Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1080/12.1TBSJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
FARMÁCIA
Nº do Documento: RP20131204108012.1TBSJM.P1
Data do Acordão: 12/04/2013
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A autonomia do processo de mera ordenação social face ao processo penal leva a que a aplicação subsidiária deste último não seja automática, nem conformadora ou dominante do processo contraordenacional.
II – A fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve respeitar o preceituado no art. 58º do RGCO, não fazendo sentido importar do Cód. Proc. Penal as exigências formais atinentes às sentenças.
III – A falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa constitui uma irregularidade.
IV – As farmácias são licenciadas para vender medicamentos ao público e não para exercer qualquer atividade de distribuição por grosso de medicamentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:

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Recurso n.º 1080/12.1TBSJM.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. No processo n.º 1080/12.1TBSJM do 3.º Juízo do Tribunal de S. João da Madeira, em que são:

Recorrente: B…, Lda.

Recorrido: Ministério Público

foi proferida decisão em 2013/Mai./08, a fls. 209-221, que concedeu parcial provimento à impugnação judicial, substituindo a decisão administrativa que condenou a arguida pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelos artigos p. e p. pelos artigos 94.º, n.º 1 e 95.º, n.º 1 e 181.º, n.º 2, todos do Decreto lei 176/2006, de 30.08, numa coima de €20,000 (vinte mil euros), por uma coima de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).
2. A arguida interpôs recurso por fax expedido em 2013/Mai./20 a fls. 227-256 pugnando pela revogação daquela decisão e a sua substituição por outra que revogue “a coima aplicada ou, subsidiariamente, ser a Recorrente simplesmente admoestada, nos termos do artigo 51.º do RGCO, ou a coima ser fixada nos seus limites mínimos” concluindo do seguinte modo:
(a) A decisão proferida pelo C… padece efectivamente de nulidade, por violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 50.º e 58.º do RGCO, por duas ordens de razões: (i) os factos imputados à Recorrente nunca foram devidamente circunstanciados, no que concerne ao momento em que terão supostamente ocorrido; (ii) a decisão baseou-se em factos novos, sobre os quais a Recorrente não se pôde antes defender, ao nível do alegado destino dos medicamentos. Desde logo;
(b) O C… baseou-se em notas de devolução de medicamentos da D… à Recorrente (Doc. 2 anexo à acusação) para com base nelas concluir que esta forneceu 268 embalagens de medicamentos à D… de 30/06/2011 a 01/08/2011, e compulsado tal documento facilmente se constata que 30/06/2011 a 01/08/2011 foi quando a D… devolveu medicamentos à Recorrente;
(c) Ou seja, o C… limitou-se a fazer coincidir a data da devolução com a data do alegado fornecimento da Recorrente à D…, parecendo-nos que se a D… devolveu determinados medicamentos à Recorrente de 30/06/2011 a 01/08/2011, obviamente que esta nunca os poderia ter fornecido nesses exactos momentos;
(d) A verdade, portanto, é que em momento algum o C… indicou devidamente quando é que o alegado fornecimento dos medicamentos (constantes das notas de devolução juntas aos autos) por parte da Recorrente à D… ocorreu, sendo que tal aspecto é relevantíssimo por diversas ordens de razões, designadamente: (i) só assim é possível aferir oeventual decurso do prazo de prescrição do ilícito; (ii) a falta desse elemento inviabiliza a concreta delimitação do themadecidenduum e probanduum dos autos e, assim, impede a salvaguarda do ne bis in idem;
(e) Como nunca foi devidamente indicado pelo C… quando é que o alegado fornecimento dos medicamentos (constantes das notas de devolução juntas aos autos) por parte da Recorrente à D… ocorreu, não lhe foram facultados todos os elementos necessários e indispensáveis para que tivesse perfeito conhecimento dos factos que lhe são imputados e, assim, pudesse exercer efectivamente o seu direito de defesa;
(f) Foi consequentemente violado o direito de defesa da Recorrente - direito este que goza inclusivamente de expresso beneplácito constitucional (artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa), em conformidade com o disposto no artigo 50.º do RGCO, o que constitui nulidade insanável, de harmonia com o preceituado no artigo 119, n.º 1, alínea c), do CPP, em consonância com o preceituado no artigo 41.º, n.º 1, do RGCO;
(g) Ademais, deve-se igualmente entender que a decisão do C… não contém a descrição circunstanciada dos factos, nem se encontra devidamente fundamentada, violando assim, clara e flagrantemente o disposto no artigo 58.º, n.º 1, alíneas b) e c) do RGCO, o que constitui uma nulidade da decisão, de harmonia com o preceituado nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3, e 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, em consonância com o preceituado no artigo 41.º, n.º 1 do RGCO, impondo-se assim a absolvição da Recorrente;
(h) Por outro lado, é bom de ver que o raciocínio seguido na sentença em crise padece exactamente do mesmo vício (i.e., o Tribunal a quo limita-se a fazer coincidir a data da devolução à Recorrente dos medicamentos constantes do Doc. 2 anexo à acusação - 30/06/2011 a 01/08/2011 - com a data em que esta alegadamente os teria fornecido à D…);
(i) Há portanto um erro notório na apreciação da prova, com reflexo no ponto 5 dos factos provados (na parte em que o Tribunal a quo considera a existência de um alegado fornecimento pela Recorrente de 268 embalagens de medicamentos à D… de 30/06/2011 a 01/08/2011), erro esse que expressamente se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2 alínea c) do CPC, ex vi artigo 41.º do RGCO, o qual é igualmente sindicável no presente recurso (vide, Ac. do TRL de 08-02-2012, P. 272/11.5TTBRR.L1-4, in www.dgsi.pt). Ademais:
(j) Cotejada a acusação notificada à Recorrente pelo C… ao abrigo do artigo 50.º do RGCO para exercício do direito de defesa, com a decisão final que tal entidade veio a proferir, avulta de forma clara a existência nesta última de novos factos, sobre os quais a Recorrente nunca teve oportunidade de se pronunciar: a acusação limitava-se a identificar um fornecimento não especificado de medicamentos por parte da Recorrente à D…, nunca referindo em parte alguma da acusação a que se destinaria afinal aquele fornecimento;
(k) E o destino dos medicamentos é precisamente um dos elementos do tipo objectivo da contra-ordenação que lhe estava a ser imputada (cf. artigo 3.º, n.º 1, alínea n) do Decreto-Lei n.º 176/2006), pelo que configura um elemento absolutamente essencial sobre o qual a Recorrente devia ter tido a oportunidade de se defender antes da prolação da decisão final, nos termos previstos no artigo 50.º do RGCO;
(l) E tal não sucedeu no caso dos autos: só na decisão final é que o C… veio acrescentar que os medicamentos alegadamente fornecidos se destinavam a revenda (já agora, diga-se, sem sequer explicar minimamente porque “escolheu” aquele como o alegado destino dos medicamentos), aditando assim um facto novo sobre o qual a Recorrente nunca teve oportunidade de se pronunciar e cuja verificação é imprescindível para que se possa considerar preenchido o tipo objectivo da contra-ordenação em causa;
(m) E contrariamente ao sustentado pelo Tribunal a quo, não basta na acusação invocar e transcrever a norma supostamente violada, sendo preciso que se descrevam concretamente quais os factos imputados que, no entender da entidade autuante, integram a previsão legal, sob pena de se chegarem a consequências absurdas na acusação dada a conhecer para o exercício de defesa nem seria necessário indicar nenhuns factos concretos, bastando dizer que no dia X o arguido violou a norma Y, transcrevendo-a, só se indicando depois na decisão final os concretos factos que supostamente integrariam a norma violada, sem possibilidade de defesa;
(n) Desta forma, o C… violou flagrantemente o direito de defesa da Recorrente - direito este que goza inclusivamente de expresso beneplácito constitucional (artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa) - violando assim o disposto no artigo 50.º do RGCO, dado que aplicou uma coima à Recorrente sem lhe ter dado oportunidade de se pronunciar sobre todos os factos que basearam essa mesma decisão;
(o) E a violação do disposto no artigo 50.º do RGCO, constitui uma nulidade insanável, de harmonia com o preceituado no artigo 119, n.º 1, alínea c), do CPP, em consonância com o preceituado no artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, sendo certo que a condenação por factos diversos dos descritos na acusação importa também a nulidade da decisão por força do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, igualmente aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO, impondo-se, assim, a absolvição da Recorrente;
(p) Mais se refira que não está correcta a posição sufragada na sentença em crise, na qual o Tribunal a quo procura sustentar que, mesmo que se considerassem existentes as nulidades, as mesmas ter-se-iam sanado por força da impugnação judicial apresentada pela Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c) do CPC, ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO, atenta a doutrina vertida no Assento n.º 1/2003;
(q) In casu as nulidades nunca se poderiam considerar sanadas, poisa doutrina defendida naquele Assento é que as nulidades apenas se podem considerar sanadas se na impugnação judicial o arguido “abarca, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação,”, o que não se verifica no caso dos autos: compulsada a impugnação judicial facilmente se constata que a Recorrente não abarcou na sua defesa os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação, a saber: (i) momento do alegado fornecimento dos medicamentos (constantes das notas de devolução juntas aos autos) por parte da Recorrente à D…; (ii) concreto destino dos medicamentos;
(r) A Recorrente procurou apenas sustentar a licitude de um eventual fornecimento à D… com base nas relações existentes entre ambas, por força das quais tal eventual fornecimento nunca poderia enquadrar a actividade de distribuição por grosso, à luz do regime legal aplicável às farmácias de oficina, não tendo tal defesa abarcado portanto os aspectos omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação, e de resto nem poderia abarcar: nem mesmo na decisão final foi devidamente indicado pelo C… quando é que o alegado fornecimento dos medicamentos (constantes das notas de devolução juntas aos autos) por parte da Recorrente à D… teria ocorrido;
(s) Sem conceder no que atrás se deixou exposto, importa por último deixar claro que os fornecimentos de medicamentos imputados à Recorrente não se enquadram no disposto no artigo 94.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, sendo perfeitamente lícitos;
(t) Na verdade, compulsada a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal a quo constata-se desde logo que aí não consta que os medicamentos supostamente fornecidos tivessem algum dos destinos previstos no citado preceito legal (consta apenas, no ponto 5, que foram fornecidos certos medicamentos, sem qualquer referência ao seu destino), carecendo como tala imputação de suporte factual;
(u) Ademais, há inclusivamente um regime legal expresso que admite a conduta imputada à Recorrente nos presentes autos, o qual a afasta do conceito de actividade de distribuição por grosso de medicamentos, e que se encontra previsto nos artigos 35.º, n.os 3 e 5, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 171/2012, de 1 de Agosto;
(v) Resulta claramente do supracitado preceito legal que nos casos em que se entende, por força do disposto (e dentro dos limites previstos) nos artigos 15.º e 17.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, estarmos perante farmácias que são detidas, exploradas ou geridas pela mesma pessoa comercial ou sociedade comercial, é legalmente possível a gestão conjunta de stocks e troca de medicamentos entre elas;
(w) E o exercício das funções de gerência releva para efeitos de determinação do limite do número de farmácias que podem ser detidas, exploradas ou geridas pela mesma pessoa singular ou sociedade comercial, atento o disposto no artigo 17.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, relevando como tal para a permissão de gestão conjunta de stocks e troca de medicamentos entre essas farmácias, à luz do artigo 35.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto;
(x) No caso subjudice (cf. pontos 1 a 3 da matéria de facto provada) é bom de ver que a Recorrente é proprietária da E…, tendo como (único) sócio-gerente o Dr. F…, também director técnico da E…, que por outro lado é igualmente sócio-gerente da sociedade G…, Lda. (que aliás se vincula com a assinatura de qualquer gerente – vide certidão junta à impugnação como Doc. 3), que é a proprietária da D…, à qual a Recorrente vem precisamente acusada de ter fornecido medicamentos;
(y) Como tal, tanto a Recorrente como a sociedade proprietária da D… são detidas e geridas pela mesma pessoa através de contrato de mandato, enquadrando-se no disposto no artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, podendo consequentemente gerir conjuntamente stocks e trocar medicamentos entre si, nos termos do artigo 35.º, n.º 5 do mesmo diploma;
(z) Contrariamente ao que parece crer o Tribunal a quo, a mera circunstância de as farmácias serem propriedade de sociedades distintas não significa que não se consideram detidas e geridas pela mesma pessoa, havendo um óbvio contrato de mandato que suporta a defesa da Recorrente e que precisamente conduz à aplicação do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto no caso subjudice: mandato de gerente do Senhor Dr. F… na sociedade G…, Lda., que é a proprietária da D…;
(aa) É pois manifesto que a redacção introduzida ao Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 171/2012, de 1 de Agosto, veio dissipar quaisquer dúvidas que existissem quanto à admissibilidade da conduta imputada à Recorrente, no período entre 15 de Junho de 2011 e 3 de Agosto de 2011, sendo que caso se entendesse que esta prática não era permitida até à entrada em vigor deste Decreto-Lei (o que não se concede e se equacionada por mera cautela), sempre se haveria de entender que a entrada em vigor deste diploma (em 2 de Agosto de 2012) despenalizou a conduta da Recorrente:
(bb) Em consequência, por força da aplicação do princípio da retroactividade da lei mais favorável quando o facto deixa de ser punível, expressamente previsto no artigo 2.º, n.º 2 do Código Penal, aplicável por força do artigo 32.º do RGCO, e ínsito no artigo 3.º, n.º 2 do RGCO, neste momento (e já aquando da decisão proferida pelo C… a 14 de Agosto de 2012) a Recorrente não pode ser sancionada pela conduta descrita nos autos (neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.º 490/2009, de 28 de Setembro de 2009);
(cc) A sentença em crise violou assim os artigos 17.º e 35.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 171/2012, de 1 de Agosto, bem como o artigo 2.º, n.º 2 do Código Penal (aplicável por força do artigo 32.º do RGCO) e o artigo 3.º, n.º 2 do RGCO; Subsidiariamente e sem conceder:
(dd) Se por hipótese (que não se concede e apenas porque o dever de patrocínio assim obriga se equaciona) se viesse a entender que a Recorrente praticou o ilícito que lhe vem imputado, sempre se dirá que a sanção adequada e proporcional ao presente caso seria a admoestação;
(ee) Na verdade, importa reter que o Tribunal a quo considerou provado que da prática imputada à Recorrente não resultou qualquer dano para a saúde pública, sendo que esse é precisamente o bem jurídico que o legislador visa tutelar, pelo que a gravidade da infracção é bastante reduzida;
(ff) E cumpre destacar que os movimentos de medicamentos em crise foram efectuados entre entidades licenciadas pelo C... no sector dos medicamentos, pelo que esta infracção quando praticada por uma farmácia, como a da Recorrente (que possui alvará para venda de medicamentos a retalho), não constitui qualquer violação ou, fazendo-o, assume a forma menos grave possível, sendo que dentro do universo de potenciais infractores da norma em causa, a Recorrente é aquele em relação ao qual a infracção assume menor gravidade;
(gg) É que a proibição do exercício da actividade de distribuição por grosso de medicamentos visa primeiramente a protecção da saúde pública, na medida em que se destina a proibir que entidades/pessoas que não disponham de equipamentos ou conhecimentos em matéria de medicamentos, possam comercializá-los em moldes que ponham em causa a sua segurança e qualidade e, consequentemente, coloquem em risco a saúde pública, o que manifestamente não se verifica no caso dos autos;
(hh) Aliás, os requisitos de atribuição de alvará e funcionamento de uma farmácia legalmente previstos inclusivamente são muito mais exigentes do que os legalmente estabelecidos para os distribuidores por grosso, designadamente no que concerne à direcção técnica e às exigências colocadas ao nível das áreas e divisões mínimas (cfr. artigo 20.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto por oposição ao artigo 97.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto; e artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto e Deliberação n.º 2473/2007, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 247, de 24 de Dezembro por contraposição ao artigo 97.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto);
(ii) Ademais, como avulta por omissão dos factos provados, a Recorrente não tem quaisquer antecedentes e os factos já remontam a Agosto de 2011, não constando dos autos que a situação se tenha repetido, sendo por outro lado diminuta a “dimensão” da alegada infracção é diminuta: 364 embalagens de medicamentos é um movimento “marginal”, bem se sabendo que só num dia qualquer farmácia pode facilmente vender centenas de embalagens de medicamentos;
(jj) Assim, tendo em conta todas as circunstâncias do presente caso, não se pode deixar de concluir que a aplicação da sanção de admoestação assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo adequada e proporcional à medida da culpa e à gravidade da infracção, não devendo ser outra a sanção eventualmente aplicada à Recorrente ou, se assim não se entendesse (e sem de forma alguma conceder), deveria pelo menos a coima ser fixada nos seus limites mínimos, tendo como tal sido igualmente violados os artigos 18.º e 51.º do RGCO;

3. O Ministério Público respondeu em 2013/Jun./17, a fls. 299-304v, pugnando pela improcedência do recurso, porquanto e em suma:
1.º) Não existe qualquer violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, al. b) e c) do RGCO, a qual nos termos do disposto no artigo 374.º, n.º 2 e 3 e 379.º, n.º 1 do Código de Processo Penal é aplicável por força do disposto no artigo 41.º do RGCO, não enfermando a sentença proferida de vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal ex vi artigo 41.º do RGCO (1, 2);
2.º) De acordo com o assento n.º 1/2003 (DR, n.º 21 I-A, de 25/jan.) sempre teria que se considerar sanada, com essa actuação, o vício de que poderiam padecer a notificação e a decisão administrativa, ao abrigo do artigo 121.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO (3, 4);
3.º) Ademais e com base nos argumentos esgrimidos na sentença objecto de recurso consideramos nada a haver a apontar no que foi decidido pela Autoridade Administrativa, considerando-se adequada a coima aplicada (5, 6).

4. Remetidos os autos a esta Relação, onde foram registados em 2013/out./04, foram os mesmos com vista ao Ministério Público, o qual em 2013/out./09, a fls. 314-316 emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, nada obstando que se conheça do mérito do recurso.
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As questões suscitadas em recurso reconduzem-se à nulidade da decisão administrativa (a), a (i)licitude da conduta imputada à arguida (b) e à pena de admoestação (c).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Factos provados na decisão administrativa, que foram considerados na sentença recorrida e ainda os aqui aditados: [1]
1- A E… é propriedade da sociedade B…, Lda, contribuinte fiscal nº……… tem como único sócio gerente F….
2- O Dr. F…, além de sócio único e gerente da sociedade arguida e também director técnico da E… desde Janeiro de 1997.
3- A D… é propriedade da sociedade por quotas G…, Lda. contribuinte fiscal nº ……...., tem como sócios e gerentes I…, F… e J….
4- A arguida é proprietária da E… desde 1997.
5- No período entre 15.06.2011 e 03.08.2011, o arguido forneceu à D… 364 embalagens de medicamentos constantes dos anexos 1 e 2 da acusação, para a qual se remete e que são os seguintes:
a) As Entregas de Encomenda de medicamentos do Arguido para a D…, com os números 59106, 60007, 60525, 60721 e 60772 (doc. 1 anexo) que evidenciam o fornecimento, por parte do Arguido de 96 embalagens de medicamentos à D… no espaço de mês e meio, designadamente de 15/06/2011 a 03/08/2011
b) As Notas de Devolução de medicamentos da D… ao Arguido B…, Lda., com os números 5400, 5407, 5455, 5461, 5539 e 5556 (doc. 2 anexo) e que evidenciam o fornecimento, por parte do Arguido de 268 embalagens de medicamentos à D… no espaço de 1 mês, designadamente de 30/06/2011 a 01/08/2011.
6- A arguida sabia que o que fazia não lhe era permitido.
7- A arguida é proprietária da E… desde 1997 e a lei proíbe actividades de distribuição por grosso de medicamentos sem a devida licença para o efeito desde, pelo menos, 1968.
8- Nem o arguido nem a sua farmácia dispõe de autorização para exercerem actividade de distribuição por grosso de medicamentos.
9- Não resultou qualquer dano para a saúde pública”.

2. Fundamentos do recurso
a) A nulidade da decisão administrativa
i) A autonomia do processo contra-ordenacional
O regime das contra-ordenações foi instituído no nosso ordenamento jurídico através do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24/Julho, justificando-se essa opção, tal como foi enunciado no seu preâmbulo, pela “necessidade de dotar o nosso país de um adequado “direito de mera ordenação social” …. Tanto no plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal. Ordenamento que permita libertar este ramo de direito das infracções que prestam homenagem a dogmatismos morais ultrapassados e desajustados no quadro de sociedades democráticas e plurais, bem como do número inflacionário e incontrolável das infracções destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da ressonância moral característica do direito penal. E que permita, outrossim, reservar a intervenção do direito penal para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais e salvaguardar a sua plena disponibilidade para retribuir e prevenir com eficácia a onda crescente de criminalidade, nomeadamente da criminalidade violenta” (Ponto 1). Aí também se disse mais à frente que “Hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (Eduardo Correia, ibidem, p. 268)”[2] (ponto 2), acrescentando-se “Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal” (ponto 4).
Estes propósitos de autonomia do direito de mera ordenação social foram reiterados quando foi instituído o actual regime das contra-ordenações, através do Decreto-Lei n.º 433/82, ao manifestar, como se afirma no seu preâmbulo, que as considerações ali expendidas “conservam plenamente a sua pertinência” (ponto1, § 3.º). Ficou, de resto, também aí expresso que “a urgência de conferir efectividade ao direito de ordenação social, distinto e autónomo do direito penal, apontam as transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-criminal”.
A primeira alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 359/89, continuava a reconhecer que “deu-se um passo fundamental no sentido de dar tratamento jurídico autónomo a infracções verificadas em domínios nos quais se assiste a uma crescente intervenção conformadora do Estado e que, submetidas à tutela do direito penal, o vinham descaracterizando retirando-lhe eficácia persuasiva e preventiva”.
Mas foi com a revisão de 1995, realizada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/Set., que perante a “inerente transformação em contra-ordenações de muitas infracções anteriormente qualificadas como contravenções ou como crimes, …com o alargamento notável das áreas que agora são objecto de ilícito de mera ordenação social e, do mesmo passo, com a fixação de coimas de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias especialmente severas” (§ 1.º) que se sentiu a necessidade “[d]o efectivo reforço das garantias dos arguidos perante o crescente poder sancionatório da Administração”, a par de cumprir “a eficácia do sistema punitivo das contra-ordenações” (§ 2.º). Também aqui surgiu um propósito de “proceder ao aperfeiçoamento da coerência interna do regime geral de mera ordenação social, bem como de coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal” (§ 2.º), os quais incidiram na “distinção clara entre apreensão, as medidas de natureza provisória e a perda com efeitos definitivos, a clarificação do regime de perda e apreensão de objectos perigosos, a fixação de regras sobre a suspensão da prescrição do procedimento e a interrupção da prescrição da coima, para além da substituição do chamado processo de advertência pela previsão da sanção de admoestação” (§ 10.º).
O Tribunal Constitucional tem feito eco desta autonomia, tendo vindo a afirmar a “diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções” entre o ilícito contra-ordenacional e o ilícito penal, considerando que os princípios e as regras do direito penal não se aplicam automaticamente ao direito de mera ordenação social (Ac. TC 344/93; 278/99; 160/2004; 537/2011 e 85/2012)[3].
O Supremo Tribunal de Justiça também tem dado conta e reafirmado essa mesma autonomia (Assento 1/2003, de 2002/Nov./28, DR I-A, de 2003/Jan./25), sem prejuízo de ter optado pela aplicação subsidiária do Código Penal ao RGCO nos casos dos limites do prazo de prescrição (Acórdão 6/2001, DR I-A, de 2001/Mar./30), na situações que levam à sua suspensão (Acórdão n.º 2/2002, DR I-A, de 2002/Mar./05) ou quanto à aplicação da lei que em concreto se mostre mais favorável ao arguido (Ac. 11/2005, DR I-A, de 2005/Dez./19).
Do que fica transposto, teremos naturalmente que reconhecer que existe uma nítida autonomia entre o RGCO e o Código Penal, decorrente de uma manifesta valoração e opção política por parte do legislador. A mesma advém desde logo de uma diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal (1), seja numa perspectiva da censura ético-penal, seja do bem jurídico protegido, mais precisamente da sua inexistência ou existência, a que se segue a gravidade das reacções sancionadoras (2), através da aplicação de uma coima ou de uma pena de prisão e, por último a natureza distinta dos órgãos competentes decisores que aplicam a lei em primeiro lugar (3), autoridades administrativas, num caso, tribunais, noutro caso.
Mas também existe uma autonomia entre o processo contra-ordenacional propriamente dito e o processo penal. Assim e como se sabe o RGCO[4] consagra fases processuais distintas, contemplando uma de incidência administrativa (48.º a 58.º) e outra de incidência judicial (59.º a 75.º), pelo que o processo contra-ordenacional é normalmente referenciado como tendo uma natureza mista (Ac. TC 62/2003). Daí que o legislador ordinário tenha distinguido, tanto sob o ponto de vista teleológico, como sistemático, estas duas fases processuais – a administrativa e a judicial – sendo natural que, em tudo o que o regime contra-ordenacional não contenha disposição especial, se sujeite a primeira aos princípios fundamentais de direito e ao processo administrativo e se submeta a segunda aos princípios processuais penais e ao correspondente procedimento (41.º; Ac. TC 62/2003).
A propósito convém recordar que a aplicação subsidiária do processo penal (41.º), apenas significa que o mesmo é auxiliar e não conformador ou dominante do processo contra-ordenacional, pelo que a respectiva regulação suplementar não é de aplicação automática e, sempre que se mostre necessário, está sujeita a adaptações. Tal não sucederá apenas quando o processo contra-ordenacional for convertido em processo penal (76.º) ou ocorrer o conhecimento da contra-ordenação em processo penal (77.º), pois nestes casos o regime das contra-ordenações é como que “consumido” “pelas regras mais exigentes consagradas no Código de Processo Penal” [Ac. TC 31/2000, fundamento 10, parte final].
ii) A decisão administrativa
A Constituição estabelece no seu artigo 268.º, n.º 3 que “Os actos administrativos …carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos”. Densificando legalmente esta injunção constitucional o Código de Procedimento Administrativo, estabelece no seu art. 125.º, n.º 1 que “A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição de fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso integrante do respectivo acto”. Por sua vez, o art. 58.º do RGCO, indica quais são os elementos que devem constar de uma decisão condenatória, proferida pela autoridade administrativa, estando essa descrição formal essencialmente contida no seu n.º 1, que consiste: na identificação dos arguidos [a)]; na descrição dos factos imputados, com a indicação das provas [b)]; na indicação das normas puníveis e a fundamentação da decisão [c)]; mencionando ainda a coima e as sanções acessórias aplicadas [d)].
Assim e no que concerne à fundamentação propriamente dita de uma decisão da autoridade administrativa em processo de contra-ordenação, a mesma passa essencialmente, atento os princípios fundamentais do direito administrativo, pela sua suficiência, clareza e congruência. Daí que a exigência legal contida no art. 58.º do RGCO, apenas imponha que as decisões administrativas condenatórias obedeçam aos requisitos aí descritos, não estabelecendo quaisquer outros requisitos de forma.
Daí que, atenta a autonomia do processo contra-ordenacional, não tenha sentido nem fundamento importar do Código de Processo Penal para as decisões administrativas as imposições formais a que estão sujeitas as sentenças (374.º; 375.º C. P. Penal). Tem sido, de resto, esta a posição acolhida pelo Tribunal Constitucional, ao considerar que a fundamentação expressa dos actos administrativos se basta, por exemplo, com a remissão para peça do processo (v.g. parecer ou proposta) que contenha tal fundamentação, o mesmo sucedendo quanto a decisão administrativa condenatória remeter para proposta que contenha os requisitos previstos no citado art. 58.º do RGCO (Ac. TC 50/2003, 62/2003, 136/2003, 249/2003, 469/2003 e 492/2003). Assim, o que se impõe é que a correspondente fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta ou por remissão para todos os factos do processo contra-ordenacional, transcreva a respectiva factualidade, indique as normas jurídicas violadas e a coima aplicada, possibilitando, assim, um conhecimento perfeito dos factos e das normas imputadas.
iii) Os vícios da decisão administrativa
Mais uma vez, temos que distinguir, pelas razões anteriormente enunciadas, as decisões administrativas, das decisões judiciais, no âmbito do processo de contra-ordenação.
A propósito temos desde logo que reconhecer que o RGCO não estabelece qualquer disciplina para a infracção ou inexecução dos actos processuais contraordenacionais. Porém, sempre o processo contra-ordenacional está sujeito ao princípio da legalidade (43.º), pelo que tanto o seu procedimento, como os seus vícios devem resultar da lei. Por sua vez e como já referimos, a natureza subsidiária do processo penal (41.º, n.º 1), significa que o mesmo é auxiliar do processo contra-ordenacional e não preponderante em relação a este.
Daí que seja plenamente aceitável transpor para a sua regulação o princípio da legalidade dos actos processuais e da tipicidade dos seus vícios, que se encontra consagrado no artigo 118.º do Código de Processo Penal. Assim e segundo o seu n.º 1 “A violação ou inobservância das leis do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.
A propósito convém recordar o posicionamento de alguma jurisprudência dos tribunais superiores, alguma com registo no STJ, a propósito dos vícios da decisão administrativa, sendo de reconhecer que existe uma plena divergência nessas decisões. Assim, enquanto alguns arestos têm seguido essa identidade entre decisão administrativa e sentença (Ac. STJ de 2007/Jan./10; 2007/Jan./29, Cons. Henriques Gaspar)[5], outros preferem considerá-la homologa a uma acusação, sendo por isso sanável a existência de qualquer vício de que a mesma padeça (62.º, n.º 1; Ac. STJ de 2006/Dez./21; 2008/Nov./11, Cons. Rodrigues Costa).
No entanto, somos de crer que existem sérios obstáculos decorrentes da razão de ser do processo de contra-ordenações e da sua autonomia, como do enquadramento da decisão administrativa que nos afastam do vício da nulidade. De um modo geral, podemos constatar que não existe no domínio do processo contra-ordenacional a obrigatoriedade de serem observados e nos mesmíssimos termos os princípios e o regime legal do processo penal, porquanto isso seria transformar um regime subsidiário e auxiliar num regime predominante ou primordial, contrariando a filosofia daquele e os propósitos legislativos (43.º; Ac. TC 469/97; 278/99 e 522/2008).
Essa autonomia do processo contra-ordenacional possibilita-lhe a existência de certos desvios nos níveis do asseguramento das garantias de defesa, designadamente quanto ao não registo da prova em 1.ª instância judicial (66.º; Ac. TC 50/99; 73/2007) ou quando restringe à matéria de direito o recurso destes últimos tribunais para a Relação (75.º, n.º 1; Ac. TC 632/2009). E no que concerne à consagração constitucionalmente expressa dos direitos de audiência e de defesa (32.º, n.º 10 da Constituição), a mesma tem sido perspectivada no processo contra-ordenacional para a concessão ao imputado do direito de ser previamente ouvido e na sua presença, bem como o de defender-se daquelas imputações, conhecendo-as atempadamente e apresentando ou requerendo os meios de prova tidos por convenientes (Ac. TC 659/2006). Também se afastou a exigência de um duplo grau de jurisdição com a mesma consistência que existe para o processo penal (Ac. 189/2001; 377/2003; 2/2006; 313/2007), não se incluindo aqui o tal direito a um segundo grau (Ac. TC 659/06) e muito menos a um terceiro grau de jurisdição. O que se deve assegurar é a recorribilidade genérica para as decisões administrativas que afectem direitos e interesses dos administrados (32.º, n.º 10 e 20.º Constituição; 55.º do RGCO; Ac. R Porto de 2012/Jan./18).
Por outro lado, mesmo no Código de Processo Penal não existe sempre um vício de nulidade para qualquer decisão quando a mesma se apresente sem motivação ou deficientemente motivada, pois o mesmo é privativo das sentenças ou dos acórdãos (379.º; 420.º, 4 C. P. P.), só sendo nestes casos susceptível de fundamentar a sua impugnação mediante recurso (379.º, n.º 2 C. P. P.). Daí que e devido ao princípio da tipicidade da legalidade dos actos em processo penal, as decisões judiciais (vg medidas de coacção ou de garantia patrimonial - 194.º, n.º 4 C. P. P.; decisão instrutória - 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3; 309.º C. P. P.) ou os actos do Ministério Público (v. g. a acusação - 283.º, n.º 3 C. P. P.), só são nulas se tal consequência estiver expressamente contemplada.
Por último e como toda a interpretação legislativa deve preservar a integridade do Direito e a unidade do sistema jurídico (9.º n.º 1 Código Civil), não se percebe como é que uma decisão administrativa a dado momento pode equivaler a uma acusação, quando a entidade administrativa envia os autos ao Ministério Público (62.º, n.º 1) e ao mesmo tempo é equiparada a uma sentença.
Nesta conformidade e reconhecendo-se a autonomia do processo de contra-ordenações e a natureza subsidiária do processo penal, o vício da falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve corresponder ao vício genérico acometido a uma qualquer decisão judicial, ou seja, equivale a uma irregularidade e não a uma nulidade (Ac. TR Porto de 2011/Fev./09) – e muito menos a uma nulidade insanável, por não integrar o catálogo do artigo 119.º do C. P. P. e não estar especificadamente prevista como tal em mais nenhuma disposição legal, as quais são sempre susceptíveis de ser conhecidas oficiosamente (410.º, n.º 3 C. P. P.). Tratando-se de uma irregularidade – o mesmo sucederia se se concebesse tal vício como uma nulidade sanável de uma decisão que não fosse sentença – a mesma teria de ser previamente suscitada perante a autoridade administrativa que a praticou, sob pena de se considerarem tais vícios sanados (120.º, 121.º e 123.º C. P. P.).
Ora e como é revelador da defesa escrita apresentada pela arguida recorrente em 2012/mai./29 a fls. 124-126 é perceptível que a mesma compreendeu os factos que lhe são imputados, pelo que só assim podia sustentar que aqueles que foram averiguados não constituem qualquer contra-ordenação (1.º), mencionando-se precisamente que “os movimentos de medicamentos ... que se encontram descritos no ofício, a que agora se responde, não se integram no âmbito de uma actividade de distribuição por grosso alegadamente prosseguida pela arguida”. Nesta conformidade, não será de assacar qualquer vício à decisão administrativa, nem à prévia comunicação que foi efectuada à arguida.
Mas aqui a questão é outra e passa por saber se existem factos na descrição da conduta do recorrido que se enquadram na contra-ordenação pela qual a mesma foi condenada pela decisão administrativa, pois se não existem então não existe qualquer vício, mas antes a inexistência de uma conduta ilícita em termos contra-ordenacionais.
b) A contra-ordenação imputada à arguida
O regime jurídico dos medicamentos de uso humano inicialmente estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 176/2006[6], veio, entre outras coisas, disciplinar o mercado e a comercialização dos referidos medicamentos, transpondo essencialmente a respectiva regulamentação comunitárias (preâmbulo 1).
Neste estabelece-se no seu artigo 181.º, n.º 1, na sua redacção primitiva, que “Sem prejuízo da responsabilidade criminal, disciplinar, civil e das sanções ou medidas administrativas a cuja aplicação houver lugar, as infracções às normas previstas no presente decreto-lei cuja observância seja assegurada pelo C… constituem contra-ordenações puníveis nos termos do disposto na presente secção.”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Constitui contra-ordenação, punível com coima de (euro) 2000 a (euro) 3740,98 ou até (euro) 44891,81, consoante o agente seja pessoa singular ou pessoa colectiva: a) O fabrico, introdução no mercado, comercialização, distribuição, importação, exportação, importação paralela, dispensa, fornecimento ou venda ao público, ou administração de medicamentos ou medicamentos experimentais sem as autorizações exigidas;”. Por sua vez, considerava-se e ainda se considera “Distribuição por grosso” a “actividade de abastecimento, posse, armazenagem ou fornecimento de medicamentos destinados à transformação, revenda ou utilização em serviços médicos, unidades de saúde e farmácias, excluindo o fornecimento ao público”. E esta actividade de distribuição por grosso depende sempre de autorização do C… (94.º, n.º 1).
Como se pode constatar, a actividade de comercialização e distribuição, tanto compreende a distribuição por grosso, como a venda ao público. E ocorre distribuição por grosso, entre outras situações, com o fornecimento de medicamentos destinados à revenda (i) ou mera utilização (ii) em farmácias. Como se pode constatar do item 5.º) dos factos provados, no período entre 15.06.2011 e 03.08.2011, a arguida forneceu à D… 364 embalagens de medicamentos, que foram, pelo menos utilizados por uma outra farmácia (D…), quando “Nem o arguido nem a sua farmácia dispõe de autorização para exercerem actividade de distribuição por grosso de medicamentos” (8 factos provados), sendo certo que que “A arguida sabia que o que fazia não lhe era permitido” (6.º factos provados).
Por sua vez, segundo o regime jurídico das farmácias de oficina, instituído pelo Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31/ago.,[7] mais precisamente o seu artigo 14.º, 15.º e 20.º, não permite que a propriedade de uma farmácia se confunda com a sua exploração e gestão nem com a sua direcção farmacêutica. Também decorre deste regime que as farmácias são licenciadas para vender medicamentos ao público, sendo para isso atribuído o respectivo alvará (25.º, n.º 4) e não para exercerem qualquer actividade de distribuição por grosso. Daí que uma e outra actividade estejam sujeitas a regimes jurídicos distintos.
Existe, por isso, um nítido obstáculo legal para que haja “distribuição por grosso” não licenciada entre farmácias detidas pelo mesmo proprietário ou dirigidas pelo mesmo gestor, porquanto se tratam de farmácias distintas, sendo, por isso, entidades jurídicas distintas, pois caso contrário não faria sentindo o limite imposto pelo citado artigo 15.º e a exigência do artigo 23.º, quanto ao quadro dos farmacêuticos por farmácia. Situações diferentes daquela são a existência de uma única central de compras que forneça farmácias distintas, tendo estas coordenado as suas compras ou então uma farmácia com um posto de venda noutra localidade, diversa da sua sede.
De resto e como resulta do artigo 34.º do regime jurídico das farmácias de oficina “As farmácias só podem adquirir medicamentos a fabricantes e distribuidores grossista autorizados pelo C…, ...” salvo os casos de importação paralela regulados nos artigos 80.º a 91.º ou então em relação a medicamento com autorização especial da previsão do artigos 92.º, n.º 1 al., todos do Dec.-Lei n.º 176/2006. Daí que a existir uma gestão conjunta de stocks de medicamentos, a mesma tenha que ser diferenciada, para obstar a que se perca o percurso e o destino dos medicamentos, obstando a que os mesmos sejam ser canalizados para exportação ilegal.
Aliás, seguindo a argumentação da recorrente, nada impedia que uma multinacional de uma rede farmacêutica de oficina – para a distinguir da indústria farmacêutica – fizesse a “importação” de medicamentos oriundos de outro país, naturalmente de outra farmácia da mesma empresa, sem que passasse pelo licenciamento da distribuição por grosso pelo C…. Tudo isto, naturalmente que punha em causa a política de segurança na distribuição do medicamento, enquanto uma das dimensões essenciais da prestação dos cuidados de saúde, com prejuízo acentuado para o consumidor, que a legislação nacional e europeia pretendem assegurar.
Mas aqui nem chega a sequer a existir uma identidade de proprietários nem de gestão entre a E… (pertença de B…, gerida pelo Dr. F…) e a D… (pertença de Sociedade G…, Lda., gerida por I…, F… e J…), como já foi dito pela decisão administrativa e pela decisão judicial recorrida e que se saiba, quer no âmbito legal e funcional, a direcção técnica de uma farmácia não se confunde com a sua propriedade ou gestão, pelo que não percebemos a insistência da recorrente neste argumento.
c) A pena de admoestação
O artigo 51.º, n.º 1 do RGCO estabelece que “Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”. Daqui decorrem dois requisitos e com carácter cumulativo: (i) reduzida gravidade da infracção, que deve ser aferido atenta a natureza e relevância da mesma em abstracto e (ii) reduzida culpa do agente, que deve ser aferida em função da respectiva conduta do infractor em concreto.
Ora, uma contra-ordenação que é punida com “coima de (euro) 2000 a (euro) 3740,98 ou até (euro) 44891,81, consoante o agente seja pessoa singular ou pessoa colectiva”, não se pode considerar como sendo de reduzida gravidade e tendo a arguida actuado sabendo que o que fazia não lhe era permitido, não podemos dizer que a sua culpa é reduzida. Naturalmente que não houve danos para a saúde pública, mas esse facto não se situa na culpa, mas nas consequência da sua conduta.
*
* *
III.- DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto por B…, Lda, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Ucs. – cfr. art. 513.º, 514.º do C. P. Penal.

Notifique.

Porto, 04 de Dezembro de 2013
Joaquim Gomes [8]
José Carreto (Vencido conforme declaração voto junto)
Baião Papão
______________
[1] Procedeu-se a uma nova numeração e à transcrição que no item 5 do que consta em A) a) e b) do Relatório final e da decisão administrativa.
[2] Eduardo Correia, “Direito penal e direito de mera ordenação social”, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973.
[3] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt, como os demais acórdãos que forem citados deste Tribunal.
[4] Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/Out., revisto e actualizado pelos Decretos Leis n.º 359/89, de 17/Out., 244/95, de 14/Set., 323/2001, de 178/Dez. e Lei n.º 109/2001, de 24/Dez., sendo deste RGCO os artigos a que doravante se façam referência sem indicação expressa da sua origem.
[5] Acessíveis em www.dgsi.pt assim como os demais arestos do Supremo Tribunal de Justiça, bem como das Relações em que não se faça menção expressa da sua origem.
[6] Este diploma foi sujeito a alterações pelos Dec.-Leis n.º 182/2009, de 07/ago., 64/2010, de 09/jun.; 106-A/2010, de 01/out.; 25/2011, de 16/jun.; Leis 62/2011, de 12/dez.; 11/2012, de 08/mar; 20/2013, de 14/fev. e Dec.-Lei 128/2013, de 03/set., sendo deste regime jurídico os artigos a que adiante se fizer referência sem indicação da sua origem.
[7] Alterado pela Lei 26/2011, de 17/jun. e pelo Dec.-Lei n.º 171/2012, de 01/ago.,
[8] Relator por vencimento
______________
Declaração de voto

Como primitivo relator voto vencido quanto á matéria da violação do direito de defesa, por não constar da notificação para exercício do direito de defesa o destino do fornecimento dos medicamentos, pelos seguintes fundamentos:
A recorrente assaca tal violação, na sua motivação do recurso por em seu entender na notificação que lhe foi feita ao abrigo do artº 50º RGCO para se pronunciar sobre a contra-ordenação imputada não constar a que fim se destinava esse fornecimento de medicamentos, e apenas na decisão do C… que aplica a coima, se refere que o fornecimento de medicamentos se destinava á revenda, elemento esse que era absolutamente essencial conhecer para dele se defender por constituir um dos elementos do tipo objectivo da contra-ordenação imputada; e sobre tal facto novo não teve oportunidade de defesa, constituindo nulidade insanável, e tendo ocorrido a condenação por factos diversos dos constantes da acusação é nula a decisão por violação do artº 379º1 b) CPP

O direito de defesa decorrência do Estado de Direito Democrático e do principio da dignidade da pessoa humana (artº 2º e 1º da CRP), tem a sua concretização no artº 32º1 CRP que impõe que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa”, no nº 10 do mesmo artº assevera que “10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
Como concretização desse princípio constitucional estabelece o artº 50º RGCO que “não é permitida a aplicação de uma coima… sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de … se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada …”
Do teor de tal normativo, da sua conjugação com o artº58º 1b) RGCO que determina que a decisão que aplica a coima deve conter “a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas”, e da aplicação subsidiária do Código Processo penal ao processo contra-ordenacional (artº 41º1 RGCO) e do paralelismo entre a notificação para apresentar a sua defesa (antes da decisão da autoridade administrativa), e a dedução da acusação em processo penal, resulta a nosso ver que a notificação ao abrigo do artº 50º RGCO, com vista a um eficaz direito de defesa, na vertente de exercício do contraditório e de audição do infractor, deve conter no essencial os elementos relativos á infracção imputada traduzidos, tal como a acusação em processo penal “na narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena … incluindo se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstancias relevantes para a determinação da sanção …”, pois só assim ficam asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa;
Sendo assim decorre de tal normativo que deve ser dada a conhecer ao arguido para exercer o seu direito de defesa todos os elementos típicos da infracção ou elementos constitutivos da infracção (elementos objectivos e subjectivos e especiais intenções que façam parte do tipo legal da infracção em causa), ou seja o que faz que seja ilícito e punível e quando o fez ou seja a data dos factos tanto quanto seja possível (“se possível”).
Outra não pode ser a interpretação que decorre do artº 58º 1ª) RGCO quando refere que a decisão deve conter “ a descrição dos factos imputados” que têm de servir de confronto com o exercício do direito de defesa.
Sendo a notificação em processo contra-ordenacional, tal como a acusação em processo penal, que fixa o objecto do processo e delimita o thema decidendum, em face da estrutura acusatória do processo (penal) “obriga a que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados” Ac RP de 6/06/2012, proc. 414/09.0PAMAI-B.P1, in www.dgsi.pt; o que não deixa de ser verdade no processo contra-ordenacional na fase de impugnação em que é possível conhecer de todo o processo; e esse rigor descritivo decorre também das exigências do princípio da vinculação temática (corolário do princípio do acusatório) também é imposto pelo princípio do contraditório e do respeito pelas garantias de defesa do arguido (cfr. Ac RP 30/11/2011, proc. 278/09.4PRPRT.P1, in www.dgsi.pt ), e como se expressa a Relação do Porto no ac de 8/09/2010, proc.626/08.4TAPVZ.P1, in www.dgsi.pt “I- Para que obedeça ao princípio da suficiência e clareza, é imprescindível que a acusação contenha uma narração clara e perceptível, tão completa quanto possível, de todos os factos relevantes cuja prática é imputada ao arguido.”
E por isso esses factos, como expressa o Ac. do TC nº 674/99, devem ser descritos de “de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas.”, Cfr. Ribeiro, Vinício, Código de Processo Penal, Coimbra Editora, pág. 570;
Tal exigência não é alias mais do que o que se exige na nota de culpa em direito laboral ou no auto de noticia nas contra-ordenações estradais;

Vista a sentença sob recurso verifica-se que tal circunstância foi ponderada nesta nos seguintes moldes:
“Foi efectuada a notificação ao abrigo do disposto no artigo 50º do RGCC– e no artigo 32º, n.º10, da Constituição da República Portuguesa).
Como refere COSTA ANDRADE (Contributo Para o Conceito de Contra-Ordenação, RDE, 6/7 – 1980-81, p. 86), não obstante a menor relevância ética da ilicitude de mera ordenação social relativamente à ilicitude criminal, essa zona de ilicitude não deixa de constituir um “espaço jurídico-repressivo”, por isso inevitavelmente sujeito ao princípio da legalidade (cfr. artigo 2º do RGCC) e o respectivo processamento de garantias revestido próximas das consagradas no processo criminal, como constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º10 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa”.
Tal direito de defesa não pode ser entendido como uma mera formalidade, não podendo considerar-se efectivamente assegurado apenas mediante a notificação a arguido para se pronunciar acerca das infracções que lhe são imputadas e com a inclusão nos autos de peças processuais apresentadas por arguido na sequência de tal notificação, sem as apreciar.
No caso vertente, verificamos que de tal notificação constata-se ali estarem descritos, de forma circunstanciada, os factos pelos quais veio a recorrente ser condenada.
Ali é feita referência aos documentos constantes do processo onde são enumeradas várias entregas de encomenda de medicamentos, as quais ali foram juntas (como anexo 1) e dadas a conhecer à recorrente, sendo que das mesmas é possível aferir a que medicamentos e a que datas as mesmas se referem.
Do mesmo modo, também são enumeradas as notas de devolução de medicamentos que no entender da recorrente consubstanciariam a contra-ordenação pela qual esta veio a ser condenada.
Após elencar os factos pelos quais se encontra indiciada a recorrente, a recorrida refere: “O fornecimento, por parte do Arguido, de medicamentos à D… configura o exercício da atividade de distribuição por grosso de medicamentos prevista e identificada no artigo 3°, n° l, alínea n) do Decreto-Lei n° 176/2006, de 30 de Agosto, que a define como a “actividade de abastecimento, posse, armazenagem ou fornecimento de medicamentos destinados à transformação, revenda ou utilização em serviços médicos, unidades de saúde e farmácias, excluindo o fornecimento ao público.”
Ora, conclui pois que, a conduta da recorrente se enquadrará na actividade de distribuição por grosso de medicamentos, cuja noção vem definida no 3°, n° l, alínea n) do Decreto-Lei n° 176/2006, de 30 de Agosto.
Como bem se infere da leitura de tal preceito legal, nessa definição legal, insere-se a revenda de medicamentos.
Daí que também não possamos concordar com a posição assumida pela recorrente quando afirma não ter sido notificada pela recorrida – nos termos da notificação efectuada ao abrigo do disposto no artigo 50 º do RGCO – do destino dado aos medicamentos, ou seja, da sua revenda.
Tal como refere a Digna Magistrada do Ministério Público, ao subsumir a actividade da recorrente na actividade de distribuição por grosso de medicamentos e estando essa actividade prevista e identificada no artigo 3°, n° l, alínea n) do Decreto-Lei n° 176/2006, de 30 de Agosto, no qual consta a sua definição legal e as actividades nela constantes, dúvidas não restam de que a recorrida poderia integrar tal actividade em qualquer uma das condutas nele previstas, designadamente a revenda.
Nestes termos e porque naquele preceito legal se encontra prevista a revenda, não pode a recorrente invocar constar a mesma de uma decisão “surpresa” e sobre a qual não foi dada à mesma a possibilidade de se defender.
Estando já indiciada a prática por aquela de uma actividade de distribuição por grosso de medicamentos, nela se incluindo a revenda, sempre deveria a mesma ter equacionado as actividades ali elencadas – ou seja, transformação, revenda ou utilização em serviços médicos -, apresentando a sua defesa em conformidade.
Atendendo à definição legal, consideramos que não existe a invocada alteração substancial dos factos, ou seja, os factos mantiveram-se inalterados ao longo de todo o processo contra-ordenacional.
E sempre se dirá que mesmo que tal existisse não inviabilizaria o prosseguimento do processo como impugnação judicial.
Essa nulidade teria que considerar-se sanada, atento o preceituado no 121º, nº 1, alínea c), do CPP que preceitua que “salvo nos casos em que a lei dispuser de modo diferente, as nulidades ficam sanadas se os participantes processuais interessados se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia”.
Como escreve Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. II, pags. 71/72) “o fundamento desta causa de sanação de nulidade é claramente a economia processual. Com efeito, se não obstante a nulidade do acto o efeito a que se dirigia vier a ser igualmente produzido, é inútil recomeçar do princípio para não obter nada mais do que o que já foi alcançado”.
O assento nº 1/2003 [1], dá nota, na sua fundamentação, de um aspecto fundamental e com plena aplicação no caso vertente, no que concerne à sanação da nulidade em que consta:
“(…) Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121º, nºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122, nº 1, do Código de Processo Penal e 41º, nº 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41º, nº 1, do regime geral das contra-ordenações]. (…)”.
Tal é o caso da impugnação judicial deduzida pela arguida, em que não se limitou a suscitar implicitamente a nulidade cometida na fase administrativa, tendo aproveitado para impugnar a imputação, discutir a relevância da sua conduta, e a extravasando, assim, o âmbito da mera arguição da nulidade para entrar no domínio da valoração da decisão.
Ao fazê-lo, aproveitou a impugnação para exercer o seu direito de defesa da contra-ordenação.
Apresentando, aliás, iguais argumentos de facto e de direito e ainda indicando elementos de prova, sanou, com essa actuação, o vício de que a decisão administrativa, ao abrigo do disposto no art. 121º, nº 1, c), do CPP, ex vi art. 41º, nº 1, do RGCO.
Face ao exposto, a nulidade invocada pela recorrente, ainda que se verificasse, deveria considerar-se sanada (neste sentido acórdão dos tribunal da Relação do Porto de 21/11/2007 e de 04-07-2007, disponíveis in www.dgsi.pt).”

Conhecendo:
Vista a notificação feita á recorrente para se pronunciar, verifica-se que em momento algum da mesma e mormente na descrição das factos imputados, se refere que a recorrente fornecera medicamentos á D… destinados á revenda, e apenas se diz que esse fornecimento configura o “exercício da actividade de distribuição de medicamentos” definida na norma legal que transcreve (o DL 176/2006 de 30/8 foi alterado pelo Dec.-Lei n.º 128/2013, de 5/9 e a distribuição por grosso de medicamentos passou a ser definida na al.n) do nº1 do artº 3º (com o mesmo conteúdo)
Vista a decisão do C… que lhe aplicou a coima dela resulta que ao longo da decisão vai fixando os factos provados (ponto V) onde não consta o destino dos medicamentos fornecidos, e tecendo argumentos e considerações e apesar de a dado momento entender que a distribuição por grosso de medicamentos é também “o fornecimento de medicamentos não dirigida ao publico consumidor “, o certo é que vem a considerar no ponto VII que a recorrente através dos seus órgãos “forneceu os medicamentos … á D… sabendo que tais medicamentos se destinavam à revenda pois que é esse o objecto social e de negócio daquela farmácia.”

Vemos assim que esse facto “destino dos medicamentos fornecidos” embora feito constar da decisão administrativa que aplicou a coima, não consta dos factos provados constantes da mesma decisão, (mas apenas da fundamentação) e se não consta dos factos provados não pode ser ponderado, tal como não consta da notificação.
Tal não significa que não fosse verdadeiro (e possivelmente é-o face ás regras da experiencia e objecto da farmácia: venda de medicamentos), significa apenas que não pode ser considerado, pois só os factos provados podem ser objecto de apreciação para efeitos de decisão, no que ao direito sancionatório se refere;
Ora não constando dos factos provados insertos na decisão final sancionatória, tal como não constam da notificação para se pronunciar ao abrigo do artº 50º RGCO, verifica-se que não estamos perante nenhum facto novo acrescentado e de que a recorrente não pudesse ter exercido o seu direito de defesa, pela simples razão de que não é facto sobre o qual tenha sido dada a possibilidade de se defender;
Ora para o eficaz exercício do direito de defesa não basta a menção e transcrição da norma legal quando comporta diversos sentidos ou contém em si diversas previsões, como é o caso, sem a menção da concreta conduta imputada integradora da previsão legal;
E não estamos perante qualquer nulidade (sanável) emergente da deficiente indicação ao infractor de todos os elementos de facto necessários para conhecer da conduta ilícita imputada, e deles se defender, e a que se refere o Assento 1/2003 DR 25/1/2003, com o seguinte teor:
“Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa”, sendo certo que no caso, ao contrário do expresso na sentença recorrida a nulidade não se mostra sanada, pois que o recorrente ao impugnar a decisão administrativa em lado algum do seu recurso discute o destino dos medicamentos fornecidos á D… (a que a sentença não dá como resposta de provado ou não provado).
Vista a sentença sob recurso, verifica-se que a mesma não contém igualmente nos factos provados o destino dos medicamentos fornecidos (como provado ou não provado), como sendo para revenda;

Assim a questão não é de nulidade da acusação mas de ausência de elemento típico do ilícito imputado.
De acordo com a decisão recorrida a recorrente vem acusada de fazer distribuição por grosso de medicamentos, actividade que depende de licença do C…, que aquela recorrente não possui;
Assim nos termos do artº 94º1 DL 176/2006 a actividade de distribuição por grosso de medicamentos depende de autorização do C… e essa actividade grossista é descrita no artº 3º1 n) do mesmo DL, como sendo a “actividade de abastecimento, posse, armazenagem ou fornecimento de medicamentos destinados á transformação, revenda ou utilização em serviços médicos, unidades de saúde e farmácias, excluindo o fornecimento publico”
No caso está apenas em causa o “fornecimento de medicamentos destinados á revenda”.
Verifica-se assim que não é actividade grossista o fornecimento de medicamentos, mas apenas o fornecimento de medicamentos destinados a um ou alguns daqueles fins (transformação, revenda ou utilização em determinados serviços), donde todos os fornecimentos que não sejam para aqueles fins não constituem actividade grossista nos termos do norma em causa - (artº 3º1 n) única em apreciação).
Assim o destino do fornecimento dos medicamentos constitui elemento típico objectivo do ilícito em causa, sendo apenas ilícito o destinado á transformação, revenda ou utilização em serviços médicos, unidades de saúde e farmácias,
Que provavelmente era esse o fim (revenda) do fornecimento (de acordo com as regra das experiencia em face da actividade da farmácia onde se vendem os medicamentos) é quase certo.
Mas para que possa existir infracção tem (para além de tal fim constar da acusação) de ser provado esse facto, pois só assim é preenchendo o elemento típico, e pode ser punido.
Não se sabendo o destino do medicamento fornecido, não se pode considerar preenchido o elemento típico da infracção, e
não se imputando ao infractor o destino ilícito do fornecimento, nem sequer desse destino se pode conhecer,
e faltando á acusação um elemento típico da infracção, não existe ilícito, e se não existe ilícito não pode ser punido,
e se não pode ser punido tem de ser absolvido.

José Carreto