Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0533689
Nº Convencional: JTRP00038951
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: COBRANÇA COERCIVA DE CRÉDITO
EMPRESA
ACTIVIDADE PRINCIPAL
NEGÓCIO ILÍCITO
Nº do Documento: RP200603160533689
Data do Acordão: 03/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: A actividade de uma empresa de cobrança de dívidas pode ser considerada como contrária à lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B……, Ldª, com sede na Rua …., nº …, em …., Guimarães, interpôs o presente recurso de apelação da sentença proferida em 20 de Dezembro de 2004, nos autos de acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária intentada por C….., Ldª, sociedade comercial com sede na Rua da …., nº …, ..º, salas …/…, Porto, que a condenou a pagar-lhe a quantia de 15.454,50 euros (quinze mil, quatrocentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, tendo, para esse efeito formulado, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:
1- A Autora alegou a existência de um contrato de prestação de serviços, consistente em cobranças extrajudiciais, derivadas de incumprimento de contratos;
2- Tal prestação de serviços está legalmente vedada a quem não seja Advogado ou Solicitador;
3- A cláusula que estipula uma percentagem fixa a título de honorários, sobre o valor cobrado, é também ela ilegal;
4- A Autora não pode fazer valer-se de um contrato que viola a Lei e como tal é ilegal;
5- Inexistem nos autos, quaisquer factos de onde resulte que a Ré violou o contrato em causa, mesmo que lhe devesse obediência;
6- A simples alegação de que a Ré é devedora de determinada quantia, não pode por si só, desacompanhada de factos demonstrativos do incumprimento contratual, legitimar uma condenação;
7- A Autora não alegou, nem da matéria dada como provada, constam factos concretos de onde se possa concluir pela existência do invocado crédito;
8- O Julgador só se pode basear em factos alegados pelas partes para fundamentar a decisão;
9 - Afirmar que do contrato resulta um crédito para a Autora, é conclusão que não pode ser atendida, sem a prova de outros elementos que tal justifiquem;
10- A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 53º, 54º e 56º da Lei 84/84, 405º do Código Civil e ainda o disposto nos artigos 659º, 660º, 661º e 664º todos do Código Processo Civil;
11- Violações estas que geram a nulidade da sentença.

Foram apresentadas contra-alegações onde a recorrida pugna pela manutenção da decisão recorrida.

À decisão a proferir interessam os seguintes factos:
1- A Autora tem por objecto a gestão de contas correntes e a cobrança extrajudicial, e no exercício da sua actividade celebrou com a Ré o contrato e anexo juntos a fls. 4 a 8.________________________
2- Através da carta registada com aviso de recepção junta a fls. 9, datada de 10/03/2003, a R. denunciou aquele contrato._________________
3 - A A. enviou à R. as cartas registadas com aviso de recepção, juntas a fls. 11 a 23.____________
4- No âmbito do contrato supra referido em 1, a autora prestou à ré serviços de que resulta um crédito a favor da primeira no montante de 15.454,50 euros.___________
5- Por sentença proferida em 20 de Dezembro de 2004, foi julgada parcialmente procedente a acção e condenada a ré a pagar à A. a quantia de 15.454,50 euros (quinze mil, quatrocentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento._________________
- O presente recurso foi instaurado em 18 de Janeiro de 2005._____________________

QUESTÕES A DECIDIR NESTES RECURSO

1- Definição da legalidade/ilegalidade do objecto negocial do contrato de prestação de serviços firmado entre as partes e em discussão nos autos.
2- Nulidade da sentença.

1- Definição da legalidade/ilegalidade do objecto negocial do contrato de prestação de serviços firmado entre as partes e em discussão nos autos

A A., aqui recorrida, C…., Ldª, intentou a presente acção declarativa, na forma ordinária, contra B…., Ldª, aqui recorrente, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 19.585, 53€, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, com fundamento em ter prestado à ré, sob encomenda desta, diversos serviços, que esta não pagou, tendo rescindido, sem qualquer fundamento, o contrato que celebrara.
A ré contestou alegando, nada dever à autora, e ser a actividade desta ilegal, motivo pelo qual, rescindiu com justa causa o contrato.
A sentença recorrida, a este propósito, refere:” a R. é uma sociedade legalmente constituída cujo objecto é a gestão de contas correntes e a cobrança extra judicial, e tal actividade não é proibida por qualquer norma jurídica, pelo que, não é o negócio jurídico celebrado entre as partes nulo por o seu objecto ser contrário à lei (art. 280º do Código Civil).”
Segundo o que consta no contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes, junto a fls. 4 a 7 destes autos, a A. é uma “ sociedade que tem por objecto o exercício da actividade de prestação de serviços a terceiros, cobranças especializadas, gestão de contas correntes …”
Analisados os documentos juntos pela A. com a petição inicial e para onde esta remete para fundamentar a razão de ser do crédito que invoca, tal como alegado no artº 7º da petição inicial, verifica-se que os serviços que a A. diz ter prestado à ré são, entre outros os seguintes:
a) Quanto ao devedor D…. – “esclarecer, identificar, controlar e concretizar um plano de acordo estabilizado e com bom senso “ (…) “ quando entregaram este trabalho o mesmo encontrava-se totalmente desorganizado, descontrolado e muito difícil mesmo para quem percebe destes documentos em profundidade, somente lá chegamos à interpretação com muito sacrifício” (…)“ Avançamos para o V/cliente em Lisboa e tentamos resolver definitivamente a cobrança, obviamente dentro de um plano de acordo previamente estabelecido e definido”
b) Quanto ao devedor E…. – “ podemos dizer que também foi muito difícil chegar-se a um plano de acordo estabilizado e com bom senso “.
Assim, a A. refere que desenvolveu trabalhos no sentido de obter a cobrança de certas dívidas que a R., ou alguém em seu nome lhe deu para cobrar, para o que foi necessário o estudo da documentação relativa às dívidas, a interpretação de documentos e a celebração de acordos de pagamento que incluíram devoluções, cheques, letras de câmbio, reformas de letras de câmbio e entregas monetárias.
A legalidade do objecto negocial da A. é alicerçado por esta em duas vertentes, por um lado por ser uma sociedade legalmente constituída e, por outro, por ter sido absolvida de uma queixa crime apresentada pela Ordem dos Advogados com fundamento em a empresa A. exercer procuradoria ilícita.
O primeiro argumento invocado pela A., não foi nos autos objecto de qualquer comprovação. Pode apenas referir-se que no contrato de prestação de serviços a empresa indica um número de identificação fiscal próprio de uma pessoa colectiva e, nada mais. Nem no contrato, nem nas cartas que juntou faz qualquer referência à sua constituição ou ao seu registo na Conservatória do Registo Comercial. Tal como se denomina, ficamos apenas a saber dever tratar-se de uma pessoa colectiva – sociedade por quotas de responsabilidade limitada- que pode estar ou não estar legalmente constituída. Também não há qualquer prova documental exterior às suas próprias declarações sobre qual seja o seu objecto social.
A absolvição em processo crime tem como único efeito jurídico externo que a declaração de não terem sido considerados provados os factos de que a A. se encontrava acusada e que, nestes autos, até se ignora quais tenham sido.
Provavelmente esteve a A. acusada de um crime de usurpação de funções cuja verificação depende da prova do exercício ilegal de profissão forjando uma identidade profissional que se não possui, praticando com base nela actos próprios desse ofício, quando tal prática seja acompanhada do engano quanto à posse sem a habilitação exigida, de forma reiterada, não bastando para o preenchimento do tipo legal de crime em referência a simples prática de um acto funcional ou profissional.
O exercício de profissão implica uma actividade com alguma continuidade espácio-temporal. O preenchimento de tal conceito supõe emprego, ocupação, oficio, que permanece no tempo e no espaço, não se bastando, pois, com a prática esporádica de um ou outro acto isolado dessa profissão (assim o Acórdão da R.P. de 20/02/1992 in www.dgsi.pt).
O caso julgado absolutório em processo penal tem os limites dos factos constantes da acusação e, em caso algum comprova que, se a A. não foi condenada por prática de procuradoria ilícita, isso possa significar que não pratica procuradoria ilícita, como resulta do disposto no artº 674º-B do Código de Processo Civil.
Nada nos autos nos diz que os factos em discussão no processo penal tenham tido algo a ver com o contrato dos autos, mais, tudo indicia que lhe sejam absolutamente estranhos na medida em que a R. desconheceria a existência desse processo crime, e foi dele informada pela A..
Dito isto, importa nos presentes autos averiguar se o contrato celebrado pelas partes, com a interpretação a ele dado pelas partes nos articulados, tem ou não um objecto ilegal.
Analisado o contrato e as tarefas que a A. alega ter desenvolvido em cumprimento dele, de que destacamos anteriormente alguns pontos mais significativos, não oferece qualquer dúvida que se o mesmo tivesse sido celebrado no final de 2004, ele tinha um objecto ilegal face ao disposto na L. 49/2004, de 24 de Agosto que definiu o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipificou o crime de procuradoria ilícita. Esta Lei que constitui a Sétima alteração ao Estatuto da Ordem dos Advogados e primeira alteração ao Estatuto da Câmara dos Solicitadores, procedeu no seu artº 12º à revogação dos artigos 53.º e 56.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/86, de 26 de Março, pelos Decretos-Lei n.ºs 119/86, de 28 de Maio, e 325/88, de 23 de Setembro, e pelas Leis n.ºs 33/94, de 6 de Setembro, 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 80/2001, de 20 de Julho.
Dispõe esta lei, com interesse para este problema o seguinte:

Artigo 1.º
Actos próprios dos advogados e dos solicitadores
1 - Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores.
2 - Podem ainda exercer consulta jurídica juristas de reconhecido mérito e os mestres e doutores em Direito cujo grau seja reconhecido em Portugal, inscritos para o efeito na Ordem dos Advogados nos termos de um processo especial a definir no Estatuto da Ordem dos Advogados.
3 - Exceptua-se do disposto no n.º 1 a elaboração de pareceres escritos por docentes das faculdades de Direito.
4 - No âmbito da competência que resulta do artigo 173.º-C do Estatuto da Ordem dos Advogados e do artigo 77.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, podem ser praticados actos próprios dos advogados e dos solicitadores por quem não seja licenciado em Direito.
5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores:
a) O exercício do mandato forense;
b) A consulta jurídica.
6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:
a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;
b) A negociação tendente à cobrança de créditos;
c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários.
7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.
8 - Para os efeitos do disposto no número anterior, não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas.
9 - São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
10 - Nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por defensor, esta função é obrigatoriamente exercida por advogado, nos termos da lei.
11 - O exercício do mandato forense e da consulta jurídica pelos solicitadores está sujeito aos limites do seu estatuto e da legislação processual.

No momento da celebração do contrato e durante a sua execução, estava em vigor o Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo DL 84/84, de 16 de Março.
Neste diploma, considerando as actualizações que lhe foram sendo sucessivamente introduzidas e, referidas acima, até à Lei n.º 80/2001, de 20 de Julho, sobre a mesma questão regiam os seguintes artigos:

Artigo 53.º
Do exercício da advocacia em território nacional
1 - Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada.
2 - O exercício da consulta jurídica por licenciados em Direito que sejam funcionários públicos ou que a exerçam em regime de trabalho subordinado não obriga a inscrição na Ordem dos Advogados sempre e quando o destinatário da consulta seja a própria entidade patronal.
3 - Exceptuam-se do disposto no n.º 1 os solicitadores inscritos na respectiva Câmara, nos termos e condições constantes do seu estatuto próprio.
4 - Os docentes das faculdades de direito que se limitem a dar pareceres jurídicos escritos não se consideram em exercício da advocacia e não são, por isso, obrigados a inscrever-se na Ordem dos Advogados.
5 - Não pode denominar-se advogado quem como tal não estiver inscrito, salvo os advogados honorários, desde que seguidamente à denominação de advogado façam a indicação dessa qualidade.

Artigo 54.º
Do mandato judicial e da representação por advogado
1 - O mandato judicial, a representação e a assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para a defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza.
2 - O mandato judicial não pode ser objecto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha directa e livre do mandatário pelo mandante.

Artigo 56.º
Escritório de procuradoria ou de consulta jurídica
1 - É proibido o funcionamento de escritório de procuradoria, designadamente judicial, administrativa, fiscal e laboral, e de escritórios que prestem, de forma regular e remunerada, consulta jurídica a terceiros, ainda que, em qualquer dos casos, sob a direcção efectiva de pessoa habilitada a exercer o mandato judicial.
2 - Não se consideram abrangidos pela proibição os gabinetes formados exclusivamente por advogados ou por solicitadores e as sociedades de advogados.
3 - A violação da proibição estabelecida sujeita as pessoas que dirijam o escritório, os advogados ou solicitadores que nele trabalhem e os que facultem conscientemente o respectivo local à pena prevista no n.º 2 do artigo 400.º do Código Penal e determina o encerramento do escritório pela autoridade policial, a requerimento do respectivo conselho distrital da Ordem dos Advogados.
4 - Da decisão do conselho distrital que determine o encerramento cabe recurso, com efeito suspensivo, para o conselho superior da Ordem dos Advogados.
5 - Para efeito da aplicação da pena cominada no n.º 2 do artigo 400.º do Código Penal, o procedimento criminal é instaurado pelo ministério público, a requerimento do conselho distrital que houver preferido a decisão.
6 - Não ficam abrangidos pela proibição do n.º 1 os serviços de contencioso e consulta jurídica mantidos pelos sindicatos, associações patronais ou outras associações legalmente constituídas, sem fim lucrativo e de reconhecido interesse público, destinados a facilitar a defesa, mesmo judicial, exclusivamente dos interesses legitimamente associados.

Face ao Estatuto da Ordem dos Advogados, constante do DL 84/84, de 16 de Março, só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podiam, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão.
Bem certo que até à L. 49/2004 não estava legalmente definido quais eram actos próprios da profissão de advogado. Tal bastaria seguramente para que em processo penal a avaliação de um concreto comportamento fosse feito com uma interpretação restritiva daquele conceito, com vista ao respeito do princípio “in dúbio pró reo”.

Todavia, em processo civil haverá que atender com maior amplitude ao que foi sendo entendido como integrante da actividade dos advogados e que só eles deveriam exercer com exclusividade.
Face aos elementos dos autos não há dúvida que a cobrança de créditos em causa não era circunscrita a uma mera actividade de mensageiro do credor tendente ao convencimento do devedor a pagar a sua dívida. Essa actividade poderia ser desenvolvida por qualquer um, poderia ser transportada por uma missiva depositada no domicílio do devedor pelo carteiro. O credor poderia ele próprio tentar estabelecer acordos de pagamento da dívida directamente com o devedor porque neste caso sempre estaria a actuar no seu próprio interesse e não em representação de um interesse de terceiro.
Aqui, diz a A. ter tido sempre necessidade de estudar, organizar e interpretar a documentação relativa a cada dívida, contactar o devedor e organizar um acordo de pagamento. Agia, nesta circunstância, claramente no interesse do seu cliente e não desenvolvendo um interesse próprio. Para fazê-lo teve que se apresentar perante os devedores como representante do credor e com poderes bastantes para, em nome dele, celebrar acordo de pagamento. Fê-lo sempre no desenvolvimento de uma actividade comercial e cumprindo o que declarou ser o seu objecto social. Nunca referiu que o tivesse feito por ser uma sociedade de advogados ou com intervenção, pelo menos de um advogado.
Para a definição do que são os actos próprios da profissão de advogado deveremos reflectir que na vigência do Estatuto Judiciário, depois revogado, também, pelo DL nº 84/84, o Supremo Tribunal de Justiça no processo 74003 de 1 de Julho de 1986 considerou que "o mandato judicial só podia ser exercido por advogados e candidatos a advocacia inscritos na Ordem, e por solicitadores, sendo proibido o funcionamento de escritórios de procuradoria geral ou similares, ainda que sob a direcção de advogado ou solicitador, só podendo exercer a profissão de advogado, os advogados e candidatos com inscrição em vigor, mesmo a de consultor jurídico ou equivalente. Tal proibição não se confinava ao mandato judicial propriamente dito, mas abrangia outros trabalhos sobre matérias jurídicas, tais como consultas, pareceres, minutas, respostas ... sobre questões de natureza civil, criminal, fiscal, administrativa".
Em seguida esteve em vigor, até 2004, o DL nº 84/84 que utilizou um conceito aberto “actos próprios da profissão de advogado”.
Em 2004, quando o legislador se decidiu a definir o sentido e o alcance dos actos próprios da profissão de advogado e dos solicitadores, a sociedade está mais globalizada, acentua-se o carácter pluridisciplinar e complementar da realidade, o direito cada vez reflecte mais essas mesmas dimensões, e surgiram várias profissões que ou não existiam ou tinham uma existência muito reduzida e vieram a desenvolver-se graças à complexidade da vida económica e social. A este propósito bastará pensar no Direito Tributário cuja complexidade implica conhecimento jurídicos e, cada vez mais, se apresenta como objecto da actividade profissional de economistas, contabilistas, gestores, assessores fiscais ou revisores oficiais de contas. Assim, por o legislador não estar seguramente desligado da realidade, ao definir em 2004 quais os actos próprios da profissão de advogado, teve que adoptar um conceito muito mais restrito que o que terá adoptado o legislador de 1984 e muito mais que o que ocorreu com o Estatuto Judiciário. Ou seja, à medida que forem ganhando existência novas profissões, naturalmente que os actos próprios da profissão de advogado verão reduzido o seu campo de actuação exclusiva. Por isso, em termos lógicos, não faria sentido que o legislador em 1994 ao esclarecer quais eram os actos próprios da profissão de advogado incluísse no seu elenco os relativos à negociação tendente à cobrança de créditos, se face ao DL 84/84, esses actos não fossem, do mesmo modo, considerados como actos próprios dessa profissão.
Na situação presente, não pode dizer-se que a actuação da A. possa ter a ver com áreas que pela sua complexidade tenham tornado necessária a participação de áreas do saber diversas do direito. Se relativamente ao estabelecimento de acordos de pagamento de dívidas em atraso haja que intervir mais que conhecimento jurídico, será não conhecimento da área de gestão de contas mas, eventualmente, conhecimentos de psicologia, de estratégias de mediação e convencimento pessoal e institucional que apenas poderão ser recolhidos em ciências sociais humanísticas.
Existem profissões para cujo exercício a lei exige ou um título ou o preenchimento de certas e determinadas condições, de que é exemplo a advocacia. A razão de ser da limitação da prática de certos actos aos advogados pode encontrar-se de forma clara no Acórdão nº 497/89 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs. 241:
“Em primeiro lugar, não pode recusar-se que, pela sua mesma natureza, e pela sua directa inserção no «processo» social e institucional da realização e da administração da justiça, a advocacia é uma profissão cujo exercício não dispensa uma apurada regulamentação, no tocante, quer às condições e requisitos exigidos para esse mesmo exercício, quer ao controlo da sua verificação, quer à necessidade da obediência, por parte dos respectivos profissionais, a um estrito código deontológico, quer ainda, finalmente, à tutela disciplinar da observância de tal código”.
O legislador ao criar o Estatuto da Ordem dos Advogado, como destaca António Arnaut – Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado, 5ª ed., Coimbra, 2000, pág. 72, teve especial preocupação em “relevar a função ético-social da advocacia, assegurando, nessa medida, um comportamento profissional e cívico do advogado que o distinga como servidor da justiça e do direito, seja no exercício da profissão ou fora dela ()”. Esse objectivo tem particular destaque nas normas relativas à deontologia profissional, designadamente na imposição do segredo profissional (artigo 81º), ao sistema de incompatibilidades estabelecido e, aos impedimentos criados quanto ao exercício da advocacia (a que o artigo 73º respeita).
A definição do regime jurídico da Ordem dos Advogados enquanto corporação pública, bem como a definição do núcleo essencial do estatuto da profissão, em particular no que respeita às garantias fundamentais do exercício da advocacia, diz respeito à defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e pretende proteger a "integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em profissões de especial interesse público" como refere Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 441, com vista à garantia da seriedade dos serviços "públicos" prestados.
Deste modo, entende-se que o objecto contratual do negócio celebrado entre a A. e a R., atento quer o seu texto, quer sobretudo o que a A. invoca ter praticado em cumprimento estrito do referido contrato, é um objecto proibido por lei por envolver a prática de actos que apenas podem ser praticados por advogados, havendo assim violação do disposto nos artºs 53º , 54º e 56º do Dl 84/84, o que determina a sua nulidade ao abrigo do disposto no artº 280º do Código Civil. Impõe-se, pois, a revogação da sentença recorrida que considerou que o contrato celebrado entre as partes era apenas um contrato de prestação de serviços relativo a uma actividade não proibida por lei.
As consequências que a declaração de nulidade do negócio jurídico celebrado entre as partes, por impossibilidade legal do seu objecto decorrem do disposto no art.289º, nº1 do Código Civil - tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, ou seja cada uma das partes, está obrigada a restituir aquilo que recebeu da outra, como se nunca tivesse havido negócio entre elas. A declaração de nulidade com carácter retroactivo produz os seus efeitos desde o início, ex tunc, a partir do momento da formação do negócio, e não ex nunc, a contar da data da declaração de nulidade.

Face a esta decisão fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso e atinentes à prova do incumprimento do contrato cuja nulidade acabou de se declarar.

Deliberação:
Acorda-se, em vista do exposto, nesta Relação, em julgar procedente o recurso e, em consequência revogar a decisão recorrida e declarar a nulidade do negócio jurídico celebrado entre as partes a que se refere o documento de fls. 4 a 8, com obrigação de ambas restituírem tudo o que hajam recebido em cumprimento desse negócio.
Custas pela apelada.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (art. 138ºnº 5 do Código de Processo Civil).

Porto, 16 de Março de 2006
Ana Paula Fonseca Lobo
Gonçalo Xavier Silvano
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha