Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0856163
Nº Convencional: JTRP00041894
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP200811240856163
Data do Acordão: 11/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 358 - FLS 16.
Área Temática: .
Sumário: Ao comprador basta fazer prova do mau funcionamento da coisa no período de garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado, nem de provar a sua existência no momento da entrega, competindo ao vendedor que queira ilibar-se da responsabilidade, a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6163/08-5 (Apelação)

(Proc. n.º …./03.OTBSTS-A)


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

B………., Lda, com sede em ………., Pavilhão ., freguesia de ………., Santo Tirso, executada na processo executivo n.º …./03.0TBSTS-A, deduziu oposição à execução que lhe foi movida por C………., residente na Rua ………., .., rés-do-chão esquerdo, freguesia de ………., Vila Nova de Gaia, pedindo:
a)- que seja julgada a excepção de não cumprimento do contrato, e, consequentemente, ser condenado o exequente a cumprir a sua prestação, absolvendo-se a executada da obrigação de juros vencidos e vincendos, com as legais consequências;
b)- que o exequente seja condenado a reconhecer o crédito da executada no montante de €2.506,34, a que acrescem juros desde a notificação desta;
c)- que condenado o exequente a reconhecer a compensação do seu crédito com o crédito da executada – €2.506,34 – operando-se a respectiva compensação.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que comprou ao exequente, que se dedica ao comércio de automóveis usados, em 10.04.2003, pelo preço de €10.522,88, um automóvel e que para pagamento de parte do preço aceitou a letra apresentada como título executivo, no montante de €5.700,00.
Todavia não conseguiu proceder ao registo da aquisição a seu favor, por o bilhete de identidade de D……….., pessoa a favor de quem estava registada a propriedade do veículo, se encontrar caducado, causando-lhe tal situação prejuízos no valor de €1.000,00.
Para além disso, passadas poucas semanas levou o veículo à inspecção, tendo sido reprovado, tendo gasto €1.506,34 na reparação de modo a poder ser aprovado.
O exequente contestou, aceitando a venda do veículo, mas impugnando os restantes factos alegados, pedindo a condenação da executada como litigante de má fé.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi a oposição julgada improcedente.
Interposto recurso pela executada/opoente, foi proferido acórdão, neste Tribunal da Relação do Porto, que julgou insuficiente a decisão de facto, ordenando a sua ampliação, ficando a sentença recorrida sem efeito.
Ampliada a matéria de facto e produzida a prova, durante o julgamento foi junto aos autos fotocópia do bilhete de identidade actualizado do referido D………. .
Foi proferida sentença que reconheceu ter existido fundamento para a invocação da excepção de não cumprimento por parte da executada, mas que deixou surpervenientemente de existir, e condenou o exequente a reconhecer o contra-crédito da executada no montante de €2.506,34, mais juros de mora desde a citação, reconhecendo o direito à compensação desta quantia com o crédito exequendo, pronunciando-se negativamente quanto à invocada má fé.

Inconformado apelou o exequente, formulando, no essencial, as seguintes conclusões:
1. A excepção de incumprimento não deveria ter sido julgada procedente porque a executada não apresentou o registo de propriedade do veículo junto da competente Conservatória, nem demonstrou que o pedido de registo tenha sido recusado por ter exibido um bilhete de identidade caducado
2. A exibição de um bilhete de identidade caducado apenas releva para efeitos de atestar a residência do titular;
3. A garantia de bom funcionamento concorre com a necessidade de demonstração da existência de um nexo de causalidade entre os defeitos e a obrigação de indemnizar;
4. A reparação que foi feita na viatura não enuncia especificadamente os defeitos que seriam subsumíveis a eventual incumprimento de condições de bom funcionamento;
5. A invocação de uma garantia de bom funcionamento num veículo com 18 anos contraria as regras da boa fé e é nula;
6. A denúncia do defeito não foi feita até trinta dias depois do conhecimento, pelo que já caducou o respectivo direito de denúncia e de acção de garantia de bom funcionamento;
7. A executada é a única responsável pela não dedução fiscal das despesas com o veículo, em virtude de ter criado um falso obstáculo ao registo de propriedade;
8. a sentença recorrida violou o disposto no artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 33/99, de 18.05 e artigos 342.º, n.º 1, 334.º, 882.º, n.º 2 e 921.º do Código Civil.

Nas suas contra-alegações a apelada defende a manutenção da sentença recorrida e o não conhecimento da questão da caducidade, por se tratar de questão nova e não ser de conhecimento oficioso.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objecto do Recurso:
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do CPC, sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a)- Excepção de não cumprimento
b)- Compensação de créditos

B- De facto:
Está provada a seguinte factualidade:
1. O exequente acordou vender à executada, e esta acordou comprar, o veículo automóvel marca Mercedes e matrícula ..-..-FP pelo preço de €10.522,88.
2. Em 10/4/2003, data da compra e venda referida na alínea anterior, a executada entregou ao exequente, como princípio de pagamento, a quantia de 4.852,88€, titulada por cheques, da qual o exequente deu a respectiva quitação.
3. E aceitou a letra dada à execução para pagamento do remanescente, no valor de €5.700.
4. O bilhete de identidade de D………., referido nos documentos de fls. 7 e 8 e cuja fotocópia se encontra a fls. 7, tem como data de termo da sua validade o dia 7/1/2002, estando caducado há mais de um ano relativamente à data de celebração da compra e venda referida em 1. e 2.
5. A letra referida em 3. não foi paga pela executada.
6. O exequente é comerciante.
7. A par da sua actividade secundária de manutenção e reparação de veículos automóveis, pela qual se encontra colectado, o exequente também procede à venda de automóveis usados, o que faz com propósito lucrativo.
8. Foi no exercício da actividade referida em 7. que o exequente celebrou com a executada o contrato de compre e venda referido em 1.
9. A referida viatura não se encontrava registada na competente conservatória a favor do vendedor, ora exequente, mas sim do indivíduo referido em 4., que a executada não conhece.
10. Confrontada com esse facto, o exequente disse que não havia qualquer problema, porquanto tinha em seu poder o documento de fls. 8 assinado pelo proprietário do veículo, bem como fotocópia do seu bilhete de identidade, junta a fls. 7.
11. O que, conforme referiu, seria suficiente para efectuar o registo do veículo a favor da executada.
12. Na posse dos documentos referidos nos quesitos 8 e 9, a executada, através de um seu funcionário, dirigiu-se à Conservatória do Registo Automóvel do Porto para efectuar o averbamento registral do veículo em seu nome, tendo-lhe aí sido dito não ser possível efectuá-lo porque o bilhete de identidade do transmitente se encontrava caducado.
13. De imediato a executada alertou o exequente para esta situação, dizendo-lhe que enquanto o problema não estivesse resolvido a letra não seria paga.
14. Apesar de novamente instada para dar uma solução ao caso, o exequente não o fez, continuando a executada até hoje impedida de registar o veículo em seu nome.
15. O veículo vendido à executada, por imposição legal, foi, passadas poucas semanas, inspeccionado, tendo ficado reprovado.
16. Perante esse facto, a executada viu-se obrigada a levar a viatura a uma oficina automóvel para que esta ficasse em condições de circulação e aprovada na inspecção periódica obrigatória.
17. Com tal reparação a executada despendeu a quantia de €1.506,34.
18. Depois de reparada a viatura foi inspeccionada de novo, tendo ficado aprovada.
19. Aquando da inspecção o veículo encontrava-se coberto pela garantia.
20. Não existiu qualquer acordo entre as partes no sentido de ser paga pelo exequente a reparação do veículo com vista à sua aprovação na Inspecção Periódica Obrigatória.
21. Foi ajustada entre as partes o preço de venda e titulado o correspondente pagamento.
22. O exequente não entregou à executada qualquer documento com relevância fiscal que servisse de suporte à venda (tendo-lhe sido entregues os documentos constantes de fls. 7 e 8 dos autos, como resposta já dada aos quesitos 8.º e 9.º);
23. Não estando o veículo registrado a favor da executada, esta não pode invocar perante o Fisco, para efeitos de cálculo de IRC e IVA, as despesas realizadas com o automóvel, designadamente combustível, portagens, reparações e outras.
24. O que lhe causou um prejuízo não inferior a €1.000,00.
25. No decurso da audiência de julgamento foi junta cópia do bilhete de identidade de D………., emitido em 10.11.2004 e com validade vitalícia.

B- De Direito:
Previamente à análise das questões supra enunciadas, importa, desde já, excluir a apreciação da caducidade do direito de denúncia dos defeitos e caducidade do direito de accionar a garantia de bom funcionamento, questão que o apelante suscita nas conclusões de recurso, mas que não tinha sido invocada no tribunal recorrido.
Trata-se de uma questão nova, que não é de conhecimento oficioso, considerando que a matéria em causa - denúncia de defeitos de coisa objecto de um contrato de natureza privada e accionamento da respectiva garantia – se reporta a matéria não excluída da disponibilidade das partes (artigos 333.º, n.º 2 e 303.º do Código Civil (CC).
Assim sendo, e nos termos dos artigos 660.º, n.º 2 e 713.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), o tribunal de recurso dela não pode conhecer.

Vejamos, então, as questões suscitadas pelo recorrente.
a)- Excepção de não cumprimento:
Insurge-se o apelante contra a sentença recorrida defendendo que a excepção de não cumprimento não deveria ter sido julgada procedente, uma vez que a recorrida não apresentou o pedido de registo de propriedade, nem demonstrou que o mesmo tenha sido recusado pela Conservatória do Registo Automóvel por o bilhete de identidade do anterior proprietário registado se encontrar caducado. Defende, ainda, que a exibição de um bilhete de identidade caducado apenas releva para efeitos de atestar a residência do titular.
Desde já se adianta que as razões invocadas pelo apelante não são suportadas nem pelos factos provados, nem pelas normas jurídicas reguladoras da identificação civil e emissão de bilhete de identidade.
Quanto aos factos provados pertinentes para este aspecto, estão enunciados nos supra pontos 9 a 14, donde resulta que a apelada diligenciou no sentido de proceder ao registo da aquisição e que só não obteve êxito nessa tentativa porque o bilhete de identidade do proprietário registado se encontrava caducado. E também resulta que informou desse facto o apelante, que nada fez para resolver o problema, impossibilitando, desse modo, a efectivação do registo.
Ficou, pois, demonstrado que a apelada teve uma conduta diligente, que se afigura adequada ao cumprimento do ónus imposto ao adquirente de um veículo automóvel, que é o de proceder ao registo da aquisição, que aliás é obrigatório, e que o registo só não foi conseguido porque a apelante não actuou de com igual diligência quanto ao cumprimento das suas obrigações.
Desde logo, não o fez quanto incumpriu o disposto no n.º 2 do artigo 822.º do CC, uma vez que lhe competia proporcionar ao comprador toda a documentação necessária para que este pudesse proceder ao referido registo, e que no caso abrangia a entrega de cópia actualizada do bilhete de identidade do anterior adquirente registado.
Impendendo essa obrigação sobre o apelante, afigura-se desproporcionado e sem qualquer suporte legal o entendimento que expressa no sentido de ser necessário uma recusa dos serviços da Conservatória do Registo Automóvel para se poder entender que a apelada se viu impossibilitada de proceder ao registo.
Como também não tem qualquer apoio legal, defender que a Conservatória do Registo Automóvel deveria providenciar pelo apuramento dos elementos actualizados identificadores de um cidadão relativamente a um pedido dirigido por um interessado aos respectivos serviços.
Também em relação aos efeitos da caducidade do bilhete de identidade, o apelante defende uma tese sem qualquer apoio legal.
Na data da celebração do contrato de compra e venda do veículo, já se encontrava em vigor o Decreto-Lei n.º 33/99, de 18.05, que regula a identificação e emissão do bilhete de identidade de cidadão nacional.
Nos termos desse diploma legal, a identificação civil rege-se pelos princípios da legalidade, autenticidade, veracidade, univocidade e segurança dos dados dos cidadãos (artigo 1.º, n.º 2).
Nos termos do seu artigo 5.º, o bilhete de identidade contém, para além da data de emissão e do prazo de validade, vários elementos identificadores do cidadão, nomeadamente, nome completo, filiação, naturalidade, data de nascimento, sexo e residência.
Assim, o bilhete de identidade constitui “documento bastante para provar a identidade civil perante quaisquer autoridades, entidades públicas ou privadas…” (artigo 3.º, n.º 1).
Porém, só tem essa eficácia probatória se o mesmo estiver dentro do prazo de validade, uma vez que esgotado o mesmo, ou desactualizados os elementos identificadores, para que mantenha essa eficácia, a lei impõe a obrigação da sua renovação (artigos 13.º, n.º 1, 14.º, n.º 2 e 15.º).
E esta regra aplica-se a todos os elementos identificadores acima referidos. Quanto à residência, é verdade que a lei expressamente refere que o bilhete de identidade caducado não pode ser usado para comprovar a residência do titular (n.º 2 do artigo 3.º). Mas daí não se pode concluir, como faz o apelante, que o bilhete de identidade caducado tem eficácia em relação aos demais elementos identificadores, excepto quanto à residência. Seria um perfeito absurdo, considerando a natureza e a relevância em termos de identificação dos demais elementos de identificação, entender que a caducidade do bilhete de identidade apenas afecta a comprovação da residência.
Aliás, o regime actual revogou o Decreto-Lei n.º 64/76, de 24.01, que no seu artigo 26.º, n.º 1 prescrevia de forma bastante clara que “são nulos e não poderão ser usados para qualquer efeito os bilhete de identidade cujo prazo de validade se mostre ultrapassado…”.
Embora, o regime actual não mencione expressamente a palavra nulidade, é inequívoco que os princípios subjacentes à identificação civil, acima mencionados, determinam que o bilhete de identidade caducado deixa de fazer prova de qualquer elemento de identificação do seu titular.
Portanto, o documento que o ora apelante facultou à apelada não era dotado de eficácia probatória quanto à identificação do referido D………., o que determinou a impossibilidade da apelada proceder ao registo da aquisição da viatura.
Esta situação só veio a alterar-se supervenientemente à data da petição inicial, mais concretamente, já em fase de julgamento, aquando da junção da fotocópia do bilhete de identidade renovado do referido D………. .
Assim sendo, e considerando que a compra e venda é um contrato bilateral e que o apelante incumpriu a obrigação de facultar os documentos relativos à coisa ou direito, que embora não ponham em causa a validade do contrato de compra e venda, impedem o registo da aquisição, que é obrigatório e necessário para produzir efeitos contra terceiros, estavam reunidos os pressupostos para a apelada recusar o cumprimento da sua obrigação enquanto o apelante não cumprisse a sua (artigos 428.º, n.º 1, 822.º, n.º 2 do CC e artigo 5.º, n.º 1, alínea a) do Registo da Propriedade Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 12.02 e alterações subsequentes).
Consequentemente, improcedem as conclusões do recurso quanto à matéria da excepção de não cumprimento, mantendo-se a decisão.

b)- Compensação de créditos:
A apelada requereu o reconhecimento de dois créditos sobre o exequente e a respectiva compensação.
Os créditos invocados reportam-se ao valor de €1000,00 relativos a prejuízos sofridos por não ter podido deduzir certas despesas perante o Fisco, para efeitos de cálculo de IRC e IVA, dada a falta de registo do veículo em seu nome (supra pontos 23 e 24 da matéria de facto) e €1506,34 relativos ao pagamento da reparação do veículo, necessária à sua aprovação na Inspecção Periódica Obrigatória, uma vez que o mesmo não foi aprovado na primeira tentativa (supra pontos 15 a 20 da matéria de facto).
O apelante defende que o primeiro valor não é devido porque a falta de registo da aquisição do veículo não lhe é imputável e o segundo porque não existiu qualquer acordo responsabilizando-se pelo pagamento da reparação. Acrescenta, ainda, que o accionamento da garantia de bom funcionamento exige a demonstração de nexo de causalidade entre os defeitos e a obrigação de indemnizar, não estando demonstrando quais os específicos defeitos que estariam a coberto daquela garantia e, finalmente, que é contra as regras da boa-fé invocar uma garantia de bom funcionamento em relação a um veículo com 18 anos, concluindo no sentido da nulidade da garantia.
Vejamos, então, se assiste razão ao apelante.
No capítulo do cumprimento das obrigações, a compensação de créditos surge como uma forma de extinção das obrigações para além do cumprimento, impondo a lei requisitos para o seu funcionamento.
Os mesmos estão elencados no artigo 847.º do CC e podem resumir-se ao seguinte: a)- reciprocidade de créditos entre devedor e credor; b)- validade, exigibilidade e exequibilidade do contracrédito, por não proceder contra ele excepção peremptória ou dilatória ou de direito material; e c)- homogeneidade das prestações, por ambas terem por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
Reconhecendo a executada/apelada que é devedora do exequente/apelante, pois a invocação da exceptio non adimpleti contratus significa apenas não cumprimento da obrigação enquanto a outra parte não cumprir e não negação da existência da obrigação em si mesma, está preenchida a base da compensação em relação à obrigação da executada, por a mesma ser devedora do exequente. Resta saber se a executada também é titular de direito de crédito que invoca sobre o exequente.
Quanto ao despendio dos €1000,00, resulta da matéria de facto provada que esse valor traduz um prejuízo estimado, por a apelada não ter podido invocar perante a Administração Fiscal determinadas despesas com a viatura, nomeadamente em sede de IRC e IVA. Tendo a apelada demonstrado que não lhe pode ser imputada a falta de realização do registo da aquisição, sendo tal falta imputada ao apelante, nos termos supra analisados, e que os prejuízos invocados resultam da falta de cumprimento da obrigação do apelante, incorreu este na obrigação de indemnizar o prejuízo causado, quantificado no valor invocado (artigos 562.º, 563.º e 566.º do CC).
Este crédito é compensável com o crédito invocado pelo apelante, considerando que se encontram preenchidos os demais requisitos previstos no artigo 847.º do CC.
Consequentemente, nesta parte deve a sentença ser confirmada.
Vejamos, agora, se também se verificam os requisitos da compensação em relação ao valor gasto na reparação do veículo.
Antes de mais, importa analisar se a compra e venda beneficiou da garantia de bom funcionamento.
Para o efeito é necessário atentar nos factos provados, donde resulta que o apelante é comerciante e faz da venda de veículos automóveis usados actividade com fins lucrativos, que no momento em que ocorreu a inspecção do veículo, encontrava-se coberto pela garantia, e que as partes não acordaram que seria o apelado a pagar a reparação do veículo com vista à sua aprovação na inspecção (supra pontos 6,7, 19 e 20).
Dispõe o artigo 921.º, n.º 1 do CC que “Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substitui-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa ou de erro do comprador.”
Se nada de diferente for estipulado, “o prazo de garantia expira em seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior” (n.º 2).
Trata-se de uma responsabilidade objectiva ligada ao cumprimento da obrigação, da qual resulta que o vendedor assegura o resultado – garantia de bom funcionamento – responsabilizando-se no sentido de, sendo defeituosa a coisa, mesmo que não tenha culpa, assume a reparação ou substituição da coisa. É uma garantia que funciona como “um reforço da posição do comprador, oferecendo-lhe uma tutela (contratual) que se junta como quid plus à emergente da lei (art. 913.º e segs).”[1]
Para além da sua previsão no Código Civil, a obrigação de garantir o bom funcionamento também resulta do disposto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08.04 (que entrou em vigor em 09.04.2003, ou seja, no dia anterior ao contrato em causa nos autos), que complementa e introduz alterações à Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 24/96, de 31.07.
De acordo com o referido Decreto-Lei n.º 67/2003, o vendedor tem o dever de entregar ao comprador bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda, presumindo-se que não são conformes se não possuírem as qualidades adequadas e necessárias ao fim ou à utilização habitual a que se destinam, respondendo o vendedor perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega da coisa, concedendo-se ao consumidor o direito à reposição da conformidade, sem qualquer encargo para o mesmo, através de reparação ou de substituição da coisa, podendo, igualmente, pedir a redução adequada do preço ou resolução do contrato (artigos 1.º, n.º 2, 2.º, n.º 1 e 2, 3.º e 4.º, n.º 1).
Resulta, assim, que a garantia de bom funcionamento se insere no quadro de garantias prestadas pelo vendedor ao comprador/consumidor e têm suporte legal e convencional, pelo que não colhe a argumentação do apelante no sentido de ser contrária à boa fé exigir-se que seja dada uma garantia de bom funcionamento a uma veículo por ter 18 anos de vida. Bem pelo contrário, tendo-se provado que na data da inspecção o veículo se encontrava “coberto pela garantia” (supra ponto 19 da matéria de facto), afigura-se inexistir má-fé por parte do comprador na invocação do direito a receber um veículo em condições legais de circular.
Também por estas razões, não colhe a invocada nulidade da garantia, uma vez que a mesma está em conformidade com as prescrições legais, sendo certo que o apelante apenas fundamenta a sua alegação numa invocação genérica de má-fé, sem qualquer suporte legal.
Acrescente-se, ainda, que o facto de não terem convencionado quem pagaria a reparação com vista à aprovação na inspecção periódica obrigatória não tem qualquer significado, porque impendendo sobre o vendedor a obrigação de vender um bem em conformidade com a utilização habitual do mesmo, que seguramente abrange as condições mecânicas que o habilitem a circular e a ser aprovado naquele acto inspectivo, dada a sua obrigatoriedade legal, a reparação da desconformidade que determinou a não aprovação está abrangida pela garantia de bom funcionamento, independentemente de estipulação expressa nesse sentido.
Concluindo que à data da inspecção e da reparação estava em vigor a garantia de bom funcionamento, resta apurar se a apelada tem direito a ser indemnizada pelo valor da reparação de modo a poder opera-se a invocada compensação.
Neste ponto, o apelante discorda da decisão porque entende que terá de haver um nexo de causalidade entre os defeitos e a não aprovação na inspecção, não estando demonstrado nos autos essa causalidade.
A sentença recorrida defende que existe uma inversão do ónus da prova nos casos quando há garantia de bom funcionamento, uma vez que há responsabilidade objectiva do vendedor em relação a uma obrigação de resultado.
Esse entendimento tem sido defendido pela jurisprudência e pela doutrina, invocando-se que ao comprador basta fazer prova do mau funcionamento da coisa no período de garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado, nem de provar a sua existência no momento da entrega. Competindo ao vendedor que queira ilibar-se da responsabilidade, a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega (artigos 342.º e 343.º, n.º 1 do CC).[2]
In casu, o comprador cumpriu o ónus probatório ao demonstrar que a viatura foi reparada no prazo de cobertura da garantia e que a reparação foi necessária para conseguir a aprovação na inspecção, enquanto o vendedor não conseguiu demonstrar que a causa da reprovação não existia à data da venda, pelo que está demonstrado o valor da reparação constitui um prejuízo causado pelo incumprimento das obrigações do vendedor.
Apesar desta conclusão, não podemos acompanhar o raciocínio da sentença recorrida quando conclui pela verificação dos requisitos da compensação em relação a este valor.
A razão prende-se com a circunstância de a lei não gizar os direitos do comprador de modo a conceder-lhe o direito a ele próprio providenciar pela reparação da coisa, deduzindo, de seguida, pedido de indemnização pelo valor gasto com a reparação.
De facto, inserindo-se a garantia no domínio do cumprimento do contrato, a lei estabelece, em primeira linha, o direito à reparação ou à substituição. Portanto, o comprador assegura, em primeiro lugar, o resultado da obrigação, ou seja, a eliminação do defeito, ou a substituição da coisa defeituosa se tal for necessário e a coisa for fungível. Por conseguinte, a lei não concede ao comprador o direito a reparar a coisa, sem nada dizer ao vendedor, concedendo-lhe o direito a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos. Tal só tem sido admitido, a título excepcional, quando o vendedor não procede à reparação e/ou substituição e as mesmas têm carácter urgente.
É verdade que a doutrina tem discutido se os direitos que a lei confere ao comprador de coisa defeituosa (direito à reparação, substituição, redução do preço ou resolução do contrato) podem ser exercidos em concorrência ou de forma ordenada e hierarquizada.[3]
Porém, mesmo para Calvão da Silva que tende a defender a opção do comprador, sempre refere que tal opção deve ser temperada com o princípio da boa-fé, ou seja, se a reparação/substituição é possível, o comprador deve começar por exigir a mesma.
De qualquer forma, o que está afastado é a possibilidade do comprador, sem sequer denunciar os defeitos e pedir a reparação ou a substituição da coisa, enveredar pela reparação por sua conta e risco, demandando posteriormente o vendedor pelo valor despendido.
Por outro lado, ainda que a não aprovação do veículo determine a impossibilidade legal de circular, da qual podem resultar danos patrimoniais indemnizáveis relativos à paralisação, daí não decorre ipso facto o carácter urgente da reparação.
Para se concluir nesse sentido seria necessário que houvesse alegação e demonstração de circunstâncias específicas donde resultasse, naquele caso, esse carácter urgente.
De qualquer modo, mesmo nesse caso, sempre o comprador teria de solicitar ao vendedor a eliminação do defeito invocando a urgência na reparação e, se em tempo útil, o vendedor não eliminasse o defeito, então poderia ser discutido o direito à indemnização relativo ao valor gasto, sem prejuízo do direito a indemnização pelos danos causados pela paralisação, os quais sempre se encontram assegurados, desde que se provasse a culpa do vendedor por faltar ao cumprimento exacto da prestação garantida.
Nada disto sucedeu no caso em apreço. Está provado que a apelada não denunciou os defeitos ao comprador, nem lhe deu conhecimento da situação. Perante a não aprovação do veículo na inspecção, levou-o a uma oficina para ser reparado e submeteu-o a nova inspecção, onde, então, obteve aprovação. Assim sendo, por não ter denunciado os defeitos, nem ter pedido ao comprador a sua reparação, não lhe assiste o direito a pedir o valor da reparação efectuada à revelia e sem conhecimento do comprador.
Consequentemente, não existindo este contracrédito, a compensação não pode efectuar-se, procedendo, nesta parte, a impugnação recursória, revogando-se este segmento da sentença.

Dado o decaimento do apelante e apelada, as custas serão suportadas por ambos, na respectiva proporção (artigo 446.º, n.º 1 e 2 do CPC).

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acorda-se em revogar a sentença recorrida na parte em que reconheceu o contracrédito da executada/apelada no montante de €1506,34 (mil quinhentos e seis euros e trinta e quatro cêntimos) e determinou a respectiva compensação com o crédito do exequente/apelado, mantendo-se inalterada na parte restante.

Custas por apelante e apelada na proporção do decaimento.

Porto, 24 de Novembro de 2008
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Baltazar Marques Peixoto
José Augusto Fernandes do Vale

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[1] João Calvão da Silva, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, 5.ª edição, Almedina, 2008, página 67.
[2] A título exemplificativo, veja-se o Ac. STJ, de 19.02.2008, processo n.º 07A465503; Ac. STJ, de 29.11.2006, processo n.º 06A3816; Ac. STJ, de 19.02.2004, processo n.º 0326797; Ac. STJ, de 03.04.2003, processo n.º 03B809; Ac. RP, de 27.03.2006, processo 0650794; Ac. RP, de 18.06.2007, processo n.º 0751464; Ac. RP, de 19.02.2004, processo n.º 0326797; Ac. RL, de 01.04.2004, processo n.º 1020/2004-2; Ac. RC, de 14.12.2004, processo n.º 2270/04, todos in www.dgsi.pt e João Calvão da Silva, ob., cit., páginas 63 e seguintes.
[3] Veja-se João Calvão da Silva, ob., cit., página 120 e Romano Martinez, “Direito da Obrigações”, Parte Especial- Contratos, 2.ª edição, Almedina, 2003, página 141.