Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
280/12.9TAVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO RIBEIRO COELHO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE
Nº do Documento: RP20151209280/12.9tavng-A.P1
Data do Acordão: 12/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Com vista à decisão sobre o prosseguimento do processo, previsto no artº 282º 4 CPP há que averiguar da culpa do arguido ou da sua vontade de não cumprir, na ocorrência dos factos que a tal possam conduzir.
II - Por isso, o arguido deve ser ouvido previamente à decisão, sob pena de nulidade dos artºs 120º2d) e 61º1 b) CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 280/12.9TAVNG-A.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
Por decisão instrutória de 19/3/2015, os aqui arguidos (1) B…, (2) C…, (3) D… e (4) “E…, Ld.ª”, foram pronunciados numa decisão instrutória que antes tinha determinado que o processo deveria seguir os seus termos em conformidade com o disposto no Art.º 287.º, n.º 4, alínea c), do CPPenal, dado que não tinham sido cumpridas as injunções fixadas.
Na sequência desta decisão instrutória, os mesmos arguidos vieram arguir a nulidade desse mesmo despacho instrutório, tendo o tribunal de instrução proferido novo despacho a indeferir essa arguição.
Não se conformando com este indeferimento, dele os arguidos interpuseram recurso para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação:
1. Os arguidos requereram abertura de instrução, sindicando a decisão de acusação pela prática de um crime um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos artigos 105º, nº 1 e 107º nº 1 e 2, da Lei 15/01, de 5/6, e 26º do CPenal
2. E, à cautela, na eventualidade de não serem despronunciados e arquivados os autos, requererem a suspensão provisória do processo.
3. Foi decretada a suspensão provisória do processo, por dois anos, pela Exma. Juiz de Instrução, com a concordância do Sr. Procurador da assistente e dos arguidos, mediante a obrigação do pagamento das quotizações em dívida objecto no processo-crime dos autos no valor de 96.434,96 € e juros.
4. No termo do prazo, a Segurança Social foi oficiada para se pronunciar a respeito do cumprimento da injunção determinada e informou que se achavam em atraso cinco mensalidades.
5. Com base nessa informação a Exma. Juiz de Instrução revogou a suspensão do processo e proferiu despacho de pronúncia dos arguidos pelos crimes que estavam acusados dando por verificado sem mais o incumprimento das injunções que lhe haviam sido impostas.
6. Foi ordenado o prosseguimento dos autos por ultrapassagem do prazo máximo de suspensão sem que antes o tribunal ad quo apurasse a culpa dos arguidos no incumprimento das injunções.
7. O Tribunal ad quo não notificou os arguidos do alegado incumprimento, sequer ouviu os arguidos a esse respeito.
8. O que fez com que os arguidos arguissem a nulidade desse despacho, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º, ambos do Código de Processo Penal, requerendo, a final, a revogação da decisão instrutória e a sua inerente despronúncia.
9. Entendem os recorrentes, de resto na esteira da doutrina e jurisprudência dominantes, que a revogação da suspensão provisória do processo não decorre automaticamente do incumprimento de alguma injunção, envolvendo antes um juízo sobre a culpa ou a vontade de não cumprir por parte do arguido, sendo o critério estabelecido o do incumprimento com culpa grosseira ou reiterada do arguido.
10. Os recorrentes entendem que não lhes pode ser imputada culpa pelo eventual incumprimento das injunções estabelecidas no âmbito de suspensão provisória do processo que antecedeu a acusação.
11. Porquanto os arguidos não dispunham de elementos concretos sobre o montante dos juros, entretanto vencidos, e sobre o destino e a afectação dos montantes pagos.
12. Os arguidos procuraram, através do seu defensor, ainda durante o prazo da suspensão do processo, obter da assistente informação sobre se as injunções se achavam já integralmente cumpridas ou não e, nesse caso, em que medida.
13. Os arguidos só foram informados, em 10/03/2015, de que se achavam por regularizar algumas prestações, o que não colocava em crise a manutenção do acordo que outorgaram com o Instituto da Segurança Social pois esse acordo previa a possibilidade de um atraso de 3 prestações sucessivas ou 6 interpoladas sem que tal implicasse a resolução do acordo.
14. Esse atraso também poderia não colidir com o cumprimento integral das aludidas injunções, se todas as prestações, entretanto efectuadas, tivessem sido afectadas às quotizações, como era desejo dos arguidos.
15. A sociedade arguida, após decretada a suspensão provisória do processo, já havia pago: 77.457,16 € em 2013; e 89.104,56 € em 2014, num total de 166.561,72 €
16. Os arguidos admitiam que essa importância já seria suficiente para liquidar integralmente o montante das quotizações em dívida objecto dos presentes autos, bastando para tal que as referidas prestações estivessem a ser afectadas, como era seu desejo, a tais quotizações.
17. Os arguidos, mal tiveram acesso à informação prestada pela Ilustre Mandatária da Assistente – de que até à data não dispunham e que só a assistente conhecia - logo se aprontaram a regularizar a situação (além das prestações efectuadas em 2013 e 2014, ante mencionadas, já entregaram mais 60.743,15 €, no âmbito de tal acordo, em 2015).
18. A regularização da situação também foi, de imediato, comprovada nos autos pela assistente, através de Requerimento da sua Ilustre Mandatária, em que consta “…. E…, Lda celebrou acordo de pagamento da dívida à seg. social em prestações com o IGFSS, encontrando-se o acordo com as prestações regularizadas na presente data”.
19. O douto despacho proferido violou as disposições constantes dos arts 120.º, n.º 2, alínea d), e alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º, ambos do Código de Processo Penal bem como as garantias de defesa e o princípio do contraditório constitucionalmente consagrados.
20. Os recorrentes arguiram a nulidade do dito despacho e requereram o respectivo suprimento, com a consequente revogação da decisão Instrutória e inerente despronúncia dos arguidos, pois, além do mais, entendiam que o despacho em crise, ao ser proferido sem que previamente fosse ordenada a sua notificação para se pronunciarem - audição que se impunha - sobre a promovida revogação, comprometeu e violou o Princípio do Contraditório.
21. Assim, será sempre ilegal a decisão de revogação da suspensão provisória do processo por não ter sido precedida de contraditório.
22. Ilegalidade na qual se estribaram os recorrentes para justificar a arguição da nulidade citada.
23. Arguição que veio a ser julgada desprovida de fundamento legal pelo Tribunal ad quo.
24. Esclarecendo que “fosse qual fosse a explicação dos arguidos, sempre teria o processo que ser remetido para julgamento”
25. Ao que parece, e no dizer da Exma. Srª. Juiz ad quo, mesmo que fosse dada a possibilidade de os arguidos se pronunciarem e provarem a inexistência de culpa - grosseira ou reiterada - ou, até, uma total ausência de culpa no incumprimento das injunções, “sempre teria o processo que ser remetido para julgamento”.
26. A avaliar pela justificação produzida, e no limite, mesmo que os recorrentes tivessem demonstrado tudo estar integralmente pago e a informação levada aos autos não passar de um mero lapso da assistente, ou de um problema no seu sistema informático, sempre teria o processo que ser remetido para julgamento”.
27. E, pelas aludidas razões, os recorrentes não podem concordar com essa decisão, tão-pouco que a arguida nulidade careça de fundamento legal e dela vêm interpor o presente recurso.
28. Pois, em bom rigor, o que carece de fundamento legal é o douto despacho proferido pelo Tribunal ad quo colocado em crise pela arguida nulidade, porquanto o artigo 287º nº 4 do CPP sequer tem alínea b) ou qualquer outra, nem é o normativo legal aplicável para o efeito tido em vista, e que só por manifesto erro de escrita ou mero lapso se poderá conceder.
29. Os recorrentes entendem que o despacho ora recorrido deve ser revogado, e, consequentemente, substituindo por outro que ordene a audição dos arguidos e a realização das diligências que se revelem pertinentes e que, em face disso, se profira nova decisão em conformidade.
30. Foram, com a devida e justa vénia, incorrectamente aplicados pelo tribunal ad quo as normas constantes dos arts. 120.º, n.º 2, alínea d); alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º, ambos do Código de Processo Penal, e 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
TERMOS EM QUE, e nos melhores que V. Exas. Doutamente suprirão deve ao presente recurso ser dado provimento, modificar/revogar o despacho do Tribunal a quo e substituí-lo por outro que ordene a audição dos arguidos e a realização das diligências que se revelem pertinentes e que, em face disso, se profira nova decisão em conformidade, nos termos supra peticionados, Isto, para que se faça a acostumada Justiça.
Por seu turno, o Ministério Público pugna pela manutenção da decisão de revogação da suspensão da execução da prisão, concluindo as suas alegações nos seguintes moldes:
A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se deve ser mantido o despacho recorrido que revogou a suspensão provisória do processo.
Vejamos:
Esquecem-se os arguidos, que as injunções são obrigações de resultado, extinguem-se com o seu cumprimento.
As injunções e regras de conduta, impostas ao/s arguido/s, têm a função de reposição do bem jurídico violado.
O art° 281°, n°2, al. m), do CPP, configura uma cláusula aberta ao dizer-se que se pode exigir ao arguido qualquer outro comportamento, especialmente exigido pelo caso.
No caso dos autos, os factos de que os arguidos foram acusados ocorreram entre maio de 2007 e Abril de 2010, de cotizações para a Segurança Social, que os arguidos retiveram e não pagaram.
Foi-lhes dada a possibilidade de usufruírem do instituto da suspensão provisória do processo, requerida no RAI, pelo período de 2 anos sob condição de os arguidos naquele prazo liquidarem as verbas que se haviam retido e não pagas (sendo que o M°P° podia dizer que a conduta dos arguidos tinha sido através de culpa grave e opor-se à aplicação de tal instituto)
Durante o prazo de suspensão que ocorreu o seu terminus em 23/1/2015, os arguidos não cumpriram tal injunção e dizem agora que não sabiam que tinham prestações em falta.
Como então podiam os arguidos, usufruir do disposto no art° 282°, do CPP, com o eventual arquivamento dos autos, se não possuíam documento comprovativo do total pagamento, que era injunção que lhes havia sido imposta?
Claramente que existe culpa grosseira por parte dos arguidos no não cumprimento da injunção. Obviamente, que não há revogação automática da suspensão provisória, mas efectuada a necessária apreciação da culpa dos arguidos - os arguidos sabiam que não haviam cumprido no prazo da suspensão a injunção imposta e não vieram eles sim dar ao Tribunal uma explicação do motivo de não cumprimento.
Foi a assistente SS, que informou que as quantias em dívida e demais encargos não haviam sido pagas dentro do prazo da suspensão. Ela que bastaria dizer que se opunha à suspensão mas resolveu, e bem, dar mais uma oportunidade aos arguidos de pagarem as verbas dos trabalhadores que haviam retido e não as entregaram na SS.
Pelo que bem andou a Mma JIC ao revogar a suspensão provisória do processo.
E que nada tinha de ouvir os arguidos sobre o incumprimento da injunção pois os arguidos o sabiam perfeitamente do não cumprimento e já se encontrava ultrapassado o prazo da suspensão há pelo menos dois meses
O despacho sob censura não violou qualquer disposição legal, mormente as invocadas pelos recorrentes.
No despacho de sustentação da decisão recorrida, a Mm.ª Juíza a quo invoca o esgotamento do prazo máximo da suspensão provisória do processo, encontrando-se, por isso, precludido o prazo de realização da respectiva diligência processual.
Nesta sede o Ex.mo Procurador-geral Adjunto pugna pela procedência do recurso, por não terem sido ouvidos os arguidos antes do despacho de revogação da suspensão provisória do processo, por não ter decorrido o prazo máximo de suspensão e, finalmente, por ter sido já regularizada a situação com a segurança social.
Este parecer obteve a adesão dos arguidos/recorrentes na sua resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelos recorrentes na sua motivação sendo, por isso a seguinte a questão a apreciar: se em face das circunstâncias apuradas nos autos, em primeiro lugar, se verifica a nulidade da decisão que revogou a suspensão provisória do processo e pronunciou os arguidos, por preterição da audição destes últimos, e, em segundo posto, se existiram os pressupostos substanciais para essa mesma revogação, tudo isto retirando-se as legais consequências processuais caso existam razões para a procedência do recurso e a revogação dessa decisão instrutória.
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Importa antes de mais atentar concretamente nos factos que constituem a base da decisão objecto do recurso e que nos são dados pela decisão impugnada. Tais factos são os seguintes:
. No debate instrutório que se realizou em 23/1/2013, foi proferido, pelo tribunal de instrução a quo, a seguinte decisão que suspendeu provisoriamente o processo:
O Tribunal é competente.
Não há nulidades, excepções ou quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Inconformados com a acusação de fls. 324ss, vieram os arguidos requerer a Abertura de instrução a fls. 364ss, nos termos ali melhor expostos e aqui dados por reproduzidos.
Cabe apreciar.
Os arguidos encontram-se acusados da prática de um crime Abuso de Confiança em relação à Segurança, punido com pena prevista no n°1 do art° 105° do RGIT.
Por força do disposto no art. 307°, n° 2, do CPP, pode o juiz de instrução, com a concordância do Ministério Público, proceder à suspensão provisória do processo nos termos previstos no art. 281°, do actual C. P. P, que com a nova redacção introduzida peia Lei n.° 48/2007, de 29-8, passou a ser mais abrangente e, por isso, possível quando se verifiquem, cumulativamente, os pressupostos agora enunciados nas alíneas a) a f) do n.° 1 do art. 281°.
De acordo com este dispositivo;
1 - Se um crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão» pode o Ministério Público (em sede de instrução o d.l.C.) decidisse, com a concordância do Juiz de instrução (em sede de instrução com a do Ministério Público), mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente:
b) Ausência de condenação por crime da mesma natureza;
c) Não haver lugar a medida de segurança de internamento:
d) Ausência de um grau de culpa elevado; e,
e) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2 - São oponíveis ao arguido, as seguintes injunções e regras de condutas:
- Entregar ao Estado ou a instituição privada de solidariedade social certa quantia ou efectuar prestação de serviço de interesse público; (...)
A suspensão do processo pode ir até dois anos (art. 282°, n° 1, do CPP).
Os arguidos concordaram com a suspensão provisória do processo pelo período de dois anos, não havendo oposição do assistente.
Constata-se que os arguidos não tem antecedentes criminais.
Por outro lado, não há notícia nos autos que tenham anteriormente beneficiado de medida de suspensão provisória do processo quanto à prática do mesmo tipo de crime;
Também, atendendo ao comportamento dos arguidos, evidenciado nos autos (a quantia em dívida tem vindo a ser paga), entendesse que a sua culpa, não assume grau elevado, sendo que, o cumprimento das injunções propostas, responde às exigências de prevenção especial e geral que o caso impõe.
O Sr. Procurador junto deste TIC, não se opôs à requerida suspensão provisória do processo, conforme e nos termos das suas doutas considerações atrás expostas.
Em face de todo o exposto, decido, ao abrigo das disposições supra citadas: suspender o processo por dois anos.
Sem tributação.
Notifique.

. Em 19/3/2015, após promoção do Ministério Público e informação prestada pela Segurança Social, a Mm.ª Juíza de Instrução proferiu decisão instrutória de pronúncia dos aqui arguidos, tendo antes determinado que o processo deveria seguir os seus termos em conformidade com o disposto no Art.º 287.º, n.º 4, alínea a), do CPPenal, dado que não tinham sido cumpridas as injunções fixadas, isto nos moldes melhor documentados a fls. 452-454 dos autos.
. Na sequência, os arguidos vieram a apresentar um requerimento de arguição de nulidade deste despacho de revogação e de pronúncia, alegando preterição da sua audição prévia e descrevendo a situação de incerteza em que se encontravam para a liquidação das prestações da segurança social que entretanto já se encontravam saldadas.
. Sobre este requerimento incidiu o despacho de indeferimento de 20/4/2015, a fls. 469-470 dos autos, com o seguinte teor:
Requerimento de fls. 462.
Como refere o M°P° na promoção que antecede, o requerido pelos arguidos carece de fundamento legal.
Com efeito, foi requerido pelos arguidos a aplicação do instituto da suspensão provisória, sendo que como decorre de fls. 401 que a Segurança Social se pronunciou no sentido da sua aplicação desde que fossem pagas as quantias em dívida em prazo a fixar. Os arguidos, a fls. 404 aceitaram tal injunção requerendo a aplicação do prazo mais dilatado que a lei permitir.
Procedeu-se a Debate Instrutório (fls. 434), onde se proferiu decisão relativa à suspensão requerida, ordenando-se a suspensão do processo pelo prazo máximo requerido - dois anos. Volvidos dois anos oficiou-se junto da Segurança Social no sentido do cumprimento da injunção determinada (fls. 446), tendo sido dada notícia aos autos de que havia cinco mensalidades em atraso.
Assim e como resulta claro da decisão proferida a fls. 452 e nos termos do disposto no artigo 287°, 4, a), do CPP, foi ordenado o prosseguimento dos autos por ultrapassagem do prazo máximo de suspensão, razão pela qual, fosse qual fosse a explicação dos arguidos, sempre teria o processo que ser remetido para julgamento, pois por facto apenas imputável àqueles, esteve o processo parado durante dois anos, estando obviamente precludida a realização de diligências instrutórias e mesmo inquirição dos arguidos, face ao referido supra; a não ser assim, poder-se ia usar este instituto apenas para atrasar processos.
Mantemos assim a decisão de fls. 452 nos seus precisos termos, devendo o processo ser remetido para julgamento, pois coube aos arguidos a opção de requerer instrução para poder beneficiar de um instituto que, repita-se, por facto apenas a eles imputável, não logrou os resultados pretendidos, tendo mobilizado o tribunal e a assistente para o efeito, DN.
Porto, ds,
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É este circunstancialismo que há-de ser considerado, fundamentalmente, para bem decidir o recurso.
Nestes autos verifica-se que os arguidos se encontravam indiciados da prática de um crime abuso de confiança em relação à segurança, punido com pena prevista no n.º 1 do Art.º 105.º do RGIT, tendo no debate instrutório sido determinada jurisdicionalmente a suspensão provisória do processo pelo prazo máximo de dois anos, tal como acima se encontra descrito, nos termos conjugados dos Art.ºs 281.º, 282.º, nº 1, e 307.º, n.º 2, todos do CPPenal.
Ficaram adstritos, os mesmos arguidos, a pagar as quantias em dívida à Segurança Social, nesse prazo máximo de dois anos.
Decorrido esse prazo, a Segurança Social foi oficiada para se pronunciar a respeito do cumprimento da injunção determinada (fls. 446), tendo vindo a dar conta de que se achariam cinco mensalidades em atraso.
Com base na decisão proferida a fls. 452, e nos termos expressos do disposto no Art.º 287.º, n.º 4, a), do CPP, foi ordenado o prosseguimento dos autos por ultrapassagem do prazo máximo de suspensão, com a pronúncia dos arguidos para o seu julgamento.
Foi arguida a nulidade de tal decisão de revogação da suspensão provisória do processo, tendo esse requerimento merecido a decisão de indeferimento agora recorrida.
Cumpre apreciar.
A suspensão provisória do processo é um instituto jurídico-processual, imbuído do espírito dos sistemas de oportunidade, para crimes de reduzida gravidade, em que o Ministério Público (com a homologação do juiz) ou mesmo o juiz, sempre em todo o caso com o acordo do arguido e do assistente, suspende provisoriamente a tramitação do processo penal e determina a sujeição do arguido a regras de comportamento ou injunções durante um determinado período de tempo. Se tais injunções forem cumpridas pelo arguido, o processo é arquivado; se não forem cumpridas, a mesma autoridade judiciária revoga a suspensão, isto é, deduz acusação ou profere a pronúncia e o processo penal prossegue os seus ulteriores termos.
Determina o actual Art.º 281.º, do CPPenal (Suspensão provisória do processo):
1 — Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2 — São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efectuar prestação de serviço de interesse público;
d) Residir em determinado lugar;
e) Frequentar certos programas ou actividades;
f) Não exercer determinadas profissões;
g) Não frequentar certos meios ou lugares;
h) Não residir em certos lugares ou regiões;
i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;
l) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;
m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3 — Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
4 — Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.
5 — A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.
6 — Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
7 — Em processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
Por sua vez, prevê o Art. 282.º, do mesmo Código, sob o título “duração e efeitos da suspensão”:
1 — A suspensão do processo pode ir até dois anos, com excepção do disposto no n.º 5.
2 — A prescrição não corre no decurso do prazo de suspensão do processo.
3 — Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4 — O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
5 — Nos casos previstos nos n.os 6 e 7 do artigo anterior, a duração da suspensão pode ir até cinco anos.
Conforme se extrai do n.º 4 deste último normativo, o processo prosseguir e as prestações feitas não podem ser repetidas, … se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta.
Decorrido que seja esse prazo de suspensão, a autoridade judiciária (o Ministério Público ou o Juiz), deve apreciar a situação e concluindo que o arguido não cumpriu as injunções ou as regras de comportamento estipuladas, deve levantar a suspensão decretada e prosseguir os termos do processo (com a acusação ou a pronúncia do arguido).
Nestes autos a Mm.ª Juíza de instrução assumiu que esta apreciação do incumprimento por parte dos arguidos era automática, sem necessidade de averiguação da sua culpa no incumprimento e inclusive sem a sua audição uma vez que já tinha decorrido o prazo máximo de dois anos relativo à suspensão provisória.
Partiu, pois, do princípio que essa constatação era de cariz automático e que o decurso do prazo preclusivo sem qualquer manifestação por parte dos arguidos impedia-os agora de vir justificar a sua aventada omissão. Operar-se-ia, no entender do tribunal a quo, uma espécie de caducidade da medida da suspensão provisória, com o ressurgimento da tramitação processual normal dos autos.
Pensamos que este não é o melhor entendimento acerca dos pressupostos desta apreciação sobre o decurso do prazo da suspensão provisória do processo e da indispensável averiguação, por parte do tribunal, das condições em que veio a suceder o incumprimento por parte dos arguidos das suas obrigações para com a medida suspensiva a que se vincularam.
Tal como tem sido considerado pela doutrina e pela jurisprudência, esta apreciação não depende de um mecanismo automático da verificação do decurso do tempo e do não cumprimento “formal” das injunções em causa.
Na verdade, a opção pela dedução de acusação em vez do arquivamento não decorre automaticamente de qualquer incumprimento, muito menos quando ele é parcial, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido. Podendo, nomeadamente, haver lugar à revisão das injunções e regras de conduta decretadas, optando-se pela imposição de outras, ou pela prorrogação do prazo das anteriores até ao limite legalmente admissível, obviamente após prévio acordo do arguido assistente e juiz de instrução.
Trata-se de aplicar aqui os mesmos princípios de garantia (substantiva) dos direitos de defesa do incidente de incumprimento da suspensão da execução da prisão, previstos nos Art.ºs 55.º e 56.º, ambos do Código Penal.
Neste enquadramento, estabelece depois o Art.º 495.º, n.º 2, do CPPenal, do ponto de vista adjectivo, que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado”.
Não se encontra definido na lei, de forma concretizada, o que deve entender-se por infringir grosseiramente os deveres, deixando aquela ao critério do aplicador a fixação dos seus contornos – cfr. Art.º 56.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Mas, é evidente que em tal consideração não poderão olvidar-se os ensinamentos sobre o que constitui negligência grosseira: a culpa temerária; o esquecimento dos deveres gerais de observância; a demissão pelo agente dos mais elementares deveres que não escapam ao comum dos cidadãos, uma inobservância absolutamente incomum.
A violação grosseira de que se fala, há-de ser uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorre não merecendo ser tolerada, indesculpada.
Tal como refere Maia Costa em anotação ao Art.º 282.º do Código de Processo Penal, “o incumprimento deverá ser culposo, ou repetido, em termos idênticos aos que o Código Penal prevê para a revogação da suspensão da pena, no art. 56º, nº 1, a). Ou seja, o incumprimento não terá que ser doloso, mas deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido, ou então repetidamente assumido (…). Assim, a constatação do incumprimento não pode conduzir automaticamente à «revogação» da suspensão, devendo o Ministério Público (ou o juiz de instrução, se a suspensão tiver sido decretada nessa fase) indagar das razões do incumprimento, em ordem a decidir-se pelo prosseguimento do processo para julgamento ou pelo decurso do prazo da suspensão, consoante apure haver, ou não, comportamento culposo, ou repetido, por parte do arguido.” – assim, em António Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, 2014, Coimbra: Almedina, pp. 989. Idêntica opinião é manifestada por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2007, Lisboa: Universidade Católica Editora, também em anotação ao Art.º 282.º do Código de Processo Penal, a pp. 729.
Neste sentido, consulte-se o Ac. da RL de 18/5/2010, processo n.º 107/08.GGACCH.L1.5, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e89cd9a2c08310ce8025779f003248f8?OpenDocument.
Claro que se esse prazo em causa tiver sido preenchido na sua totalidade, como é a presente situação, não haverá possibilidade de determinar a prorrogação do prazo em face de uma situação considerada justificante do incumprimento das medidas. Mas isso não implica que não se proceda a essa averiguação das condições do incumprimento e da imputação culposa deste último aos arguidos. Sem que para isso o decurso do prazo - que também terá sempre de ser gerido pelo próprio tribunal face à averiguação da situação de incumprimento que se lhe exige – possa funcionar numa verdadeira preclusão do exercício de garantias processuais que devem ser efectivas e que não dependem (por mera ficção ou presunção) do mero decurso da passagem do tempo.
Mesmo que tenha decorrido o prazo legal máximo de dois anos dessa suspensão, impunha-se ao tribunal de instrução a quo proceder à averiguação dos motivos do verificado incumprimento, cuidando de interpelar o arguido no sentido de vir apresentar uma eventual justificação para tal.
Essa audição do arguido (e/ou do seu defensor) constitui mesmo uma garantia de defesa do arguido e do essencial contraditório, na sua manifestação do direito de audição sobre decisão que o afecte do ponto de vista pessoal, que aqui se manifesta na sua radicação constitucional e legal – cfr. Art.ºs 32.º, n.º 5, da Constituição da República, 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e 61.º, n.º 1, alínea b), do CPPenal.
O princípio do contraditório traduz-se no dever de o juiz ouvir as razões das partes, em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, e a omissão de notificação da resposta da assistente, bem como a falta de concessão de um prazo para sobre ela se pronunciarem, constituem preterição de formalidades legais essenciais e violação do direito do contraditório e das garantias de defesa em processo criminal, reconhecido aos arguidos, impedindo-os de cabalmente se defenderem.
Na realidade, os arguidos não foram ouvidos, sequer notificados para se pronunciarem sobre o incumprimento desenhado nos autos, não obstante a inacção da sua defesa e dos próprios arguidos no decurso do prazo da mencionada suspensão provisória do processo.
Mas certo é que se impunha ao tribunal o impulso de audição dos arguidos e da sua defesa, na linha de entendimento acima exposta e defendida.
Esta omissão processual constitui, na verdade, a nulidade arguida pelos aqui recorrentes, tal como prevista no Art.º 120.º, n.º 2, alínea d), por violar a alínea b) do n.º 1 do Art.º 61.º, ambos do Código de Processo Penal bem como as garantias de defesa e o princípio do contraditório constitucionalmente consagrados. Sendo certo que a mencionada alínea d) do n.º 2 do Art.º 120.º do CPPenal dispõe que “constitui nulidade dependente de arguição a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem refutar-se essenciais para a descoberta da verdade”.
Pelo que se demonstra como verificada a invocada nulidade da decisão de levantamento automático da suspensão provisória do processo e de subsequente pronúncia dos arguidos, tal como salientada pelos arguidos na sua arguição da nulidade e neste recurso (no que foram acompanhados pela posição assumida pelo Ministério Público nesta instância de recurso).
Impondo-se, em consequência, a procedência da arguição da nulidade processual suscitada pelos arguidos, e a revogação do despacho de indeferimento de 20/4/2015, exarado a fls. 469-470, que deverá ser substituído pela procedência da mesma nulidade arguida, com a anulação da antecedente decisão do mesmo tribunal de instrução a quo, de 19/3/2015, documentada a fls. 452-454 dos autos, que determinou o prosseguimento do processo por não terem sido cumpridas as injunções fixadas, e a pronúncia dos arguidos. Após isso, deverá o mesmo tribunal a quo proferir um despacho de convite aos arguidos (e à sua defesa) para se pronunciarem, no prazo de dez dias, sobre o incumprimento da injunção de pagamento das dívidas à Segurança Social nos dois anos de suspensão provisória do processo, já decorridos (tal como indicado pela mesma Segurança Social no ofício remetido aos autos).
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III. DISPOSITIVO
Nestes termos, os Juízes desta Relação acordam, em conceder provimento ao recurso interposto, e consequentemente revogam o despacho de indeferimento de 20/4/2015, exarado a fls. 469-470, que deverá ser substituído por outro que julgue procedente a nulidade processual arguida, com a anulação da antecedente decisão do mesmo tribunal de instrução a quo, de 19/3/2015, documentada a fls. 452-454 dos autos, que determinou o prosseguimento do processo por não terem sido cumpridas as injunções fixadas, e a pronúncia dos arguidos. Após isso, deverá o mesmo tribunal a quo proferir um despacho de convite aos arguidos (e à sua defesa) para se pronunciarem, no prazo de dez dias, sobre o incumprimento da injunção de pagamento das dívidas à Segurança Social nos dois anos de suspensão provisória do processo, já decorridos (tal como indicado pela mesma Segurança Social no ofício remetido aos autos).
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Sem tributação, em face da procedência do recurso.
Notifique.
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Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (cfr. Art.º 94.º, n.º 2, do CPPenal).

Porto, 9 de Dezembro de 2015
Nuno Ribeiro Coelho
Renato Barroso