Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
195/12.0TBSJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
Nº do Documento: RP20171207195/12.0TBSJM.P1
Data do Acordão: 12/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 114, FLS.244-254)
Área Temática: .
Sumário: I - O “prejuízo … para os credores” a que se refere o art.º 238º, nº 1, al. d), do CIRE, não resulta automaticamente do atraso do devedor na apresentação à insolvência, havendo que ponderar todo o conjunto de circunstâncias ligadas ao comportamento do devedor de favor/desfavor em relação aos credores desde que se verificou a sua situação de insolvência (incumprimento generalizado das suas obrigações, por incapacidade económica) até à atualidade, ainda que sem vantagens económicas para o próprio.
II - Para o efeito, se o devedor alienou património, é necessários provar factos concretos que indiquem que a sua situação de insolvência já se verificava nessa data.
III - Delineados pela negativa, é do Administrador da Insolvência e dos credores o ónus da prova dos requisitos previstos na citada al. d).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 195/12.0TBSJM.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
Vem o presente recurso da decisão proferida no processo de insolvência em que são requerentes e devedores B… e C…, casados um com o outro sob o regime da comunhão geral de bens, residentes na Rua …, nº .., da freguesia e concelho de …, pela qual, na sequência de pedido de exoneração do passivo restante apresentado na petição inicial, o tribunal indeferiu liminarmente tal pretensão ao abrigo do art.º 238º, nº 1, al. d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1], depois de, ouvidos o Administrador da Insolvência e os credores presentes na Assembleia de Credores, se ter pronunciado desfavoravelmente o credor Banco D…, S.A.

Na apelação, os recorrentes formulam as seguintes conclusões, ipsis verbis:
«I) A decisão ora recorrida indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo apresentado pelos devedores;
II) Após uma análise à verificação ou não dos requisitos do Artigo 238º do C.I.R.E., a decisão recorrida considera verificar-se, em concreto, parte do requisito da alínea d) de tal preceito;
III) Concluindo que a apresentação dos devedores à insolvência foi tardia, e que tal se traduziu num prejuízo para os credores destes;
IV) Concluindo logo de seguida que tal prejuízo não aconteceu;
V) O Artigo 238º do C.I.R.E. elenca os vários requisitos cuja verificação impede que seja concedida a exoneração do passivo aos insolventes que a tenham, validamente, solicitado.
VI) No caso em concreto, está apenas em questão saber se se verifica, em parte, o requisito constante da alínea d) do Artigo 238º do C.I.R.E.;
VII) Isto é a questão prende-se com saber se apresentação tardia dos devedores à insolvência se traduziu ou não num prejuízo para os credores;
VIII) Entendendo-se que a resposta a tal questão deve ser negativa;
IX) Como aliás considerou a decisão ora recorrida.
X) Mal andando assim o tribunal a quo, que reconhecendo que a apresentação tardia à insolvência não acarretou prejuízo para os credores, indefere o pedido de exoneração do passivo dos insolventes.
XI) Na verdade sobre os devedores, enquanto pessoas singulares, não pendia uma obrigação de se apresentarem à insolvência;
XII) Pelo que a descrição da sua apresentação como tardia não tem, por si só, qualquer efeito impeditivo da concessão da exoneração do passivo que requereram;
XIII) A lei, no já mencionado Artigo 238º alínea d) do C.I.R.E., determina, para que tais efeitos se produzam, que a apresentação tardia tenha causado prejuízos aos credores;
XIV) O que como já vimos, e é reconhecido na decisão recorrida, não aconteceu;
XV) A jurisprudência tem, na sua maioria, entendido que os requisitos do Artigo 238º do C.I.R.E. são requisitos substantivos, e não meramente, processuais;
XVI) Requisitos que se traduzem em factos impeditivos do direito dos insolventes à exoneração do passivo e;
XVII) Impõem como tal o ónus da sua alegação e prova sobre o administrador da insolvência e sobre os credores;
XVIII) É ainda entendido que o requisito “prejuízo para os credores” não é de verificação automática;
XIX) E que não se pode presumir a sua existência pelo simples facto de se considerar a apresentação dos devedores à insolvência tardia;
XX) Antes se exigindo que sejam alegados e provados factos que demonstrem os prejuízos efectivos causados aos credores que de tal apresentação decorreram;
XXI) O que não aconteceu no presente caso, cuja decisão, ora recorrida, reconhece que a apresentação tardia dos devedores à insolvência não causou qualquer prejuízo aos credores;
XXII) A decisão de que ora se recorre viola, claramente, o disposto no Artigo 238º alínea d) do C.I.R.E..» (sic)
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As questões a decidir encerram apenas matéria de direito, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Impõe-se encontrar solução apenas para uma questão:
- Saber se, no caso, há --- como entendem os recorrentes ---, ou não há --- como considerou o tribunal recorrido --- fundamento para proferir despacho inicial de admissão de exoneração do passivo restante; na negativa, por falta dos requisitos previstos na al. d) do nº 1 do art.º 238º do CIRE.
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III.
A decisão recorrida deu como provados e relevantes os seguintes factos:[2]
1.º B… e C… apresentaram-se à insolvência em 24 de Fevereiro de 2012;
2.º Como fundamento para o pedido, alegaram que foram sócios de uma sociedade que encerrou a sua actividade e foi declarada em situação de insolvência no ano de 2009, tendo prestado garantias pessoais relativamente às dívidas da sociedade;
3.º Identificaram três processos de execução em que eram executados, instaurados em 2008 e 2009;
4.º Mais referiram que se encontravam reformados e não eram proprietários de quaisquer bens;
5.º Foi decretada a insolvência dos requerentes e designada data para realização da assembleia de credores;
6.º Foi elaborado o relatório previsto pelo artigo 155º do CIRE, tendo sido inventariado um bem, correspondente a um prédio rústico com o valor patrimonial de €1,68. O imóvel em causa foi eliminado no auto de apreensão por se ter constatado, posteriormente, ter sido objecto de expropriação anterior à insolvência (fls. 118);
7.º Realizou-se a assembleia de credores, prevista pelo artigo 156º do CIRE, no decurso da qual foi mencionada a existência de um negócio jurídico – compra e venda de bem imóvel – realizado pelos insolventes que poderia ser passível de resolução em benefício da massa;
8.º Por escritura pública denominada de “compra e venda” outorgada no dia 13 de Novembro de 2008, junta aos presentes autos de fls. 100 a 104, os insolventes declararam vender a E… S. A., pelo preço de cento e cinquenta mil euros, o seguinte bem imóvel: prédio urbano, inscrito na matriz urbana sob o artigo 2.998, freguesia de … e descrito na CR Predial de … sob o n.º 5118;
9.º Com data de 01 de Dezembro de 2008, a empresa compradora e os insolventes assinaram o documento constante de fls. 47 a 55, denominado de “Contrato de Arrendamento”, tendo por objecto o imóvel identificado no artigo anterior;
10.º O registo de aquisição em favor da compradora foi lavrado no dia 11-11- 2008;
11.º O negócio jurídico identificado no artigo 8º foi objecto de resolução em benefício da massa, por parte da Sra. AI;
12.º Os insolventes e a sociedade E… S.A. instauraram, cada um, uma acção de impugnação da resolução que correu seus termos por apenso ao processo de insolvência, respectivamente: apenso C e apenso E;
13.º Nos dois processos os autores desistiram dos pedidos formulados, que foram homologados por sentenças, transitadas em julgado;
14.º O imóvel identificado no artigo 8º foi apreendido em favor da massa, sendo esse o único património apreendido (apenso A);
15.º Foram reclamados e reconhecidos créditos no valor superior a €782.590,08, repartido por quatro credores, três dos quais objecto de processos de execução instaurados em 2008 e 2009;
16.º Foi aberto o incidente de qualificação de insolvência. Na primeira instância foi proferida sentença que considerou a insolvência como culposa, afectando os insolventes pela qualificação. A sentença foi objecto de recurso. Por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 27 de Abril de 2015, foi revogada a sentença proferida pela primeira instância e qualificada a insolvência como fortuita, desafectando os insolventes das consequências da qualificação da insolvência como culposa.
17.º Os insolventes nunca beneficiaram da exoneração do passivo restante;
18.º Estão reformados.
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IV.
Apreciação crítica dos fundamentos da apelação
A questão colocada prende-se exclusivamente com enquadramento jurídico, para o que partiremos dos factos considerados provados na decisão recorrida.
O art.º 235º estabelece o princípio geral de que, se o devedor for uma pessoa singular, pode obter a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao respetivo encerramento.
Este regime, tributário da ideia de fresh start ou de reeducação, tem como objetivo a extinção das dívidas e a libertação do devedor que, mediante o cumprimento de várias condições legais em período de tempo legalmente fixado (5 anos) e reunidos que estejam determinados requisitos, desenvolva uma conduta positiva, favorável à satisfação dos créditos, de tal modo que se revele merecedor, também pelo seu comportamento anterior ao processo de insolvência, do benefício advindo da exoneração (art.ºs 237º, 238º e 239º). Ocorrerá, assim, uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente.
Trata-se, pois, de um benefício concedido aos insolventes pessoas singulares, por exoneração dos seus débitos e permissão da sua reabilitação económica, importando para os credores a correspondente perda de parte dos seus créditos, porventura em montantes muito avultados, que desse modo se extinguem por causa diversa do cumprimento. E porque de um benefício se trata, “é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior e atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, qualificando-a, com ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta”[3]. O prosseguimento do incidente depende de despacho liminar, prevendo o n.º 1 do art.º 238º, pela negativa, os casos em que deve ser proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Do requerimento, sempre a apresentar pelo devedor, deve constar expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas pela lei (art.º 236º, nº 3).
Dos referidos requisitos (ou pressupostos) a observar, uns são de natureza processual, como é o caso dos mencionados no art.º 236º e na al. c) do art. 237º, e outros de natureza substantiva, como acontece com os indicados nas al.s b) a g) do nº 1 do art.º 238º, “ex vi” al. a) do art.º 237º.
Desenvolvendo um pouco aquele ponto, o procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida --- nem podia ser --- logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º.
Não havendo motivo para indeferimento liminar, o juiz profere o denominado despacho inicial do processamento (art.º 239º), continuando a potencial concessão efetiva da exoneração dependente da inexistência de motivos para o indeferimento liminar e ainda do cumprimento, pelo devedor, das condições a que fica obrigado no despacho inicial, além de outros requisitos a que se refere o art.º 237º.
É desse despacho inicial, que inviabilizou a possibilidade de vir a ser concedida a exoneração definitiva do passivo restante, que vem interposto o recurso com fundamento na observância da al. d) do nº 1 do art.º 238º.
É no momento do despacho inicial que se tem de analisar, através da ponderação de dados objetivos, se a conduta do devedor tem a possibilidade de ser merecedora de uma nova oportunidade, configurando este despacho, quando positivo, uma declaração de que a exoneração do passivo restante será concedida, se as demais condições futuras exigidas vierem a ser cumpridas. Nesta matéria, o tribunal não está dispensado do dever funcional de averiguar se, na verdade, em face dos elementos disponíveis no processo, o requerente se encontra em condições de poder beneficiar, primeiro, do “regime de prova” que se abre com o despacho inicial de deferimento do incidente e, depois, cumpridas condições impostas, da efetiva exoneração do passivo restante (art.ºs 237º a 239º, 244º e 245º).
A jurisprudência tem considerado, de modo tendencialmente uniforme, que a enumeração do art.º 238º é taxativa quanto aos fundamentos do indeferimento liminar do pedido de exoneração[4].
Dispõe aquela al. d) que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.
Sendo evidente que, por não serem titulares de empresa (art.º 18º, nº 2), não impendia sobre os requerentes o dever de se apresentarem à insolvência, mas também que os próprios aceitam, na apelação, que a sua apresentação em Juízo para aquele efeito foi tardia por dela se terem abstido nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, está para discutir apenas se, daquele retardamento, ocorreu prejuízo para os credores, sabendo os requerentes ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.[5]
Nos termos do art.º 3º, nº 1, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. Só são determinantes para a caracterização da impossibilidade do cumprimento, as obrigações vencidas. Assim, o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Como assim, não basta o simples decurso do tempo (seis meses contados desde a verificação da situação de insolvência) para se poder considerar verificado o requisito em análise, como acontece, por exemplo, com o avolumar do passivo face ao vencimento dos juros. Tal representaria valorizar um prejuízo ínsito ao decurso do tempo, comum a todas as situações de insolvência, o que não se afigura compatível com o estabelecimento do prejuízo dos credores enquanto requisito autónomo do indeferimento liminar do incidente. Enquanto tal, o prejuízo dos credores acresce aos demais requisitos, é um pressuposto adicional, que aporta exigências distintas das pressupostas pelos demais requisitos, não podendo por isso considerar-se preenchido com circunstâncias que já estão forçosamente contidas num dos outros pressupostos.
Valoriza-se aqui a conduta do devedor --- apurar, nomeadamente, se o seu comportamento foi pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica, devendo a exoneração ser liminarmente coartada caso seja de concluir pela negativa.
A fortiori ratione, ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei não visa mais do que os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles comportamentos geradores de novos débitos (a acrescer àqueles que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer). São estes comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade (verificados os demais requisitos do preceito) de se libertar de algumas das suas dívidas, e assim, conseguir a sua reabilitação económica. O que se sanciona são os comportamentos que impossibilitem, dificultem ou diminuam a possibilidade de os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem --- diz-se ainda no acórdão de 19.5.2010[6].
Analisados os factos provados, o único ato (não há outro) capaz de representar um prejuízo para os credores é a venda de um imóvel pelos devedores à sociedade E…, S.A. A troca/substituição de um imóvel por dinheiro (o respetivo preço), uma contrapartida facilmente sonegável, ou mesmo dissipável, do património dos devedores, pode significar (como terá significado) uma real desvantagem para os credores com direito a recuperar o seu crédito.
A questão é saber se tal prejuízo resultou da não apresentação dos devedores à insolvência nos 6 meses que se seguiram imediatamente à verificação da situação de insolvência ou se se ficou a dever a qualquer outra causa imputável, ou não, aos requerentes.
Da apresentação tardia à insolvência não decorre automaticamente a conclusão de que houve prejuízo; há que demonstrá-lo através de factos impeditivos do direito do devedor afirmado no requerimento em que deduziu a pretensão de exoneração.[7] Correndo risco de nos repetirmos, insiste-se em que aquele prejuízo não é uma decorrência automática do atraso do devedor na apresentação à insolvência, havendo que ponderar todo o conjunto de circunstâncias ligadas ao comportamento do devedor de favor/desfavor em relação aos credores desde que se iniciou a sua situação de insolvência até à atualidade, mesmo que sem vantagens económicas para o próprio.
É importante lembrar que o ónus da prova de cada uma das situações descritas, pela negativa, nas várias alíneas do nº 1 do art.º 238º é dos credores e do Administrador da Insolvência.[8]
A venda do imóvel data de 13 de novembro de 2008. Nessa mesma data, a aquisição foi registada a favor da sociedade compradora.
Sabemos que foram instaurados três processos de execução contra os devedores nos anos de 2008 e 2009, mas também sabemos que, pelo menos, parte das suas dívidas resultam de garantias pessoais prestadas por eles relativamente às dívidas da sociedade de que eram sócios e que esta só foi declarada insolvente no ano de 2009, assim, depois da data em que o contrato de compra e venda do imóvel foi celebrado.
Para que a compra e vende relevasse como ato prejudicial aos credores dos insolventes teria de se ter por demonstrado que aquele ato jurídico foi praticado por eles depois da verificação da situação de insolvência dos devedores.
Pelo menos, um dos referidos processos de execução é posterior à compra e venda e os outros dois podem ser ou não. Faltam elementos de rigor relativamente às datas da sua instauração e da quantia exequenda relativa a cada um deles. Desconhecemos o volume do crédito vencido contra os devedores antes da data do contrato de compra e venda. Nem os factos provados oferecem rigor quanto à sua existência anterior.
Pese embora os especiais contornos da situação, designadamente o elevado valor total do crédito (€782.590,08), seria excessivo aliviar a prova e presumir que os devedores já se encontravam em situação de insolvência pessoal antes da declaração de insolvência da sociedade de que eram sócios. Por falta de elementos de facto, não é de excluir que, aquando da compra e venda, no ano de 2008, houvesse razões para acreditar que o seu património não seria chamado a responder pelas dívidas da sociedade, pelo menos, por valores que não fosse possível o património dos devedores suportar.
Em novembro de 2008 não é conhecida uma qualquer situação de incumprimento dos devedores que evidencie a sua impotência para satisfazer a generalidade dos seus compromissos, desde logo por nem sequer conhecermos quais são eles a essa data.
Afinal, qual era a situação patrimonial daquela sociedade em novembro de 2008? Qual era o conhecimento dos devedores sobre essa situação?
Quando é que se verificou a situação de insolvência dos devedores?
Não há factos que o definam --- nem na sentença que os declarou insolventes --- não nos sendo lícito presumi-los segundo um simples critério de probabilidade.
Na falta de factos que permitam concluir sobre a verificação da situação de insolvência dos devedores antes da data em que a sociedade de que eram sócios foi declarada insolvente, designadamente na data em que venderam o prédio, não podemos concluir pela verificação dos requisitos do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previstos na al. d) do nº 1 do art.º 238º.
Com efeito, não há fundamento para a rejeição liminar daquela pretensão, nos termos do art.º 239º, nº 2.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando a admissão liminar do procedimento de exoneração do passivo restante com cumprimento, na 1ª instância, do disposto no art.º 239º, nº 2, e seg.s do CIRE.
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Custas da apelação pela massa insolvente.
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Porto, 14 de novembro de 2017
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Adiante designado por CIRE e diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Por transcrição.
[3] Acórdãos desta Relação de 05.11.2007, proc. 0754986, e de 09.01.2006, proc. 0556158, in www.dgsi.pt, citado no acórdão também desta Relação de 8.6.2010, publicado na mesma base de dados, e Assunção Cristas, in “Novo Direito da Insolvência”, RFD da UNL, 2005, pág. 264, também ali citada.
[4] Cf. acórdãos da Relação do Porto de 15.7.2009 e de 31.5.2010, e da Relação de Lisboa de 24.11.2009, in www.dgsi.pt.
[5] Cf. Acórdãos desta Relação do Porto de 9.12.2008, proc. 0827376 (já citado), de 15.07.2009, proc. 6848/08.0TBMTS.P1 e de 25.03.2010, proc. 4501/08.4TBPRD-G.P1, citados no acórdão da mesma Relação de 20.4.2010, e ainda o acórdão de 8.4.2010, ainda da Relação do Porto, todos disponíveis in www.dgsi.pt, e acórdão da Relação de Lisboa de 24.11.2009, atrás citado).
[6] Neste mesmo sentido subscrevemos já os acórdãos proferidos nos processos nº 135/09.4TBSJM.P1 e 2329/09.TBMAI-A.P1 com datas de 14.1.2010 e de 7.10.2010, o primeiro publicado no sítio www.dgsi.pt.
[7] Acórdão da Relação de Lisboa de 3.10.20213, in www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.3.2013, proc. 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1, acórdão da Relação do Porto de 9.2.2012, proc. 6021/10.8TBVFR-C.P1 e acórdão da Relação de Coimbra de 12.6.2012, proc. 1034/11.5T2AVR-C.C1, entre muitos outros, na posição que nos parece, no mínimo, maioritária, in www.dgsi.pt.