Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1687/11.4TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: REENVIO PREJUDICIAL
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
DIREITO NACIONAL
Nº do Documento: RP201110261687/11.4TBMAI.P1
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não é da competência do Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE] verificar a compatibilidade do direito nacional face ao direito comunitário.
II - O reenvio prejudicial é o processo pelo qual os juízes nacionais dos Estados-Membros podem recorrer ao TJUE para o interrogar sobre a interpretação ou a validade do direito europeu num processo em curso.
III – O juiz nacional deve rejeitar o pedido de reenvio prejudicial se o caso não implica a aplicação de direito comunitário, mas apenas de direito nacional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 1687/11.4TBMAI.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferencia os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Recurso de impugnação de contra-ordenação nº 1687/11.4TBMAI do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca da Maia, em que é arguida:
B…, com sede em …, na Suiça

Na sequencia da decisão da INAC - Autoridade Nacional do Instituto Nacional da Aviação Civil, IP que condenou a “B…, S.A.” uma coima no valor de € 15.500,00 (quinze mil e quinhentos euros) pela prática, a título de dolo, de uma contra-ordenação decorrente da violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do DL 52/2003 de 25 de Março, punida nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 9º do DL n.º 10/2004 de 9 de Janeiro, veio a condenada a interpor recurso de impugnação para o tribunal competente.
Interposto recurso de impugnação o Mº Juiz por despacho de 20/6/2011 proferiu a seguinte:
“DECISÃO
Nos termos e pelos motivos expostos, julgo o recurso de impugnação interposto pela arguida totalmente improcedente e, em consequência, condeno a arguida B…, S.A.:
- na coima de €15.500,00 (quinze mil e quinhentos euros) pela prática de uma contra-ordenação prevista pela alínea a) do n.º 1 do artigo 4º do DL n.º 52/2003, com a redacção dada pelo artigo 15º do DL 208/2004 de 19 de Agosto de 2004 e punida pela alínea d) do n.º 4 do artigo 9º do DL 10/204 de 09 de Janeiro;
- nas custas processuais, fixando-se em 3 U.C.’s a taxa de justiça, nos termos do estipulado no art. 93º, nº 3 do R.G.C.O. e art. 8º, nº 4 e tabela III do Regulamento das Custas Judiciais.”
Deste despacho recorre a arguida B…, S.A a qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
1.ª A decisão do 2ª Juízo de Competência Criminal da Maia que julgou o recurso de impugnação interposto pela Recorrente improcedente e, em consequência, condenou a Recorrente na coima no valor de € 15.500,00, pela prática de uma contra-ordenação por violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do DL n.º 52/2003 de 25 de Março, punida nos termos da alínea c) do n.º 4 do art. 9.º do DL n.º 10/2004 e nas custas processuais, fixadas em 3 UC’s., salvo o devido respeito, padece de vários vícios e erros na interpretação e aplicação do direito aos factos dados como provados, motivo pelo qual deverá ser revogada, com as devidas consequências legais.
2.ª A matéria constante do ponto 2. (constante do elenco de “factos” dados como provados pelo Tribunal, cfr. p. 11 da sentença) encerra juízos conclusivos e constitui matéria de direito que, como tal, não poderia ser elencada no rol dos factos dados como provados, nem servir de fundamento para o despacho recorrido, devendo antes ter-se por não escrita.
3.ª Ao concluir que (i) a arguida “tinha conhecimento que a sua conduta constituía uma violação legal”; (ii) que a arguida “sabia de antemão que o seu comportamento preencheria um tipo legal de contra-ordenação” e que (iii) “tal não a impediu [a arguida] de empreender a sua conduta”, sem indicar quais os factos concretos que fundamentam tal conclusão, o despacho recorrido violou o disposto no artigo 646º, n.º 4 do CPC, aplicável ex vi o disposto no artigo 4.º do CPP e no artigo 41.º do RGCOC.
4.ª O Tribunal a quo não tomou em consideração factos relevantes para a boa decisão da causa e para as várias soluções de direito, nomeadamente os referentes à conduta da Recorrente, à impossibilidade de apresentação de documentos de suporte que permitissem contraditar a acusação e os referentes ao período de tempo decorrido entre a data da infracção e a respectiva notificação à Recorrente (mais de 3 anos).
5.ª Nenhum dos factos referidos na conclusão precedente foi incluído na matéria de facto dada como provada, apesar de não terem sido contraditados pela entidade administrativa e de se encontrarem suportados por prova documental.
6.ª Os factos em causa são essenciais para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilam, nomeadamente a absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena e circunstâncias relevantes para a determinação desta última.
7.ª Não tendo o Tribunal a quo considerado os factos alegados pela Recorrente, nem indagado da respectiva verificação, verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e uma situação de violação do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP, aplicável ex vi o artigo 41.º do RGCOC.
8.ª O Tribunal a quo não tomou em consideração as normas comunitárias que regem em matéria de conservação de documentos dos voos realizados por operadores aéreos e, sobretudo, nas consequências que o atraso na instrução do processo teve para a Recorrente e na lesão irreparável que causou ao direito de defesa constitucionalmente consagrado.
9.ª A sentença sob censura limitou-se a analisar a questão do incumprimento pelo INAC do prazo de 90 dias cominado na lei para a conclusão da instrução numa óptima formal, concluindo que se tratava de uma mera irregularidade que, como não foi suscitada, não teria consequências para o desfecho do procedimento, para depois concluir que, sendo o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional de 5 anos, não existiu qualquer prejuízo para a defesa da Recorrente, juízo que não tem qualquer fundamento legal.
10.ª A sentença ignorou ainda a resposta da Recorrente em sede de audiência de interessados, onde esta afirmou que não dispunha de elementos sobre o voo em questão que lhe permitissem infirmar ou justificar a sua conduta e, sobretudo, ignorou o disposto no Regulamento (CE) n.º 859/2008 da Comissão de 20 de Agosto de 2008, que altera o Regulamento (CEE) n.o 3922/91 do Conselho, relativo à harmonização de normas técnicas e dos procedimentos administrativos no sector da aviação civil (em particular do quadro 1 do apêndice 1 à OPS 1.1065 para o período de conservação do documento junto como doc. 3 do recurso) que dispõe que os operadores apenas se encontram obrigados a conservar a documentação referente aos voos (flight report) pelo período de 3 meses.
11.ª Como é sabido – e o Tribunal a quo, por dever de oficio, não deveria ignorar - os Regulamentos CE são directamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por força do artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do disposto no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
12.ª A lei portuguesa, numa solução equilibrada e congruente com as normas aplicáveis em matéria de período de conservação dos registos de voo, estabelece um prazo para instrução de processos de contra-ordenações aeronáuticas - 90 dias – que coincide com o período de conservação dos documentos de voo imposto pelo Regulamento Comunitário, solução esta que é uma decorrência do princípio de igualdade de armas (artigo 13º CRP).
13.ª A discordância da Recorrente face à decisão administrativa e à sentença sob censura não reside nas consequências, do ponto de vista formal, da ultrapassagem do prazo cominado na lei para a instrução, mas apenas e tão só no reconhecimento, pelo Tribunal da Relação do Porto, dos danos que o atraso injustificado do INAC na instrução do processo causou e da necessidade de fazer uma interpretação conforme com a CRP e com o Direito da União Europeia da situação narrada e das normas que tutelam o direito de defesa da Recorrente, maxime do artigo 50.º do RGCOC.
14.ª A norma constante do artigo 50.º do RGCOC abrange - sob pena de restringir o conteúdo essencial de um direito fundamental - tanto o direito de audiência do arguido, quanto o direito de defesa efectiva. Ao considerar que a Recorrente exerceu o direito de defesa efectiva, apesar de já não dispor – por inércia da autoridade competente e violação de um prazo cominado na lei – de um meio de prova essencial para provar a sua inocência, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 50.º do RGCOC e nos artigos 13º, 18.º, n.º 1 e 2, 63.º. n.º 2 e 266º n.º 2 da CRP.
15.ª A preterição do direito de defesa do Arguido constitui ainda nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º, al. c) do CPP, aplicável ex vi o artigo 41.º do RGCOC, vício de que padece a sentença e que também se invoca para os devidos efeitos legais.
16.ª Nos termos dos artigos 1.º e 8.º do RGCO só constitui contra-ordenação a prática ou omissão dolosa ou negligente de algum dos factos descritos nas disposições legais alegadamente violadas.
17.ª A decisão administrativa, como se reconhece na própria sentença - cf. pp. 7 da decisão – encontra-se “maioritariamente enformada por fórmulas tabulares que, muitas vezes, mais não fazem do que enunciar conceitos gerais e expressar conclusões que não se encontram suportadas por qualquer juízo verdadeiramente crítico”, vício esse que não foi suprido pelo Tribunal a quo (que apenas apresentou dois factos admissíveis para sustentar a decisão formulada).
18.ª A decisão sob censura não contém factos passíveis de serem subsumidos a qualquer tipo contra-ordenacional e, muito menos, que permitam a um órgão jurisdicional ponderar o grau de culpabilidade da Recorrente, que não se pode presumir.
19.ª Sem preenchimento dos elementos subjectivos do tipo não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende a condenação da Recorrente ao pagamento de coima, nos termos do disposto nos artigos 1.º e 8.º do RGCOC, pelo que deveria ter sido determinado o arquivamento do processo de contra-ordenação.
20.ª Ao condenar a Recorrente no pagamento de coima, sem que estejam preenchidos os elementos subjectivos do tipo, o Tribunal a quo violou os artigos 1.º e 8.º do RGCOC.
21.ª O entendimento do Tribunal a quo de que a fixação de uma sanção pecuniária pela lei portuguesa para a aterragem sem faixa horária e a sua aplicação sem ter em consideração ou se apurar se foi feita de forma repetida e intencional e com perturbação para a operação aeroportuária em nada contende com as normas constantes do regulamento comunitário [Regulamento (CE), do Parlamento Europeu e do Conselho no. 793/2004, publicado em 21 de Abril, que veio dar nova redacção aos artigos 14/4 e 14/5 do Regulamento (CEE) n.º 95/93] não pode ser aceite e não tem fundamento.
22.ª A Recorrente e todos os operadores que estiveram presentes na assembleia geral do Comité Nacional Coordenação de SLOTS têm um entendimento distinto, conforme resulta da acta número 2 de 10 de Fevereiro de 2011, documento posterior à impugnação formulada e que é junto com as presentes motivações de recurso.
23.ª O art. 4.º n.º 1 alínea a) do DL n.º 52/2003 de 25 de Março, de cuja violação a Recorrente vem acusada, não é aplicável ao caso concreto, uma vez que foi revogado por lei posterior em particular pelo Regulamento (CE), do Parlamento Europeu e do Conselho no. 793/2004, publicado em 21 de Abril, que veio dar nova redacção aos artigos 14/4 e 14/5 do Regulamento (CEE) n.º 95/93 e exigir repetição, intencionalidade e prejuízo para o tráfego aeroportuário como resultado da aterragem sem slot atribuído para que se verifique a contra-ordenação e punição do comportamento do operador aéreo.
24.ª Ainda que se entenda que é aplicável ao caso, o art. 4.º n.º 1 alínea a) do DL n.º 52/2003 de 25 de Março deve ser interpretado de forma conforme com o Direito da União Europeia, maxime com o disposto nos artigos 14.4. e 14.5. do Regulamento (CEE) n.º 95/93, na redacção dada pelo Regulamento (CE), do Parlamento Europeu e do Conselho no. 793/2004, de 21 de Abril publicado no JOCE de 30 de Abril de 2004, o que implica que apenas seja punido pela legislação Portuguesa um comportamento repetido, intencional e causador de perturbação para a operação aeroportuária, o que não sucedeu no caso vertente.
25.ª A título subsidiário, caso o Tribunal da Relação do Porto tenha dúvidas sobre o sentido interpretativo das normas constantes do artigos 14.4. e 14.5. do Regulamento (CEE) n.º 95/93, na redacção dada pelo Regulamento (CE), do Parlamento Europeu e do Conselho no. 793/2004, de 21 de Abril publicado no JOCE de 30 de Abril de 2004, requer-se que seja solicitado ao Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do mecanismo do reenvio prejudicial previsto no artigo 267º do TFUE, que se pronuncie sobre a compatibilidade da norma constante do art. 4.º n.º 1 alínea a) do DL n.º 52/2003 de 25 de Março com o disposto nos artigos 14.4. e 14.5. do Regulamento (CEE) n.º 95/93, na redacção dada pelo Regulamento (CE), do Parlamento Europeu e do Conselho no. 793/2004, de 21 de Abril publicado no JOCE de 30 de Abril de 2004.
26.ª Sendo o Tribunal da Relação do Porto, in casu, um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são susceptíveis de recurso no direito interno, existe obrigação de submissão da questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do disposto no artigo 263º do TFUE, o que se requer com as devidas consequências legais.
Nestes termos e com base na motivação apresentada, deverá ser:
(i) Dado provimento ao presente recurso, e, em consequência ser revogada a decisão recorrida do Tribunal da Maia e absolvida a Recorrente, com as demais consequências legais;
(ii) Subsidiariamente e caso não se opte pela revogação da decisão do Tribunal a quo, ser solicitado ao Tribunal de Justiça da União Europeia que, ao abrigo do mecanismo previsto no artigo 267º do TFUE, se pronuncie sobre a compatibilidade da norma constante do art. 4.º n.º 1 alínea a) do DL n.º 52/2003 de 25 de Março com o disposto nos artigos 14.4. e 14.5. do Regulamento (CEE) n.º 95/93, na redacção dada pelo Regulamento (CE), do Parlamento Europeu e do Conselho no. 793/2004, de 21 de Abril publicado no JOCE de 30 de Abril de 2004.”

Respondeu o MºPº, pugnando perla manutenção da decisão;
O ilustre PGA é de parecer que o recurso deve improceder.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP.

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência.
Consta do despacho recorrido (transcrição):
Por decisão administrativa da Autoridade Nacional do Instituto Nacional da Aviação Civil, IP (INAC) foi aplicada à “B…, S.A.” uma coima no valor de € 15.500,00 (quinze mil e quinhentos euros) pela prática – a título de dolo – de uma contra-ordenação decorrente da violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do DL 52/2003 de 25 de Março, punida nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 9º do DL n.º 10/2004 de 9 de Janeiro.
***
A arguida interpôs recurso de impugnação judicial, extraindo da sua motivação, no essencial, que:
a) não estão preenchidos os pressupostos para a aplicação de qualquer coima, uma vez que da declaração de conformidade emitida pela Divisão de Coordenação de Slots da ANA, omitida pela autoridade administrativa, resulta que a recorrente não praticou qualquer contra-ordenação;
b) a decisão administrativa errou no julgamento da matéria de facto;
c) o artigo 4.º n.º 1, alínea a), do DL n.º 52/2003 foi revogado pela nova redacção dada
pelo regulamento CE n.º 793/2004 de 21 de Abril aos artigos 14, 4 e 14, 5 do Regulamento CE n.º 95/93, que passaram a exigir – para a verificação da contra-ordenação – repetição, intencionalidade, e prejuízo para o tráfego aeroportuário como resultado da aterragem sem slot atribuído;
d) ainda que tal norma fosse aplicável, a decisão administrativa não tem qualquer menção de elementos subjectivos nos factos provados, muito menos factos aptos a preencher os requisitos de intencionalidade, repetição e prejuízo, pelo que se não verificam os elementos objectivos nem os subjectivos do tipo contraordenacional em questão, o que tornaria a decisão nula;
e) a decisão administrativa violou o disposto no artigo 14.4 e 14.5 do regulamento comunitário n.º 95/93 (com a redacção dada pelo regulamento CE n.º 793/2004); e
f) a conduta do INAC – consubstanciada num atraso de mais de cinco anos face ao prazo legal cominado pela lei para a conclusão do processo contra-ordenacional e que é de 90 dias – violou o disposto no artigo 22º n.º 3 do DL 10/2004 de 9 de Janeiro e o direito de defesa do arguido previsto no artigo 32.º da CRP, o que determina a nulidade da decisão administrativa
***
Notificados para o efeito, nem o Ministério Público nem a arguida (que não arrolou testemunhas) se opuseram a que a decisão judicial fosse tomada por simples despacho, pelo que cumpre avançar na análise do mérito do recurso.
1 -Da invocada nulidade da decisão administrativa por violação do artigo 22.º n.º 3 do DL 10/2004 de 9 de Janeiro e do direito de defesa previsto no art. 32.º da CRP.
Dispõe o artigo 22º n.º 2 do DL 10/2004 de 9 de Janeiro que o prazo definido para a instrução é de 90 dias, não se cominando em tal diploma legal, todavia, a violação desse prazo com nulidade. Ora, o n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82 estabelece como direito processual subsidiário “os preceitos reguladores do processo criminal”, sempre que o contrário não resulte do diploma. E, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 118º do Código de Processo Penal, “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, prosseguindo o seu n.º 2: “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”. Acresce que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 123º do Código de Processo Penal “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.
Ora, a violação do prazo de 90 dias para a instrução não é expressamente cominada, como acima se disse, com nulidade, nem resulta que essa violação seja subsumível em qualquer uma das normas previstas nas diversas alíneas dos artigos 119º e 120º do PP, pelo que só nos resta concluir que a violação de tal preceito se reconduz a uma mera irregularidade.
Sucede que a arguida foi, ao abrigo do disposto no artigo 46º e 50º do RGCOC, notificada por carta que recepcionou a 29.09.2008 (cfr. fls. 52) para, querendo, se pronunciar sobre os factos que lhe são agora imputados e sanções em que incorria, constando do teor da comunicação que então lhe foi dirigida pela autoridade administrativa, para além do mais, o seguinte: “por informação recebida do Serviço de Operações Aeroportuárias do Aeroporto …, no Porto, em 21 de Setembro de 2005, tomou este Instituto conhecimento…” (cfr. fls. 43 e ss.)
Do teor desta comunicação resulta que a arguida teve necessariamente conhecimento de que o prazo previsto no artigo 22º n.º 2 do DL 10/2004 de 9 de Janeiro já se mostrava largamente ultrapassado e, todavia, não invocou então tal irregularidade, tendo-se limitado a comentar que os factos tinham ocorrido há mais de três anos, o que tornava muito difícil a pronúncia sobre os mesmos. Para além do mais, certo é que, a ter ocorrido, tal irregularidade ter-se-ia verificado na fase administrativa do procedimento. Não se trataria, portanto, de uma nulidade da decisão administrativa condenatória, embora a afectasse (tornaria inválida a fase administrativa do procedimento e, por dependente dela e por ela afectada, a decisão condenatória -artigo 122.º, n.º 1, do CPP). Sucede que, como acima se expôs, essa irregularidade não foi invocada e, em bom rigor, a violação do prazo de 90 dias para a conclusão da instrução em nada prejudicou a arguida, desde logo porque a lei prevê um prazo muito mais demorado (de 5 anos) para a extinção do procedimento contra-ordenacional (susceptível ainda de ser suspenso e/ou interrompido nos termos do regime geral das contra-ordenações), pelo que não se vê em que medida a mera violação do prazo de conclusão da instrução possa conter com a violação dos direitos de defesa, até porque resulta dos autos que ao longo de todo o processo administrativo foi sempre dada a possibilidade à arguida não só de ser ouvida como também de intervir no processo administrativo, oferecendo provas e requerendo a realização de diligências que entendesse pertinentes, nos termos aliás do disposto no RGCOC.
A propósito agora da alegada conduta (do INAC) violadora do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa cumprirá, tão somente, esclarecer que, quanto muito, poderia a arguida invocar que a interpretação da norma prevista no artigo 22º n.º 2 do DL 10/2004 de 9 de Janeiro, no sentido de que a ultrapassagem do prazo aí fixado não implica a nulidade do procedimento administrativo e, consequentemente, a nulidade da decisão administrativa, é violadora de uma concreta norma de valor constitucional. Não pode é, tão somente, alegar que a decisão do INAC viola um qualquer artigo da Constituição, pelo que, usando da mesma economia de meios empregue pela arguida no recurso, decido não estarmos perante a interpretação inconstitucional de qualquer norma empregue na decisão administrativa.
2 -Da invocada nulidade da decisão administrativa (por falta da menção dos elementos subjectivos nos factos provados).
Sabe-se que de acordo com o artigo 58°, n°1, do Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas (aprovado pelo DL nº433/82, de 27-10), a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) identificação dos arguidos;
) identificação dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) a coima e as sanções acessórias.
Não há unanimidade na doutrina e na jurisprudência sobre a qualificação do vício decorrente da inobservância destes requisitos formais. Para uns tal inobservância configura uma mera irregularidade, nos termos do art. 118 nº2 do CPP, que ficará sanada se não for arguida. (cfr., entre outros, António Beça Pereira, in “Regime Geral das Contra-Ordenações”, e os Acórdãos das Relações de Évora de 15/06/2004, e do Porto de 19-02-97, disponíveis em www.dgsi.pt).
Para outros tal vício configura uma verdadeira nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº2 e 379º nº1, al.a) do Código do Processo Penal (cfr., neste sentido, António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, in “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações”, e Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, bem como os Acórdãos da Relação de Coimbra de 4 de Junho de 2003, in CJ, III, pg.40, da Relação de Lisboa de 10 de Fevereiro de 2004, in CJ, I, pg.130 e do STJ de 6/11/2008, este disponível em www.dgsi.pt).
Quanto a nós, perfilhamos uma posição mais próxima deste último entendimento. É certo que a decisão administrativa não equivale exactamente a uma sentença judicial, para mais quando resulta do artigo 62º do Regime Geral as Contra-Ordenações e Coimas que aquela valerá como acusação quando, interposto recurso de impugnação, os autos são presentes ao juiz. Todavia, na medida em que a decisão administrativa se destina a resolver definitivamente do mérito de determinado procedimento contra-ordenacional, no qual são assegurados ao arguido os direitos de audição e contraditoriedade, entendemos que o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contra-ordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, pelo que, pelo menos nos casos em que possam ser directamente afectadas garantias constitucionais, lhe poderá ser aplicável o regime de nulidades previsto no artigo 379.º do Código de Processo Penal.
Nunca se pode esquecer, porém, que, devido à diferença axiológica entre o direito penal e o direito contra-ordenacional, as exigências que incidem sobre as decisões administrativas não são de grau idêntico às das sentenças criminais, pelo que, a observância do preceituado no artigo 58º do Regime Geral as Contra-Ordenações e Coimas (onde são enumerados os requisitos da decisão administrativa) deve ser aferida de uma forma menos intensa, reservando-se a sanção da nulidade para os casos que contendam mais directamente com direitos constitucionalmente garantidos.
Nesta óptica, exigindo o artigo 58º, nº1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas que a decisão administrativa, para além da identificação do arguido, enuncie a prova obtida, fixe a sanção (maxime a coima) aplicável à infracção contra-rdenacional verificada e indique a fundamentação de facto e de direito acolhida (não apenas com a indicação dos factos e das normas segundo as quais se pune, mas também com a motivação que subjaz à coima ou às sanções concretamente aplicadas), entende-se que tal decisão não fica ferida de nulidade sempre que tais elementos se encontram expressos de uma forma menos completa ou com menor perfeição formal, apenas se verificando esse vício quando ocorrem omissões ou obscuridades que impedem o conhecimento da decisão concreta (condenatória ou absolutória) correspondente à infracção ou que impedem a apreensão das razões (de facto e de direito) da condenação. Acima de tudo, há que assegurar a possibilidade de o destinatário/arguido efectuar um juízo de oportunidade sobre a conveniência ou necessidade de impugnar judicialmente a decisão e posteriormente, em sede de impugnação judicial, a possibilidade de o tribunal (como verdadeira instância de recurso) conhecer e aferir sobre o processo lógico da formação da decisão administrativa e respectivos fundamentos.
Nesta conformidade, entende-se que da conjugação do preceituado nos artigos 58º, nº1, e 41º, nº1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, e artigos 374º, nº2 e nº3, al.b), e 379º, nº1, al.a) do Código do Processo Penal, resulta que a decisão administrativa será nula sempre que não contenha a decisão (condenatória ou absolutória) propriamente dita ou sempre que omita a fundamentação factual e jurídica necessária para permitir conhecer e controlar o processo de decisão (único modo de prevenir e remediar, como importa, decisões arbitrárias, caprichosas ou irracionais).
Feitas estas considerações, impõe-se agora atentar na decisão administrativa proferida no caso dos autos, sede em que, desde logo, somos confrontados com a forma como a mesma se encontra elaborada, maioritariamente enformada por fórmulas tabulares que, muitas vezes, mais não fazem do que enunciar conceitos gerais e expressar conclusões que não se encontram suportadas por qualquer juízo verdadeiramente crítico.
Todavia, é ainda perfeitamente possível detectar na decisão os factos que são imputados à sociedade arguida, o motivo que levou a autoridade administrativa a dá-los como provados (apesar de resultar evidente que a exposição dos factos fixados e a razão da sua fixação esteja pouco estruturada) e as normas jurídicas que estão na base da condenação que lhe foi dirigida.
Assim, da análise da decisão administrativa parece inegável resultar que a autoridade administrativa considerou provados os seguintes factos (que, com facilidade se encontram na decisão):
-A B…, S.A. no dia 29 de Agosto de 2005 efectuou aterragem no aeroporto … às 09h33m (…) com a aeronave com as marcas de nacionalidade e
matrícula …, sem atribuição prévia da respectiva faixa horária, voo … (cfr fls. 72)
-A arguida tinha conhecimento que a sua conduta constituía uma violação legal, ao
assim actuar sabia de antemão que o seu comportamento preencheria um tipo legal
de contra-ordenação, sendo que tal não impediu de empreender a sua conduta (fls.
75 e 76).
Também a motivação da matéria de facto provada foi redigida em termos que dificilmente podem ser considerados obscuros, pois para os considerar provados, a autoridade administrativa sustentou-se na “prova documental existente nos autos, designadamente a informação recebida do Serviço de Operações Aeroportuárias do Aeroporto …; o formulário de tráfego do referido voo; emails trocados entre este Instituto e a Ana Aeroportos, ambos datados de 7 de Julho de 2008; fax … de 03 de Abril de 2008, a solicitar a classificação da empresa à Autoridade Aeronáutica da Suíça; fax resposta da Autoridade Aeronáutica da Suíça, de 23 de Junho de 2008 e defesa apresentada pela arguida…”
Assim sendo, e em face do exposto, entende-se não sofrer a decisão sob análise qualquer vício (de fundamentação ou de falta de fixação dos factos provados integradores dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito contra-ordenacional em causa nos autos) que a torne nula nos termos acima entendidos, ou seja, que a torne insusceptível de ser sindicada no seu processo de decisão.
3 -Da inaplicabilidade do artigo 4. n.º 1 alínea a) do DL 52/2003 de 25.03 (com a redacção dada pelo DL 208/2004 de 19.09) por violação do disposto nos artigos 14-4 e 14-5 do regulamento (CEE) n.º 95/95 (com a redacção dada pelo artigo 9.º do regulamento CE n.º 793/2004)
É do seguinte teor a norma do artigo 14º-4 do regulamento comunitário em questão: “As transportadoras aéreas que repetida e intencionalmente explorem serviços aéreos em horários significativamente diferentes das faixas atribuídas como parte de uma série de faixas horárias ou utilizem faixas horárias de um modo significativamente diferente do indicado no momento da atribuição, daí resultando prejuízos para as operações aeroportuárias ou de tráfego aéreo, perdem o estatuto referido no n.º 2 do artigo 8.º. Após ter ouvido a transportadora aérea em causa e lhe ter enviado um único aviso, o coordenador pode decidir retirar, até ao termo do período de programação, as séries de faixas horárias em questão desta transportadora e colocá-las na reserva.” E prescreve o artigo 14.º-5 que “Os Estados-Membros devem garantir a existência de sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas ou de medidas equivalentes para os casos de exploração repetida e intencional de serviços aéreos em horários significativamente diferentes das faixas horárias atribuídas ou de utilização de faixas aéreas de um modo significativamente diferente do indicado no momento da atribuição em que tais causas prejudiquem as operações aeroportuárias ou de tráfego aéreo.”
Dispõe por sua vez o artigo 4º do n.º 1 e 2 do DL 52/2003:
“1 – Para efeitos de aplicação do regime das contra-ordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro, constituem contra-ordenações muito graves:
a) A aterragem ou descolagem de uma aeronave nos aeroportos inteiramente coordenados sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea;
b) O não cancelamento da faixa horária atribuída, pelo operador que não pretenda utilizá-la, com a antecedência mínima de doze horas relativamente à operação prevista;
c) A aterragem ou descolagem de uma aeronave nos aeroportos inteiramente coordenados em violação da faixa horária atribuída, sem que tal se deva a motivo de força maior.
2 — Para efeitos do previsto na alínea c) do número anterior, consideram-se casos de força maior, nomeadamente:
a) Aeronaves que se encontrem em situações urgentes, tendo em conta razões meteorológicas, de falha técnica ou de segurança de voo;
b) Movimentos aéreos relativamente aos quais tenha existido uma alteração horária imprevista provocada por uma anormal perturbação no controlo de tráfego aéreo;
c) Movimentos aéreos relativamente aos quais tenha existido uma alteração horária imprevista provocada por atrasos não imputáveis à entidade gestora aeroportuária ou ao operador;
d) Movimentos aéreos relativamente aos quais tenha existido uma alteração horária imprevista provocada por razões meteorológicas.”
Do confronto das duas normas resulta que, efectivamente, o regulamento comunitário deixou aos Estados-Membros, num estilo normativo mais próximo da directiva comunitária, a possibilidade de estabelecerem sanções (quer de cariz meramente administrativo, quer pecuniário) à violação de um comportamento tal qual é definido nos acima transcritos art. 14º-4 e 14º-5.
Sucede que o comportamento sancionado pela autoridade administrativa nestes autos não é subsumível a nenhum dos descritos nesses normativos, que se reportam a violações de faixas horárias quando estas estão atribuídas. É que o comportamento da arguida que é visado nestes autos reporta-se a uma aterragem sem atribuição de faixa horária (mas, naturalmente, autorizado pela torre de controlo). E, quanto à sanção deste comportamento, o regulamento limita-se a permitir que as autoridades competentes em matéria de gestão de tráfego aéreo possam rejeitar a aterragem ou descolagem de uma aeronave de um aeroporto coordenado (de que é exemplo o aeroporto …, anteriormente designado como inteiramente coordenado) – cfr art. 14º -1 do regulamento. Mas daí de modo algum se retira ser contrário ao regulamento a fixação de uma sanção pecuniária pela verificação de tal comportamento.
A preocupação subjacente a toda a regulamentação comunitária é a da optimização da gestão aeroportuária e a da facilitação do acesso das transportadoras aéreas mais novas a operar no mercado às infra-estruturas aeroportuárias necessárias para a exploração de um serviço aéreo (cfr. considerandos do regulamento CEE 95/93), visando obter um maior rigor no uso das faixas horárias, que estavam normalmente atribuídas (e sem que delas fizessem um uso produtivo) às grandes transportadoras aéreas (ao abrigo dos chamados “Grandmother rights”).
Ora, o comportamento sancionado pelo artigo 4.º n.º 1, alínea a) do DL 52/2003 em nada contende com as normas constantes do regulamento comunitário, nem com os objectivos que esse regulamento visa atingir, pelo que se entende estar em plena vigência, não carecendo de ser corrigido nos termos propostos pela arguida.
Dito isto, e resolvidas as questões prévias que poderiam colocar em crise a apreciação do mérito do recurso, cumpre agora apreciar:
4- Da responsabilidade contraordenacional da sociedade arguida
A) O tribunal dá como provados os seguintes factos:
1. A B…, S.A. no dia 29 de Agosto de 2005 efectuou aterragem no aeroporto … às 09h33m (…) com a aeronave com as marcas de nacionalidade e matrícula …, sem atribuição prévia da respectiva faixa horária, voo …(cfr fls. 72)
2. A arguida tinha conhecimento que a sua conduta constituía uma violação legal, ao assim actuar sabia de antemão que o seu comportamento preencheria um tipo legal de contra-ordenação, sendo que tal não impediu de empreender a sua conduta (fls.75 e 76).
3. A sociedade arguida é considerada uma média empresa nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 9.º do DL 10/2004
B) Motivação dos factos provados.
Das alegações da arguida resulta a admissibilidade da conduta indicada em 1. dos factos provados, salvo quanto ao facto do voo não estar coordenado, o que refuta. E usa como argumento a declaração emitida pela Autoridade de Coordenação de Slots à arguida junta a fls. 124, redigida nos seguintes termos: “após verificação da nossa base de dados venho informar que, em 2005, apenas foram coordenados dois voos para o Operador B…, não existindo registo de violação às regras estabelecidas”. Com base nesta declaração, entende a arguida que ficou demonstrada a inexistência da violação de faixa horária na aterragem no aeroporto do Porto. Entendemos, todavia, que não é assim. Não é à autoridade nacional de coordenação de slots que cabe ter conhecimento se uma determinada aeronave aterrou num qualquer aeroporto nacional sem ter faixa horária atribuída. Esse conhecimento cabe desde logo – e como aliás resulta do disposto no n.º 3 do artigo 4.º do DL 52/2003 – às entidades gestoras aeroportuárias que podem, ou não, dar desse facto conta à autoridade coordenadora de slots que, como é evidente, por não ter sido chamada a atribuir uma faixa horária, também não será chamada a verificar da sua violação, que dela pode apenas ter o registo, conforme se refere na comunicação, que será dado por terceiros.
É sobretudo da análise do documento junta a fls. 14 a 21 (informação do Serviço de Operações Aeroportuárias do Aeroporto … sobre movimentos das transportadoras aéreas sem slot atribuído e slots já atribuídos e não cancelados, pelo menos com 12 horas de antecedência, pelas transportadoras que não os tencionavam usar), que a arguida nunca refutou, que se demonstra que a aterragem no aeroporto … (que a arguida aceita ter realizado com a sua aeronave) foi efectuada sem atribuição prévia de faixa horária pela entidade nacional coordenadora de slots (ainda que à data dos factos, coordenando somente de facto).
Quanto à prova de que a arguida é considerada uma média empresa, atendeu-se ao teor de fls. 33, que a arguida nunca contestou nem impugnou em recurso.
Quanto à prova do elemento subjectivo, que a arguida apenas ataca por entender não estar suficientemente caracterizado (o que, como já acima se viu, não se aceita) ponderou-se o percurso contra-ordenacional da arguida, ou seja, a acção objectivamente apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência comum, da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento, mostrando-se aqui perfeitamente adequado e legítimo o recurso aos aludidos critérios de razoabilidade e bom senso e regras da experiência comum, uma vez que sendo o dolo um elemento da vida interior de cada um, é insusceptível de directa apreensão, só sendo possível de captar através do preenchimento dos elementos objectivos da infracção aliadas a presunções de normalidade e regras da experiência
C) Fundamentação de direito
Nos termos do artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.”
Assim, e para que possa ser configurada a prática de um ilícito contra-ordenacional, qualquer que ele seja, é necessária a verificação de determinados pressupostos, a saber:
-ocorrência de um facto (por acção ou omissão), no sentido em que só uma conduta humana traduzida em actos externos pode ser qualificada como contra-ordenação e justificar a aplicação de uma coima.
-a existência de um tipo-de-ilícito, no sentido em que, exprimindo-se a ilicitude precisamente através de tipos de ilícitos, só a conduta subsumível à descrição legal – o comportamento proibido – poderá ser contraordenacionalmente relevante.
-a existência de culpa, no sentido de relação subjectiva entre o facto típico e o seu autor, que permite responsabilizar este pelo cometimento daquele (o mesmo que vontade racional e livre de dar causa ao facto).
Revertendo para o caso concreto: é do seguinte teor a norma constante da alínea a) do número 1 do artigo 4.º do Decreto – Lei 52/2003 de 25 de Março (que, na sequência do congestionamento dos aeroportos, e em execução do regulamento CE n.º 95/93, procedeu à designação dos aeroportos como inteiramente coordenados, exigindo que, nestes, uma aeronave só aterre ou descole com prévia atribuição de faixa horária à transportadora aérea.
São estes os aeroportos de Lisboa, Porto, Madeira e Faro, neste último caso apenas no período IATA (Internacional Air Transport Association) de Verão): “Para efeitos de aplicação do regime das contra-ordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro, constituem contra-ordenações muito graves: a) A aterragem ou descolagem de uma aeronave nos aeroportos inteiramente coordenados sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea” (redacção em vigor à data dos factos. Actualmente, com a mesma redacção, vigora o art. 9º n.º 1 alínea c) do DL 109/2008 de 26.06, reportando-se somente aos aeroportos coordenados, actual designação dos anteriormente apelidados de aeroportos inteiramente coordenados)
Ora, dos factos dados como provados resulta inegável que o comportamento da B… preenche o tipo de ilícito objectivo.
Cumpre, então, determinar a relação subjectiva entre o facto típico e o seu agente.
Conforme dispõe o artigo 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, só “é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, ou seja, vigora também no domínio das contra-ordenações o princípio nulla poena sine culpa”, sendo que nos termos do n.º 1 do artigo 4.º do DL 10/2004 de 9 de Janeiro, “a negligência nas contra-ordenações aeronáuticas civis é sempre punível”
O conceito e a estrutura do dolo são os previstos no artigo 14º do Código Penal, que estipula que “1 -Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 -Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 -Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.
No tocante ao elemento subjectivo, a autoridade administrativa imputou a prática da mencionada contra-ordenação a título de dolo necessário.
Não podemos deixar de concluir, adianta-se desde já, como concluiu a autoridade administrativa, de que a arguida actuou com dolo. Só que somos do entendimento de que actuou na modalidade do dolo directo.
De facto, ressalta da factualidade assente que a arguida era conhecedora da necessidade da obtenção de uma faixa horária para a operação de aterragem que pretendia realizar. Tinha, por isso, perfeito conhecimento da factualidade típica. E ao aterrar no Aeroporto … com o conhecimento da ausência de prévia atribuição de faixa horária, a arguida actuou presidida por uma vontade dirigida à realização da factualidade típica que conhecia: quis aterrar – e aterrou (com autorização, claro está, da torre de controlo) – sabendo que não tinha faixa horária atribuída. Realizou o tipo objectivo de ilícito como verdadeiro fim a sua conduta. Actuou, portanto, com dolo, na modalidade de dolo directo.
Cometeu assim a arguida, a título de dolo, a contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 4º do DL 52/2003, com as alterações introduzidas pelo artigo 15.º do DL 208/2004, e punida pela alínea d) do n.º 4 do artigo 9º do DL 10/2004 de 19 de Agosto, com coima mínima de €15.500,00 e máxima de €45.000,00.
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D) Da medida da coima
Cumpre agora fixar a medida da coima.
Estabelece o artigo 6.º do DL 10/2004 de 09.01, que tem por epígrafe “determinação da sanção aplicável”, o seguinte:
1 — A determinação da coima concreta e das sanções acessórias faz-se em função da ilicitude concreta do facto, da culpa do agente, dos benefícios obtidos e das exigências de prevenção, tendo ainda em conta a natureza singular ou colectiva do agente.
2 — Na determinação da ilicitude concreta do facto e da culpa das pessoas colectivas e entidades equiparadas atende-se, entre outras, às seguintes circunstâncias:
a) O perigo ou o dano causados;
b) O carácter ocasional ou reiterado da infracção;
c) A existência de actos de ocultação tendentes a dificultar a descoberta da infracção;
d) A existência de actos do agente destinados a, por sua iniciativa, reparar os danos ou obviar aos perigos causados pela infracção.
3 — Na determinação da ilicitude concreta do facto e da culpa das pessoas singulares, atende-se, além das referidas no número anterior, às seguintes circunstâncias:
a) Nível de responsabilidade, âmbito das funções e esfera de acção na pessoa colectiva em causa;
b) Intenção de obter, para si ou para outrem, um benefício ilegítimo ou de causar danos;
c) Especial dever de não cometer a infracção.
4 — Na determinação da sanção aplicável são ainda tomadas em conta a situação económica e a conduta anterior do agente.
Ora, não obstante o grau, que se pode considerar elevado, da ilicitude do facto, a verdade é que não consta dos autos qualquer registo de dano ocorrido com a prática da contra-ordenação em causa, nem registo de anteriores contra-ordenações praticadas pela arguida. E não resultando também dos autos sofrer a arguida de especiais necessidades de prevenção, não pode o tribunal, face aos elementos probatórios constantes do processo administrativo, deixar de aplicar a coima pelo valor mínimo legal: €15.000,00 (oito mil euros), até por força da proibição legal prevista no artigo 72.º - A do RGCOC.
(…)
+
São as seguintes as questões suscitadas:
- Reenvio ao TJUE questão prejudicial.
- Violação do artº 646º CPC ( matéria de direito no nº2 dos factos provados )
- Insuficiência de matéria de facto provada
- violação do direito de defesa, e ausência de infracção
+
No recurso, apesar de delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª ed., pág. 335), há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Júris. dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in Dr. I-A de 28/12, Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 in DR., I-A Série de 28/12/95), mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, e que constituem a chamada “ revista alargada “ em que estão em causa os vícios da decisão;
Destes o arguido nomeia apenas um – insuficiência da matéria de facto para a decisão - que será objecto de ponderação pormenorizada não sendo invocados nem se vislumbrando os demais;
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Embora a titulo subsidiário para a não procedência da questão de fundo solicita o recorrente que o TJCE se pronuncie através do mecanismo do reenvio prejudicial sobre “a compatibilidade da norma constante do artº 4º nº1 alinea a) do DL 52/2003 de 25 de Março com o Direito da União Europeia, maxime com o disposto nos artºs 14.4 e 14.5 do regulamento (CEE) nº 95/93 na redacção dada pelo Regulamento (CE) do Parlamento Europeu e do Conselho nº 793/2004 de 21 de Abril publicado no JOCE de 30 de Abril de 2004”.
Apreciando:
Nos termos do artº Artigo 267º TFUE. (ex-artigo 234. o TCE):
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
(…)
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”

Daqui resultaria que o tribunal nacional, dado que da decisão desta Relação não há recurso para o tribunal superior na hierarquia dos tribunais judiciais, seria obrigado a submeter ao TJUE questão prejudicial.
Para que tal ocorra necessário é que a questão prejudicial a decidir seja relativa á interpretação dos Tratados, e ou seja sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
Como se vê, da questão, não estão em causa os Tratados da União, pelo que importa averiguar se está em causa algum “acto adoptado pelas instituições, órgãos ou organismos da União”
Na categoria dos “actos adoptados pelas instituições … da União” está incluído todo o “conjunto do Direito Comunitário derivado, isto é, do conjunto de actos tanto autónomos como convencionais, concluídos pelas instituições comunitários. Abarcam-se, pois aqui, os regulamentos e as decisões individuais (…) e também as directivas e as decisões de carácter normativo geral …” – M. Melo Rocha, O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Coimbra ed. 1982, pág.48.
Ora está em causa de acordo com o entendimento da recorrente, o Regulamento (CEE) nº 95/93 na redacção dada pelo Regulamento (CE) do Parlamento Europeu e do Conselho nº 793/2004 de 21 de Abril, o que constitui um acto legislativo, pelo que é passível de recurso prejudicial.
Mas é necessário que esteja em causa uma questão sobre a validade e a interpretação do Regulamento em causa.
Ora não é suscitada qualquer questão de validade de tal regulamento, nem uma questão de interpretação. A questão que o recorrente suscita é se a regulamentação (nacional) ao abrigo da qual foi condenada foi “revogada” pela legislação comunitária em apreço.

O reenvio prejudicial é um instrumento jurídico criado pelos Tratados em face da especificidade da EU (União de Estados dotada de personalidade jurídica) e com vista á aplicação uniforme do direito comunitário, pelos tribunais nacionais, pois são questões colocadas pelos juízes nacionais, uma vez que aquela depende de uma interpretação uniforme das mesmas regras, e constitui ao mesmo tempo fundamento e consequência da aplicabilidade directa (efeito directo) e da primazia das normas comunitárias.
Ora tal (o reenvio prejudicial) ocorre ou deve ocorrer “quando um tribunal nacional tem fundadas dúvidas sobre a interpretação a dar a uma norma comunitária ou sobre a validade de um acto jurídico das instituições …”, ou de outro modo , o TJUE pronuncia-se “a pedido da jurisdição nacional de um estado membro que deve aplicar uma regra de direito comunitário ou que deve constatar as consequências jurídicas de um acto levado a cabo por uma instituição.. .” M.M. Rocha ob. cit. págs. 45 e 46., e o papel do TJUE através do reenvio prejudicial “é o de definir o sentido das disposições cuja interpretação lhe é pedida ou de se pronunciar sobre a sua validade isto é sobre a sua legalidade“ -Jean Victor Louis, A Ordem Jurídica Comunitária, ed. Comissão das C.E.” 1981, pág. 24
Para que ocorra e seja necessária a intervenção do TJUE através do mecanismo do reenvio, essencial é que se trate de aplicar o direito comunitário ao caso em apreço (pois visa-se uma interpretação e aplicação uniforme deste e não do direito nacional), pois se estiver em causa a interpretação e aplicação do direito nacional não á lugar á intervenção do TJUE.
“O Tribunal de Justiça dá uma interpretação abstracta da regra comunitária … (…) pronuncia-se apenas sobre a interpretação ou a validade do direito comunitário (e não direito nacional): quer isto significar que o TJ não se pronuncia nem sobre a interpretação das disposições de direito interno, nem sobre a compatibilidade de uma medida de carácter nacional com o direito comunitário, nem mesmo sobre as características ou a qualificação jurídica de um regulamento nacional determinado em relação ás categorias do direito comunitário” - M.M. Rocha, ob. cit. pág. 52.
Como está em causa um Regulamento Comunitário, na perspectiva do recorrente, que por norma é de alcance geral, obrigatório em todos os seus elementos e é directamente aplicável por todos os Estados membros (artº 288º TFUE) importa averiguar da sua aplicabilidade ao caso concreto. A latere convém salientar que a recorrente tem a sua sede na Suíça, sendo esta a nacionalidade da pessoa colectiva e a Suíça não é Estado membro da UE e consequentemente não está subordinada á regulamentação comunitária (que não se lhe aplica).
A recorrente põe em causa o artº 14º4 e 5 do Regulamento (CEE) nº 95/93 na redacção dada pelo artº 9º do Regulamento (CE) do Parlamento Europeu e do Conselho nº 793/2004 de 21 de Abril que tem o seguinte teor:
“4. As transportadoras aéreas que repetida e intencionalmente explorem serviços aéreos em horários significativamente diferentes das faixas atribuídas como parte de uma série de faixas horárias ou utilizem faixas horárias de um modo significativamente diferente do indicado no momento da atribuição, daí resultando prejuízos para as operações aeroportuárias ou de tráfego aéreo, perdem o estatuto referido no n.o 2 do artigo 8.o Após ter ouvido a transportadora aérea em causa e lhe ter enviado um único aviso, o coordenador pode decidir retirar, até ao termo do período de programação, as séries de faixas horárias em questão desta transportadora e colocá-las na reserva.
5. Os Estados-Membros devem garantir a existência de sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas ou de medidas equivalentes para os casos de exploração repetida e intencional de serviços aéreos em horários significativamente diferentes das faixas horárias atribuídas ou de utilização de faixas aéreas de um modo significativamente diferente do indicado no momento da atribuição em que tais causas prejudiquem as operações aeroportuárias ou de tráfego aéreo.”
Daqui resulta que o regulamento estatui para os casos de exploração de serviços aéreos que de modo repetido e intencional usam horários diferentes das faixas atribuídas ou os usam de modo diferente do indicado e com isso prejudiquem as operações aeroportuárias ou o tráfego aéreo.
No caso concreto em apreciação trata-se de uma exploração de serviço aéreo (aterragem de uma aeronave no aeroporto) cuja aterragem não estava prevista /agendada anteriormente (sem atribuição prévia da respectiva faixa horária.)
Do confronto entre as duas situações e a previsão que consta da norma regulamentar em apreciação e a descrição fáctica real dos autos, facilmente se verifica que são situações divergentes, não cabendo a situação real na previsão do regulamento.
Por outro lado a situação real dos autos cabe dentro da previsão do artº 4º do Decreto-Lei n.º 52/2003, de 25 de Março, na redacção do 15.º DL 208/2004 de 19/8 (já vigente á data dos factos) que dispõe:
1 - Para efeitos de aplicação do regime das contra-ordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro, constituem contra-ordenações muito graves:
a) A aterragem ou descolagem de uma aeronave nos aeroportos inteiramente coordenados sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea;”, e
Do confronto entre as duas normas – nacional e comunitária – se verifica que o seu âmbito de aplicação não é coincidente, pois que o regulamento refere-se a uma situação – aterragem com violação repetida da faixa horária que cause prejuízo, e o DL refere-se a uma situação de aterragem sem que haja faixa horária estabelecida.
Daqui decorre igualmente que o direito nacional em apreciação, em face do caso que prevê não é contrário ao direito comunitário em análise, por as respectivas previsões não serem coincidentes
Por outro lado visto o teor da norma comunitária em apreço verifica-se que se não se trata de uma norma de regulação directa e concreta, mas uma norma que necessita de regulação nacional para a situação que prevê, configurando uma situação atributiva competência/ delegação (habilitação expressa) aos Estados, de normas sancionatórias violadoras de comportamentos relativos a tráfego aéreo, no que respeita à atribuição de faixas horárias nos aeroportos da Comunidade, e incentiva/ determina aos estados membros que legislem no sentido de sancionar aquele tipo de comportamentos.
O direito comunitário em análise não prevê qualquer sancionamento e remete tal regulação para a legislação nacional de cada estado membro, para a situação concreta, e não interfere sequer com a regulamentação que o estado membro venha a fazer de outras situações.
“A regulamentação do direito comunitário, tanto pode ser feita pela instituição que adoptou o acto a regulamentar como pela Comissão…, ou pelos próprios Estados–membros, aos quais frequentemente e de modo expresso é exigido que tomem na sua ordem interna as medidas legislativas, regulamentares e administrativas necessárias á aplicação de um acto comunitário” – J.C. Moutinho de Almeida, Direito Comunitário, …, ed. MJ 1985, pág. 152
Ora do teor do regulamento em causa é manifesto que este para a sua aplicação exige o concurso dos estados membros para produzirem os textos legislativos adequados, e estamos não apenas perante uma competência limitada (previsão do regulamento) mas automática, porque só pode ser adoptada pelos Estados Membros (a União não tem ainda um direito sancionatório penal ou contraordenacional), sendo certo também que necessitando ou não de complementos nacionais (como é o caso) os regulamentos “só privam radicalmente os Estados da sua competência na medida em que existem regras comuns” – Jean Victor Louis, ob. cit. pág. 119.
E por força da necessidade da sua regulamentação nacional o regulamento comunitário não produz efeito directo vertical e horizontal.
Ora nestas circunstancias, não há necessidade, nem existe obrigatoriedade de o juiz nacional proceder ao reenvio prejudicial, para além de não estarmos perante a aplicação de direito comunitário, mas apenas direito nacional, não existe a regulamentação/legislação sancionatória exigida pelo regulamento comunitário, e por isso não seria aplicável, e assim a questão não é relevante para a solução do litigio, e não existe qualquer dúvida sobre a interpretação da norma regulamentar em questão – cfr. Klaus-Dieter Borchardt, o ABC do Direito Comunitário, Comissão Europeia, 2000 pág. 90, para além de não ser da competência do TJUE verificar da compatibilidade entre o direito nacional e o comunitário (como supra expusemos)
Nesta conformidade, não há que proceder ao reenvio prejudicial ao TJUE.
+
No que às questões recursivas respeita, temos que:

- Violação do artº 646º CPC.

Alega a recorrente quer o nº2 dos factos provados contém matéria de direito e consequentemente não devia constar dos factos provados.
Ora é do seguinte teor o nº2 dos factos provados:
“2. A arguida tinha conhecimento que a sua conduta constituía uma violação legal, ao assim actuar sabia de antemão que o seu comportamento preencheria um tipo legal de contra-ordenação, sendo que tal não impediu de empreender a sua conduta”
Tal matéria não é mais do que a descrição/ demonstração de que a arguida tinha consciência de que a sua conduta – descrita no nº1 dos factos provados (aterrar no aeroporto coordenado sem ter faixa atribuída) era proibida (consciência da ilicitude do seu acto), e mesmo assim quis fazê-lo – aterrar naquelas condições (consciência e vontade de realização do acto ilícito), traduzindo-se assim na descrição dos elementos subjectivos do tipo de ilícito e da culpa da arguida – Ac. STJ 16/1/90 AJ. Nº5 proc. 40296 in Simas Santos et alli, Jurisprudência Penal, 1995 Rei dos Livros, pag. 42.
Como é bom de ver tais dados constituem matéria de facto de natureza subjectiva (do foro interno do agente), mas nem por isso menos matéria de facto, e como tal têm de constar da descrição dos factos – Ac. STJ 30/10/91 proc. 41061, 3/5/91 BMJ 407, 130, e Ac. STJ de 21/4/84 proc 46310, in Jurisp. Penal, cit. pág. 45 do seguinte teor: “Pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção …, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial …” e
“É matéria de facto saber se o arguido agiu com erro e sem consciência da ilicitude do facto…” – Ac. R.P de 21/9/88 CJ ano XIII, 4, 212.
Improcede por isso esta questão.
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- Insuficiência de matéria de facto provada
Alega ainda que a decisão recorrida não tomou em consideração os factos por si invocados relativos á conduta do recorrente, á impossibilidade de apresentação de documentos de suporte para contraditar a acusação e aos factos alegados relativos ao tempo decorrido entre a data da infracção e a sua notificação á recorrente.
Mas cremos que sem razão.
O vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, ocorre apenas quando “os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade quer na sua subjectividade, a decisão proferida quanto ao ilícito dado como provado.”- cf. Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502 ), ou seja, tal vicio existe apenas quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta ou quando há factos constantes dos autos que ainda é possível apurar e que o Tribunal se encontra vinculado a averiguar (porque alegados pela acusação, pela defesa ou porque deve proceder à sua investigação para a descoberta da verdade, por integrarem o núcleo essencial do “thema decidendum”) sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir, existindo uma lacuna, deficiência ou omissão onde não devia, ou seja “… não bastarem os factos provados para justificarem a decisão proferida, pois, havendo factos nos autos que o tribunal não investigou, embora o pudesse ter feito e ainda ser possível apurá-los, tornam-se necessários para a decisão a proferir” Ac. S.T.J. de 17/2/00, BMJ 494/227 e Ac. R. C. de 27/10/99 CJ, IV,68.
É que se é certo que tais factos não constam dos factos provados na decisão recorrida, o certo também é que a decisão foi proferida “ através de simples despacho” por ser dispensável a audiência
Depois porque essas questões foram apreciadas na decisão recorrida:
- Na verdade apreciou o facto alegado de a instrução haver decorrido prazo superior a 90 dias para a instrução do processo de contra-ordenação, e decidiu pela sua irrelevância,
tal como apreciou os factos alegados relativos á conduta da recorrente alegados na sua resposta á acusação/ notificação da infracção e constantes do documento (da A.N.A. Aeroportos de Portugal) que apresentou, donde resulta que a infractora sabia do que estava em causa e se pode defender, contendo aquele documento uma situação substancialmente diferente da dos autos (naquela estavam em causa dois voos coordenados – logo com atribuição de faixa horária) e a situação dos autos é de voo/ aterragem sem atribuição de faixa horária, e por isso manifestamente sem relevo para o caso dos autos, pois constar dos factos que a arguida fez dois voos coordenados é inócuo, para os autos e para a decisão,
do mesmo passo não ocorreu impossibilidade de responder á acusação, pelo facto de terem decorrido 3 anos, e não ser obrigada a guardar os documentos relativos ao voo durante tanto tempo, como respondeu conforme fls. 61, onde invoca que o piloto não sabia, o plano de voo foi aceite, e se o piloto tivesse sido avisado teria cumprido, e que a violação não foi intencional, e solicita documentos que lhe foram enviados, e a que não respondeu.
A alegação de desconhecimento do piloto não mereceu crédito á autoridade administrativa, como aliás é evidente (pois se alguém sabe de operações aeroportuárias são os pilotos e as operadoras de aeronave como a arguida) e passar a responsabilidade para o operador portuária (que deveria avisar o piloto da necessidade de atribuição de faixa horária para aterrar) é no mínimo deselegante, e dizer que não foi intencional, isto é, foi sem querer seria o mesmo que alegar que a operadora põe os aviões no ar e depois logo se vê onde aterram (se aterrarem …).
De todo, o exposto resulta que não se mostra que faltem elementos que podendo e devendo ser averiguados sejam necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição (cfr. Simas Santos et alli, CPP anotado, II vol, 2ª ed. pág. 737) ou haja omissão de pronuncia sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, pois que os factos apurados e provados permitem concluir pela verificação da prática do crime.
Improcede por isso a alegação de tal vício, enquanto tal.
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- violação do direito de defesa.
Para fundamentar tal alegação invoca a arguida que o tribunal não considerou os prazos de 3 meses para conservação dos documentos de voo dos operadores aéreos, e tendo sido instaurado o processo depois desse prazo e o atraso da instrução do mesmo impediu a recorrente de se defender eficazmente, e a sentença ignorou a sua alegação de falta de elementos obre o voo que lhe permitissem infirmar ou justificar a sua conduta.
Desde logo há que ponderar que a recorrente, respondendo, começa “First of all…” por agradecer a sua oportunidade de defesa e alegando a dificuldade em comentar a situação, está em, posição de se defender, o que faz alegando 4 ordens de situações: o desconhecimento do piloto da regulamentação, o facto de o plano de voo ter sido aceite e ter sido autorizado a aterrar, se o piloto tivesse sido avisado teria cumprido e a violação não foi intencional.
Nunca alegou a existência de documentos de voo, ou a falta ou impossibilidade de apresentar documentos, e antes foi-lhe enviado o documento de suporte da acusação, a que não respondeu.
Não esteve por isso a arguida impedida de se defender, sendo que alegou e invocou o que quis, e nunca alegou impossibilidade de demonstração do que alega.
Aliás se apenas é obrigada a guardar os documentos de voo durante 3 meses, isso não quer dizer que apenas os pode guardar durante esse período, sendo certo que a obrigatoriedade de os guardar durante esse período não tem a ver com o direito de defesa da arguida, mas uma imposição das autoridades para que não se desfaça deles antes, com vista a serem utilizados em acções de fiscalização.
Improcede por isso esta questão.

Interligada com estas questões surge a consideração pela arguida de que não praticou a contra-ordenação porque foi condenada.
Mas sem razão porém.
Primeiro porque parte do pressuposto de que não se provou o elemento subjectivo da infracção e depois porque a conduta adoptada não constitui contra-ordenação, quando ambos se verificam.
Assim no nº 1 dos factos provados consta a descrição fáctica (elemento objectivo doo tipo) da sua conduta que consistiu no facto de:
“1. A B…, S.A. no dia 29 de Agosto de 2005 efectuou aterragem no aeroporto … às 09h33m (…) com a aeronave com as marcas de nacionalidade e matrícula …, sem atribuição prévia da respectiva faixa horária, voo …”
E no nº 2 a razão da actuação e conhecimento e vontade de realização do tipo (elemento subjectivo):
“2. A arguida tinha conhecimento que a sua conduta constituía uma violação legal, ao assim actuar sabia de antemão que o seu comportamento preencheria um tipo legal de contra-ordenação, sendo que tal não impediu de empreender a sua conduta”
Ora se tivermos em conta que a norma incriminadora – o artº 15.º do DL 208/2004 de 19/8 que altera o artº 4º do Decreto-Lei n.º 52/2003, de 25 de Março - dispõe:
1 - Para efeitos de aplicação do regime das contra-ordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro, constituem contra-ordenações muito graves:
a) A aterragem ou descolagem de uma aeronave nos aeroportos inteiramente coordenados sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea;”, e
tal previsão foi transposta com o mesmo teor pelo artº 9º1 DL 109/2008 de 26/6:
“c) A aterragem ou descolagem duma aeronave nos aeroportos coordenados sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea”; (ao mesmo tempo que revogou o DL 52/03 e o artº 15º DL 208/04 citado – artº 12º DL 109/08,
facilmente se contacta que os factos supra descritos se integram nesta previsão normativa, e a preenchem, mostrando-se correctamente apreciados no despacho recorrido, para que se remete, os factos necessários e suficientes para a decisão, pois é do conhecimento geral e pratica jurisprudencial uniforme, por se mostrar de acordo com as regras da experiência que “… o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao principio da normalidade ou da regra geral da experiência” – Ac. R. P. 23/2/83 BMJ 324, 620, e
como contra-ordenação muito grave é punida com a coima prevista no artº 9º 4 c) DL 10/2004 - sendo a coima mínima 15.500,00 € (a aplicada á arguida como média empresa).
No que respeita á eventual revogação (alegada) destes normativos pelo Regulamento (CE) 793/2004 já vimos atrás que tal não ocorre, face á diversidade e não sobreposição de previsões, e o regulamento não estabelecer nenhum regime proibitivo ou sancionatório remetendo para os Estados membros essa regulação, criando um dever para os Estados sobre essa matéria e não direitos para os particulares.
Improcede por isso esta questão in totum, e com ela o recurso dada a ausência de outras questões a apreciar.
+
Pelo exposto o Tribunal da Relação do Porto, decide:
- Rejeitar o reenvio prejudicial para o TJUE; e
- Negar provimento ao recurso interposto pela arguida e em consequência confirma o despacho recorrido;
- Condena a recorrente no pagamento da taxa de justiça de 06 Uc e nas demais custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 26-10-2011
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes