Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
471/10.7GDGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: AUTO DE VIGILÂNCIA
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVAS
CAPTAÇÃO DE IMAGEM
Nº do Documento: RP20140528471/10.7GDGDM.P1
Data do Acordão: 05/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O auto de vigilância (ou relatório de vigilância) elaborado por agentes policiais no âmbito da investigação de um crime de Tráfico de estupefacientes, do art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, dando conta da prática de atos suscetíveis de constituir crime não é um “depoimento escrito” (prestado por testemunha).
II – Não resultam violados o princípio da imediação e o princípio do contraditório quando o agente que elaborou o auto prestou depoimento na audiência de julgamento, tendo confirmado genericamente o seu conteúdo e descrito o que presenciou.
III – O registo de imagens autorizado para investigação de um crime de Tráfico de estupefacientes, do art. 21.º do DL 15/93, de 22 de janeiro, pode ser valorado no âmbito do mesmo processo que conduziu à condenação do arguido pela prática de um crime de Tráfico de menor gravidade, do art. 25.º do mesmo diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 471/10.7 GDGDM.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 471/10.7 GDGDM, corre termos pelo 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, B…, C…, D… e E… foram sujeitos a julgamento pelo tribunal colectivo do Círculo Judicial de Gondomar, mediante acusação do Ministério Público que lhes imputou a prática de factos susceptíveis de consubstanciarem um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Ao arguido B… foi, ainda, imputada a prática, em autoria material e em concurso real, de cinco crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal e, no âmbito do processo comum n.º 18/12.0 GGVNG do mesmo 1.º Juízo Criminal, cuja apensação a estes autos foi ordenada para julgamento conjunto, um segundo crime de tráfico de produtos estupefacientes previsto e punível pelo citado artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, após deliberação do Colectivo, foi proferido o acórdão datado de 05.11.2013 e depositado na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, acordam os Juízes que integram o Tribunal Colectivo do Círculo de Gondomar em
I. Julgar a acusação parcialmente improcedente, absolvendo:
a. o C… do crime de tráfico de produtos estupefacientes de cuja prática vinha acusado;

b. o E… do crime de tráfico de produtos estupefacientes de cuja prática vinha acusado;

c. o B… de um dos crimes de tráfico de produtos estupefacientes de cuja prática vinha acusado;

d. o B… de um dos crimes de condução de veículo sem habilitação legal de cuja prática vinha acusado;

II. Na convolação da acusação, condenar o D… pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pela alínea a) do artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, que cumprirá;

III. Julgar a acusação procedente na parte restante, condenando o B… pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de
a. um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b. um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelos nº 1 e 2 do artigo 3º do Decreto Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

c. um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelos nº 1 e 2 do artigo 3º do Decreto Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

d. um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelos nº 1 e 2 do artigo 3º do Decreto Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

e. um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelos nº 1 e 2 do artigo 3º do Decreto Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

Em cúmulo jurídico destas penas vai o B… condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 11 (onze) meses de prisão, cuja execução se decide suspender pelo mesmo período, suspensão acompanhada de regime de prova, nos termos dos artigos 53º e 54º do Código Penal, e subordinada à condição o arguido, no período da suspensão, se submeter a acompanhamento médico adequado à sua abstinência do consumo de produtos estupefacientes”.
Inconformado, o arguido D… veio interpor recurso da decisão condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expostos na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
“1- No entender do arguido/recorrente, foram violados pelo Acórdão ora recorrido os princípios basilares do processo penal da livre apreciação da prova e in dubio pro reo.

2 - Na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento pelo tribunal "a quo", verifica-se desconformidade com o que realmente se provou e o que foi dado como provado.

3 - Uma vez que, resultaram fundadas dúvidas quanto ao arguido/recorrente, violando-se, assim, o princípio "in dúbio pro reo" constitucionalmente consagrado, designadamente no artigo 32° da C.R.P.

4 - O tribunal "a quo" deu como provados os fatos constantes da douta acusação, alicerçando essencialmente a sua decisão nas vigilâncias de que o arguido/recorrente foi alvo, levadas a cabo, pelos agentes policiais, ao longo de cerca de 6 meses, na maior parte das situações com recolha de imagens ao abrigo do disposto no artigo 6° da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.

5 - Assim como, os autos elaborados pelos agentes de polícia indicados como testemunhas, e essencial e fundamentalmente na prova testemunhal apresentada por duas testemunhas, bem como, o juízo de fato formulado pelo tribunal "a quo" quanto à prática do ilícito em apreço.

6 - Pelo que, o acórdão ora em crise, enferma, no entender do ora arguido/recorrente, de insuficiência de prova bastante para a condenação do arguido, no que tange ao crime de tráfico de estupefacientes que lhe é imputado correspondente ao período temporal entre Novembro de 2010 e Abril de 2011.

7 - Com efeito, das audições dos depoimentos prestados pelos agentes de autoridade e as outras duas testemunhas relevantes para a decisão ora em crise, no que ao arguido/recorrente concerne, não se vislumbra, onde reside a prova que sem qualquer dúvida, fortemente indicia a atividade de venda de produtos estupefacientes por parte do arguido/recorrente.

8 - Do depoimento da testemunha, F…, guarda da GNR, resulta ter sido um dos agentes que esteve à frente da investigação realizado no âmbito deste processo, (rotação 01:02/08:34) (03:07/08:34), tendo participado na abordagem e buscas realizadas ao arguido/recorrente. (rotação 04: 12/08:34), (05:59108:34), (6: 13/08:34) 07:23.

9 - Com efeito, do depoimento prestado, resultou claro que o depoente não presenciou qualquer transacção, referindo apenas o que esses indivíduos lhes comunicaram.

10 – Ora, uma vez que estes indivíduos não foram ouvidos como testemunhas, não poderá o depoimento desta testemunha servir como meio de prova nos termos do art.º 129., C.P.P., pelo que, o mesmo se encontra ferido por inadmissibilidade de meio de prova a que se destina.

11- Quanto à testemunha G… cabo da GNR, afirmou ter sido o chefe de busca na casa do arguido/recorrente em 16 de Abril de 2011 (rotação 00:56/03:9), referindo ainda que o arguido/recorrente tinha produto estupefaciente e dinheiro consigo, e no quarto tinha algum produto em cima do guarda-fatos e uma caixa com resíduos e uma faca junto à porta da residência (rotação 01:50 a 02:24). Mais referiu ter participado na abordagem realizada na estrada … onde não presenciou quaisquer trocas de produto estupefaciente (rotação 01:31).

12 – Ora, do depoimento do cabo da GNR G…, não decorre qualquer prática do crime de tráfico de estupefacientes pelo arguido/recorrente, pelo que, é perfeitamente consentâneo que sendo o arguido/recorrente toxicodependente detenha consigo droga nas quantidades indicadas nos autos (quantidades adequadas à sua qualidade de consumidor) pelo que deve ser tomado em conta o princípio in dubio pro reo.

13 - Por sua vez, do depoimento do cabo da GNR, H… resulta que este agente, no período de Novembro de 2010 até Abril 2011, participou e realizou vigilâncias e recolha de imagens. (rotação 0:04 a 01:11/24:21).

14 - Mencionou ainda, que o arguido/recorrente acompanhava o arguido B… e vendia de vez em quando, não vendendo a indivíduos que se aproximavam. (rotação 0:33 a 03:45). E que, no dia da busca (16 de Abril de 2011) o arguido/recorrente vendeu a dois indivíduos junto ao café "I…" tendo à posteriori surgido no local mais 2 indivíduos. (rotação 05.01 a 05:25).

15 - Mais referiu que, quando não via bem, presumia que o que via era produto estupefaciente e dinheiro, ficando com a convicção que era droga e dinheiro. (rotação: 5:47 a 6:15).

16 - Quanto aos fatos do dia 9 e 11 de Novembro o depoente apenas refere que os mesmos se encontram registados em imagens, fotografias (fotogramas) conforme o auto elaborado confirmando os mesmos. (rotação: 10: 19 a 10:49).

17 - Com efeito, este depoimento ficou abalado pelas imprecisões do mesmo, uma vez que, ora porque por vezes a testemunha refere que nunca viu nenhuma venda, ora porque refere que viu o arguido/recorrente a vender a uns indivíduos no café "I…". Café esse diga-se, que não corresponde ao que é referido na acusação e referenciado pelos próprios agentes policiais, ou seja, o café "J…".

18 - Mais declarou a testemunha que o que nessa ocasião viu nas mãos do arguido, pelo seu aspeto e configuração, apenas poderia ser haxixe, mas, em momento algum a testemunha refere que "outros" tenham adquirido haxixe ao arguido em aquisições semanais, conforme consta da matéria de fato dada como provada no douto acórdão ora em crise.

19 – Assim, quando a testemunha faz menção à existência de dinheiro, refere-se apenas a aquisições feitas aos outros arguidos que não o arguido/recorrente D….

20 - Com efeito, a matéria de fato imputada ao arguido/recorrente dada como provada pelo acórdão ora em crise nos pontos II f). II g). II o). II w). II y). II af) e ag). e. II al) e na) resulta da conjugação com os fotogramas (recolha de imagens) constantes no processo, e das declarações da testemunha H… por este prestadas em audiência que declarou que o que viu nas mãos do arguido, pelo seu aspeto e configuração, apenas poderia ser haxixe contra o recebimento de dinheiro.

21 - Deste modo, e atento este depoimento, apenas nos resta a convicção do agente policial de que se trata de produto estupefaciente, continuando a desconhecer-se que importâncias em dinheiro foram dadas em contrapartida, pelo que tal imputação também deve ser julgada improcedente.

22 - Dos depoimentos dos agentes policiais, ora testemunhas, não se vislumbra, salvo o devido respeito, onde reside a prova inatacável, segura, para além de toda a dúvida razoável, que possa fundamentar a existência de tráfico de produtos estupefacientes imputável ao arguido/recorrente.

23 - De salientar que, a prova feita pelo tribunal "a quo" teve por base os autos de vigilância confirmados pelos agentes de autoridade em audiência, relativamente aos quais não podemos esquecer que estes encerram em si diversas opiniões e conclusões retiradas por quem os elaborou com base no que viu ou pensa que viu. O que o agente afirmou em audiência, convenhamos, é insuficiente em termos de prova.

24 – Assim, com o devido respeito, quer os "autos" elaborados tendo por base as vigilâncias realizadas, quer a recolha de imagens, não podiam ser valorados no sentido de formar a convicção do Tribunal "a quo".

25 – Ora, os autos de vigilância não são documentos que possam ser utilizados na prova dos fatos, são textos escritos pelos agentes policiais que relatam o que viram, são pois testemunhos escritos que constam do processo de inquérito.

26 - Numa audiência de julgamento o que vale, por regra, e apenas o depoimento prestado no decorrer desta (art.° 355 a 357 do C.P.P.). Pelo que, o tribunal não pode utilizar os autos de vigilância como meios de prova, sob pena de os mesmos não valerem em julgamento (art.º 355 do C.P.P.), pois que, qualquer decisão baseada numa prova cuja valoração se encontrava proibida por lei é uma decisão que sofre de um vício de direito e que por esse fato deve ser anulada, além de que também essa mesma decisão ser viciada de nulidade (art.° 410. n.º 3 do C.P.P.)

27 - Acresce ainda que, o tribunal “a quo” também utilizou como meios de prova os autos de visualização com registo de imagens, nos termos do disposto no art.° 6° da Lei 5/2002 de 10 de Novembro. Ora, segundo o teor deste artigo, "é admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no art.° 1.°, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado". Sendo que, os crimes previstos no art.º 1. n.º 1 na parte que interessa aos autos, são os referidos no artigo 21 do DL 15/93, de 22 de Janeiro.

28 – Todavia, estes meios de prova não são admissíveis para os crimes previstos no artigo 25° do DL 15/93 de 22 de Janeiro, uma vez que não é equiparável a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada.

29 - Com efeito, quando existe autorização para o registo de imagem e voz, no âmbito de uma investigação de um crime de tráfico de droga previsto no artigo 21 ° do DL 15/93, a prova obtida por esse meio não pode ser utilizada para prova dos crimes do artigo 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro. Neste sentido, veja-se o douto acórdão da Relação de Lisboa de 25 de maio de 2010, disponível em www.dgsi.jtrl.pt/.

30 - Nesta conformidade, Manuel da Costa Andrade refere que, "logo que a conclusão pela insubsistência (v.g. por falta de prova) do crime do catálogo faz cair a conexão, fica insuprivelmente perdido o suporte e o fundamento da valoração para a prova dos crimes não pertinentes ao catálogo.

31 – Ora, e tal como decidiu o tribunal "a quo", os fatos dados como praticados pelo arguido/recorrente correspondem a crime de tráfico de menor gravidade, do art.º 25° do DL 15/93 de 22 de Janeiro e deste modo, os autos de visualização com registo de imagens não podiam ser utilizados para prova do suposto crime praticado pelo ora arguido/recorrente.

32 – A todo o exposto acresce que, além da prova documental referida (autos de vigilância e autos de visualização, fotogramas), que no caso não poderia ter sido utilizada, acresce ainda a prova testemunhal dos próprios agentes policiais.

33 - Com efeito, esta prova testemunhal assenta em fatos não referentes às buscas realizadas, mas sim, à testemunha que fez as recolhas de imagens, pelo que, não podendo estas servir de meio de prova, também não pode servir de prova o seu autor, pois que, se assim fosse estar-se-ia a subverter a proibição de valoração de prova em causa.

34 - No que às restantes testemunhas concerne, todos eles agentes de autoridade, o acórdão agora em crise apenas lhes confere relevo na busca realizada em casa do arguido/recorrente onde foram encontrados 6 pedaços de haxixe com o peso de 5,391 gramas, uma caixa de plástico transparente, própria para acondicionar produto estupefaciente, e uma faca.

35 - De referir que, os relatórios elaborados aquando da realização das buscas, são documentos autênticos que podem ser utilizados como tal, fazendo fé em juízo, tendo os mesmos sido confirmados pelos agente policiais.

36 - De todo o modo, pode dizer-se que as buscas só foram possíveis atenta a investigação anteriormente realizada, pelo que, não podendo a investigação ser aproveitada, nem direta, nem indirectamente, também a busca não o poderá ser. Uma vez que, estamos perante a questão do efeito-à-distância das proibições de prova.

37 - Mais se diga que, as buscas só puderam ser efetuadas com base nos conhecimentos adquiridos com os registos de imagem, pois que estiverem dependentes destes, tratando-se assim de uma impossibilidade de valoração de uma prova para um determinado tipo de crime.

38 - Das restantes testemunhas é de referir que do depoimento da testemunha K… resulta que o comportamento do arguido/recorrente é adequado com o sua qualidade de consumidor e não com a qualidade traficante conforme quer fazer crer o tribunal "a quo".

39 - Por outro lado, relativamente à testemunha L…, a defesa procurou obter a sua descredibilização, tendo concluído pela falsidade do depoimento prestado por esta em sede de audiência.

40 – Ora, atento o fato de a testemunha L… se encontrar detida em estabelecimento prisional, e ter uma relação conflituosa com o arguido a qual resultou na inimizade destes, fez com que a mesma afirmasse fatos contrários quer ao interesse dos outros arguidos, quer ao interesse do arguido/recorrente.

41 - Tanto mais que, o tribunal "a quo" atenta a sua livre convicção considerou este testemunho bastante frágil relativamente ao arguido (C…) atento o modo "lateral" como a testemunha se referiu a este.

42 - Deste modo, salvo o devido respeito que nos merece o tribunal "a quo", não pode o arguido/recorrente concordar com a desigualdade de valoração deste depoimento, sendo lamentável a credibilidade deste depoimento apenas para alguns arguidos, uma vez que, o depoimento da testemunha L…, na opinião do arguido/recorrente revelou-se bastante débil para todos os arguidos face a animosidade existente entre a testemunha e os arguidos.

43 - Nesta conformidade, no entender do arguido/recorrente ficou patente que a testemunha L… mentiu, não devendo por isso o seu depoimento merecer credibilidade, e consequentemente não podendo ser valorado para efeitos da condenação do arguido/recorrente.

44 - Não obstante, ao supra exposto acresce ainda que, todas as quantidades de produto estupefaciente que foram apreendidas ao arguido/recorrente coadunam-se com a sua "qualidade" de consumidor, uma vez que, a quantidade de haxixe apreendida ao arguido/recorrente (cerca de 7.46 gramas) é perfeitamente compatível com o simples consumo, nos termos definidos pela portaria n.º 94/96, de 26 de Março, e pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.

45 - Assim como, o fato de o arguido/recorrente deter uma caixa de plástico transparente, supostamente própria para acondicionar produto estupefaciente, não se vislumbra que tal constitua elemento que sem mais exclua a possibilidade de se destinar ao consumo próprio do arguido/recorrente, uma vez que, como resulta do relatório social, o arguido/recorrente é consumidor de haxixe desde os seus 15 anos, situação que foi mantendo no decurso do tempo.

46 - Por outro lado, o fato de no presente momento, o arguido/recorrente não desenvolver qualquer atividade profissional remunerada, não significa que os valores que lhe foram apreendidos provinham da venda de produto estupefaciente. Sendo que o fato de o arguido/recorrente residir com a mãe e sua avó, faz com que se infira que a sua subsistência seja assegurada pelos contributos destas, gerando pelo menos, a dúvida quanto à fonte de rendimento que permite a subsistência do arguido/recorrente.

47 - Caso assim não se entenda, sempre se dirá que, o acórdão ora recorrido violou os princípios da adequação e da proporcionalidade das penas ao aplicar ao arguido uma pena de 1 ano e 10 meses de prisão.

48- Desde logo, violou o art.º 71.º do C.P., que impõe que o julgador dê preferência à pena não privativa de liberdade "sempre que ela se mostre suficiente para promover a recuperação social do delinquente e satisfaça as exigências de reprovação e prevenção do crime"

49 - No âmbito do Código Penal, a pena de prisão como pena principal só é aceitável para os casos mais graves, pelo que o recurso às penas privativas de liberdade só será legítimo quando, face às circunstâncias do caso, se não mostrarem adequadas as reações penais não detentivas;

50 - Pelo que, apenas devem ser decretadas penas de prisão efetiva quando o Tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e demais circunstâncias, ser essa medida a única adequada.

51 - Com efeito, nos termos do art.° 50° do C.P., "O tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 3 anos de prisão se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do fato e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

52 - Figueiredo Dias refere que, (Consequências Jurídicas do Crime. Ed. Aequitas. p. 342) “para além do pressuposto formal (pena inferior a 3 anos ele prisão), a lei exige um pressuposto de ordem material, ou seja, a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido no futuro.

53 – Ora, in casu verifica-se que o arguido/recorrente está socialmente integrado, inscrito no centro de emprego, pelo que, tudo ponderado, constitui uma prognose favorável de que no futuro o arguido pautará o seu comportamento pelo respeito pela Lei e ordem.

54- Sendo certo que, a censura do fato e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, servindo como elemento dissuasor da prática de novos crimes, contribuindo para a reinserção social do arguido.

55- Deste modo, a inserção do arguido num estabelecimento prisional poderá a sua inserção social além de contribuir para a sua exclusão social”.
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Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou resposta à respectiva motivação, que sintetizou assim:
“IV.1. Não se verifica qualquer nulidade de prova, inadmissibilidade de prova ou violação do princípio in dubio pro reo que pudessem determinar que se dessem como não provados os factos que o Tribunal Colectivo deu como provados e fundamentaram a condenação do arguido D… pelo crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), ambos do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão.
IV.2. Por outro lado, tendo em conta os factos dados como provados, bem como o que resulta da circunstância de o arguido não estar a cumprir anterior suspensão de execução da pena de prisão, apenas se poderia concluir que uma pena semelhante, aplicada nos presentes autos, não cumpriria as finalidades da punição, pelo que bem andou o Tribunal Colectivo ao não suspender a execução da pena de prisão supra referida.
IV.3. Assim, o acórdão recorrido deverá ser confirmado e, em consequência, negado provimento ao recurso interposto pelo arguido D…”.
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Já nesta instância, na intervenção prevista no n.º 1 do artigo 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, secundando a posição do Ministério Público na primeira instância e aderindo ao argumentário da resposta apresentada, pronuncia-se pela improcedência do recurso.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação
É geralmente aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Isto, é claro, sem prejuízo da apreciação de outras questões que são de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insupríveis e dos vícios da sentença, estes previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal.
Sendo uma síntese das razões do(s) pedido(s), as conclusões não podem apresentar-se como uma mera reprodução da motivação.
Não pode dizer-se que as conclusões do recurso respeitam essa exigência de serem proposições sintéticas, pois as 55 “conclusões”, não sendo a reprodução integral do alegado no “corpo” da motivação, ficam perto disso: são, claramente, excessivas.
Mas, já porque as razões da discordância do recorrente são facilmente identificáveis, já porque a indicação especificada dos fundamentos do recurso tem, também, uma função garantística - que seja o recorrente a seleccionar as questões que pretende sejam examinadas e decididas, e não que se deixe ao livre arbítrio do tribunal essa selecção -, justifica-se alguma maleabilidade na apreciação do cumprimento das exigências legais nesta matéria e, por conseguinte, que não se opte pelo convite ao aperfeiçoamento das conclusões que redundaria em pura perda de tempo.
O recorrente centra o seu ataque ao acórdão recorrido impugnando a decisão sobre matéria de facto.
Esmiuçando a impugnação, constata-se que o recorrente, além de considerar que o tribunal fez incorrecta apreciação da prova produzida que, na sua perspectiva, não seria suficiente para fundamentar a sua condenação (“o acórdão ora em crise, enferma, no entender do ora arguido/recorrente, de insuficiência de prova bastante para a condenação do arguido” – conclusão 6.ª), alega que foi valorada prova proibida, assim acontecendo com:
● os “autos de vigilância” que foram valorados como prova documental, quando não passam de depoimentos escritos dos agentes policiais;
● os “autos de visualização com registo de imagens, nos termos do disposto no art.° 6° da Lei 5/2002 de 10 de Novembro”, quando “estes meios de prova não são admissíveis para os crimes previstos no artigo 25° do DL 15/93 de 22 de Janeiro” (conclusão 28.ª).
● os depoimentos testemunhais dos agentes policiais que efectuaram esse registo;
● a prova obtida com a realização das buscas domiciliárias, que “só foram possíveis atenta a investigação anteriormente realizada, pelo que, não podendo a investigação ser aproveitada, nem direta, nem indirectamente, também a busca não o poderá ser. Uma vez que, estamos perante a questão do efeito-à-distância das proibições de prova” (conclusão 36.ª).
Além da impugnação da decisão de facto, não pondo em causa a medida da pena, entende o recorrente que estão verificados os pressupostos da suspensão da execução da prisão.
As questões que identificamos e que serão objecto de análise e decisão são, pois, as seguintes:
● se foram cometidas nulidades, decorrentes de valoração de prova proibida, que afectem a validade da sentença;
● erro de julgamento em matéria de facto, com violação do princípio in dubio pro reo;
● suspensão da execução da pena de prisão.
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Identificadas e delimitadas as questões que constituem o objecto deste recurso, é fundamental conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
Factos Provados:

I-
O processo nº 471/10.7GDGDM
a. Pelo menos entre Novembro de 2010 e 16 de Abril de 2011, o arguido B… dedicou-se à venda de produto estupefaciente, concretamente haxixe, actividade que exerceu de forma contínua nas imediações da sua habitação, sita na rua …, nº …, …, Gondomar, e na estrada …, em Gondomar, no café “J…”.
b. O arguido B… é também conhecido como “B1…”.

c. Paralelamente, pelo menos entre Novembro de 2010 e 16 de Abril de 2011, o arguido D… dedicou-se à venda de produto estupefaciente, nomeadamente haxixe, actividade que exerceu de forma contínua na estrada …, …, nas imediações do estabelecimento de café denominado “J…”.
d. Os arguidos B… e D… vendiam o haxixe por € 5,00 ou € 10,00, consoante o peso do produto estupefaciente, daí retirando proventos monetários.

II-
a. No dia 08 de Outubro de 2010, pelas 18 h 25 m, M… deslocou-se à residência do arguido B… e tocou à campainha da habitação.
b. No entanto, passados momentos, começou a deambular pela rua …, ….
c. No dia 12 de Outubro de 2010, pelas 15 h 05 m, dois indivíduos cuja identidade se desconhece deslocaram-se à residência do arguido B…, tocaram à campainha e entraram pelo portão, e volvidos alguns minutos ausentaram-se do local.
d. Nesse instante, o arguido B… saiu de casa, e, conduzindo o veículo automóvel de matrícula ..-..-EM, deslocou-se até ao estabelecimento de café denominado “N…”, junto à estrada …, …, Gondomar.
e. No dia 03 de Novembro de 2010, pelas 09 h 14 m, o arguido B… conduziu o veículo automóvel de matrícula ..-AO-.., retirando-o da garagem da sua residência e colocando-o mais à frente, já na via pública.
f. No dia 09 de Novembro de 2010, pelas 13 h 55 m, no estabelecimento de café denominado “J…”, o arguido D… entregou a um indivíduo que trajava um “kispo” de cor azul, de identidade desconhecida, um pedaço de haxixe, que esse indivíduo de imediato consumiu.
g. No dia 11 de Novembro de 2010, pelas 14 h 05 m, o arguido B… entregou um pedaço de haxixe ao arguido D….
h. No dia 13 de Janeiro de 2011, pelas 02 h 02 m, no logradouro do estabelecimento de café denominado “J…”, uma mulher aproximou-se do arguido B…, e, após conversarem, este arguido entregou àquela um pedaço de haxixe, que a mesma guardou num envelope.
i. Após, no decurso da conversa, a referida mulher embrulhou o dito produto numa mortalha, inseriu-o novamente no envelope e guardou-o no bolso do blusão.
j. Nesse mesmo dia, mas pelas 14 h 35 m, o arguido B… conduziu um motociclo na estrada …, …, Gondomar, nas imediações do estabelecimento de café denominado “J…”.
k. Pelas 15 h 07 m, ainda desse dia 13 de Janeiro de 2011, o arguido B… escondeu haxixe junto aos depósitos do lixo existentes na estrada …, a cerca de 3 metros do estabelecimento de café denominado “J…”, tendo ido buscá-lo novamente cerca de 10 minutos depois, já na companhia do arguido D….
l. No dia 14 de Janeiro de 2011, pelas 15 h 12 m, o arguido B… foi abordado por um indivíduo, cuja identidade se desconhece, junto ao estabelecimento de café denominado “J…”, e entregou-lhe algo cujas concretas características não foi possível identificar.
m. No dia 17 de Janeiro de 2011, pelas 12 h 45 m, o arguido B… chegou ao logradouro do estabelecimento de café denominado “J…” e, junto de um muro aí existente, escondeu haxixe.
n. Pela 01 h 06 m, após receber uma chamada telefónica, o arguido B… deslocou-se ao muro existente no logradouro do estabelecimento de café denominado “J…” e daí retirou uma determinada quantidade de haxixe, que de seguida entregou a um indivíduo que de si se aproximou, recebendo dinheiro em troca.
o. Ainda nesse dia, pelas 01 h 24 m, após ter sido abordado pelo condutor do veículo automóvel com a matrícula ..-..-MV, o arguido B… deslocou-se novamente ao muro existente no logradouro do estabelecimento de café denominado “J…” e daí retirou haxixe, que de seguida entregou ao arguido D….
p. No dia 24 de Janeiro de 2011, pelas 13 h 37 m, quando se encontrava junto ao estabelecimento de café denominado “J…”, o arguido B… entregou um pedaço de haxixe a um individuo que se fazia transportar numa “scooter”, recebendo dinheiro em troca.
q. No dia 26 de Janeiro de 2011, pelas 13 h 48 m, quando se encontrava junto ao estabelecimento de café denominado “J…”, o arguido B… entregou um pedaço de haxixe a um indivíduo que trajava fato-de-treino com riscas nos braços e boné na cabeça, recebendo dinheiro em troca, após o que esse indivíduo, com aquele produto, preparou um “charro” e fumou-o.
r. No dia 31 de Janeiro de 2011, pelas 13 h 47 m, junto estabelecimento de café denominado “J…”, o arguido B… entregou haxixe a um indivíduo que trajava um “kispo” de cor escura, o qual de imediato guardou aquele produto no interior de um maço de tabaco.
s. No dia 31 de Janeiro de 2011, pelas 14 h 00, o arguido B… retirou o motociclo de cor azul da sua garagem, e conduziu-o em direcção à estrada …, em ….
t. Aí, percorreu a rua paralela à estrada …, do lado direito, tomando a direcção norte, imobilizando-se junto da rotunda de acesso a ….
u. Nesse local encontrou-se com um indivíduo que empurrava um carrinho de mão com ferro-velho, a quem entregou algo cujas concretas características não foi possível determinar.
v. De seguida, retomou a marcha conduzindo o referido motociclo e dirigiu-se ao estabelecimento de café denominado “J…”.
w. No dia 03 de Fevereiro de 2011, pelas 01 h 34 m, o arguido D… guardou haxixe no toldo do reclame do estabelecimento de café denominado “J…”, local onde também nesse dia, pela 01 h 39 m, o arguido B… igualmente guardou haxixe.
x. Pela 01 h 36 m desse dia, um indivíduo que trajava camisa às riscas e gorro na cabeça, de identidade desconhecida, abeirou-se do B… e deste recebeu um pedaço de haxixe, em contrapartida entregando dinheiro.
y. No dia 05 de Fevereiro de 2011, pelas 20 h 26 m, quando se encontrava junto ao estabelecimento de café denominado “J…”, o arguido D… entregou um pedaço de haxixe a um indivíduo, após o que o comprador abandonou o local.
z. Nesse mesmo dia e local, pelas 08 h 45 m, o arguido B…o vendeu haxixe a um indivíduo que se fazia transportar no veículo automóvel de matrícula ..-..-VX, recebendo dinheiro em troca.
aa. Pelas 08 h 55 m, ainda no mesmo dia e local, o arguido B… entregou vários pedaços de haxixe a um indivíduo que trajava camisola escura e calças claras, recebendo dinheiro em troca.
ab. Após, e como habitualmente, o arguido B… acondicionou o restante haxixe junto ao muro ali existente.
ac. Pelas 09 h 28 m, ainda no mesmo dia e local, o arguido B… entregou um pedaço de haxixe a um indivíduo que se fazia transportar no veículo automóvel de matrícula ..-..-VX, recebendo dinheiro em troca, após o que o comprador abandonou o local.
ad. De seguida, o arguido B… entregou a uma rapariga parte do lucro que havia recebido com a venda do haxixe.
ae. Pelas 21 h 49 m, o arguido B… retirou um pedaço de haxixe do local junto ao muro existente no logradouro do estabelecimento de café denominado “J…”, e entregou-o a um indivíduo que de si se abeirou, recebendo em troca dinheiro.
af. No dia 15 de Fevereiro de 2011, pelas 21 h 23 m, quando se encontravam nas imediações do estabelecimento de café “J…”, o arguido D… entregou um pedaço de haxixe a um indivíduo que trajava um “kispo” de cor clara, recebendo dinheiro em troca.
ag. Da mesma forma, pelas 21 h 34 m, 21 h 38 m e 21 h 44 m, o arguido D… entregou haxixe a 3 indivíduos que dele se abeiraram, recebendo dinheiro em troca.
ah. No dia 31 de Março de 2011, pelas 11 h 02 m, o arguido E… foi à residência do seu irmão B… chamá-lo para que este viesse falar com um indivíduo que se fazia transportar num veículo automóvel encarnado, e que acabara de chegar ao local.
ai. O arguido B… saiu da sua residência e dirigiu-se ao veículo encarnado, entregando haxixe ao seu condutor e em contrapartida recebendo dinheiro.
aj. Ainda nesse dia, pelas 13 h 25 m, nas escadas junto à estrada nacional nº .., em …, Gondomar, o arguido B… entregou haxixe a um indivíduo, recebendo dinheiro em troca.
ak. No dia 15 de Abril de 2011, pelas 19 h 32 m, na esquina entre a rua que dá acesso aos estabelecimentos de café denominados “I…” e “O…”, na rua paralela à estrada …, quando o arguido C… aí se encontrava, foi abordado por um indivíduo cuja identificação não foi possível apurar.
al. No dia 16 de Abril de 2011, pelas 13 h 10 m, quando o arguido D… se encontrava a percorrer a estrada …, junto ao viaduto, foi abordado por 2 jovens, um deles chamado K…, a quem vendeu um pedaço de haxixe com o peso aproximado de 0,4 gramas, por cerca de € 5,00.
am. Pouco depois foi abordado por outros 2 jovens, que o acompanharam na direcção do viaduto, momento em que foram interceptados por militares da GNR.
an. Nesse momento o arguido D… possuía, no bolso da frente do lado direito das calças, vários pedaços de haxixe com o peso global de 2,069 gramas; no bolso da frente do lado esquerdo, € 22,70 em moedas; no bolso de trás do aldo esquerdo, € 20,00 em notas de € 5,00; e, no bolso de trás do lado direito, uma nota de € 5,00.
ao. No dia 14 de Outubro de 2010, quando o arguido C… se encontrava no estabelecimento de café denominado “J…”, sito na estrada …, …., …, Gondomar, tinha na sua posse, no interior do bolso das calças, haxixe com o peso de 20,312 gramas, doseado em pedaços.

III-
a. Na sua residência, sita na rua …, nº .., …, Gondomar, concretamente no seu quarto, o arguido D… detinha ainda 6 pedaços de haxixe com o peso de 5,391 gramas, e uma caixa de plástico transparente, própria para acondicionar produto estupefaciente.
b. No pátio da sua residência, o arguido D… detinha uma faca com cabo em madeira, de cor castanha, com a lâmina queimada, que utilizava para o corte do produto estupefaciente.
c. O arguido D… não exercia qualquer actividade profissional remunerada, resultando exclusivamente de tal prática o montante monetário referido em II-an..
d. No dia 16 de Abril de 2011, o arguido B… tinha na sua posse, no quarto da sua residência, haxixe com o peso de 0,2 gramas, € 275,00 divididos em 11 notas de € 20,00, 5 notas de € 10,00 e uma nota de € 5,00, e € 150,00 divididos em 3 notas de € 50,00.
e. O arguido B… detinha ainda, no pátio exterior da residência deste, uma bolsa em tecido de cor preta, que continha no seu interior uma placa de haxixe com o peso de 94,640 gramas, e, envolto num plástico branco, 10 pedaços vulgarmente designados de «tiras» de haxixe, com o peso de 11,7 gramas.
f. O dinheiro apreendido ao arguido B… constitui o produto da actividade de venda de produto estupefaciente.
g. No dia 16 de Abril de 2011, pelas 15 h 00 m, o arguido C… tinha na sua posse, concretamente no quarto da sua residência, sita na rua …, nº …, …, Gondomar, um pedaço de haxixe com o peso de 1,421 gramas e € 150,00, quantia dividida em 12 notas de € 10,00 e 2 de € 5,00.

IV-
a. Os arguidos B… e D… conheciam as características e natureza do produto estupefaciente que compravam, detinham e vendiam.
b. Ao actuarem da forma descrita, adquirindo produtos estupefacientes, cujas características e natureza conheciam, com a finalidade de vendê-los ou proporcioná-los a terceiros, como veio a acontecer, e dessa forma obter quantias em dinheiro, agiram os arguidos B… e D… de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
c. Acresce que o arguido B… não é titular de habilitação legal para conduzir veículos a motor na via pública, e, não obstante, não se coibiu de o fazer, agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que só poderia conduzir veículos a motor na via pública caso fosse titular de habilitação legal.
d. Sabiam os arguidos B… e D… que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.

V-
O processo nº 18/12.0GGVNG
a. No dia 03 de Abril de 2012, pelas 16 h 40 m, quando se encontra junto ao viaduto do alto da serra, na estrada …, …, Gondomar, o arguido B… encontrava-se na companhia do P…, quando os dois foram interceptados por militares da GNR que se encontravam no local.
b. O arguido B… tinha na sua posse, dentro de uma lata que atirou para o chão quando da intercepção feita pelos militares da GNR, 11 pacotes de heroína com o peso líquido de 1,19 gramas, e 9 pacotes de cocaína com o peso líquido de 0,33 gramas.
c. O arguido B… tinha ainda na sua posse uma nota de € 5,00 do Banco Central Europeu, que consistia no produto da venda de estupefaciente.
d. O arguido B… destinava à venda a terceiros o produto estupefaciente que nessa data trazia consigo.
e. O arguido B… conhecia as características e natureza do produto estupefaciente que comprava, detinha e vendia.
f. Ao actuar da forma descrita agiu o arguido B… de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
**
*
VI-
(…)
O arguido D… sofreu já as seguintes condenações:
- no âmbito do processo comum singular nº 669/10.8PCMTS, do 4º juízo criminal de Matosinhos, por decisão transitada em julgado a 29 de Junho de 2011, pela prática, a 26 de Julho de 2010, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo nº 1 do artigo 203º e pela alínea f) do nº 1 do artigo 204º, ambos do Código Penal, foi condenado na pena especialmente atenuada de 7 meses de prisão, cuja execução se decidiu suspender pelo período de 1 ano, submetendo-se o arguido a regime de prova, pena que foi declarada extinta pelo decurso do prazo de suspensão;
- no âmbito do processo comum colectivo nº 19/09.6GGVNG, do 1º juízo criminal de Gondomar, por decisão transitada em julgado a 09 de Agosto de 2011, pela prática, entre Junho de 2009 e Janeiro de 2010, de um crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, foi condenado na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, cuja execução se decidiu suspender pelo mesmo período, subordinando-se a suspensão à condição de o arguido não consumir produtos estupefacientes.
O arguido é filho único, oriundo de um agregado familiar de condição sócio-económica carenciada.
O seu processo de desenvolvimento decorreu na família de origem alargada, com disfunções ao nível da supervisão parental e consistência das regras.
O arguido observou dificuldades de aprendizagem, com insucesso repetido nos 5º e 7º anos e necessidade de apoio de ensino especial, e registando acompanhamento durante um período continuado de 6 anos em pedopsiquiatria.
Saiu da escola com 16 anos de idade, e retornou aos 18 anos para frequência de curso de geriatria com equivalência ao 9º ano de escolaridade, que concluiu.
Com 15 anos de idade iniciou-se no consumo de haxixe, com inserção em grupo de pares com idêntico comportamento, situação que manteve regularmente no decurso do tempo.
Com 16 anos de idade começou a trabalhar, inicialmente como distribuidor de publicidade, e posteriormente como ajudante de trolha.
Em 2011 foi alvo de processo de contra-ordenação por consumo de estupefacientes, tendo sido acompanhado pela CDT, com a qual deixou de colaborar em 2012.
Deixou igualmente de colaborar com o CRI de Gondomar, mantendo registo faltoso nas consultas e sucessivas remarcações.
À data dos factos em causa nos presentes autos o arguido encontrava-se laboralmente inactivo, residindo com a avó materna, na habitação desta, situação que ainda hoje mantém.
O agregado familiar em que o arguido se insere sobrevive graças à reforma da avó e à pensão de doença auferida pela mãe.
No meio social em que o arguido se insere é conotado com a inactividade laboral e inserção grupal desviante.
No âmbito do processo comum colectivo nº 19/09.6GGVNG, o arguido não tem observado o cumprimento dos deveres que lhe são impostos pela DGRS, quer de adequação prossocial, quer quanto à comparência as entrevistas agendadas.
Também no âmbito da execução da pena aplicada no processo comum singular nº 669/10.8PCMTS a colaboração do arguido apresentou também registo de instabilidade.
O arguido tem sucessivamente faltado às entrevistas agendadas, quer na DGRS, quer no CRI, não cumprindo com o plano terapêutico fixado e o regime de consultas determinadas.
O arguido mantém um relacionamento afectivo de namoro desde há cerca de 4 meses, e declara procurar colocação profissional, ainda que sem resultados.
Encontra-se inscrito no centro de emprego e formação profissional de Gondomar desde Abril de 2012, comparecendo quando é convocado e para controlo postal, mas com pouca expressão mobilizadora de iniciativa própria, apesar do conhecimento de que tem havido pouca oferta formativa e de empregabilidade no sector da construção civil.
O arguido não reconhece a problemática aditiva, desvalorizando os seus consumos de haxixe e a inserção em grupo de pares com idêntico comportamento.
Em abstracto, reconhece a censurabilidade dos factos pelos quais se encontra acusado, e os danos que possam causar em eventuais vítimas.
*
Factos não provados
Não resultou provado, com relevo para a decisão a proferir, que:
a- o M… seja toxicodependente; que resida na rua …, nº .., rés-do-chão esquerdo, …, Gondomar; e que no dia 08 de Outubro de 2010, pelas 18 h 25 m, se tenha deslocado à residência do arguido B… com a intenção de adquirir produto estupefaciente;
b- o M…, no dia 08 de Outubro de 2010, pelas 18 h 25 m, se tenha apercebido da presença das autoridades policiais; e que tenha sido por isso que se ausentou do local;
c- no dia 14 de Janeiro de 2011, pelas 15 h 12 m, o arguido B… tenha entregue haxixe a terceiro;
d- no dia 31 de Janeiro de 2011, pelas 14 h 00, na estrada …, junto à rotunda de acesso a …, o arguido B… tenha entregue produto estupefaciente a terceiro;
e- a rapariga a quem, pelas 21 h 30 m do dia 05 de Fevereiro de 2011, o arguido B… entregou uma quantia em dinheiro fosse sua companheira;
f- no dia 15 de Fevereiro de 2011, pelas 13 h 52 m, o arguido B… tenha conduzido o veículo automóvel da marca “Mercedes”, matrícula ..-..-VF, na direcção da estrada …, …, Gondomar.
g. No dia 31 de Março de 2011, o arguido B… tenha ido buscar haxixe ao jardim da casa do seu irmão E…;
h- a subsistência do arguido D… dependesse ou dependa exclusivamente da venda de produto estupefaciente;
i- o produto estupefaciente apreendido no pátio exterior à residência do arguido E… fosse pertença deste ou pelo mesmo detida;
j- no dia 15 de Abril de 2011, pelas 19 h 32 m, na esquina entre a rua que dá acesso aos estabelecimentos de café denominados “I…” e “O…”, na rua paralela à estrada …, o arguido C… tenha entregue haxixe a um indivíduo que o abordou e deste tenha recebido dinheiro em troca;
k- o arguido C… destinasse à venda, com a intenção de lucro, o haxixe que lhe foi apreendido no dia 14 de Outubro de 2010, no estabelecimento de café denominado “J…”, sito na estrada …, …., …, Gondomar; e que apenas não tenha logrado tal venda por ter sido surpreendido pelos militares da GNR;
l- o arguido B… não exercesse qualquer actividade remunerada; e que o mesmo arguido dependesse exclusivamente da venda de produto estupefaciente para subsistir;
m- o arguido C… não exercesse qualquer actividade remunerada, que o mesmo arguido dependesse exclusivamente da venda de produto estupefaciente para subsistir; e que a quantia em dinheiro apreendida na posse do arguido C… tenha exclusivamente resultado da venda de produtos estupefacientes;
n- a venda de produtos estupefacientes a que os arguidos B… e D… se dedicavam lhes permitisse viver sem trabalharem; e que a quantidade de produto estupefaciente que os arguidos tinham na sua posse lhes permitisse, durante certo período de tempo, não só consumir diariamente como vender a terceiros;
o- o arguido C… se dedicasse à venda de produtos estupefacientes; que com isso auferisse proventos que lhe permitisse viver sem trabalhar; e que a quantidade de produto estupefaciente que o arguido C… tinha na sua posse lhe permitisse, durante certo período de tempo, não só consumir diariamente como vender a terceiros;
p- o arguido E… se dedicasse à venda de produtos estupefacientes; que com isso auferisse proventos que lhe permitisse viver sem trabalhar; e que a quantidade de produto estupefaciente que o arguido E… tinha na sua posse lhe permitisse, durante certo período de tempo, não só consumir diariamente como vender a terceiros;
q- os arguidos E… e C… tenham actuado com a consciência de a sua conduta ser punida pela lei penal;
r- entre Maio e Novembro de 2010 o arguido B… se tenha dedicado à venda de produto estupefaciente;
s- na venda de produto estupefaciente o arguido B… contasse com a colaboração dos arguidos D… e C…;
t- o arguido B… mantivesse em sua posse apenas pequenas quantidades de haxixe; que utilizasse a casa do seu irmão E… como “casa de recuo”; e que acondicionasse produto estupefaciente da casa do seu irmão E…;
u- o arguido E… tivesse conhecimento da venda de produto estupefaciente por parte do seu irmão B…; que o mesmo arguido E… por qualquer forma colaborasse com a venda de produto estupefaciente levada a cabo pelo arguido B…;
v- o arguido B… fosse conhecido nas imediações da sua residência como traficante de produto estupefaciente;
w- entre Maio e Novembro de 2010 o arguido D… se tenha dedicado à venda de produto estupefaciente; e que o arguido D… tenha levado a cabo a venda de produto estupefaciente nas imediações do estabelecimento de café “Q…”;
x- o arguido D… alguma vez tenha auxiliado o arguido B… na venda de haxixe; e que tenha substituído o arguido B… na venda de produtos;
y- a partir de Fevereiro de 2011 o arguido D… tenha registado um número mais elevado de vendas de haxixe;
z- o arguido D… se deslocasse com quantidades diminutas de haxixe por forma a ludibriar as autoridades policiais; e que, após finalizar as vendas, se deslocasse novamente para a sua habitação;
aa- no dia 03 de Abril de 2012, pelas 16 h 40 m, o arguido B… tenha sido abordado pelo P…; que este seja toxicodependente; e que este tenha solicitado ao arguido B… a venda de um pacote de heroína;
bb- no dia 03 de Abril de 2012, pelas 16 h 40 m, o arguido B…, mediante o recebimento da quantia de € 5,00, tenha entregue um pacote de heroína ao P…”;

As alegadas nulidades de prova
Como ficou claro na delimitação do objecto do recurso, o recorrente põe em causa o resultado do processo probatório porque entende que ao tribunal estava vedada a valoração de certas provas, ou como tal consideradas, já por violação do princípio da imediação (consagrado no artigo 355.º do Cód. Proc. Penal), já porque obtidas através de meios (registo de imagens) que, no caso, não seriam admissíveis.
Para a apreciação desta questão, justifica-se que comecemos por uma brevíssima referência aos conceitos de meio de prova e meio de obtenção de prova.
Quando se fala em meios de obtenção de prova (um exame, uma revista, uma busca, uma apreensão, uma intercepção telefónica, etc.) pretende-se referir a actividade de recolha de meios de prova.
Visam a procura e recolha de prova[3], a aquisição para o processo de provas que, em regra, são contemporâneas ou preparatórios do crime.
Por si sós, não são fonte de convencimento, mas permitem obter coisas ou declarações dotadas de aptidão probatória.
Meios de prova ou elementos de prova (ou, simplesmente, prova) são instrumentos com aptidão para formar um juízo probatório, para fundamentar a convicção do julgador (depoimentos testemunhais, declarações do arguido e do assistente, as conclusões de uma perícia, o documento, etc.).
Os meios de prova visam a reprodução do facto histórico e, portanto, constituem um meio de aquisição para o processo de uma prova posterior à prática do crime.
Por regra, só os produzidos em audiência permitem a formação da convicção do julgador (só excepcionalmente é admissível a valoração de meios de prova produzidos em fase anterior).
As vigilâncias policiais inserem-se, sem dúvida, na actividade de recolha de prova e coloca-se o problema de saber se os chamados “autos de vigilância” ou “relatórios de vigilância” não passam de depoimentos escritos que não podem ser valorados porque afrontam a regra do artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal (é a tese do recorrente) ou se são antes “autos de exame ao local, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 99.º e 171, ambos do Código de Processo Penal” (como defende o Ministério Público na sua resposta).
O tribunal a quo, sobre esse ponto, discorreu assim:
“Nos autos em causa está a prática pela totalidade dos arguidos de actos que traduzem a venda de produtos estupefacientes a terceiros.
Em larga medida, a acusação funda nas vigilâncias de que os arguidos foram alvo o seu juízo de facto quanto à prática dos ilícitos em apreço, vigilâncias levadas a cabo ao longo de cerca de 6 meses, na maior parte das situações com recolha de imagens ao abrigo do disposto no artigo 6º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro.
Os autos em que as vigilâncias foram vertidas (45, 47, 80, 82, 224, 225, 226, 227, 228, 263, 264, 265, 266, 267, 269, 270, 334, 335, 544, 545, 559 e 560 – apenas para referir os que contém matéria probatória relevante para o processo) mais não constituem que relato escrito do que os elementos policiais presenciaram, nessa medida em muito se aproximando de um depoimento escrito, cuja valoração em audiência de julgamento por princípio está vedada (radicalmente classificando os «autos de vigilância» como de verdadeiro depoimento escrito, prestado em fase de inquérito, e por esse motivo inutilizáveis como meio de prova em audiência de julgamento, veja-se o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no seu acórdão de 25 de Maio de 2010, disponível em www.dgsi.jtrl.pt/).
Mas, se bem se analisa, existem diferenças essenciais entre um relato de uma vigilância a que vulgarmente se dá o nome de «auto» (como os acima referidos) e um depoimento prestado em fase de inquérito que seguramente justificam o tratamento diverso das duas figuras enquanto meios de prova judicialmente aptos à recriação de facto passado – o depoimento regra geral surge muito após o facto a recriar, por interpelação de terceiro [seja juiz, ministério público, advogado ou autoridade policial – é que, salvo melhor opinião, a influência da personalidade do interrogador no desenrolar do interrogatório, e do consequente depoimento, traduz evidência que se considera carecer de demonstração, e que com toda a certeza terá constituído um dos principais fundamentos das proibições de valoração que resultam dos artigos 356º e 357º do Código de Processo Penal] e no âmbito de um objecto processual pré-definido; o relato é elaborado por iniciativa da própria testemunha, no momento em que presencia os factos [ou em data muito próxima – como é do conhecimento geral, é habitual os elementos policiais reduzirem a escrito o que viram nos dias subsequentes ao acontecimento], e sem preocupação com o objecto do processo.
Aliás, se a testemunha de um crime por sua iniciativa reduzir a escrito o que nesse momento considera ter presenciado (num diário, por exemplo), seguramente tal escrito integra no conceito de «documento» que resulta do nº 1 do artigo do Código de Processo Penal, e, se por hipótese apresentado em julgamento no decurso do depoimento, impor-se-á a sua junção ao processo ao abrigo do disposto no nº 5 do artigo 138º do Código de Processo Penal.
Ora, salvo melhor opinião, os relatos que indiscutivelmente resultam dos «autos de vigilância» realizados no processo com toda a certeza não constituem depoimento para efeitos do disposto nos artigos 128º e ss do Código de Processo Penal (por consequência não lhe sendo aplicáveis as normas consagradas no artigo 356º do Código de Processo Penal), mas antes «documento» enquanto declaração de ciência corporizada em escrito (nº 1 do artigo 164º do Código de Processo Penal).
É certo que os «autos» elaborados não contêm apenas o relato de factos, mas encerram diversas opiniões e conclusões retiradas por quem os elaborou com base no que viu ou pensa que viu – não se vê, de facto, como considerar de outra forma a sucessiva classificação como «produto estupefaciente» ou «dose» ao “quid” que diversos arguidos terão entregue entre si e a terceiros, a identificação de diversos arguidos como «colaborador» e de terceiros como «consumidor» ou «toxicodependente».
Esta «confusão» obviamente exige o rigor necessário na separação entre o que constitui facto visionado e o que decorre da interpretação do investigador [como impõe, num lugar paralelo do sistema, a alínea a) do nº 2 do artigo 130º do Código de Processo Penal].
Isto, obviamente, no percurso de análise crítica que a análise dos meios de prova impõe, com recurso, como acima se referiu, às regras da lógica e da experiência comum, e aos conhecimentos científicos disponíveis”.

Sobre os concretos “autos de vigilância” em que surge referenciado o arguido/recorrente, no acórdão recorrido podemos ler que:
“O relato que consta de fls 81 [relativo ao sucedido pelas 13 h 55 m do dia 09 de Novembro de 2010], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu na mãos dos arguidos, pelo seu aspecto e configuração, apenas poderia ser haxixe), em conjugação com os fotogramas que constam de fls 142 a 146, e à luz do que se considera a absoluta normalidade dos comportamentos humanos, apenas permite a conclusão vertida no ponto II-f. da matéria de facto provada.
O relato que consta de fls 82 [relativo ao sucedido pelas 14 h 05 m do dia 11 de Novembro de 2010], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu na mãos dos arguidos apenas poderia ser haxixe), em conjugação com os fotogramas que constam de fls 157 a 158, e à luz do que se considera a absoluta normalidade dos comportamentos humanos, apenas permite a conclusão vertida no ponto II-g. da matéria de facto provada.
O relato que consta de fls 225 [relativo ao sucedido pelas 15 h 07 m do dia 13 de Janeiro de 2011], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu colocar pelo arguido junto aos depósitos de lixo apenas poderia ser haxixe), em conjugação com os fotogramas que constam de fls 279 a 281, apenas permite a conclusão vertida no ponto II-k. da matéria de facto provada.
O relato que consta de fls 226 [relativo ao sucedido pelas 13 h 24 m do dia 17 de Janeiro de 2011], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu pelo arguido B… retirar de um local junto ao muro, e posteriormente entregar ao arguido D…, apenas poderia ser haxixe], em conjugação com os fotogramas que constam de fls 292 a 294, apenas permite a conclusão vertida no ponto II-o. da matéria de facto provada.
O relato que consta de fls 264 [relativo ao sucedido pelas 13 h 34 m e 13 h 39 m do dia 03 de Fevereiro de 2011], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu guardar no toldo do estabelecimento de café denominado “J…”, quer pelo arguido D…, quer pelo arguido B…, apenas poderia ser haxixe], em conjugação com os fotogramas que constam de fls 416 a 419, apenas permite a conclusão vertida no ponto II-w. da matéria de facto provada.
O relato que consta de fls 265 [relativo ao sucedido pelas 20 h 26 m do dia 05 de Fevereiro de 2011], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu entregar a terceiro pelo arguido D…, contra o recebimento de dinheiro, apenas poderia ser haxixe], em conjugação com os fotogramas que constam de fls 427 a 429, apenas permite a conclusão vertida no ponto II-y. da matéria de facto provada.
O relato que consta de fls 335 [relativo ao sucedido entre as 21 h 23 m e as 21 h 45 m do dia 15 de Fevereiro de 2011], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu entregar a terceiros pelo arguido D…, contra o recebimento de dinheiro, apenas poderia ser haxixe], em conjugação com os fotogramas que constam de fls 456 a 460, apenas permite a conclusão vertida nos pontos II-af. e II-ag. da matéria de facto provada.
O relato que consta de fls 560 [relativo ao sucedido pelas 13 h 10 m do dia 16 de Abril de 2011], confirmado em audiência de julgamento pelo seu autor, a testemunha H… (que declarou que o que nessa altura viu entregar pelo arguido D… a terceiro, contra o recebimento de dinheiro, apenas poderia ser haxixe], em conjugação com os autos de busca e apreensão que constam de fls 641 a 644 e 669, o relatório toxicológico que consta de fls 850 e 851, e ainda o declarado em audiência de julgamento pela testemunha K… (que reconheceu ter nesse dia 16 de Abril de 2011 adquirido ao arguido D…, por cerca de € 5,00, o haxixe que lhe foi apreendido pelas autoridades policiais), apenas permite a conclusão vertida nos pontos II-al. a II-an. da matéria de facto provada”.
Salvo o devido respeito pelo entendimento manifestado no citado (e também invocado pelo recorrente) acórdão da Relação de Lisboa, de 25.05.2010, não nos parece que tais autos possam ser qualificados como “depoimentos escritos” prestados no inquérito. Revemo-nos na crítica a esse entendimento feita no acórdão recorrido.
Os relatos das vigilâncias efectuados pelos agentes policiais, dando conta da prática, pelo arguido/recorrente, de actos susceptíveis de constituir a prática de crime (no caso, actos de compra e de venda de produtos estupefacientes), têm muito mais afinidade com o auto de notícia a que alude o artigo 243.º do Cód. Proc. Penal do que com um depoimento testemunhal.
Seja como for, o que o tribunal valorou foi o depoimento da testemunha H… (cabo da GNR que fez as vigilâncias e elaborou e subscreveu os respectivos autos), ainda que em conjugação com o conteúdo dos referidos autos.
Como se constata pela audição da gravação das declarações oralmente prestadas em audiência, a testemunha não se limitou a confirmar genericamente o conteúdo desses autos, narrou o que presenciou no decurso dessa actividade, designadamente os concretos actos de tráfico de estupefacientes (haxixe) praticados pelo arguido D….
O princípio da imediação e, sobretudo, o princípio do contraditório foram inteiramente respeitados e por isso não se antolha nenhuma razão válida para invocar aqui uma proibição (de valoração) de prova[4].
Mais complexa se revela a questão da valoração da prova obtida através dos meios previstos no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 22 de Janeiro.
Com arrimo, ainda, no citado acórdão da Relação de Lisboa, de 25.05.2010 e na doutrina defendida pelo Professor Costa Andrade, o recorrente sustenta que os autos de visualização com registo de imagens, também, não podiam ter sido valorados como prova porque o crime por que foi condenado (do artigo 25° do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) não integra o catálogo legal previsto no artigo 1.º daquela Lei (conclusões 27.ª a 30.ª).
O recorrente não concretiza quais as provas obtidas por essa via que o tribunal valorou, e não podia ter valorado, pelo que se deduz que serão, apenas, os expressamente referidos no acórdão recorrido: os “fotogramas” de fls. 142-146, 157-158, 279-28, 292-294, 416-419, 427-429 e 456-460.
Trata-se, como é bem de ver, de reproduções de registos fotográficos de actos de tráfico de estupefacientes praticados pelo arguido/recorrente em locais públicos.
Reproduções que valerão como prova dos factos se não forem ilícitas, nos termos da lei penal (artigo 167.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
Aparentemente, a posição defendida pelo recorrente - de proibição de valoração dos referidos “fotogramas” por ter sido condenado por um crime que não consta do catálogo legal – tem apoio na doutrina, concretamente, na doutrina que o Professor Costa Andrade esclarece ser a dominante e que ele próprio perfilha: “a queda do crime do catálogo determina também a queda do crime de conexão, não sendo possível valorar os conhecimentos da investigação para assegurar a prova e condenar os autores (dos crimes de conexão). De forma apodíctica, a queda do crime do catálogo faz impender uma proibição de valoração sobre os conhecimentos da investigação”[5].
Tendo sido acusado da prática de um crime do catálogo (tráfico de estupefacientes do artigo 21.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), foi o arguido/recorrente condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade do artigo 25.º daquele diploma legal, que não integra o catálogo, pelo que as provas obtidas com recurso aos meios previstos no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 22 de Janeiro, não poderiam ser valoradas.
Contrapõe o digno magistrado do Ministério Público na sua resposta que as referências (contidas no artigo 1.º, n.º 1, al. a), deste último diploma legal) aos artigos 21.º a 23.º e 28.º (do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), visam permitir a utilização daqueles instrumentos de investigação para adquirir prova da actividade de tráfico de estupefacientes. A referência ao artigo 21.º “tem apenas a ver com a circunstância de ser esse o tipo fundamental do crime de tráfico, não tendo o objectivo de excluir os crimes de tráficos agravados ou privilegiados que continuam a ter o seu núcleo naquele art. 21.º”. A não se entender assim, aqueles meios de investigação, também, não poderiam ser utilizados para recolha de prova do crime de tráfico de estupefacientes agravado do artigo 24.º Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, dado que também não lhe é feita referência expressa na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º da Lei 5/2002, o que seria “um autêntico absurdo”.
O argumento é pertinente e merece ponderação.
No entanto, não será por acaso que só naquela alínea a), ou seja, só em relação ao tráfico de estupefacientes, estão especificadas as normas incriminadoras.
Por outro lado, não podemos esquecer que estamos perante normas de natureza excepcional, que definem um regime legal que é fortemente restritivo de direitos e garantias fundamentais e por isso não admite certas interpretações generosas, em detrimento dessas garantias individuais.
Em todo o caso, afigura-se-nos que não há necessidade de enveredar pelo caminho propugnado pelo Ministério Público para se concluir que o tribunal podia valorar, como valorou, como meio de prova, os “fotogramas”.
Há quem defenda que o artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, ao referir o “registo de voz e imagem”, tem implícito que, apenas, visa a reprodução audiovisual, não cabendo na previsão legal as meras fotografias, que registam, tão só, imagens (assim, os acórdãos desta Relação, de 21/12/2004, relatado pela Des. Conceição Gomes, e de 28.01.2009, relatado pela Des. Eduarda Lobo, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Mas o ponto fundamental está em saber se os registos fotográficos foram obtidos licitamente, o que passa por determinar se com a obtenção desse meio de prova se afronta algum direito constitucionalmente reconhecido.
Ora, cremos que é uniforme na jurisprudência o entendimento de que o registo fotográfico de imagens de indivíduos que praticam actos criminosos obtido nas mesmas circunstâncias em que foi obtido no âmbito deste processo não colide com o direito à privacidade do visado nem com outros direitos constitucionalmente garantidos.
Assim, no acórdão desta Relação, de 16.11.2005 (CJ XXX, T. V, 219), argumentou-se assim:
“As fotografias juntas aos autos não colidem com a intimidade ou esfera da vida privada do recorrente. As mesmas foram tiradas na rua e em locais públicos, de forma a reproduzir factos observados pelos próprios investigadores, e são meros documentos que complementam e fazem parte dos respectivos relatórios de vigilância, como se alcança dos mesmos. (…) Nesta conformidade, sendo as mesmas fotografias recolhidas em locais não condicionados ao público e sem invadir a esfera privada ou intimidade do recorrente e com o propósito de instruir os autos de inquérito no âmbito de diligências de vigilância, tendo em vista a investigação de crime de tráfico de estupefacientes, não careciam de autorização judicial, uma vez que não foram obtidas de forma penalmente ilícita”[6].
No acórdão da Relação de Lisboa proferido no Proc. n.º 833/10.0 PAMTJ-A.L1 (do mesmo relator deste acórdão e acessível em www.dgsi.pt), decidiu-se que “à semelhança do que vem acontecendo em relação à utilização de sistemas de videovigilância, deve prevalecer o entendimento de que o registo de voz e imagem, como meio idóneo para captar a prática de factos passíveis de serem considerados como ilícitos penais e, nos termos da lei processual penal, servir de meio de prova, não atinge, de forma intolerável, o núcleo essencial do direito à privacidade de cada um”.
Em caso com contornos muito semelhantes a este, decidiu-se, mais recentemente, nesta Relação (acórdão de 27.02.2013, relatado pelo Des. Francisco Marcolino, citado na resposta do Ministério Público) que “independentemente de despacho judicial, tais imagens, porque recolhidas em locais públicos, e porque não implicam a devassa da vida privada, são processualmente válidas e têm força probatória, contrariamente ao invocado pelos arguidos”.
Mesmo que assim não fosse, mesmo que a razão, quanto a este ponto, estivesse com o recorrente, não estaríamos perante uma proibição de prova, pois uma coisa é a proibição de produção (de prova) e outra, bem distinta, é a proibição de utilização ou valoração probatória.
Teríamos, então, uma hipotética proibição de valoração de prova (registo de imagens) validamente adquirida.
Por isso não faz qualquer sentido invocar “o efeito-à-distância das proibições de prova” (conclusão 36.ª), quer para pôr em causa a validade das buscas efectuadas (e os meios de prova por esse meio obtidos), quer para afastar os depoimentos de quem fez o registo das imagens.
De resto, não se descortina como é que o mero registo de imagens poderia ser determinante para a realização das buscas domiciliárias.

Erro de julgamento em matéria de facto - violação do in dubio pro reo?
Entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio basilar da presunção de inocência, de que o “in dubio pro reo” é uma das suas várias dimensões, existe uma estreita conexão.
O princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova[7] [8].
Como bem faz notar Cristina Líbano Monteiro (“Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1997, pág. 53), o princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, encontra no “in dubio pro reo” o seu limite normativo e “livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca de razoabilidade ou da racionalidade objectiva”[9].
O princípio do “in dubio pro reo” não é mais que uma regra de decisão[10]: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos[11], ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Um non liquet sobre um facto da acusação recai materialmente sobre o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, pois que sobre o arguido não impende qualquer dever de colaboração na descoberta da verdade[12].
Assim, um primeiro aspecto cumpre realçar: o in dubio pro reo só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa.
O segundo aspecto a assinalar é o de que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”. Tem de ser uma dúvida razoável, que impeça a convicção do tribunal.
Não é razoável, porque meramente subjectiva, a dúvida que brota como efeito de uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa, ou até de um deficiente estudo do material probatório.
O terceiro ponto que se nos afigura curial aqui pôr em relevo é o seguinte: não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e não tendo esse juízo factual por fundamento uma inversão do ónus da prova[13] (inversão constitucionalmente proibida por força da presunção de inocência), antes resultando do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto[14].
Como se pode constatar pela leitura da motivação probatória do acórdão em crise, o tribunal não teve a mínima dúvida quanto à decisão sobre a matéria de facto e expôs, de forma cristalina e perfeitamente perceptível para quem a leia, as razões da sua firme convicção.
Nada há a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação dessa convicção.
O recorrente confunde aquilo que não deve ser confundido: a questão da convicção (e o grau exigível para ser tomada uma determinada decisão) e a suficiência da fundamentação dessa convicção.
Como se escreveu no acórdão do STJ, de 02.04.2003[15], Processo n.º 4194/02-3: “Não há que confundir fundamentação das decisões judiciais com formação da convicção do tribunal. O dever de fundamentação cumpre-se quando é possível conhecer e compreender o itinerário cognoscitivo do tribunal, assim acontecendo quando este, ao justificar o convencimento a que chegou, valora e aprecia os depoimentos das testemunhas, justifica e avalia a sua razão de ciência, indica os factos donde ela derivou e enumera os elementos de prova de que se socorreu, sendo por isso susceptível de controlo por via de recurso. O processo de formação da convicção é, ao invés, o acto livre do órgão judiciário, embora necessariamente apoiado em dados concretos e na experiência comum, sendo, como tal, insindicável em termos recursórios”.
Neste caso, foi sólida a convicção do tribunal, não o assaltou a dúvida quanto à actuação do recorrente.
O recorrente entende que, porque o tribunal alicerçou a sua decisão, essencialmente, nas vigilâncias levadas a cabo pelos agentes policiais e em prova testemunhal representada por duas testemunhas, “o acórdão ora em crise, enferma (…) de insuficiência de prova bastante para a condenação do arguido”, não vislumbrando “onde reside a prova que sem qualquer dúvida, fortemente indicia a actividade de venda de produtos estupefacientes” a que se dedicaria, pelo que “resultaram fundadas dúvidas quanto ao arguido/recorrente, violando-se, assim, o princípio «in dúbio pro reu» constitucionalmente consagrado” (conclusões 3.ª a 7.ª).
O que o recorrente afirma é que o tribunal errou na apreciação e valoração da prova produzida e que o resultado do processo probatório devia ser, pelo menos, uma dúvida insanável.
Vejamos então se o tribunal incorreu nesse erro de julgamento.
Neste conspecto, o n.º 3 do art.º 412.º faz recair sobre o recorrente os seguintes ónus[16]: o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
É com base nesta norma que se tem defendido, sem discrepâncias, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
Mas se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”[17].
É esse exercício que procuraremos fazer de seguida, mas não pode olvidar-se que uma das grandes limitações do tribunal de recurso quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efectuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto directo com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
Não obstante, o papel fiscalizador deste tribunal não fica inteiramente prejudicado, pois sempre pode apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência, isto é, se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório de que o tribunal dispôs.
As concretas provas que, segundo o recorrente, imporiam decisão diversa da recorrida seriam aquelas em que o tribunal se baseou para o condenar, mas procura desvalorizar essas provas.
Assim faz em relação aos depoimentos dos guardas da GNR que, de uma forma ou de outra, estiveram envolvidos na investigação deste caso, como as testemunhas F… (do depoimento prestado, resultou claro que o depoente não presenciou qualquer transacção, referindo apenas o que esses indivíduos lhes comunicaram, indivíduos que, no entanto, não foram ouvidos como testemunhas, pelo que o depoimento desta testemunha não pode servir como meio de prova nos termos do art.º 129. do C.P.P., diz o recorrente), G… (apenas interveio na busca domiciliária e “na abordagem realizada na estrada … onde não presenciou quaisquer trocas de produto estupefaciente” e “é perfeitamente consentâneo que sendo o arguido/recorrente toxicodependente detenha consigo droga nas quantidades indicadas nos autos”, pelo que do seu depoimento “não decorre qualquer prática do crime de tráfico de estupefacientes”) e H… (afirmou ter presenciado vendas de haxixe feitas pelo arguido/recorrente, mas o seu depoimento “ficou abalado pelas imprecisões do mesmo, uma vez que, ora porque por vezes a testemunha refere que nunca viu nenhuma venda, ora porque refere que viu o arguido/recorrente a vender a uns indivíduos no café "I…", café “que não corresponde ao que é referido na acusação e referenciado pelos próprios agentes policiais, ou seja, o café «J…”).
Conclui, então, o recorrente que “dos depoimentos dos agentes policiais, ora testemunhas, não se vislumbra (…) onde reside a prova inatacável, segura, para além de toda a dúvida razoável, que possa fundamentar a existência de tráfico de produtos estupefacientes imputável ao arguido/recorrente” (conclusão 22.ª).
A mesma tentativa de desvalorizar a prova testemunhal é empreendida pelo recorrente relativamente às testemunhas K… (do seu depoimento resulta que o comportamento do arguido/recorrente é adequado com a sua qualidade de consumidor e não com a qualidade traficante conforme quer fazer crer o tribunal "a quo") e L… (“a defesa procurou obter a sua descredibilização, tendo concluído pela falsidade do depoimento prestado por esta em sede de audiência” porque a testemunha está detida em estabelecimento prisional e tem uma relação conflituosa com o arguido a qual resultou na inimizade destes”, além de queo tribunal «a quo» (…) considerou este testemunho bastante frágil relativamente ao arguido C…” e também quanto a si não devia ter merecido qualquer credibilidade do tribunal).
Além da análise crítica feita a propósito do valor probatório dos “relatórios de vigilâncias” e do depoimento da testemunha H… (que as realizou), plasmada no trecho da fundamentação já transcrito supra, os senhores juízes que integraram o Colectivo que julgou o caso fundamentaram assim a sua convicção:
“Vejamos, então, os elementos disponíveis que deverão ser conjugados no momento da análise dos relatos feitos e dos fotogramas captados.
Desde logo a testemunha L…, inquirido em audiência de julgamento, declarou ter em diversas ocasiões adquirido [esta testemunha referiu-se a aquisições semanais] haxixe ao arguido B…, em 2010 e 2011, pagando entre € 5,00 e € 10,00 por cada aquisição [é certo que a defesa procurou descredibilizar este depoimento, invocando e realçando um conflito que terá surgido entre a testemunha e o arguido B…, e que na opinião da defesa constituirá a motivação das afirmações pela mesma feitas, que reputa de falsas. Desde logo dir-se-á considerar-se manifestamente precipitada a conclusão pela falsidade de um depoimento prestado em audiência de julgamento tendo apenas como fundamento eventual litígio cujo conteúdo e origem se desconhece, mas que a própria testemunha espontaneamente reconheceu – dito de forma mais linear: não será por alguém ter relação conflituosa com o arguido que daí necessariamente seguirá que mente só porque em tribunal afirma factos contrários ao interesse do arguido. E a verdade é que nada se vê que permita indiciar a mentira no depoimento prestado pela testemunha L…, que até sem qualquer rebuço reconheceu não estar de boas relações com o arguido B…].
(…)
Sobre o arguido D… dir-se-á desde logo que, em audiência de julgamento, a testemunha K… reconheceu ter pelo menos em 2 ocasiões adquirido haxixe ao referido arguido, tendo pago cerca de € 5,00 de cada vez, numa dessas ocasiões sendo detido pelas autoridades policiais no momento em que havia feito a aquisição (veja-se, a este propósito, o auto de apreensão que consta de fls 669, os documentos que constam de fls 670 e 671, e o resultado do exame toxicológico que consta de fls 855).
Também a testemunha L… em audiência de julgamento reconheceu ter, em diversas ocasiões (a testemunha referiu aquisições semanais), no decurso dos anos de 2010 e 2011, adquirido haxixe ao arguido D…, pelo preço de € 5,00 e € 10,00 (sobre a credibilidade do depoimento desta testemunha repete-se o que acima se deixou dito a propósito do arguido B…).
A estes elementos acresce a apreensão de haxixe que foi encontrado na posse do arguido D… (num total de cerca de 7,5 gramas, quantidade em abstracto perfeitamente compatível com o simples consumo – cfr auto de apreensão que consta de fls 641 a 657 e resultado do exame toxicológico que consta de fls 850 e 851)”.
Como está bom de ver, o que faz o recorrente, num típico fenómeno de inversão do papel dos personagens no processo, é contrapor (e sobrepor) a sua própria análise da prova produzida e a convicção que tem sobre os factos à convicção que o tribunal de 1.ª instância formou sobre os mesmos factos, com base na prova produzida e livremente apreciada segundo as regras da lógica, da razão e da experiência.
O modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efectuado pelo ”tribunal a quo”, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer erro e não é sindicável por este tribunal.
Esquece, assim, o princípio da livre apreciação da prova, cuja violação imputa ao tribunal (é com essa imputação que inicia a motivação do seu recurso).
Em termos simples e sintéticos, este princípio exprime a ideia de que no ordenamento jurídico que o acolhe, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador, como acontecia no sistema da prova legal), pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com a livre convicção do julgador (também designada por íntima convicção).
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só[19]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Mas a liberdade[20] do convencimento que conforma o modelo da livre apreciação não significa ausência de obstáculos ou limites na amplitude da actividade de investigação e valoração do juiz, que não é inteiramente livre de valorar, adquirir, admitir e escolher a prova.
Foi a percepção dos desvirtuamentos sofridos pelo princípio da livre apreciação da prova que levou a uma refundamentação do critério para evitar o subjectivismo (que acaba por ser a máscara do arbítrio).
A liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva[21].
Como salienta o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 185), do que se trata é de uma “liberdade para a objectividade” (não a objectividade científica, sistemático-conceitual e abstracto-generalizante, mas antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção[22]), o que é dizer que, “por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
A convicção do julgador é sempre e necessariamente uma convicção pessoal, mas também “uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros” (J. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 203).
Os limites da liberdade valorativa da prova no âmbito penal são as já mencionadas regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.
Por isso é absolutamente fundamental que o juiz explique e fundamente a sua decisão e deve preocupar-se em ser claro, racional e objectivo na motivação da sua decisão (e não escudar-se em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação), de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objecto de controlo.
Escusado será salientar que também a prova testemunhal está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova. Mas, como é afirmação corrente, apreciar livremente as provas não é apreciá-las arbitrariamente e, muito menos, apreciá-las de modo a chegar à decisão que ao tribunal parecer justa.
Sendo, porventura, aquela que maior importância assume como instrumento essencial de reconstituição dos factos (embora no processo penal não tanto como no processo civil, em que, frequentemente é a única prova existente), não podemos ignorar que prova testemunhal tem fragilidades não despiciendas.
Na formação da convicção do tribunal foram particularmente relevantes os depoimentos dos elementos da GNR que participaram na investigação, com destaque para o da testemunha H…, e é perfeitamente compreensível essa opção do tribunal.
Embora qualquer testemunha esteja obrigada a responder com verdade às perguntas que lhe são colocadas (é esse um dos deveres que, nos termos do art.º 132.º do Cód. Proc. Penal, vinculam as testemunhas), é legítimo afirmar que, sobretudo pelas funções que exercem, sobre determinado tipo de pessoas recai um particular dever de ser fiel à verdade. É o caso dos órgãos de polícia criminal, sobretudo daqueles que se dedicam à investigação criminal. Por isso, não havendo motivos susceptíveis de afectar a sua credibilidade, é natural que mereçam do julgador uma especial confiança quando relatam aquilo que directamente percepcionaram.
Porque recebem adequada preparação, uma das qualidades que os distingue é a de saber fixar a atenção sobre a parte importante de um acontecimento complexo, de maneira a percepcionar e recordar aquilo que é verdadeiramente relevante.
Aliás, qualquer percepção é uma análise parcial da situação de que acentua um aspecto em detrimento de outros.
É, pois, perfeitamente aceitável que o depoimento da testemunha H… (que afirmou e reafirmou ter presenciado várias situações em que o arguido/recorrente entregou haxixe a pessoas que para tanto o abordavam nos locais que ele, habitualmente, frequentava, recebendo delas dinheiro) fosse encarado como fidedigno pelos juízes que integraram o Colectivo.
Por outro lado, relativamente a outra testemunha (L…) cujo depoimento também forneceu um contributo relevante para a descoberta da verdade, o tribunal não omitiu o facto de ela estar de más relações (em conflito) com o arguido/recorrente.
É evidente que essa circunstância é importante na avaliação da credibilidade da testemunha, mas a justificação fornecida pelo tribunal para não ter cedido à argumentação da defesa, que procurou (sem sucesso) descredibilizá-la, é convincente.
De tudo o que se expôs sobre os argumentos expendidos pelo recorrente para obter a alteração da decisão em matéria de facto, a conclusão que, inevitavelmente, se extrai é que as provas indicadas não só não impõem decisão diversa da recorrida como nem sequer a admitem ou sugerem.
Para ter sucesso na impugnação da decisão sobre matéria de facto, o recorrente teria que evidenciar que ela não está objectiva e logicamente fundamentada. Não podia limitar-se a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre aqueles factos, esquecendo o princípio da livre apreciação da prova.
Concluindo, a fundamentação do acórdão recorrido enuncia os elementos que constituem o núcleo essencial da sua imposição e aceitabilidade face aos seus destinatários directos (os sujeitos processuais) e perante a comunidade, permitindo alcançar que, ao contrário do que pretende o recorrente, ela não é fruto do arbítrio do julgador, mas sim de um processo sério assente em juízos de racionalidade, de lógica e de experiência sobre o material probatório de que o tribunal pôde dispor, cumprindo, pois, a sua missão.
Não há, pois, motivo atendível para alterar a decisão sobre matéria de facto.

A (pretendida) suspensão da execução da pena de prisão
O recorrente não questiona o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, mas insurge-se contra a pena que lhe foi cominada (recorde-se, 22 meses de prisão), dizendo que o tribunal «violou o art.º 71.º do C.P., que impõe que o julgador dê preferência à pena não privativa de liberdade "sempre que ela se mostre suficiente para promover a recuperação social do delinquente e satisfaça as exigências de reprovação e prevenção do crime”».
Quis, certamente, referir-se ao artigo 70.º do Código Penal, a norma que define aquele critério de escolha da pena.
A preferência pela pena não detentiva pressupõe que, no caso concreto, seja aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade. No entanto, não é caso.
Com efeito, o arguido/recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do artigo 25.º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que estatui, não uma pena compósita alternativa (prisão ou multa), mas, apenas, a pena de prisão de um a cinco anos.
Por isso, cremos não atraiçoar o pensamento do recorrente se considerarmos que o que este pretende é, tão só, que o tribunal de recurso sindique a decisão da primeira instância de negar a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.
Pode considerar-se uniforme a jurisprudência no sentido de que a suspensão da execução da pena não é uma faculdade de que o juiz pode, ou não, usar, mas antes um poder-dever, isto é, um poder vinculado. Por isso que a decisão do tribunal, qualquer que ela seja, exige uma fundamentação específica, devendo explicitar as razões do juízo de prognose (positivo ou negativo) que formule quanto ao comportamento futuro do condenado (cfr., entre outros, os acórdão do STJ, de 20.02.2003, CJ/Acs STJ, 2003, T. I, 206, e de 11.02.2010, www.dgsi.pt/jstj, e o acórdão do TRL de 27.01.2010, www.dgsi.pt/jtrl; jurisprudência que acolhe a doutrina de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 341-342), constituindo a falta de pronúncia expressa uma nulidade que é de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 379.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do Cód. Proc. Penal (cfr. acórdão do STJ, de 20.02.2008, www.dgsi.pt/jstj).
Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos), há que indagar se ocorre o respectivo pressuposto material.
O tribunal “a quo” entendeu que não e justificou assim a conclusão a que chegou:
“Este arguido apresenta duas condenações, uma pela prática de um crime de furto qualificado e outra pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, nos dois casos com decisões posteriores aos factos que nos ocupam.
Num dos processos (nº 669/10.8PCMTS), apesar de a pena ter sido julgada extinta pelo decurso do prazo de suspensão, a colaboração do arguido no cumprimento das determinações impostas apresentou registo de instabilidade.
Mas a situação agrava-se de forma dramática se analisarmos o estado do cumprimento da pena aplicada no âmbito do processo nº 19/09.6GGVNG - não tem observado o cumprimento dos deveres que lhe são impostos pela DGRS, quer de adequação prossocial, quer quanto à comparência às entrevistas agendadas, não cumprindo com o plano terapêutico fixado e o regime de consultas determinadas.
Já no âmbito de um processo de contra-ordenação de que foi alvo pelo consumo de estupefacientes deixou de colaborar com a CDT e com o CRI de Gondomar, mantendo registo faltoso nas consultas e sucessivas remarcações.
Não há notícia de ter desempenhado qualquer actividade lícita remunerada, e apresenta pouca expressão mobilizadora de iniciativa própria na procura de trabalho.
O arguido não reconhece a problemática aditiva, desvalorizando os seus consumos de haxixe e a inserção em grupo de pares com idêntico comportamento.
Se no caso é possível realizar algum juízo de prognose quanto ao futuro comportamento do arguido, ele sem dúvida passará pela afirmação da quase certa insuficiência da mera censura do facto e da ameaça da pena como garante do futuro comportamento normativo do arguido.
Impõe-se o cumprimento da pena de prisão aplicada”.
Sendo considerações de prevenção geral e de prevenção especial (de (res)socialização) que estão na base da aplicação das penas de substituição, o tribunal só deve recusar essa aplicação “quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente” ou, não sendo o caso, a pena de substituição só não deverá ser aplicada “se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”[23].
Como decorre do trecho transcrito que assentou a decisão na impossibilidade de formular um juízo de prognose favorável relativamente à conduta futura deste arguido e fundamentou, de forma profícua, esse juízo.
Para contrariar este juízo de prognose negativo formulado pelo tribunal, o recorrente limitou-se a afirmar que “está socialmente integrado, inscrito no centro de emprego, pelo que, tudo ponderado, constitui uma prognose favorável de que no futuro o arguido pautará o seu comportamento pelo respeito pela Lei e ordem” (conclusão 53.ª).
O juízo de prognose de que aqui se fala nada mais é que uma previsão sobre o comportamento futuro do arguido, ou seja, trata-se de saber se, tendo em conta a sua personalidade, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste, é possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sobretudo se bastarão para afastar o arguido da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão[24].
O arguido/recorrente tem, apenas, 26 anos de idade e esta é já a terceira condenação em pena de prisão, sendo certo que já sofreu uma outra condenação, em 2011, também por tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Em boa verdade, o arguido/recorrente reúne em si um conjunto de factores que nos levam a considerar elevada a probabilidade de voltar a delinquir:
● é oriundo de um agregado familiar de condição sócio-económica carenciada e o seu processo de socialização decorreu no seio de uma família com disfunções ao nível da supervisão parental e consistência das regras;
● o seu percurso escolar foi pautado pelas dificuldades de aprendizagem e pelo insucesso;
● não adquiriu hábitos de trabalho e há vários anos que está desocupado;
● desde os 15 anos de idade que consome haxixe e está inserido em grupo de pares com idêntico comportamento anti-social;
● no meio social em que se insere é conotado com a inactividade laboral e a inserção grupal desviante.
● não tem cumprido os deveres que condicionam a suspensão da execução da pena de prisão aplicada no âmbito do processo comum n.º 19/09.6GGVNG;
● não reconhece a problemática aditiva, desvalorizando os seus consumos de haxixe e a inserção em grupo de pares com idêntico comportamento.
Se é certo que o arguido/recorrente não passa de um “dealer de rua”, também não podemos esquecer que quem se envolve no tráfico de drogas dificilmente abandona a sua actividade porque, normalmente, o que motiva os traficantes é a obtenção de proventos económicos sem esforço, sem terem que trabalhar. Por isso é fraca a susceptibilidade de os traficantes serem influenciados pela pena e é grande a taxa de reincidência no crime de tráfico de estupefacientes.
Se é certo que se deve privilegiar a socialização em liberdade, não é menos certo que a defesa do ordenamento jurídico não pode ser postergada, sob pena de se sacrificar a função de tutela de bens jurídicos que a pena, irrenunciavelmente, desempenha[25].
Em conclusão, não merece censura a decisão recorrida de denegar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido/recorrente.

III – Dispositivo

Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso de D… e, consequentemente, confirmar o acórdão condenatório recorrido.
Por ter decaído, pagará o recorrente taxa de justiça que se fixa em cinco UC´s (artigos 513.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 28-05-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
________________
[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Não reproduzimos os factos (nomeadamente os relativos às condições de vida e processo de socialização) que respeitam, apenas, aos arguidos não recorrentes.
[3] Nesta actividade, que pode levar à formulação da hipótese acusatória, assume papel fundamental o Ministério Público. Mas, não tendo o nosso processo penal uma estrutura acusatória pura, o princípio da investigação ou da verdade material impõe que o juiz do julgamento também tenha um papel importante no âmbito da recolha de prova. No entanto, fundamental na actividade jurisdicional é o momento da valoração das provas, através da qual os elementos de prova dão lugar ao resultado probatório, é dizer, “o pressuposto da decisão que consiste na formação através do processo no espírito da autoridade decisora da convicção de que certa alegação singular de facto, ou a existência ou não de certos factos, é justificadamente aceitável como fundamento da mesma decisão” (cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, p. 143).
[4] Como já se decidiu no acórdão da Relação de Évora, de 25.09.2012, acessível em www.dgsi.pt, “não existe impedimento legal à valoração, em julgamento, de um relatório policial de vigilância, posto que corroborado pelo testemunho do agente que nela participou”.
[5] “O regime dos «conhecimentos da investigação» em processo penal – Reflexões a partir das escutas telefónicas”, comunicação apresentada nas Jornadas organizadas pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto e pela Associação Jurídica do Porto e publicada, juntamente com as demais comunicações, sob o título “As alterações de 2013 aos Códigos Penal de Processo Penal: Uma reforma «Cirúrgica»?”, Coimbra Editora, 153 e segs.
O citado autor adverte, contudo, que tem sido outra a posição do Supremo Tribunal Alemão (BGH), que, sistematicamente, tem decidido que a circunstância de o crime do catálogo que legitimava e suportava a medida não se confirmar não determina a proibição de valoração dos conhecimentos da investigação, bastando a existência da suspeita da presença do crime do catálogo no momento da autorização da medida. Orientação que é partilhada por parte da doutrina, sobrelevando-se a ideia da «continuidade da unidade de sentido histórico-processual do conglomerado fáctico em nome do qual foi autorizada a medida” (op. cit, p. 177).
[6] No mesmo sentido, o já citado acórdão desta Relação, de 28.01.2009.
[7] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[8] Sobre as repercussões extra-processuais do princípio, cfr. o estudo de José Souto Moura, “A questão da presunção de inocência do arguido”, Rev. do Ministério Público n.º 42, 31 e segs. [9] Assim, também, o acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt), onde se pode ler: “o princípio in dubio pro reo representa a outra face do princípio da livre apreciação da prova; configura um limite normativo a este princípio ante uma dúvida positiva e racional que impeça um juízo de certeza condenatória – o qual não exclui a possibilidade de as coisas se passarem num dado sentido, mas não afasta a consistente hipótese do contrário –, ou seja, se a prova é insuficiente ou contraditória vale o princípio in dubio pro reo.
[10] Como bem assinala o magistrado do Ministério Público na sua resposta, não chega a ser uma regra sobre produção e valoração da prova.
[11] Importa, no entanto, aqui fazer notar que esta não é a única perspectiva do princípio e do seu âmbito de aplicação. Por exemplo, o entendimento do Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, vol. I, 217) é o de que o in dubio pro reo se assume como um princípio geral de processo penal, não circunscrito a matéria de facto, antes podendo a sua violação conformar também uma verdadeira questão de direito que cabe dentro dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. É esta, também, a posição defendida por Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 1102) que considera não constituir o vício de erro notório na apreciação da prova a violação do princípio in dubio pro reo. Porém, o STJ tem rejeitado a possibilidade de invocar o princípio em sede de interpretação ou de subsunção legal dos factos.
Sendo entendido na perspectiva de que respeita a matéria de prova, a sua eventual violação será insindicável pelo STJ, a não ser que o vício decorra, de forma evidente, da decisão recorrida (nomeadamente da fundamentação da decisão de facto).
[12] Mas, se não tem qualquer dever de dizer a verdade, ao contrário do que recorrentemente se propala, também não tem o direito de mentir. Se o arguido não quer contar (toda ou parte da) a verdade, deve remeter-se ao silêncio (assim, o acórdão do TC n.º 172/92, www.tribunalconstitucional.pt).
[13] Embora, em bom rigor, não se possa falar em ónus da prova em processo penal.
[14] Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), disponível em www.dgsi.pt/jstj.
[15] Citado por Manuel Simas Santos, M. Leal-Henriques e João Simas Santos, in “Noções de Processo Penal”, Rei dos Livros, 2010, 426.
[16] Além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
[17] No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons.Henriques Gaspar) em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac. n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º, 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida.
[18] Uma das poucas excepções é a prova pericial.
[19] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt/jstj), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[20] Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol, 199 e ss.), “uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada “verdade material”.
[21] A prova não pode nunca basear-se numa intuição da verdade de uma proposição.
[22] A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, Coimbra, 1968, pág.52
[23] Professor Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, 333.
[24] Como afirma o Professor Figueiredo Dias, Ob. Cit., 343, é na “prevenção da reincidência” que se traduz o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização.
[25] Uma das dimensões da prevenção geral positiva é o restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual e é através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da validade das normas violadas e, portanto, da importância dos bens jurídicos lesados, que essa mensagem de confiança é dada.