Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1737/11.4TVLSB.L1-7
Relator: LUÍS LAMEIRAS
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
PROVAS
VIDEOVIGILÂNCIA
PROTECÇÃO DE DADOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – O direito à prova, decorrência de um adequado acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, tem suporte constitucional no artigo 20º nº 1, da Constituição da República, e emana do artigo 515º do Código de Processo Civil;
II – O registo de imagem, obtido através de um sistema de segurança de vídeovigilância instalado num estabelecimento de supermercado, tem virtualidade para poder constituir um meio de prova documental em processo civil (artigos 368º do Código Civil, 527º e 652º, nº 3, alínea b), início, do Código de Processo Civil);
III – A entidade responsável pela obtenção dessas imagens está vinculada, por razões associadas à protecção de direitos constitucionais dos cidadãos, a proceder, 30 dias após a sua recolha, à respectiva destruição (artigos 4º, nº 4, da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro, e 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro);
IV – Mas o próprio visado nessas imagens pode consentir e expressamente solicitar a respectiva utilização, como meio de prova em acção judicial que se proponha intentar (artigos 3º, alínea b), 6º, início, e 11º, nº 1, alínea b), início, da Lei nº 67/98);
V – Nessa hipótese, a preservação e salvaguarda do documento, para lá dos 30 dias referidos em III –, pode ter de lhe exigir que, através de um procedimento preventivo, assemelhado ao que o Código de Processo prevê para a produção antecipada de prova, provoque uma decisão judicial que dê cobertura à respectiva conservação, em vista do objectivo indicado em IV – (artigos 520º do Código de Processo Civil e 10º, nº 3, do Código Civil);
VI – Se, para formular o pedido de conservação da prova por documento, o interessado faz uso do quadro adjectivo típico do procedimento cautelar comum, é sensato e equilibrado o tribunal, ao invés da sua mera rejeição, proceder à respectiva convolação para o procedimento preventivo referido em V – (artigos 199º, nº 1, e 265º-A, do Código de Processo Civil);
VII – Sendo nula a decisão do tribunal “a quo”, por preterição do contraditório, mas dispondo os autos de todos os elementos necessários para o consciencioso conhecimento do mérito da apelação, deve o tribunal “ad quem”, para lá de decretar aquela anulação, proceder também a este conhecimento (artigo 715º, nº 1, do Código de Processo Civil).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. A instância cautelar.
1.1. M… suscitou em 9 de Agosto de 2011 instância de procedimento cautelar comum contra P… SA, solicitando a notificação da requerida para (1) guardar as imagens recolhidas da requerente, obtidas pelo sistema de videovigilância instalado no seu estabelecimento de supermercado …, sito na Rua …, no dia 29 de Julho de 2011, e (2) lhe entregar uma cópia dessas imagens; bem como ainda a fixação de sanção pecuniária compulsória, em montante adequado, como meio de assegurar a efectividade da providência.
Alega, em síntese, ter 78 anos de idade e que, no referido dia, entrou no dito estabelecimento onde, sem qualquer sinal de aviso e mostrando-se o chão escorregadio, se desequilibrou e deu uma queda; com o que suportou ferimentos e foi hospitalizada. Ora, o supermercado tem sistema de vídeovigilância; solicitou à requerida o acesso e a entrega das imagens recolhidas; mas ela respondeu apenas poder preservar as imagens por 30 dias (até ao dia 28 de Agosto de 2011). Reiterou o pedido; mas a requerida não facultou o acesso às imagens, nem cópia. Ora, pretende fazer valer direito indemnizatório, por a requerida não assegurar as condições de segurança que teriam permitido evitar a queda. E como estava sozinha quando ocorreram os factos, aquelas imagens mostram-se de extrema importância para a sua reconstituição; impondo-se sejam preservadas, guardadas e lhe sejam entregues, já que quer fazer uso delas como meio de prova na futura acção judicial. Com as imagens, pretende mostrar que a queda se deveu ao estado escorregadio do chão, sem qualquer tipo de aviso ou alerta; mas se a requerida as destruir, como é sua intenção, inviabilizará esse elemento de prova determinante e essencial no apuramento dos factos. Em suma, tem direito de acesso às imagens; e a forma de o assegurar é preservando-as. E há justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil, quer o exercício desse direito, quer a produção da prova dos termos em que ocorreu a queda.

1.2. Foi proferido despacho de citação.
E neste, advertida a requerida do dever de “conservar a gravação das imagens recolhidas … relativas à ora requerente … até à decisão do presente procedimento cautelar” (fls. 31).
O acto da citação teve lugar no dia 16 de Agosto de 2011 (fls. 35).

1.3. A requerida produziu oposição.
Sublinha que “não se opõe ao peticionado nos presentes autos” (fls. 39) e que nunca foi sua intenção a de não conservar as gravações em questão. Ademais, a factualidade própria da responsabilidade civil será objecto de apreciação em acção principal; fora da finalidade da pretensão cautelar. Estritamente quanto a esta, a requerente solicitou a conservação das imagens; tendo-se-lhe respondido que a sua preservação, para lá de 30 dias, seria feita mediante determinação judicial para o efeito. Trocou-se correspondência; foi viabilizado à requerente o visionamento das imagens, em dia e hora agendados; e informada que elas não seriam destruídas e entregue cópia se justificasse pedido de autorização junto da Comissão Nacional de Protecção de Dados ou de autoridade judiciária. Ou seja, a requerida prosseguiu sempre uma conduta cooperante.
E termina a reiterar “a total disponibilidade em facultar cópia das imagens em apreço em suporte físico mediante determinação nesse sentido por parte [do] tribunal” (fls. 45); apenas se opondo ao “pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória”.

2. A seguir, o tribunal “a quo” proferiu decisão final.
Considerou que o “direito ameaçado”, que as providências cautelares se destinam a salvaguardar, “são direitos substantivos, não visando … a obtenção de meios de prova a serem utilizados em futuras acções, nem a conservação desses meios de prova”. Ainda, que compete à Comissão Nacional de Protecção de Dados “fazer assegurar o direito de acesso à informação, autorizar excepcionalmente a utilização de dados pessoais para finalidades não determinantes da recolha, fixar o tempo de conservação dos dados pessoais …, etc.”.
E terminou a concluir que “porque não é este o meio processual adequado, nem seríamos competentes para a apreciação do concreto pedido formulado, absolvo a requerida da instância”.

3. A instância recursória.
3.1. A requerente não se conformou; e interpôs recurso de apelação.
Produziu alegações; e rematou-as com conclusões, assim sumariadas:

i. A decisão apelada constitui uma decisão surpresa, já que não deu à recor-rente a possibilidade de exercer o seu direito ao contraditório, violando o nº 3, do artigo 3º, do CPC; padecendo assim de nulidade (artigo 201º, nº 1, do CPC);
            ii. Não houve qualquer invocação de incompetência pela requerida; e acima de tudo houve um juízo prévio de competência por parte do tribunal quando, aceitando o requerimento, ordenou a citação desta e, de imediato, ordenou a preservação, ainda que provisória, das imagens;
            iii. Sem que existisse algum tipo de indício ou comunicação, uma vez que nunca antes referido, o tribunal considerou-se como incompetente para conhecer do pedido;

            iv. A recorrente requereu ao tribunal que ordenasse o acesso às imagens e que fosse entregue cópia delas, para futura produção de prova em acção de indemni-zação a intentar contra a requerida;
            v. A requerida não se opôs quanto a tal pedido;
            vi. O tribunal entendeu que não era competente para conhecer do pedido e que o regime de produção antecipada de prova se não aplicava à obtenção de imagens;
            vii. Do artigo 33º da Lei nº 67/98 se retira que o cumprimento das disposições legais em matéria de protecção de dados pessoais pode ser obtido por meios administrativos ou jurisdicionais;
            viii. A CNPD não constitui o órgão exclusivo para se pronunciar e assegurar esse cumprimento;
            ix. A decisão apelada foi proferida por um tribunal, ou seja, um meio juris-dicional;
            x. Ao contrário do que se afirma na decisão apelada, o tribunal não é incom-petente para decidir acerca do acesso às imagens recolhidas pelo ... em que a requerente aparece;

            xi. O P ainda não permitiu, nem facultou, o acesso às imagens; o que por si só constitui uma violação do direito que assiste à requerente;
            xii. A entidade que recolhe imagens tem a obrigação de as conservar pelo prazo de 30 dias, findo o qual deverão ser destruídas; embora seja facultado ao visado o acesso a elas (artigo 13º, nº 4, do DL nº 35/2004);
            xiii. Apesar do P reconhecer a existência de tal direito de acesso, na prática não permitiu o seu exercício, e sempre afirmou que destruiria as imagens; o que é demonstrativo do risco de as mesmas desaparecerem;
            xiv. E embora solicitado à CNPD que assegurasse esse acesso e preser-vação, não houve ainda qualquer decisão;
            xv. Não fôra o advertido em despacho liminar, já agora as imagens se encontrariam destruídas; o que denota a importância e urgência da intervenção do tribunal na salvaguarda dos direitos da requerente;

            xvi. As imagens foram recolhidas no quadro legal da matéria da video-vigilância; ademais, com o consentimento da requerente;
            xvii. Não há impedimento à sua utilização em processo judicial, ainda que não penal;
            xviii. Outra interpretação, que restrinja o seu uso ao processo criminal, é ofensiva da Constituição da República;
            xix. Não há violação de natureza constitucional, penal ou civil que impeça a utilização das imagens em causa;

            xx. As referidas imagens constituem meio de prova documental (artigos 362º e 368º do CC);
            xxi. A requerente pretende salvaguardar as imagens como meio de prova do seu direito de ser ressarcida pelos danos sofridos no acidente ocorrido nas instalações do ..., uma vez que não possui qualquer identificação de eventuais testemunhas, desconhecendo se existem, por ter sido evacuada em ambulância e encontrando-se à data dos factos sozinha naquele local;
            xxii. A requerente não pode ser testemunha de si mesma;
            xxiii. E não possui outros meios de prova;
            xxiv. É portanto legítimo, a coberto de um procedimento cautelar inomi-nado, o pedido de entrega das imagens para efeitos de prova em futura acção judicial;
            xxv. A negação do procedimento levará à destruição das imagens e, por consequência, a uma quase impossibilidade de prova das circunstâncias em que ocorreu o acidente sofrido pela requerente;
            xxvi. A respectiva procedência constitui, então, um acto de ponderação, de equilibrio e de bom-senso, perante a assumida inexistência de outros meios de prova.

3.2. Não foi apresentada resposta.

4. Delimitação do objecto do recurso.

A parte dispositiva da sentença, no trecho desfavorável ao recorrente, circunscreve o objecto (inicial) do recurso (artigo 684º, nº 2, final, do CPC); que pode, depois, ser melhor delimitado nas conclusões da alegação (nº 3).
Na vertente apelação são primordialmente questões decidendas:

            Em , escrutinar se a sentença apelada constitui decisão surpresa.
            Em , escrutinar sobre se é ajustado proferir alguma decisão de mérito; e, na afirmativa, se esta é a de mandar preservar as imagens de vídeo, que a requerente indica, e a entrega a esta de uma cópia.

            Vejamos então.


            II – Fundamentos

            1. Em face da posição assumida pelas partes e da prova por documentos reunida, é possível narrar a seguinte sustentação fáctica:
            i. O estabelecimento de supermercado P, da requerida, sito na Rua , em Lisboa, dispõe nas suas instalações de um sistema de vídeovigilância;
            ii. No dia 29 de Julho de 2011, a requerente deslocou-se às instalações desse estabelecimento de supermercado;
            iii. A requerente entrou ali cerca das 12h30 daquele dia;
            iv. Nesse mesmo dia, pelas 16h58, foi enviado um fax à requerida dando notícia de que a requerente havia dado uma queda, naquele estabelecimento, e pedindo a título cautelar e de imediato que as imagens recolhidas pelo circuito de segurança do espaço fossem conservadas intactas e preservado o seu conteúdo (doc fls. 16 a 17 e 49);
            v. Semelhante pedido voltou a ser formulado no dia 1 de Agosto (doc fls. 18 a 22 e 52 a 53);
            vi. Com data de 2 de Agosto, a requerida respondeu à requerente, informando-a de que as imagens recolhidas no circuito de vídeovigilância deveriam ser destruídas ao fim de 30 dias, só podendo ser preservadas a instância judicial (doc fls. 23 e 50 a 51);
            vii. Na mesma data, a requerente reiterou o pedido (doc fls. 54 a 55);
            viii. A requerida respondeu, com data de 5 de Agosto, dizendo estarem as imagens à disposição da requerente e que a sua preservação estaria dependente de despacho judicial ou notificação de autoridade judiciária (doc fls. 24 a 25 e 56 a 57);
            ix. Na mesma data a requerente solicitou que se lhe facultassem as imagens em CD, limitadas ao momento da sua entrada e da queda (doc fls. 26 a 28 e 58 a 59);
            x. A requerida respondeu com data de 12 de Agosto,[1] disponibilizando “o visionamento das imagens” e admitindo ceder o CD “caso V. Ex.ª obtenha previamente autorização da CNPD ou de autoridade judiciária para o efeito”, acrescentando ainda que “não destruiremos as imagens desde que nos comprove ter colocado o respectivo pedido dentro do prazo de 30 dias indicado na nossa anterior correspondência” (doc fls. 60 a 61).

2. O mérito do recurso.

            2.1. Enquadramento preliminar.

            A vertente instância cautelar surge sustentada num pedido de guarda e de entrega de um registo de imagens, obtidas em sistema de vídeovigilância, e de que se pretende fazer uso, como meio de prova, em acção cível a interpor.
            É portanto, na essência, um pedido de preservação de prova.

            Não é esta, comummente, a natureza dos direitos que os procedimentos cautelares se mostram vocacionados a acautelar. Quanto a esses, o que mais se tem em vista são direitos subjectivos,[2] emergentes de normas substantivas, radicantes na esfera jurídica do interessado, e cuja protecção importe prevenir, de modo urgente e provisório, de maneira a poder salvaguardá-los; sempre sem prejuízo de uma subsequente tutela definitiva que, com maior ponderação e aprofundamento, os venha mais tarde a perscrutar e a definir.
            É o que resulta, em particular, dos artigos 2º, nº 2, 381º, nº 1, 383º, nº 1, ou 387º, nº 1, do Código de Processo Civil.

            Na hipótese é, porém, o direito à prova que se visa salvaguardar.
            O direito à prova tem suporte constitucional, no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República, e emana do disposto no artigo 515º do CPC.[3]  Ele não configura um direito material, emergente de normas de direito substantivo; mas representa o instrumento por via do qual se concede, ao seu titular, a condição adequada para poder ver defendido, nos tribunais, aqueles direitos (estes sim verdadeiramente substanciais) ou outros interesses protegidos de que disponha.[4]
            É portanto decorrência do fundamental direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, mediante a garantia de uma justa composição do litígio em que, cada cidadão, em vista da defesa daqueles direitos e interesses, se possa ver envolvido (artigos 2º, nº 1, e 266º, nº 1, do CPC).[5]

            A salvaguarda do direito à prova, fundada no justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil, merece no Código de Processo um enquadramento autónomo do dos procedimentos cautelares, pese embora reconhecíveis algumas afinidades. Trata-se do instituto da produção antecipada de prova, regulado nos artigos 520º e 521º do Código de Processo Civil, precisamente fundado naquele fundado risco de futura inviabilidade, mas apenas (expressamente) prevenido para as hipóteses do “depoimento de certas pessoas” ou de “verificação de certos factos por meio de arbitramento ou inspecção”.[6]  Nessas hipóteses, compete ao requerente justificar “sumariamente a necessidade da antecipação”, e se a diligência for pretendida “antes de a acção ser proposta” há-de ainda indicar “sucintamente o pedido e os fundamentos da demanda”, bem como identificar “a pessoa contra quem se pretende fazer uso da prova, a fim de ela ser notificada pessoalmente para os efeitos do artigo 517º”.
            Mais do que mera preservação ou conservação (de alguma prova já constituída) do que aí se trata é da sua real produção (de uma prova constituenda); fazendo-a actuar e obtendo o substrato conducente à formação da convicção.
            Mas sempre com sustento na dissipação do risco da sua perca.

            A propósito de direitos privativos de propriedade industrial, e de mecanismos próprios vocacionados à respectiva salvaguarda, o Código da Propriedade Industrial consagra, em matéria de provas, as chamadas medidas para obtenção da prova (artigo 338º-C) e as designadas medidas de preservação da prova (artigo 338º-D).[7],[8]  Verificado que hajam elementos de prova que estejam na posse, dependência ou sob controlo da parte contrária (ou de terceiro), pode o interessado, dentro de certas condições, conseguir que os mesmos sejam apresentados; como, noutras hipóteses, podem ser empreendidas medidas provisórias urgentes e eficazes destinadas a preservar certo tipo de provas.
            Sem aprofundar, diríamos vislumbrar aqui mecanismos cautelares fundados em certo tipo de riscos, relacionados com a dissipação de meios probatórios; e, na hipótese, ajustados à natureza típica dos direitos privativos;[9] mas que de todo o modo permitem inferir um ambiente na ordem jurídica que permite enquadrar, na medida do desejável e desde que reunidas certas condições, uma protecção (mesmo preventiva) de elementos de prova que importe garantir e salvaguardar. E a aproximação com a típica providência cautelar resulta evidente, desde que àquelas medidas de obtenção e preservação probatórias se mandam aplicar, em princípio, as (mesmas) causas de extinção e caducidade previstas no artigo 389º do Código de Processo Civil (artigo 338º-F do CPI).[10]

            A hipótese dos nossos autos tem também especificidades.
            O meio probatório em causa é o de um registo de imagens obtido através de um sistema de segurança de vídeovigilância instalado num estabelecimento comercial de supermercado. Portanto, inequivocamente, um meio de prova documental (artigos 368º do CC, 527º e 652º, nº 3, alínea b), início, do CPC).
            Todavia, e pelas suas características, documento enquadrado por um específico regime jurídico; particularmente contido na Lei nº 67/98, de 26 de Outubro,[11] e no Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro.[12]  E sobrelevando, ao que aqui mais importa, o artigo 13º deste último diploma, nos termos do qual a gravação de imagens, aí prevenida, “deve ser conservada pelo prazo de 30 dias, findo o qual será destruída, só podendo ser utilizada nos termos da legislação processual penal” (nº 2, final).
            Ora, especialmente, o regime de vínculo à destruição das imagens referido,[13] permite compreender, de algum modo, a premência que a requerente da vertente instância cautelar imprimiu à pretensão que formulou. Mostrando-se iminente a eliminação do registo de imagem que, do seu ponto de vista, comporta importância fundamental para convencer da realidade de factos em que visa, em tempo oportuno, sustentar acção judicial cível, que é sua intenção interpor, suscitou o pedido a título urgente, provisório e cautelar, como mecanismo instrumental com a virtualidade de manter e garantir a sua salvaguarda.

            Mas se assim é, também, cremos que a postura assumida pela requerida não merece censura. É aliás curioso notar que, no essencial, a instância não retrata controvérsia, nem notório litígio. A requerida, cautelosamente, de modo perfeitamente aceitável, fez notar à requerente as condicionantes jurídico-normativas que enformavam o caso; e, nesta instância, expressamente disse não se opôr ao pedido da requerente e estar disponível para preservar, e até lhe facultar cópia das imagens em apreço.

            E é este, segundo vislumbramos, o traço fundamental em causa.
            O justo receio de vir a tornar-se impossível o recurso ao meio de prova, por documento, que constitui o registo de imagem, dissipa-se na medida em que a sua destruição não venha a ter lugar, nos termos da norma acima citada. E a requerida, para esse efeito, apenas reclama uma cobertura judiciária.

            Vejamos. A sede é de procedimento cível.
            Nesta, a prova documental deve, em regra, ser apresentada com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (artigo 523º, nº 1, do CPC); mas se o documento de que se pretenda fazer uso estiver em poder da parte contrária, esta será notificada para o apresentar (artigo 528º, nº 1, do CPC). Certo que, se o não fizer, ser-lhe-á aplicável o regime do artigo 519º, nº 2 (artigo 529º do CPC); isto é, para lá do mais, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios e se for caso de, com a sua conduta culposa haver tornado impossível a prova, considera-se invertido, em seu desfavor, o respectivo ónus (artigos 519º, nº 2, final, citado, e 344º, nº 2, início, do CC). Por fim, ao notificado que haja possuído o documento, compete demonstrar que, sem culpa sua, ele desapareceu ou foi destruído; sob pena de idêntica inversão, a seu encargo, do ónus de prova dos factos (artigo 530º, nº 2, do CPC).

            Já nos referimos ao enquadramento específico das imagens em causa.
            É estritamente rigoroso e pormenorizado, envolvido das maiores cautelas, o regime próprio de obtenção, guarda e utilização de imagens em circuito interno de vídeovigilância, destinado a salvaguardar a segurança de um estabelecimento comercial.[14]  E assim é, precisamente, em ordem à salvaguarda de outros direitos das pessoas, constitucionalmente tutelados, como sejam o direito à dignidade da pessoa humana, à imagem, à reserva da intimidade e, até, à autodeterminação informativa; interesses que a Constituição da República pretende também, com ênfase, ver garantidos e salvaguardados (artigo 26º, nº 2).[15]
            A lei da protecção de dados pessoais coloca-se neste prisma.
            No enquadramento constitucional circunscreve rigorosamente o modo de exercício no tratamento dos dados, criando regras e estritas excepções (artigo 35º, nº 2 e nº 4, final, da Constituição); e, com o apoio de diplomas conexos, delimita com as maiores prudências e cautela o respectivo regime jurídico. A protecção, assim concedida, incumbe, em primeira linha, aos órgãos públicos com competência geral para a defesa dos direitos, liberdades e garantias; mas vincula igualmente entidades privadas, na medida em que estas possam dispor dos dados das pessoas, em questão, e deles possam vir a fazer uso.[16]
            A lei civil concede semelhante tutela, a nível de direitos de personalidade (artigos 79º, nº 1, início, e 80º, nº 1, do Código Civil); mas ressalva a limitação voluntária que não seja contrária aos princípios da ordem pública (artigo 81º, nº 1, do Código Civil).
            De igual maneira, a lei protectora dos dados pessoais; definindo o conceito de consentimento do titular dos dados, no geral, como a manifestação de vontade pela qual aquele aceite que os seus dados pessoais sejam objecto de tratamento, abrangendo este as operações de conservação, consulta ou utilização (artigo 3º, alíneas b) e h), da Lei nº 67/98); e permitindo a regra do tratamento de dados pessoais desde que a coberto de um consentimento inequívoco do seu titular (artigo 6º, início, da Lei nº 67/98).
            Ou seja, o princípio da disponibilidade no tratamento dos dados, com o alcance estabelecido na própria lei protectora,[17] comete que a garantística tutela tem em vista a preterição por terceiro, não titular; ou, pelo menos, a operacionalização dos dados, sem que o seu titular exprima aquela vontade inequívoca.[18]  Certo que, se o fizer, deixa de se justificar o quadro jurídico de protecção; tendo ele, aliás, o amplo direito de acesso que lhe concede o artigo 11º da referida lei.

            Na hipótese dos autos é a própria pessoa visada nos dados (que aqui constituem imagem) que quer fazer uso, operacionalizar, os mesmos dados; e utilizá-los como meio probatório em acção cível que se propõe intentar.
            Não vislumbramos obstáculo a esta, perfeitamente legítima, intenção.
            Na medida da salvaguarda daquele que é (também) o interesse da requerida, e que é no caso a responsável pelo tratamento dos dados, e (igualmente) merecedor de protecção, num quadro de valores tão sensível como é aquele em que aqui nos movemos, o que há é que dar seguimento à subsistência daquela prova por documento, de maneira a que dela se possa razoavelmente dispor em função do objectivo (judicial e probatório) delimitado e tido em vista – naturalmente, no quadro, por um lado, das regras comuns (civilísticas) de direito probatório, típicas da prova documental, e, por outro, das regras específicas, próprias da particular índole do concreto meio em causa, envolvente de dados pessoais.

            Afigura-se-nos, assim, que o essencial das restrições que, quer a lei constitucional, quer a lei comum, pormenorizadamente regulamentam, não é pertinente ao caso dos autos.
Aos meios de vigilância electrónica se refere, em particular, o artigo 13º do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, já antes mencionado. A utilização de equipamento electrónico de vigilância deve sempre ressalvar “os direitos e interesses constitucionalmente protegidos” (nº 1, final); e é precisamente para salvaguarda dessa protecção que é cometida a destruição do concernente registo de imagens, findo o prazo de 30 dias desde a sua obtenção (nº 2, intermédio). Como ainda, a expressa excepção da sua utilização “nos termos da legislação processual penal” (nº 2, final) tem directamente em vista as situações de não manifestação de vontade por banda do respectivo titular. É que o regime particular da actividade de segurança não prejudica a aplicação do regime geral em matéria de protecção de dados previsto na Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (artigo 13º, nº 4, do Decreto-Lei nº 35/2004); e este disponibiliza ao seu titular a operacionalização dos seus dados, como se deixou referido.

            De outra sorte, não vemos também que a participação da Comissão Nacional de Protecção de Dados, na hipótese, tenha o alcance que se lhe intuiu na presente instância. A CNPD constitui uma entidade administrativa e independente, com poderes de autoridade (artigo 21º, nº 1, da Lei nº 67/98); compete-lhe no geral controlar e fiscalizar o cumprimento das disposições legais e regulamentares em matéria de protecção de dados pessoais, em rigoroso respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades e garantias consagradas na Constituição e na lei (artigo 22º, nº 1, da Lei nº 67/98).[19]
            Mas convém ter em conta que a justificação para essa competência se funda, também aqui, na protecção estrita e rigorosa dos sensíveis interesses das pessoas, sujeitas ao tratamento, por outrem, dos seus dados – à sua operacionalização não autorizadas. É este o campo de intervenção primordial.
            Por outro lado, como antes adiantámos, ainda que esta intervenção protectora incumbe, antes de tudo o mais, aos órgãos públicos, especialmente aos tribunais,[20] a quem a Constituição expressamente comete a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (artigo 202º, nº 2); certo que é tão-só em face da insuficiência da exclusiva protecção jurisdicional,[21] que a norma constitucional impôs a criação de uma entidade administrativa independente com tal (complementar) incumbência (artigos 35º, nº 2, final, e 267º, nº 3) – precisamente a criada Comissão Nacional de Protecção de Dados.

            Em suma.
            Não vemos estar tanto assim fora daquele que é o regime comum processual civil de direito probatório; em particular, por via de documento.
            A especificidade estará apenas em apurar se, nas condicionantes concretas, é (ou não) de determinar alguma medida cautelar (e qual) necessária à preservação do registo de imagem, visando a requerente, de que a requerida dispõe.

            2.2. A decisão recorrida.

            Não é claro o fundamento da decisão adjectiva proferida pelo tribunal de 1ª instância. Inequívoca é – isso sim – que se tratou de uma decisão de absolvição da instância; por conseguinte, gerada a partir de um vício de natureza processual (artigo 493º, nº 2, do Código de Processo Civil).
            Diz a decisão que “nem seríamos competentes para a apreciação do concreto pedido formulado”. Contudo, assim não é, como tentámos explicar. É aos tribunais que compete primordialmente defender os direitos, liberdades e garantias das pessoas; e, no quadro de solicitações que lhe sejam dirigidas, proferir as concernentes decisões. Nem era concebível a demissão dessa superior atribuição, por assunção de competência a qualquer entidade administrativa. Ademais, sendo o caso o de o cidadão a proteger ser o próprio que dirige o pedido para a utilização da imagem que o visa, pouco razoável seria enquadrar o caso no estrito regime jurídico da protecção de dados – sendo estes disponíveis e ostensivamente consentidos pelo titular, expressamente a pedir a sua preservação e uso.
            Diz também a decisão que “não é este o meio processual adequado”. E aqui apelando a uma inadequação formal absoluta (artigos 199º, nº 1, 288º, nº 1, alínea b), e 494º, alínea b), do CPC). Mas que se impõe escrutinar; já que, se ocorre, como entendemos, um direito a esta prova por documento, e há iminência da sua supressão, por razões legais que se impõem à requerida, alguma saída ou solução se há-de ter de encontrar, que permita superar o efeito nefasto emergente. Na certeza de que, a requerente afirma aquele direito; e a requerida nem se lhe opõe (ao invés, aceita-o, embora na medida da sua própria salvaguarda).

            Antes, porém, configurara-se a decisão como decisão surpresa.
            E cremos que com fundamento; dada a amplitude concedida à contrariedade das partes pelo actual artigo 3º, nº 3, do CPC.
Sendo verdade que o juiz aplica o direito que tenha por ajustado ao caso, para lá das sugestões das partes (artigo 664º, início, do CPC), também o é que, salvo manifesta desnecessidade, tem de lhes dar sempre a possibilidade de sobre ele se pronunciarem (citado artigo 3º, nº 3, final). Este regime, assim configurado, nasceu da revisão do processo civil, implementada a partir de 1 de Janeiro de 1997,[22] que, entre mais inovações, expressamente visou banir as chamadas decisões surpresa, isto é, aquelas decisões produzidas na base de uma qualificação jurídica substancialmente inovadora, que as partes não houvessem considerado ou que, sequer, razoavelmente pudessem prevenir; por conseguinte, que surpreendessem pelo seu ineditismo ou originalidade, relativamente àquilo que os autos pudessem fazer supor.[23]  Em tais hipóteses, considerando o juiz ser correcto um enquadramento disforme a um daqueles que seria razoável supor, compete previamente proceder a uma audição que permita um pronunciamento, dando a oportunidade aos mais directos interessados – as partes – de poderem influenciar a decisão judicial a ser tomada.
Não o fazendo entende-se cometida uma nulidade processual.
Para lá das hipóteses tipicamente narradas, estabelece-se, em geral, ao que mais nos importa, que a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva acarreta nulidade, quando a irregularidade possa influir no exame ou decisão da causa (artigo 201º, nº 1, do CPC). Competindo, nessa hipótese, ao interessado arguir o vício, para que dele seja facultado conhecer (artigos 202º, final, e 203º, nº 1, do CPC). A arguição (ou reclamação) é, em princípio, feita para o próprio tribunal que perpetrou a nulidade (artigos 205º, nº 1, e 206º, nº 3, do CPC); mas se esta for notada a coberto de alguma decisão judicial que haja ordenado, autorizado ou sancionado a respectiva omissão, então, será o recurso dela o meio ajustado para viabilizar a concernente apreciação.[24]  A consequência do vício é a da sua supressão, bem como dos termos subsequentes que dele absolutamente dependam (artigo 201º, nº 2, início, do CPC).
A absolvição da instância nos autos mostra-se completamente imprevisível. Os assuntos aflorados na decisão, de inidoneidade do meio processual ou de supressão de competência do tribunal para conhecer do pedido, não foram prevenidos por qualquer das partes; sequer a requerida alguma vez minimamente se lhes referiu. Donde, é de admitir a surpresa da apelante, a quem não era razoavelmente expectável essa decisão, nem era de supor que com ela pudesse contar.
Por outro lado, a falta de oportunidade para se poder pronunciar sobre tais assuntos, é idónea a influir na decisão da causa; o cariz persuasivo próprio desse pronunciamento teria permitido (porventura) influenciá-la. A sua falta é portanto envolvente de nulidade.
Por fim, essa nulidade, consistente na preterição do contraditório, e-mana da própria prolação da decisão; é a elaboração desta, sem contraditório, que constitui o próprio vício; a decisão sanciona e cobre a omissão notada. O recurso dela viabiliza o conhecimento da nulidade que se cometeu.
Em suma; a decisão recorrida enferma de nulidade e, como tal, não há como deixar de daí retirar as inferências necessárias – e, primordialmente, a concernente anulação.

            Mas, aqui chegados, é de perguntar se é de, estritamente, fazer funcionar o que é próprio do mecanismo anulatório, com a cassação do decidido, baixa ao tribunal “a quo” para exercício da omitida contradição de partes e subsequente tomada da decisão conforme e ajustada ao caso; ou se, opostamente, o que há é que, fazendo operar a substituição do decidido, proferir a adequada decisão (de mérito) neste tribunal superior.

            Afigura-se-nos que esta segunda opção será a ajustada, desde que o enquadramento jurídico (inovatório), por que seguiu a decisão recorrida, não seja o exigido pelo caso decidendo; mas, ao invés, haja de encontrar esse enquadramento latente em argumentos das partes ou, pelo menos, numa aplicação de normas jurídicas com que lhes era previsível poderem contar.
            É que, nessa hipótese, de pouco valerá o contraditório; por se não afigurar idóneo o seu exercício sobre uma óptica jurídica que é errada.

            Cremos vislumbrar cobertura jurídica no artigo 715º, nº 1, do CPC.
            A nulidade da decisão não é impeditiva de o tribunal de recurso dever conhecer do (restante) objecto da apelação. Ao contrário, deve fazê-lo; se, para tanto, se mostrarem reunidos todos os necessários elementos.
            E parece-nos ser esse o caso concreto.

            2.3. A decisão do mérito cautelar.

            Rememoramos qual é a pretensão cautelar – a preservação e guarda das imagens recolhidas da requerente, obtidas pelo sistema de vídeovigilância instalado no estabelecimento de supermercado ..., sito na Rua ..., em Lisboa, no dia 29 de Julho de 2011, e a entrega de uma cópia dessas imagens.
            E rememoramos a posição da requerida – de não oposição a esse pedido e de total disponibilidade em facultar a cópia das imagens, mediante determinação judicial nesse sentido.

            Do que antes fomos dizendo já se intui que, do nosso ponto de vista, é razoável a ilação da requerida de que, sem mais que lho justifique, haja de dar cumprimento à destruição das imagens, já que entretanto ultrapassados os 30 dias a que se refere o artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro.
            Por outro lado, ainda que é razoável a pretensão da requerente em visar a salvaguarda daquelas imagens, como meio de prova por documento, para sustentar a acção judicial que se propõe intentar; e que, no requerimento inicial desta providência, sucintamente identificou e circunscreveu.

            Dir-se-ia, na nossa óptica, que sem uma qualquer decisão, de cariz estritamente preventivo, é justo o receio de vir a ter de acontecer a destruição das imagens; e, por conseguinte, a tornar-se impossível ou muito difícil a certificação dos factos em que pretende sustentar a acção judicial; que, em concreto, se constituem da sequência de entrada e queda da requerente no espaço de supermercado da requerida, e constam no registo de imagem.
            É que a requerente afirma que estava, ao tempo, sozinha; não lhe sendo possível, razoavelmente, o recurso à prova por testemunhas; coisa que a requerida nem contesta. Por outro lado, e mesmo para lá disso, objectivamente, se acção porventura houver, é sempre razoável supor o especial interesse de um registo de imagem de que se possa dispor, com o particular valor probatório que emerge do artigo 368º do Código Civil.

            Em suma, é sensato, ponderoso e razoável acolher a preservação.

            Resta apenas a questão (formal) do mecanismo adjectivo ajustado.
            E aqui impressiona, desde logo, que estritas razões de forma sejam as bastantes para preterir outro tipo de salvaguarda e interesse de maior valor.
            É verdade que o típico procedimento cautelar, mesmo na forma comum (artigo 381º, nº 3, do CPC), não parece ajustável ao tipo de pretensão aqui em causa; consistente na preservação de um meio de prova documental.
            De igual forma, não há cabimento estrito no instituto da produção antecipada de prova, expressamente reservado à actuação de provas constituendas como o depoimento de pessoas, a perícia e a inspecção (artigo 520º do CPC).
            Seja como for, a verdade é que parece encontrarmo-nos, de alguma maneira, em alguma aproximação a esses institutos processuais. O meio de prova concreto, que se visa preservar, tem ele também especificidades próprias; é prova documental (constituída) mas, por força de lei, virtualmente a destruir, por envolvência de dados pessoais; a que a lei, prudente e rigorosamente, confere muito especial atenção.
            Noutros campos da ordem jurídica, consagram-se expressamente típicas medidas cautelares destinadas a obter e preservar prova; precisamente em homenagem, e ajustadamente, ao tipo de direitos (substanciais) aí em causa.[25]
            Importa – se bem o cremos – encontrar um mecanismo adjectivo que permita realizar o interesse (tutelável) da requerente; no limite, com recurso à norma (processual) que o intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema (artigo 10º, nº 3, do Código Civil).

            Não há obstáculo decisivo a um ajustamento das regras de processo.
            Há, ademais, aproximação entre as disposições normativas que, de alguma maneira, quer nos procedimentos, quer na produção antecipada, tutelam fins de protecção e de salvaguarda provisória, preventiva e cautelar.
            Sequer nos procedimentos ocorre uma total vinculação temática ou tão-pouco adjectiva (artigo 392º, nº 3, do CPC).

            Mesmo em sede de disposições gerais do Código, a inadequação formal poucas vezes envolve a extinção da instância; outrossim se impondo os ajustamentos necessários que permitam prosseguir e atingir um fim útil no procedimento (artigo 199º, nº 1, do CPC).
            Por fim, a regra da adequação formal sempre viabiliza, dentro de certas condições, o ajustamento da forma à especificidade do objectivo; e ao ajustamento aos fins da instância, com realização de adaptações que se mostrem necessárias (artigo 265º-A do CPC).

            No caso concreto, desencadeou-se uma típica instância cautelar.
            O objectivo, viabilizar a jusante um meio de prova (documental).
            Salvaguardados os interesses adjectivos das partes e os basilares princípios enformadores e estruturantes da lei de processo, não se encontra fundamento capaz, minimamente consistente, que impeça, ou apenas colida, com o proferimento de uma decisão de mérito.

            A requerente propugna a preservação do registo de imagem.
            A requerida carece de cobertura judicial para o viabilizar.

            Assim.
E convolando a típica instância cautelar, para um procedimento que mais se aproxima de um mecanismo, não tanto de produção antecipada – pois nem é essa a que aqui verdadeiramente se propugna ou está em causa –, mas mais de obtenção ou preservação de prova, algo semelhante àquele que se contém prevenido nos artigos 338º-C e 338º-D do Código da Propriedade Industrial,[26] irá proferir-se a seguinte decisão, por se entender ser aquela que, com equilíbrio e alguma sensatez, melhor vai encontro das legítimas pretensões e expectativas das partes, tal-qual emanam estas do conteúdo dos autos.

            Em 1º lugar, de determinar à requerida que não destrua, guarde e conserve as imagens que, referentes à requerente, foram recolhidas pelo sistema de vídeovigilância instalado no seu estabelecimento de supermercado …, sito na Rua …, em … no dia 29 de Julho de 2011.
            É a protecção cautelar essencial, em resposta ao justo receio de (virtual) dissipação da prova por documento, de que se visa fazer uso. Naturalmente que esta preservação atinge apenas o trecho de imagens captadas concernente à própria requerente, cabendo à requerida, no estrito quadro da lei, assegurar as condições técnicas adequadas à salvaguarda de dados pessoais de outras pessoas porventura alcançadas nas mesmas imagens.[27]

            Em 2º lugar, de autorizar a entrega à requerente de uma cópia, em suporte físico, das mesmas imagens (no limite estrito daquele trecho, do que só a si mesma haja atingido e diga respeito).
            Essa entrega escapa já ao justo receio de perca, salvaguardada que está a preservação; e deve ser sustentada meramente no comum direito de acesso que nesta específica matéria concede, em particular, o disposto no artigo 11º, nº 1, alínea b), início, da Lei nº 67/98.[28]  Aliás, estando unicamente em causa a salvaguarda de um meio de prova, para fins civis, não é obstáculo que apenas a parte contrária dele tenha a disposição (artigo 528º, nº 1, início, do CPC); e, por isso, a protecção jurisdicionalmente (agora) concedida não tem carácter injuntivo nesta parte – limitando-se a reconhecer a inexistência de óbice (legal) à entrega.

            As particularidades do caso, por outro lado, concedem que, semelhantemente à produção antecipada, não fique a preservação da prova condicionada a qualquer prazo de extinção ou caducidade, como é apanágio da típica tutela cautelar (artigo 389º do CPC).[29]  Aqui nos parece que, mais do que uma coerção provisória, a que habitualmente andam associadas aquelas causas extintivas, do que se trata é, apenas, de clarificar que, nas condicionantes específicas (em especial a disponibilidade e o consentimento do visado), se viabiliza a conservação de um meio probatório, evitando o procedimento – este sim, por regra, de cariz injuntivo – da sua destruição.

            Por fim, a sanção pecuniária compulsória. A decisão do tribunal “a quo” deixara prejudicada a ponderação do seu pedido. E no objecto da apelação interposta ela não foi circunscrita. Ainda assim, julgamos evidente não ser de a fixar. O seu cariz constrangedor, de compelir ao cumprimento, não é ajustado ao enquadramento que vimos fazendo. O assunto é estritamente probatório e civilístico. A preterição da requerida, caso não salvaguarde a prova que se lhe impõe preservar (ainda que só na sua disponibilidade), acarretar-lhe-á, na acção que venha a ser interposta (já que é nela que a requerente encontra a obrigação de indemnizar que, por via da acção, pretende fazer valer), as consequências típicas da falta de cooperação a esse nível, estritamente de prova dos factos – no limite, a inversão do ónus da prova, em seu desfavor, a que antes nos referimos (artigo 344º, nº 2, do CC, e artigos 519º, nº 2, 529º e 530º, nº 2, do CPC).

            3. A responsabilidade pelas custas, no procedimento em 1ª instância, é da requerente; embora as taxas de justiça já pagas hajam de ser atendidas na acção respectiva, que venha a ser proposta (artigo 453º, nº 2 e nº 3, do CPC).
As custas da apelação, onde a recorrente obteve essencial vencimen-to, sem oposição da recorrida, uma vez inexistindo legal motivo de isenção, a- crescerão às devidas pelo procedimento; sendo a taxa de justiça a fixada nos ter-mos da tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais (artigos 6º, nº 2, e 7º, nº 2, do RCP).

(...)
           
           
III – Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar o recurso de apelação procedente e, nessa conformidade:

            1.º; em anular a decisão recorrida;

            2.º; em sua substituição, proferir a seguinte decisão, resultante de uma adaptação de forma do (proposto) procedimento cautelar em procedimento (preventivo) vocacionado à tutela e preservação de um meio probatório:

a) determinar à requerida que não destrua, guarde e conserve o trecho das imagens captadas concernentes (apenas) à requerente, e que foram recolhidas pelo sistema de vídeovigilância instalado no seu estabelecimento de supermercado P…, sito na Rua …, em Lisboa, no dia 29 de Julho de 2011 (a fim de poderem vir a ser utilizadas, como meio documental de prova, na acção cível que a última se propõe interpor);
b) esclarecer que, nesse estrito trecho de imagens captadas concernentes (apenas) à própria requerente, não há obstáculo à entrega, que a esta seja feita, de uma cópia, em suporte físico, das mesmas imagens; e, nessa conformidade, permitir a sua entrega, nessas exactas condições.

            As custas devidas pelo procedimento são encargo da requerente, mas as taxas de justiça pagas serão atendidas na acção respectiva, que vier a ser proposta.
            As custas da apelação acrescem às que sejam devidas pelo proce-dimento (sendo a taxa de justiça a fixada na tabela I-B, anexa ao RCP).

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2012

Luís Filipe Brites Lameiras
Jorge Manuel Roque Nogueira
José David Pimentel Marcos
-----------------------------------------------------------------------------------------
[1] A citação da requerida, no vertente procedimento, viria a ter lugar no dia 16 de Agosto.
[2] António Abrantes Geraldes, “Temas da reforma do processo civil”, III volume (5 – procedimento caute-lar comum), 1998, páginas 73 a 74.
[3] Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Julho de 2008, proc.º nº 6238/2008-7, em www.dgsi.pt.
[4] A respeito do conteúdo do direito à prova, o Acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Julho de 2010, proc.º nº 102/10.5TBSRE.C1, em www.dgsi.pt.
[5] Acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Fevereiro de 2011, proc.º nº 19/08.3TBLSA-A.C1, em www.dgsi.pt.
[6] Sobre o assunto da antecipação da produção de provas, Fernando Pereira Rodrigues, “A prova em direito civil”, 2011, páginas 213 a 215.
[7] Tratam-se de disposições que, a par de outras, foram introduzidas pela Lei nº 16/2008, de 1 de Abril, di-ploma que transpôs para a nossa ordem jurídica a directiva nº 2004/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual.
[8] Semelhante disciplina, inserida na Ordem Jurídica pelo mesmo diploma para os direitos de autor e direitos conexos, consta nos artigos 210º-A e 210º-B do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
[9] Também do direito de autor e dos direitos conexos.
[10] Também o artigo 210º-D do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
[11] Este diploma é a designada Lei da protecção de dados pessoais e foi rectificado pela declaração de re-ctificação nº 22/98, de 28 de Novembro.
[12] Este diploma é o que regula o exercício da actividade de segurança privada (artigo 1º, nº 1) e foi já objecto de sucessivas alterações, a última dada pelo Decreto-Lei nº 114/2011, de 30 de Novembro. Ao caso dos autos, contudo, interessa a redacção seguinte à do Decreto-Lei nº 135/2010, de 27 de Dezembro.
[13] Cujo incumprimento constitui, aliás, uma contra-ordenação muito grave (artigo 33º, nº 1, alínea g), do Decreto-Lei nº 35/2004).
[14] Sobre o âmbito de aplicação da Lei da protecção de dados pessoais à vídeovigilância, veja-se o seu artigo 4º, nº 4.
[15] Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa anotada”, volume I, 4ª edição, página 551.
[16] Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, páginas 554 e 557.
[17] Citado artigo 3º, na sua alínea b).
[18] Julgamos que era também esse o espírito do artigo 2º, alínea h), da Lei nº 29/2003, de 22 de Agosto; da autorização legislativa, que esteve na base da elaboração do Decreto-Lei nº 35/2004.
[19] A organização e funcionamento da Comissão Nacional de Protecção de Dados estão reguladas na Lei nº 43/2004, de 18 de Agosto, entretanto alterada pela Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro.
[20] A tutela jurisdicional, em matéria de cumprimento das disposições legais de protecção de dados pes-soais tem expressa consagração no artigo 33º da Lei nº 67/98.
[21] São as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, página 554.
[22] Essa revisão contém-se primordialmente nos Decretos-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96., de 25 de Setembro.
[23] José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, “Código de Processo Civil anotado”, volume 1º, 1999, páginas 9.
[24] É esta a óptica corrente na doutrina (Manuel Domingues de Andrade, “Noções elementares de processo civil”, página 183).
[25] Referimo-nos, obviamente, ao Código da Propriedade Industrial e ao Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, bem como aos concernentes direitos privativos e direitos de autor e conexos, em cada um tidos em vista; e a que, oportunamente, fizemos apelo.
[26] E também nos artigos 210º-A e 210º-B do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
[27] A este respeito, o ponto 2. do capítulo IV (“O acesso aos dados recolhidos pelos sistemas de vídeo-vigilância”) da Deliberação nº 61/2004 da Comissão Nacional de Protecção de Dados, de 19 de Abril de 2004, relativa aos princípios sobre o tratamento de dados por vídeovigilância, disponível no sítio www.cnpd.pt.
[28] Cujo incumprimento constitui ilícito contra-ordenacional (artigo 38º, nº 1, alínea b)).
[29] Aqui, distintamente do contido no Código da Propriedade Industrial (artigo 338º-F) e do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (artigo 210º-D).