guisset c. França, de 2000/Set./26] e mesmo no âmbito do regime fiscal não penal [Ac. Jussila c. Filância, de 2006/Nov./23].
No que concerne à presunção da inocência, na vertente que cabe à acusação provar a culpabilidade do agente [Ac. Barberá, Messegué e Jabardo c. Espanha, 1988/Dez./06], o TEDH admitiu três situações em que esse ónus de prova pode vir a ser atenuado ou excluído.
Uma delas diz respeito às infracções de responsabilidade objectiva ou similares, cabendo apenas à acusação invocar e demonstrar a prática do acto físico (actus reus), mas já não da intencionalidade (mens rea) [Ac. Salabiak c. França, de 1988/Out./07], devendo-se restringir estas presunções a limites razoáveis e assegurando-se sempre os direitos de defesa.
A outra situação é quase semelhante à anterior, muito embora mais restritiva da presunção da inocência, pois deixa para o acusado o ónus de provar a sua inocência, só se justificando essa carga de prova para as infracções de menor gravidade, que são aquelas que não contemplam qualquer pena ou medida privativa da liberdade [Ac. Salabiak v. França, de 1988/Out./07].
Por último, existem os casos em que está em causa a recuperação de activos decorrentes de uma actividade criminosa, sendo aceitável que a partir de uma probabilidade dessa proveniência ilícita se aceite a inversão do ónus de prova [Ac. Welch c. R. U., de 1995/Fev./09; Ac. Philips c. R.U., de 2001/Jul./05].
Aqui chegados, podemos certamente concluir que o processo contra-ordenacional está sujeito às exigências de um processo equitativo.
Mas também podemos acertar que sendo as contra-ordenações apenas punidas com uma coima, que na conceitualização do TEDH corresponde a uma reacção punitiva que não é grave, se possa presumir o elemento subjectivo da conduta integradora da respectiva infracção a partir da descrição do seu elemento objectivo.
De resto o Supremo Tribunal de Justiça chegou a estabelecer, no caso das contra-ordenações rodoviárias, que estando o infractor devidamente habilitado para conduzir, sendo portador da respectiva licença, partiu da presunção que o mesmo estava em condições de observar as regras estradais, agindo sem o cuidado a que estava obrigado [Ac. 2006/Dez./06][6].
Tanto mais que a culpa nas contra-ordenações não se baseia em qualquer censura ético-penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao mesmo agente [Ac R. P. 2007/Set./12], o que não afasta, obviamente, a possibilidade de demonstração de que o mesmo agiu sem culpa.
Nesta conformidade, a exigência efectuada pela decisão recorrida de que a decisão administrativa deve conter expressamente a descrição do elemento subjectivo não é concernente com o regime contra-ordenacional, nem com o direito fundamental à presunção da inocência, pois aqui a sua intensidade mostra-se mais atenuada do que em relação ao processo penal.
Por outro lado, pode-se certamente presumir, com toda a segurança, que quem se dedica à actividade de restauração, sabe perfeitamente que para o fazer tem de ser titular do respectivo alvará de licença de utilização.
*
b) A nulidade da decisão judicial recorrida
O regime dos recursos contra-ordenacionais, tal como se encontra delineado no RGCO, consagra uma fase de impugnação judicial para os tribunais de 1.ª instância, com uma total similitude a um recurso de apelação (59.º e 64.º), e uma fase de recurso para os tribunais da relação, que corresponde a um recurso de revisão restrito à matéria de direito, sem prejuízo da sua ampliação excepcional à matéria de facto, mediante o conhecimento oficioso dos seus vícios ostensivos, embora com os limites da proibição da reformatio in pejus (72.º-A, 73.º, 75.º).
Porém, continua a persistir no processo contra-ordenacional o ónus de alegar e de formular o pedido recursivo, sendo este que delimita inicial e essencialmente o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal “ad quem” [74.º, n.º 4 RGCO e 412.º, n.º 1 C. P. Penal].
O recurso do Ministério Público apenas incidiu sobre a matéria de direito correspondente à parte decisória respeitante à “falta de descrição dos factos constitutivos dos elementos subjectivos das imputadas contra-ordenações”, sendo este de resto o único elemento constitutivo da decisão judicial aqui impugnada.
Mas como se pode constatar desta, foram várias as questões suscitadas no recurso, aí identificadas como “alegada preterição do direito de defesa e contraditório”, concluindo-se pela sua não violação (1), “competência ou duplicação de procedimentos”, considerando-se aqui que o recurso merece provimento (2) e nulidade da decisão administrativa (3), que também obteve provimento recursório.
Podemos assim constatar que a decisão judicial recorrida omitiu na sua parte decisória qualquer referência às duas primeiras questões, tento até concluído que o recurso merecia provimento, quando apenas o teve parcialmente, havendo por isso uma omissão de pronúncia [379.º, n.º 1, al. c) C. P. Penal] e uma contradição insanável entre os seus fundamentos e a parte decisória [410.º, n.º 2, al. b) parte final], prejudicada por aquela nulidade, que aqui podem ser conhecidos oficiosamente e declarados.
*
* *
III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte em que esta julgou nula a decisão administrativa na parte aqui expressamente recorrida (1), declarando-se no demais a decisão recorrida nula por não se ter expressamente pronunciado na sua parte decisória quanto aos demais fundamentos da impugnação judicial (2).

Não é devida tributação.

Notifique.

Porto, 11 de Abril de 2012
Joaquim Arménio Correia Gomes
Carlos Manuel Paiva do Espírito Santo
______________
[1] Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/Out., revisto e actualizado pelos Decretos Leis n.º 359/89, de 17/Out., 244/95, de 14/Set., 323/2001, de 178/Dez. e Lei n.º 109/2001, de 24/Dez., sendo deste RGCO os artigos a que doravante se façam referência sem indicação expressa da sua origem.
[2] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt, como os demais acórdãos que forem citados deste Tribunal.
[3] Ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar, acessível em www.dgsi.pt assim como os demais arestos do Supremo Tribunal de Justiça, bem como das Relações em que não se faça menção expressa da sua origem.
[4] Ambos relatados pelo Conselheiro Rodrigues da Costa.
[5] Eduardo Correia, “Direito penal e direito de mera ordenação social”, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973.
[6] Relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes.