Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2559/14.6T8VNG-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RENDIMENTO DO INSOLVENTE A SER EXCLUÍDO DA CESSÃO AOS CREDORES
DESPESAS
PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
Nº do Documento: RP201801162559/14.6T8VNG-G.P1
Data do Acordão: 01/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 803, FLS 228-233)
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos do art. 239º, nº3, do CIRE cumpre ao julgador, no seu prudente arbítrio, definir casuisticamente o rendimento do insolvente a ser excluído da cessão aos credores, o qual tem por limite mínimo aquele montante que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
II – Na definição desse montante não haverão de ser ponderadas como despesas a que o insolvente se encontra sujeito os valores que, em momento anterior ao da insolvência, se obrigara a pagar, por acordo homologado judicialmente, a título de prestações de alimentos, a ex-mulher e a filho menor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 2559/14.6T8VNG-G.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso- Juiz 1

REL. N.º 473
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Lina Castro Baptista
Fernando Samões
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1. RELATÓRIO

B..., residente na Avª ..., nº ...- 5º Drt., em Vila do Conde, declarado insolvente por sentença proferida no dia 19-05-2015, peticionou a exoneração do passivo restante, tendo descrito circunstâncias da sua vida profissional, pessoal e familiar que conduziram à incapacidade para a satisfação de todas as suas responsabilidades. Afirmando reunir todas as condições para o deferimento dessa pretensão, concluiu dever ser-lhe reconhecido o direito a ficar com a totalidade da sua pensão, com um valor liquido de 1.882,22 Euros, porquanto a mesma se afigura essencial ao seu sustento e ao pagamento das prestações de alimentos a que está vinculado, à sua mulher e a um filho menor, por decisões judiciais.
Não foi deduzida validamente qualquer oposição a essa pretensão.
Instruído o processo nos termos tidos por convenientes, foi sucessivamente proferida a decisão sob recurso, na qual, após ser admitido liminarmente o pedido de exoneração de passivo restante formulado, foi fixado que, durante os cinco anos subsequentes, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir seja cedido ao fiduciário nomeado, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno, que se quantificou em valor equivalente ao dobro do salário mínimo nacional.
É desta decisão, na parte em que fixa o rendimento sobrante para o insolvente, que vem interposto o presente recurso.
Nas suas alegações, o recorrente argumenta que não foram dados por provados, como deveriam ter sido, diversos factos que alegara, referentes às suas despesas, em face dos quais se impõe a decisão de salvaguarda, para o seu sustento em termos minimamente dignos, de todo o montante que recebe a título de pensão, num total de 1.882,00€.
Formulou, a tal propósito, as seguintes conclusões:
“1 – Andou mal o Tribunal recorrido ao julgar provados – “com interesse para a decisão a proferir”- apenas os seguintes factos:
“1 – A insolvência do requerente foi requerida no dia 14.05.2015 e, por sentença proferida no dia 19/05/2015 declarou-se tal insolvência;
2 – O requerente tem um passivo de € 2.364.090,57.
3 – Os bens de que era titular – partem e imóveis e quotas – foram apreendidos nos autos.
4 – Aufere a remuneração de € 1.882.22.
5 – Tem um filho menor a quem paga prestação de alimentos.
6 – Padece de doença de foro cardíaco.
7 – Nunca foi condenado pela prática de qualquer crime.”
2 – Se o Tribunal a quo olvidou os factos alegados pelo insolvente nos artigos 16.º a 23.º do seu requerimento inicial de exoneração do passivo restante, deixando de se pronunciar sobre tais questões que devia apreciar, isso acarreta nulidade da sentença, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, nulidade essa que expressamente se argui.
3 – Se os douto despacho recorrido simplesmente não considerou relevantes para a decisão da causa os factos alegados pelo insolvente nos artigos 16.º a 23.º do seu requerimento inicial de exoneração do passivo restante, incorreu em manifesto erro de julgamento.
4 - Os factos alegados nos artigos 16.º a 23.º do dito requerimento inicial correspondem ao rol de despesas mensais do insolvente.
5 - Os factos alegados nos artigos 16.º a 23.º do dito requerimento inicial mostram-se absolutamente determinantes para a fixação do valor do rendimento disponível.
6 – Por terem sido alegados e sustentados documentalmente pelo insolvente, devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:
a) O insolvente paga encontra-se obrigado a pagar à sua ex-mulher C... uma prestação de alimentos mensal no montante de 600.00 Euros.
b) O insolvente paga ao seu filho menor nascido de uma relação com D... uma prestação de alimentos no valor de 700 € mensais que se encontram a ser cobrados coercivamente através da penhora no valor mensal de 1200 Euros decretada no âmbito do processo n.º2272/12.9TMPRT-A que corre termos no 1.º juízo 1.ª secção do Tribunal de Família e Menores do Porto.
c) O insolvente despende mensalmente a quantia de 400.00 Euros para pagamento da renda da casa que habita.
d) O insolvente paga 20,65€ mensais pelo serviço de fornecimento de água; 70.61€ pelo serviço de fornecimento de electricidade; e gasta 35.00€ mensais com despesas médicas e medicamentosas.
7 - O Tribunal a quo deveria ter considerado os supra referidos factos no apuramento do montante necessário para o sustento minimamente digno do devedor.
8 - Andou mal o Tribunal recorrido ao determinar a obrigação de entrega ao fiduciário de todo o rendimento do devedor que ultrapasse o equivalente a dois salários mínimos nacionais por mês.
9 - O montante equivalente a dois salários mínimos nacionais é inferior ao montante que o insolvente está obrigado a pagar à ex-mulher e ao filho e título de prestações de alimentos.
10 - Não sendo alterada a decisão proferida, nenhum rendimento restará ao insolvente para prover o seu sustento, depois de pagar as ditas prestações de alimentos.
11 - Se à remuneração liquida auferida pelo insolvente deduzirmos o montante das despesas fixas supra aludidas e que totalizam 1826.26€, concluímos que este apenas se queda com 55,96€ para prover à sua alimentação vestuário e higiene, e fazer face às despesas de transporte.
12 – O montante de 55,96€ é manifestamente insuficiente para o insolvente prover à sua alimentação vestuário e higiene, e fazer face às despesas de transporte.
13 - O insolvente não poderá ceder ao fiduciário nenhuma parte do seu rendimento uma vez que este é indispensável para assegurar o seu sustento minimamente digno.
14 - O douto despacho recorrido violou o disposto no artigo 608.º n.º 2.º e 615.º do CPC. e 239 do CIRE
Termos em que julgando procedente o presente recurso, revogando o douto despacho proferido pelo Tribunal a quo pelo mesmo ser nulo, ou, revogando o mesmo na parte em que determinou que o rendimento do devedor que ultrapasse o equivalente a 2 salários mínimos nacionais por mês seja cedido ao fiduciário, e substituindo-o por outro que determine a obrigação de entregar ao fiduciário o rendimento que mensalmente exceda o valor de 1.882.22 Euros farão, V. Exas, como sempre, inteira e costumada Justiça.”
Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 2, do C.P.Civil.
Assim, a questão a resolver, extraída de tais conclusões, é a de apurar se a parcela dos rendimentos que venham a ser auferidos pelo insolvente que deve ser salvaguardada para lhe garantir um sustento minimamente digno deve ser igual ao valor de dois salários mínimos, tal como fixado na decisão recorrida, ou uma quantia superior, designadamente a equivalente á totalidade do valor liquido que recebe, a título de pensão de reforma, num total de 1.882,00€. Neste âmbito caberá apurar se deve ser alterada a decisão da matéria de facto, seja por via do reconhecimento de uma nulidade da sentença, seja por via da apreciação do seu mérito.
A apreciação do objecto do recurso importa, pois, que se considerem os elementos factuais tidos por provados pelo tribunal a quo. Esses factos são os seguintes:
1 – A insolvência do requerente foi requerida no dia 14.05.2015 e, por sentença proferida no dia 19.05.2015 declarou-se tal insolvência;
2 – O requerente tem um passivo de € 2.364.090,57.
3 – Os bens de que era titular – parte em imóveis e quotas – foram apreendidos nos autos.
4 – Aufere a remuneração de € 1.882,22.
5 – Tem um filho menor a quem paga prestação de alimentos.
6 – Padece de doença de foro cardíaco.
7 - Nunca foi condenado pela prática de qualquer crime.
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É a este conjunto de factos que o apelante quer ver aditados os seguintes:
a) O insolvente paga/encontra-se obrigado a pagar à sua ex-mulher C... uma prestação de alimentos mensal no montante de 600.00 Euros.
b) O insolvente paga ao seu filho menor nascido de uma relação com D... uma prestação de alimentos no valor de 700 € mensais que se encontram a ser cobrados coercivamente através da penhora no valor mensal de 1200 Euros decretada no âmbito do processo n.º2272/12.9TMPRT-A que corre termos no 1.º juízo 1.ª secção do Tribunal de Família e Menores do Porto.
c) O insolvente despende mensalmente a quantia de 400.00 Euros para pagamento da renda da casa que habita.
d) O insolvente paga 20,65€ mensais pelo serviço de fornecimento de água; 70.61€ pelo serviço de fornecimento de electricidade; e gasta 35.00€ mensais com despesas médicas e medicamentosas.
A enunciação desta factualidade e a pretensão de que seja sujeita a um juízo probatório positivo corresponde ao cumprimento de dois dos requisitos do art. 640º, nº 1 do CPC, designadamente os das als. a) e c). Por outro lado, o apelante aponta também a prova documental apta a sustentar esse juízo, em cumprimento da al. b) da mesma norma. Deve, pois, ter-se por eficazmente impugnada a decisão sobre a matéria de facto, apreciando-se também esse segmento do recurso.
Note-se, em qualquer caso, que se intervirá no âmbito do mérito substancial da decisão, por se lhe não reconhecer qualquer nulidade, designadamente a invocada pelo recorrente, com apelo ao disposto no art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.
Com efeito, como se depreende da economia da decisão recorrida, tal factualidade não foi alvo de um juízo probatório expresso por ter sido ajuizada como inútil para a decisão a proferir e não porque, tendo sido aferida a sua utilidade, tenha sido omitida uma competente apreciação probatória da mesma.
Assim, no que toca à fixação da matéria de facto provada, a decisão recorrida não é nula, já que apreciou a matéria tida por conveniente. Não omitiu a questão representada pela fixação dessa matéria. E isso exclui que se deva ter por verificada a nulidade em causa.
Sem prejuízo, na aferição do mérito dessa mesma decisão, caberá apurar se tal matéria é relevante e se deve ter-se por provada.
No que respeita à sua relevância, reportando-se toda ela à caracterização das condições económico-financeiras da existência do apelante, só pode ela ter-se por adquirida. De resto, no próprio conjunto dos factos provados, o tribunal mencionou alguns dos mesmos factos, embora com menos profundidade. Por exemplo, referiu a sujeição do apelante à obrigação de uma prestação de alimentos, sem indicar o respectivo valor; referiu a sua condição clínica, sem mencionar as despesas que determina. E não mencionou as suas despesas com habitação, mas, a apurarem-se elas, não deixam de constituir dado importante para a caracterização aquelas condições.
No que respeita à demonstração desses factos, é certo resultarem eles da prova documental oferecida pelo ora apelante, juntamente com o seu próprio requerimento inicial
Assim, que o insolvente se obrigou a pagar à sua ex-mulher C... uma prestação de alimentos mensal no montante de 600.00 Euros, resulta do documento com cópia a fls. 49 e 50; que se obrigou a pagar ao seu filho uma prestação de alimentos no valor de 700 € mensais que passaram a ser cobrados coercivamente através da penhora no valor mensal de 1200 Euros decretada no âmbito do processo n.º2272/12.9TMPRT-A que corre termos no 1.º juízo 1.ª secção do Tribunal de Família e Menores do Porto, resulta do doc. com cópia a fls. 55; que despende mensalmente a quantia de 400.00 Euros para pagamento da renda da casa que habita, resulta do documento de fls. 26 o qual, não sendo absolutamente ilustrativo dessa realidade, a indicia fortemente sem que nada o tenha posto em causa; e que paga 20,65€ mensais pelo serviço de fornecimento de água; 70.61€ pelo serviço de fornecimento de electricidade; e gasta 35.00€ mensais com despesas médicas e medicamentosas resulta dos documentos, com cópias de fls. 60 a 78, constituídos por facturas/recibos, que ilustram tais custos.
Em qualquer caso, no tocante às prestações de alimentos, está o crédito correspondente sujeito ao regime resultante do art. 93º e 242º do CIRE, pelo que não se pode dar por provado que o insolvente continue a cumprir tais obrigações, tanto mais que dos documentos em causa isso mesmo não pode ter-se por demonstrado.
Em conclusão, e com a especificidade assinalada quanto às obrigações alimentares, devem adicionar-se os factos supra enunciados à factualidade provada nesta causa, nesta parte procedendo em parte a pretensão do apelante. A matéria de facto provada será, então, complementada, nos seguintes termos:
8 - O insolvente obrigou-se a pagar à sua ex-mulher C... uma prestação de alimentos mensal no montante de 600.00 Euros, por acordo homologado por sentença de 12/11/2012.
9 - O insolvente obrigou-se a pagar ao seu filho menor nascido de uma relação com D... uma prestação de alimentos no valor de 700 € mensais, por acordo homologado por sentença em 3/12/2012, relativamente aos quais foi empreendida cobrança coerciva, através da penhora no valor mensal de 1200 Euros decretada no âmbito do processo n.º2272/12.9TMPRT-A do 1.º juízo 1.ª secção do Tribunal de Família e Menores do Porto.
10 - O insolvente despende mensalmente a quantia de 400,00€ para pagamento da renda da casa que habita.
11 - O insolvente paga 20,65€ mensais pelo serviço de fornecimento de água; 70.61€ pelo serviço de fornecimento de electricidade; e gasta 35.00€ mensais com despesas médicas e medicamentosas.
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Na decisão, foi fixado como indisponível para cessão ao fiduciário o valor correspondente a dois salários mínimos, que, atendendo à sua actualização para o ano em curso (580,00€) corresponderá à quantia de 1.160,00€.
Assente a factualidade que constitui uma das premissas da solução jurídica da questão, é útil ter presente que o que está aqui em causa é, em suma, a concessão de um relevante benefício ao insolvente, que lhe facultará, no termo de um prazo de cinco anos, o fim da sua responsabilidade pela satisfação de obrigações contraídas perante os seus credores. E isso com o evidente prejuízo para tais credores, que confiaram o seu dinheiro a uma empresa de que o insolvente era administrador (segundo a sua própria alegação), na expectativa de que, perante o incumprimento daquela, este lhes garantisse o reembolso dos créditos concedidos, expectativa essa que poderão acabar por ver frustrada. Com efeito, na sequência da insolvência da referida empresa, ficou a cargo do ora apelante a responsabilidade por um passivo de € 2.364.090,57 e foi a incapacidade para a satisfação deste que gerou a sua própria insolvência. Foram aprendidos bens e direitos, mas é ainda desconhecida – designadamente nestes autos - a medida em que os mesmos podem vir a satisfazer tal passivo.
Em qualquer caso, aquele é o efeito essencial deste instituto, consagrado no art. 235º do CIRE: a ulterior desresponsabilização pelo passivo anterior, no fim do período de cessão.
A especificidade do problema a resolver dispensa uma análise descritiva do seu enquadramento jurídico e da justificação sociológica das soluções adoptadas pelo legislador a tal propósito, tendo-se por assente que a norma cuja aplicação está em causa é a constante do art. 239º do CIRE.
Aí se dispõe, no seu nº 3: “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) (…)
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
Pressupõe este regime que sejam cedidos ao fiduciário nomeado, para os fins da insolvência, todos os rendimentos auferidos pelo insolvente no período de cinco anos, com as excepções enunciadas.
Entre estas excepções sobressai que, dos rendimentos auferidos pelo devedor e cedidos para satisfação dos efeitos da insolvência, deve ser retirada uma parte adequada a facultar “O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional” [al. b), § 1)]. Este rendimento excluído da cessão – designado geralmente como “rendimento indisponível” corresponde à parcela desses rendimentos suficiente e indispensável a suportar economicamente a existência do devedor e seu agregado familiar.
Deste preceito, como é recorrentemente assinalado pela jurisprudência, resulta um limite máximo para essa parcela: um valor equivalente ao triplo do salário mínimo; e um limite mínimo: aquele que for necessário para, nas circunstâncias concretas do caso, assegurar um “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”.
No que toca a tal limite mínimo, o legislador optou claramente pela consagração de um conceito aberto, por via de cujo preenchimento esse limite deve ser identificado, assim salvaguardando as idiossincrasias de cada situação, de cada devedor, de cada agregado familiar, e tudo sem que se perca de vista o fim do processo de insolvência em que este incidente se insere e que é, até onde for possível, o ressarcimento dos credores.
Passando à análise da factualidade apurada, agora à luz deste enquadramento, constata-se, em primeiro lugar, que o passivo que justificou a insolvência do devedor ascende a um montante elevado, que ultrapassa os dois milhões de euros. Para a respectiva satisfação é insuficiente o património que lhe foi apreendido, o que é pressuposto da decisão da sua própria insolvência. Então, vocacionados ainda para a satisfação das suas responsabilidades estarão os rendimentos que continue a obter. No caso, tais rendimentos são constituídos pela respectiva pensão mensal, de 1.882,22€.
Por outro lado, como principais encargos identificados, aponta o apelante duas pensões de alimentos (700,00€ a ex-mulher e 600,00€ a filho menor) a cujo pagamento se vinculou por acordo, além do valor de renda de casa, de 400,00€ mensais, e despesas com água, luz e assistência médica, de que carece, além de outras que, co-naturais à sua sobrevivência, terão de se admitir (v.g, despesas com higiene, alimentação).
Nestas circunstâncias, cumpre configurar, para o cenário dos próximos cinco anos, o rendimento que insolvente irá provavelmente auferir e, por referência a esse provento e às demais circunstâncias enunciadas, definir a parcela dele que deverá ser salvaguardada para si, designadamente em função das prestações alimentares por que deve responder, e o remanescente que deverá ser entregue para os fins da insolvência.
Em qualquer caso, como a jurisprudência vem repetindo (entre outros, cfr. AC do TRE de 4/12/2014, proc. nº 1956/11.3TBSTR-I.E1), na definição do valor a reservar mensalmente para o insolvente não se trata de assegurar o padrão de vida que ele e o seu agregado teriam antes da situação de insolvência, mas o que seja adequado para garantir uma vivência minimamente condigna. Ao insolvente caberá adequar as suas condições de vida à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida à realidade em que incorreu e durante um período meramente transitório. Assim, como se refere no citado acórdão “(…) não serão simplesmente as despesas enunciadas ou comprovadas que devem justificar o montante do rendimento indisponível no período da cessão, mas apenas aquelas que razoavelmente se justifiquem, reduzidas ao mínimo de vivência digna do devedor e seu agregado familiar, traduzindo uma efectiva adaptação do padrão de vida do insolvente ao estatuto que lhe foi conferido. O valor a fixar terá de levar em consideração as particularidades de cada caso, devendo ponderar-se, por um lado, que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de percepção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, por outro lado, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar.”
Por outro lado, na resolução do problema que nos ocupa não podem equacionar-se as despesas com prestações de alimentos como encargos a que, mensalmente, o insolvente continua sujeito, nos mesmos termos a que anteriormente se vinculara.
Não sendo este o processo adequado à discussão dessa matéria, já que nele apenas tem lugar como premissa, o problema das obrigações de alimentos vencidas após a declaração de insolvência está sujeito ao regime dos arts. 93º e 242º do CIRE, como bem se explica no Ac. deste TRP, de 25/01/2016 (proc. nº 1634/14.1T8MTS-C.P1, em dgsi.pt), que expressamente tratou do tema. Aí se refere: “Nos termos do disposto no artigo 93º do CIRE, na redacção introduzida pela Lei nº 16/2012, “[o] direito a exigir alimentos do insolvente relativo a período posterior à declaração de insolvência só pode ser exercido contra a massa se nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009º do Código Civil estiver em condições de os prestar, devendo, neste caso, o juiz fixar o respectivo montante.”
A nosso ver, não obstante as especificidades do dever de sustento dos menores previsto no artigo 1878º, nº 1, do Código Civil, relativamente à geral obrigação de prestação de alimentos prevista no artigo 2003º, do mesmo diploma legal, a exigibilidade de prestações alimentares vencidas após a declaração de insolvência, pelas forças da massa insolvente, segue o regime previsto no artigo 93º do CIRE. (…)
Na nossa perspectiva, tendo sido deferido liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante e estando em causa prestações alimentares constituídas após a declaração de insolvência, ou seja, créditos que não são créditos da insolvência, o problema em análise deve resolver-se tendo em atenção o previsto no artigo 242º, nº 1, do CIRE.”
Daqui resulta que as dívidas por alimentos não são créditos que possam merecer um tratamento distinto dos restantes créditos, nem conduzir a um privilegiamento dos respectivos titulares, relativamente a outros credores. Ao que acresce que a declaração de insolvência tende à desresponsabilização dos devedores de alimentos, desde que os respectivos credores possam obter, de outra fonte, a satisfação do seu direito.
Acresce que, nas circunstâncias actuais, da ponderação da diferença entre o valor do rendimento indisponível fixado na decisão recorrida e o valor do rendimento do insolvente, sobressai o pouco relevante valor que irá sobejar para pagamento aos credores (numa apreciação relativa para com o valor do passivo). Por outro lado, a salvaguarda, para o insolvente da totalidade do valor da sua pensão redundaria na superação do próprio limite regra estabelecido para esse efeito, de três vezes o valor do salário mínimo nacional (art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE).
É neste contexto que a reserva de uma quantia de 1.882,22€ mensais para o insolvente, dos rendimentos que venha a auferir futuramente (como pretendido no recurso, correspondendo a um valor superior ao triplo do salário mínimo nacional em vigor), nada mais se entregando ao fiduciário, aparece como uma solução injustificável e inadmissível.
Entendemos, pois, na ponderação e compatibilização possível de todos os interesses em presença, ser insusceptível de crítica a decisão recorrida, que fixou o rendimento indisponível para os credores, a reservar para o insolvente, no montante equivalente ao dobro do salário mínimo nacional, actualmente de 580€. Tal montante permitirá a sua vivência, durante o período de cessão, em condições de mínima dignidade humana.
Improcederá, nestes termos, o presente recurso de apelação, com a confirmação integral da decisão recorrida.
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Sumariando, nos termos do art. 663º, nº7 do Código do Processo Civil
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3 – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a presente apelação, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 16 de Janeiro de 2018
Rui Moreira
Lina Baptista
Fernando Samões