Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
245/14.6YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
SENTENÇA ARBITRAL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Nº do Documento: RP20141125245/14.6YRPRT
Data do Acordão: 11/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Procede a acção de anulação da sentença arbitral, por falta de fundamentação, sempre que seja completamente omissa quanto à motivação da decisão de facto e à discriminação dos factos não provados alegados pelo requerente como fundamento da reclamação e as partes não tenham acordado em sentido diverso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 245/14.6YRPRT
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Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró

Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

B…, residente na Rua …, n.º .., R/C, …, instaurou contra C…, S.A., com sede na …, n.º . – ...º, em Lisboa, a presente acção de anulação da sentença arbitral proferida em 11/6/2014, alegando omissão da fundamentação, quer da decisão de facto, quer da enunciação dos factos não provados, por si alegados, e pedindo a sua anulação, declarando-se a “mesma nula por falta de fundamentação, ao abrigo do disposto na alínea vi) do n.º 3 do artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária”.

A requerida não deduziu oposição, apesar de devidamente citada.

Tudo visto, porque nada obsta, cumpre decidir a presente acção, a qual se resume a saber se deve ser anulada a sentença arbitral por falta de fundamentação.
É o seguinte o teor dessa sentença:
“A. No dia 23 de Maio de 2012, cerca das 11H30m, na A44, ao Km 1,6, em Vila Nova de Gaia, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os veículos ligeiros de passageiros de matrícula ..-..-OF, conduzido por B… (proprietário e aqui Reclamante), e o de matrícula ..-..-MZ, conduzido por D…, e com responsabilidade civil automóvel transferida para a Reclamada, mediante contrato de seguro, titulado pela Apólice ……..
B. O OF, não respeitando o sinal de cedência de prioridade de passagem, invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o MZ, provocando a respectiva colisão.
C. Esta colisão ficou assim a dever-se exclusivamente ao OF por desrespeito do sinal que lhe impunha cedência de passagem ao MZ violando assim o artigo 29.º, n.º 1 do C.E..
D. O OF sofreu danos no valor a 1.886,00 €, valor este correspondente ao valor venal do veículo.
Em consequência, sendo o acidente imputável ao condutor do OF encontra-se excluída a responsabilidade da Reclamada (Artigo 505.º do C.C.), razão por que julgo a reclamação improcedente.
Notifique, com cópia.”

II. Fundamentação

1.De facto
Para além do que resulta do relatório acabado de exarar, importa considerar aqui provados mais os seguintes factos:
A) B… apresentou reclamação, em 7/2/2014, no Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), contra C…, pretendendo o pagamento da quantia de 1.886,00 €, correspondente ao valor venal do seu veículo, de matrícula ..-..-OF.
B) Baseou essa reclamação num acidente de viação ocorrido em 23 de Maio de 2012, na A44, ao Km 1,6, entre aquele seu veículo e o veículo de matrícula ..-..-MZ, segurado na reclamada, imputando a responsabilidade pela sua ocorrência ao condutor desta viatura, por circular com excesso de velocidade.
C) Anexou à mesma reclamação “declaração amigável de acidente automóvel” e “participação de acidente de viação”, elaborada pela GNR, que dá notícia de rastos de travagem de 62 metros e 41 metros de comprimento, deixados pelos pneus, respectivamente, do lado esquerdo e direito do veículo MZ, para comprovar essa sua versão.
D) Na sentença arbitral, proferida em 11/6/2014, foram dados como provados os factos (e as conclusões) nela descritos, transcritos no antecedente relatório, e que, por isso, nos dispensamos de repetir aqui.

2.De direito

No nosso acórdão de 12 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 284/13.4YRPRT[1], decidimos um caso semelhante a este, embora no âmbito de um recurso e não de uma acção de anulação, por sinal onde a sentença arbitral foi prolatada pelo mesmo Ex.mo Sr. Juiz Árbitro.
Assim, por razões de coerência e estando convencidos da justeza da nossa decisão, há que seguir aqui os fundamentos ali exarados, com as devidas adaptações.
Como é sabido, o dever de fundamentação das decisões que não sejam de mero expediente tem consagração constitucional no n.º 1 do art.º 205.º da CRP, ao dispor que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
O art.º 154.º do CPC, actualmente em vigor, aqui aplicável, também dispõe no n.º 1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, acrescentado o n.º 2 que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
A fórmula utilizada no n.º 1 do preceito acabado de referir é redutora, pois o dever de fundamentação existe relativamente a todas as decisões que não sejam despachos de mero expediente (cfr. art.º 152.º, n.º 4 do CPC), por imperativo constitucional, mesmo que aparentemente não estejam abrangidas por aquele preceito. Hoje, a aludida norma constitucional impõe o entendimento de que só o despacho de mero expediente não carece, por sua natureza, de ser fundamentado, devendo sê-lo qualquer outra decisão que, directa ou indirectamente, interfira no conflito de interesses entre as partes (cfr. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, 2.ª edição, vol. 1.º, pág. 302, a propósito do art.º 156.º de igual teor).
Segundo estes autores, o n.º 2 do art.º 158.º do anterior Código, ao qual corresponde o citado art.º 154.º (com redacção igual até “oposição” e tendo este acrescentado a ressalva que não tem aqui aplicação) “afasta a fundamentação meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de aderência às razões invocadas por uma parte, exigindo a fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pela parte, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma” (cfr. obra citada, págs. 302 e 303).
O dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, mesmo daquelas de que não cabe recurso, assenta no pressuposto de que a decisão não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso submetido à apreciação jurisdicional, e na necessidade de as partes serem não só esclarecidas mas convencidas do seu acerto (cfr. Alberto dos Reis, Comentário, vol. 2.º, pág. 172 e CPC anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 284), uma vez que o seu valor extrínseco flui da sua motivação, cuja função pedagógico-social se não pode subestimar, para além de, admitindo recurso, necessitarem de saber a razão ou razões do decaimento das suas pretensões para as poderem impugnar.
Por sua vez, o art.º 607.º, n.º 3 do mesmo Código, a propósito da fundamentação da sentença, manda ao juiz “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
Ainda na fundamentação da sentença, segundo o disposto no n.º 4 do citado art.º 607.º, “o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência.”
A violação do dever de fundamentação gera a nulidade nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC ao preceituar que a sentença é nula quando “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
É certo e sabido que, não obstante o aludido dever de fundamentação, a doutrina e a jurisprudência dominantes têm vindo a entender que só a falta absoluta de motivação, que não a meramente deficiente ou medíocre, conduz àquela nulidade.
Os tribunais arbitrais são uma espécie de tribunais (cfr. art.º 209.º, n.º 2, da CRP), que, embora com menos exigências, também se encontram sujeitos ao dever de fundamentação.
Com efeito, nos termos do art.º 42.º, n.º 3 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), anexa à Lei n.º 63/2011, de 14/12, que a aprovou, aqui aplicável por já estar em vigor aquando da iniciação do processo arbitral (cfr. art.ºs 4.º, n.º 1 e 6.º), “A sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º”, o que não é o caso.
O art.º 13.º, al. e), do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros, aprovado pela Assembleia Geral de 31 de Maio de 2010, nos termos previstos no art.º 12.º, al. i), dos Estatutos do Cimpas – Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros, que rege o Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros, manda fazer constar da decisão arbitral “os fundamentos, de facto e de direito, da decisão”.
E o art.º 14.º do mesmo Regulamento manda aplicar as normas da Lei da Arbitragem Voluntária (n.º 1) e, em caso de omissão, subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral – n.º 2.
Com igual teor existe o art.º 23.º do Regulamento da Arbitragem e das Custas, aprovado na mesma Assembleia Geral.
O art.º 18.º, n.º 2, deste Regulamento também manda, além do mais, que a acta contenha a “caracterização sumária do litígio e respectiva decisão, devidamente fundamentada”.
O único árbitro decidirá de acordo com o direito constituído (art.º 12.º, n.º 1, do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem), depois de produzida a prova oferecida, que pode ser qualquer uma admitida em direito, podendo o tribunal arbitral, por sua própria iniciativa, recolher depoimentos das partes, ouvir testemunhas ou terceiros, obter a entrega de documentos necessários, nomear peritos, mandar proceder a análise ou exames directos (art.º 14.º do Regulamento da Arbitragem e das Custas).
Segundo Paula Costa Silva, citada no acórdão de 3/12/2012, proferido no processo n.º 206/12.0YRPRT, em que o aqui relator e o primeiro adjunto foram, respectivamente, 1.º e 2.º adjuntos, disponível em www.dgsi.pt, que passamos também a citar, “a exigência do n.º 3 do artigo 23.º[2] encontra a sua justificação na necessidade de se evitar a arbitrariedade do processo arbitral, podendo dizer-se que «uma sentença é provida de fundamentos sempre que seja possível compreender a motivação do árbitro. Assim, mesmo que a motivação seja deficiente, medíocre ou errada, estaremos perante uma sentença motivada, devendo as deficiências da sua fundamentação, que não geram nulidade, ser arguidas em via de recurso. Só a falta absoluta de motivação implicará uma nulidade da sentença arbitral, invocável através da acção de anulação. Sempre que a motivação seja deficiente e não havendo lugar a anulação, deve essa deficiência ser suprida através de recurso interposto contra a sentença arbitral»”.
Acontece, porém, que esta doutrina não tem inteiro cabimento quando a decisão arbitral não é susceptível de recurso, como no presente caso, não só porque as partes não acordaram expressamente nessa possibilidade, mas também porque o valor não o permitia (art.º 39.º, n.º 4 e 46.º, n.º 1, ambos da LAV).
Estando perante uma acção de anulação, único meio impugnatório possível, há que apurar se ocorre algum dos fundamentos previstos no n.º 3 do artigo acabado de citar, onde constam os únicos fundamentos capazes de basear tal acção, pois contém uma enumeração taxativa, como resulta claramente do advérbio de exclusão “só”, ali inserido.
O fundamento invocado pelo requerente e que temos vindo a analisar está previsto na alínea vi do n.º 3 do citado art.º 46.º.
Ali, permite-se a anulação quando “a sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 42.º”.
Por sua vez, o n.º 3 deste artigo impõe a fundamentação da sentença, sempre que as partes não tiverem dispensado essa exigência ou aquela não tenha resultado do seu acordo, ressalvas estas que não se verificam no presente caso, como já se disse.
A fundamentação das decisões tem um duplo objectivo: por um lado, cumpre uma função de índole endoprocessual, impondo ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica e habilitando as partes, em caso de impugnação, a exprimir em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; por outro lado, cumpre uma função extraprocessual, na medida em que garante o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica.
Cumpre-se esse dever se o juiz declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, depois de analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção – art.º 607.º, n.º 4, do CPC.
No caso dos autos, a decisão que é objecto desta acção de anulação contém, somente, a especificação de factos ali referidos sob as alíneas A), B) e D), pois a alínea C) é integrada por matéria manifestamente conclusiva e de direito. Embora nela nada se diga expressamente, tais factos presumem-se provados.
Tal decisão é completamente omissa quanto à motivação da decisão de facto e relativamente à enunciação dos factos não provados que acabam por ser todos aqueles que foram alegados pelo reclamante, ora requerente/autor.
Ainda que contenha alguma fundamentação, resultante sabe-se lá do quê e de onde, existe absoluta falta de fundamentação da decisão relativamente à pretensão solicitada ao tribunal arbitral.
E, ainda que se entenda que a deficiente fundamentação não integra a nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, não podemos olvidar o dever de fundamentação imposto pelo art.º 42.º, n.º 3, da LAV, sem quaisquer restrições, e pelo art.º 607.º, n.º 4, do CPC.
Esse dever de fundamentação abrange a discriminação dos factos provados e não provados e a respectiva motivação, mediante análise crítica de toda a prova produzida.
Assim, existe falta de observância do aludido dever de fundamentação, pois o tribunal arbitral, além de não declarar quais os factos que julgou não provados, não especificou os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção.
Apesar da natureza informal e prática do processo arbitral, a fundamentação deve conter os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão em termos que não diferem do regime do CPC … para a sentença judicial, pois, de outro modo, tornar-se-ia difícil a sua apreciação pelo tribunal judicial em caso de impugnação.
É flagrante e inconcebível a omissão da fundamentação, quer da decisão dos factos provados e respectiva motivação, quer da enunciação dos factos não provados.
Além de ser completamente omitida a análise crítica das provas produzidas, houve completa omissão de pronúncia do tribunal arbitral quanto aos factos alegados pelo reclamante, cuja apreciação não pode ser considerada prejudicada pelos factos dados como provados, por se reportar à versão contrária.
A inobservância do n.º 4 do art.º 607.º do CPC poderia implicar a suspensão do processo de anulação a fim de dar ao tribunal arbitral a possibilidade de retomar o processo arbitral ou de tomar qualquer outra medida para suprir as deficiências e eliminar o fundamento da anulação, ao abrigo do disposto no n.º 8 do art.º 46.º da LAV.
Porém, essa suspensão está dependente do pedido de alguma das partes.
E, no caso, as partes não a solicitaram.
O autor/requerente não a pediu, como é óbvio. E a ré/requerida nem sequer interveio, de algum modo, neste processo.
Também não podem ser aqui supridas as omissões verificadas, porquanto a decisão por nós proferida é puramente cassatória, não nos sendo permitido conhecer do mérito da questão decidida pela sentença arbitral que vai ser anulada (cfr. art.º 46.º, n.º 9, da LAV).
Resta, por conseguinte, decretar a anulação da decisão arbitral.

Sumariando em jeito de síntese conclusiva:

Procede a acção de anulação da sentença arbitral, por falta de fundamentação, sempre que seja completamente omissa quanto à motivação da decisão de facto e à discriminação dos factos não provados alegados pelo requerente como fundamento da reclamação e as partes não tenham acordado em sentido diverso.

III. Decisão

Por tudo o exposto, julga-se a acção procedente e anula-se a sentença arbitral.
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Custas pelo requerente, visto que não foi deduzida oposição e tirou proveito da acção (art.º 527.º, n.º 1, do CPC).
Fixa-se à acção o valor de 1.886,00 € (art.ºs 301.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC).
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Porto, 25 de Novembro de 2014
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] Disponível em www.dgsi.pt.
[2] Da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, cuja doutrina tem aqui inteiro cabimento por identidade de razão.