Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
565/04.8TAOER.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
FALTA DE AUDIÇÃO PRÉVIA DO CONDENADO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Iº Em caso de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, a falta de audição do condenado, constitui nulidade insanável;
IIº Não se encontrando a suspensão da execução da pena sujeita a qualquer condição específica, o contraditório e as garantias de defesa do condenado ficam suficientemente acautelados com a sua notificação para se pronunciar, por escrito, sobre a eventual revogação da suspensão, sem prejuízo para a possibilidade do juiz, face aos motivos invocados para o incumprimento, decidir ouvi-lo pessoalmente;
IIIº A audição pessoal e presencial do condenado, nos termos do art.495, nº2, do CPP, só é obrigatória nos casos em que existe apoio e fiscalização por um técnico do cumprimento dos deveres e regras de conduta;
IVº Tendo o arguido sido condenado, pela autoria material de cinco crimes de falsificação, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sem qualquer condição específica e tendo cometido no período de suspensão, três crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, pelos quais foi condenado, respectivamente, na pena de 9 meses de prisão suspensa na sua execução, 3 meses de prisão, a cumprir em 18 períodos de fim-de-semana e 4 meses de prisão, a cumprir em 24 períodos de fim-de-semana, impõe-se concluir que o condenado fez com que se frustrassem as expectativas nele depositadas, revelando que não era merecedor do voto de confiança que lhe foi dado;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – Relatório

Nos autos de processo comum que, sob o n.º 565/04.98 TAOER, correm termos no 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal da Comarca de Oeiras, o Ministério Público promoveu (promoção a fls. 328/329) que fosse revogada a suspensão da execução da pena de três anos de prisão aplicada a A....
Acolhendo a pretensão do Ministério Público, o Sr. Juiz titular do processo, por despacho de 09.08.2011 (fls. 356/357), revogou a suspensão da execução e determinou o cumprimento daquela pena de prisão.
Inconformado, o arguido recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos que expõe na motivação, de que extraiu as seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. A única razão invocada pelo tribunal a quo, no douto despacho recorrido, para a revogação da pena de prisão imposta ao recorrente é o facto de ete ter praticado três crimes (de condução sem habilitação legal).
2. O cometimento destes ilícitos (crimes de natureza diversa, tendo em conta que no processo em apreço estamos perante um crime de burla e falsificação de documentos), não é suficiente para que se encontrem preenchidos os dois requisitos cumulativos consignados no art. 56.º n.º 1 b) do C.P., para a verificação da revogação da pena de prisão.
3. É que, o cometimento de crime no período de suspensão deixou de provocar automaticamente a revogação da suspensão, contrariamente ao que sucedia no domínio a vigência do C.P. de 1886 e 1982.
4. A tudo acresce que o arguido não foi ouvido, em obediência ao disposto no art.º 494.º n.º 2 do C.P.P., devendo tê-lo sido antes da decisão.
5. O arguido actualmente já é detentor da carta de condução.
6. Na verdade, o douto despacho ora em crise violou, com o devido respeito, o que o disposto no art. 56.º n.º 1 b) do C.P. (com nítida interpretação restritiva da mencionada norma), quer o disposto no art. 495.º n.º 2 do C.P.P. (ao não proceder à audição do condenado, como nestes casos a lei impõe).  
Pretende assim o recorrente a revogação da decisão recorrida.
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O Ministério Público apresentou resposta em que considera não merecer qualquer censura o despacho recorrido e que “seria absolutamente incompreensível qualquer decisão que não concluísse pela manutenção do oportunamente decidido”, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso interposto.
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O Sr. Juiz admitiu o recurso, fixou o respectivo efeito e o regime de subida e determinou a subida dos autos a este tribunal (despacho a fls. 394).
Não proferiu o despacho previsto no n.º 4 do art.º 414.º do Cód. Proc. Penal, pois não sustentou nem reparou a decisão.
Tal omissão é uma mera irregularidade que não tem qualquer influência na decisão da causa nem representa qualquer prejuízo para o arguido, pelo que seria uma desnecessária perda de tempo estar a ordenar a baixa do processo à 1.ª instância só para suprir essa omissão.  
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II - Fundamentação:
Como facilmente se constata pelas conclusões da motivação, objecto do recurso são duas questões de direito:
§ se foi violado o direito de audiência do arguido;
§ saber se, tendo o arguido cometido, no período da suspensão da execução da pena de prisão, outros crimes pelos quais foi condenado, tal significa que se frustraram as finalidades que estiveram na base da suspensão (ou seja, se foi infirmada a prognose favorável) e por isso se impunha a revogação da suspensão.
Para apreciar e resolver estas questões, há que ter em consideração os seguintes factos ou ocorrências (que resultam dos autos):
1. Por sentença datada de 27.11.2007, transitada em julgado em 04.02.2008, A... foi aqui condenado, pela prática, em autoria material, de cinco crimes de falsificação de documento agravados (previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Cód. Penal) nas penas parcelares de 8 meses de prisão por cada um e na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sem qualquer condição específica;
2. No período da suspensão, o arguido cometeu os seguintes crimes, pelos quais foi condenado:
§ por sentença proferida no processo sumário n.º 1669/08.3 GLSNT do, então, 3.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Sintra, transitada em julgado em 27.10.2008,  pela prática, em 04.09.2008, de um crime de condução de veículo automóvel na via pública sem habilitação legal, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano; 
§ por sentença proferida no processo sumário n.º 172/09.9 GBASL do Juízo Criminal da Comarca do Alentejo Litoral, transitada em julgado em 09.04.2010, pela prática, em 06.08.2009, de um crime de condução de veículo automóvel na via pública sem habilitação legal, na pena de 3 meses de prisão, a cumprir em 18 períodos de fim-de-semana; 
§ por sentença proferida no processo sumário n.º 445/10.8 GTCSC do 3.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Cascais, transitada em julgado em 24.08.2010, pela prática, em 14.07.2010, de um crime de condução de veículo automóvel na via pública sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão, a cumprir em 24 períodos de fim-de-semana; 
3. Em face dessas condenações, o Ministério Público promoveu (promoção a fls. 328/329) a revogação da suspensão da execução da pena aqui cominada.
4. O arguido foi pessoalmente notificado (fls. 336) para se pronunciar sobre o promovido pelo Ministério Público e fê-lo nos termos que constam a fls. 338/339 dos autos.
  
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Conhecidos os motivos da irresignação do condenado face à decisão judicial, importa conhecer as razões que levaram o Sr. Juiz de instrução a não acolher a sua pretensão.
Eis a reprodução (da parte relevante) do despacho impugnado:
“Verifica-se, assim, como se alcança do referido, a suspensão da execução da pena não alcançou os fins que se pretendiam.
Estipula o art.º 56º, n.º 1 al. a) do C. Penal que “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Se o agente infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social”;b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.
Como resulta daquele preceito legal, o condenado sofreu 3 penas, em prisão efectiva, embora, duas delas, de prisão aos fins-de-semana, pelo mesmo tipo de crime, pouco tempo depois de ter sido condenado nestes autos, demonstrando assim que não foram alcançadas as finalidades que estiveram na base da suspensão.
Entendemos, assim, face ao exposto que o condenado deverá cumprir a ena em que foi condenado nos presentes.
Por todo o exposto, ao abrigo do disposto no art.º 56º, n.º 1 al. b) do C. Penal, revogo a suspensão da execução da pena de que o condenado beneficiava e determino que cumpra a pena de 3 (três) anos de prisão em que foi condenado nos presentes autos”.
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Uma vez que a não audição do condenado pode constituir nulidade insanável[1], susceptível de levar à anulação do despacho recorrido e dos actos dele dependentes, importa começar por apreciar essa questão.
O recorrente afirma (conclusão 4.ª) que “não foi ouvido, em obediência ao disposto no art.º 494.º n.º 2 do C.P.P., devendo tê-lo sido antes da decisão”, querendo referir o art.º 495.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal que manda que o tribunal decida “depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”.
Já sabemos que, em bom rigor, as coisas não se passaram como afirma o recorrente.
O condenado não foi ouvido presencialmente, pessoalmente pelo juiz, mas foi-lhe dada a oportunidade de se pronunciar sobre a revogação da suspensão da execução da pena e fê-lo por escrito, expondo as razões por que, em seu entender, não se justificava a revogação pretendida pelo Ministério Público.
Esta é uma questão cuja apreciação é, frequentemente, suscitada ao tribunal da relação, enquanto tribunal de recurso, e por isso justifica-se que nos detenhamos um pouco sobre ela.
Não existe uniformidade na jurisprudência e as discrepâncias situam-se a dois níveis: o da obrigatoriedade, ou não, da audição do condenado; sendo obrigatória, se tem de ser presencial, ou seja, se o juiz (titular do processo respectivo) tem de ouvi-lo pessoalmente ou se, apenas, tem de ser proporcionada àquele a possibilidade de se pronunciar sobre a revogação (normalmente promovida pelo Ministério Público, mas que o assistente pode suscitar, podendo o próprio juiz desencadear o incidente).
Segundo uma corrente jurisprudencial, centrada na Relação do Porto (acórdãos desta Relação de 24.10.96, de 03.05.2000 e de 08.02.2006), a revogação não tem que ser precedida de audição do condenado se o motivo for a condenação por crime cometido no período da suspensão, ou seja, se o fundamento for o previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 56.º do Cód. Penal.
Para esta corrente, os nºs 1 e 2 do artigo 495.º do Cód. Proc. Penal adjectivam a norma substantiva do art.º 56.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal e a sua inserção sistemática “inculca a ideia de que o n.º 2 se refere apenas aos casos reportados no n.º 1; com efeito, compreende-se que estando em causa o não cumprimento das condições impostas para a suspensão da execução da pena, o juiz procure averiguar se tal se deveu a razões que o arguido justifique cabalmente e que, por isso, demonstrem não ser culposo o incumprimento”, o que já não sucede nos casos em que a causa da revogação é a condenação pela prática posterior de um crime.     
No pólo oposto situa-se a corrente (que cremos ser maioritária), corporizada, entre outros, pelos acórdãos da Relação de Coimbra, de 16.01.2008 (Relator: Des. Jorge Gonçalves) de 03.12.2008 (Relator: Des. Brízida Martins) e da Relação de Guimarães, de 21.09.2009 e de 11.01.2010 (Relator: Des. Cruz Bucho) e da Relação de Lisboa, de 30.06.2010 (Relatora: Des. Maria José Costa Pinto), que advoga que a audição do condenado é sempre obrigatória e presencial, sob pena de nulidade insanável.
 Sendo inquestionável que, actualmente[2], a revogação da suspensão da execução da pena nunca é uma consequência automática da conduta do condenado, exigindo sempre um juízo de ponderação negativo, no sentido da constatação de que se frustraram as finalidades que estiveram na base da suspensão, também é para nós claro que se impõe sempre, independentemente do(s) motivo(s) da eventual revogação, a audição do condenado.
A jurisprudência mais recente tem, reiterada e uniformemente, considerado que a audição do condenado é obrigatória e que a sua falta constitui uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, al. c), do Cód. Proc. Penal.   
Assim foi decidido nos acórdãos citados e, nesse ponto, não temos dúvidas em perfilhar esse entendimento, pois as razões em que se sustenta tal orientação são claras e convincentes: a revogação da suspensão configura uma alteração da sentença condenatória, pois que, sendo a suspensão da execução da pena uma verdadeira pena (uma pena de substituição), a sua revogação traduz-se sempre no cumprimento pelo condenado de outra pena - a pena de prisão.
Por isso, a revogação é um acto decisório que contende com a liberdade do arguido, que o atinge na sua esfera jurídica, o que implica o reconhecimento legal do direito constitucional de contraditório e de audiência.
O direito ao contraditório é uma das mais importantes manifestações das garantias de defesa do arguido em processo penal, constitucionalmente consagrado (art.º 32.º, n.º 5, da CRP), e para os seus destinatários significa, além do mais, a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (acusação e defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; c) em particular, direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contrariar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, 523).
Apesar da sua especial incidência na audiência de discussão e julgamento, o princípio do contraditório abrange todos os actos susceptíveis de afectar a posição do arguido.
Já quanto ao modo de concretizar a audição do condenado, não acompanhamos a posição maioritária, pois afigura-se-nos que não decorre da lei, concretamente do art.º 495.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, ou de qualquer princípio que essa audição deva ser sempre pessoal e presencial.
No acórdão de 14.07.2011, proferido no Processo n.º 1066/06.5 PGLRS.L1-5 (disponível em www.dgsi.pt) manifestámos, de forma quase telegráfica, o entendimento de que, apenas, nos casos de suspensão com condições cujo cumprimento é fiscalizado por técnico de reinserção social se impõe essa audição presencial.
Temos agora a oportunidade de, mais desenvolvidamente, expressarmos o nosso pensamento e vamos fazê-lo.
Da leitura dos artigos 50.º a 54.º resulta que a suspensão da execução da pena pode revestir as seguintes modalidades:
A suspensão simples, sem qualquer condição específica, a mais frequente na prática judiciária, em que o cometimento de um crime no decurso do período de suspensão é a (única) circunstância que poderá pôr em causa o juízo de prognose favorável suposto pela aplicação da pena de suspensão.
A suspensão da execução subordinada ao cumprimento de deveres, exemplificativamente previstos no n.º 1 do art.º 51.º do Cód. Penal e que visam dar ao condenado a oportunidade de reparar as consequências do crime (“reparar o mal do crime”, para usar a expressão legal).
O cumprimento desses deveres, por decisão do tribunal, pode ser apoiado e/ou fiscalizado pelos serviços de reinserção social (n.º 5 do mesmo preceito legal).
A suspensão da execução com regras de conduta, também exemplificativamente previstas no n.º 1 do art.º 52.º do Cód. Penal, com uma finalidade de prevenção especial de socialização do condenado e cuja duração coincide com o período da suspensão.
Também nesta modalidade, o tribunal pode determinar que o cumprimento dessas regras de conduta seja apoiado e/ou fiscalizado pelos serviços de reinserção social.
A suspensão da execução com regime de prova, que assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social durante todo o período de duração da suspensão, no qual são traçados os objectivos de ressocialização a atingir pelo condenado e as actividades que este deve desenvolver faseadamente, sempre com o apoio e vigilância daqueles serviços.
A violação grosseira ou repetida dos deveres, das regras de conduta impostos ou do plano de reinserção social, tal como o cometimento, pelo condenado, de crime pelo qual venha a ser condenado por decisão transitada em julgado, tudo isto no decurso do período da suspensão e mostrando-se que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, justificam a revogação da suspensão, com o consequente cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (artigo 56.º do Cód. Penal).
O tribunal decide por despacho se revoga ou mantém a suspensão e para tanto tem de munir-se das informações necessárias para que fique habilitado a fazer o juízo de ponderação sobre a frustração, ou não, daquelas finalidades, mas sem necessidade de novo julgamento ou da reabertura da audiência (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 1250, e acórdão do STJ aí mencionado). 
Nesse sentido, o n.º 2 do art.º 495.º do Cód. Proc. Penal estabelece que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”.
A razão da presença do técnico de reinserção social é óbvia: estando a efectuar o acompanhamento do condenado, apoiando e fiscalizando o cumprimento do plano de readaptação social, dos deveres ou das regras de conduta impostos, será ele quem melhor posicionado está para habilitar o tribunal a decidir, informando o juiz se a violação desses deveres e regras de conduta decorre de uma atitude de rebeldia do condenado reveladora de ausência de vontade e de empenhamento no processo de ressocialização, ou, pelo menos, de indiferença face a esse objectivo, ou se, apesar do incumprimento, não é de dar por frustradas aquelas finalidades.
Por isso, só tem justificação a audição pessoal e presencial do condenado nos casos em que existe esse apoio e fiscalização do cumprimento dos deveres e regras de conduta.
Como se decidiu no acórdão desta Relação, de 29.11.2011 (Relatora: Des. Filomena Lima), disponível em www.dgsi.pt, “só nesses casos se justifica que o tribunal, antes de decidir sobre a revogação da suspensão da execução da pena, ouça o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições de suspensão, já que aquele melhor poderá então explicar de viva voz à competente autoridade judicial se existiram motivos ou causas para o incumprimento havido, que ainda não sejam, porventura, conhecidas do tribunal”.
Numa situação de suspensão da execução tout court, sem qualquer condição específica, que sentido faria a presença do técnico de reinserção social, totalmente desconhecedor do caso, na audição do condenado a que o juiz procederia? Seguramente, nenhum! E que vantagem adviria da audição pessoal e presencial do condenado? Cremos que nenhuma!
Ousamos mesmo afirmar que, nesses casos, o contraditório e as garantias de defesa do condenado ficam melhor acautelados com a sua notificação para se pronunciar, por escrito, sobre a eventual revogação da suspensão, até por         que, face aos motivos invocados para o incumprimento, o juiz sempre poderá decidir ouvi-lo pessoalmente.
Por tudo isto, o que se pode afirmar é que, sendo certo que, após a alteração ao artigo 495.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que substituiu a expressão “audição do condenado” por “ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão” reforça a tese de que, nos casos de suspensão da execução com regime de prova, suspensão com imposição de deveres e suspensão com regras de conduta em que o respectivo cumprimento é apoiado e fiscalizado pelos serviços de reinserção social, é obrigatória a audição pessoal e presencial do condenado, já não é fundada a conclusão de que assim deve acontecer independentemente da modalidade da suspensão.
 Volvendo ao caso que nos ocupa, tendo sido proporcionada ao condenado a possibilidade de se pronunciar sobre a revogação da suspensão, e tendo ele exercido, efectivamente, o contraditório, não descortinamos motivo para concluir que foi cometida qualquer nulidade.
                                                             *
Apreciada a questão do exercício do contraditório e da audição do condenado enquanto acto prévio ou preparatório da decisão de revogar ou manter a suspensão da execução da pena, importa abordar a questão substantiva: as três condenações sofridas pelo recorrente no decurso do período da suspensão permitem concluir que se frustraram as finalidades que estiveram na base dessa suspensão?   
A finalidade precípua da suspensão é a ressocialização do agente, na vertente da prevenção da reincidência. Em palavras mais simples, a suspensão da execução da pena visa afastar o arguido da criminalidade.
Para que se alcance essa finalidade, é fundamental a atitude do condenado, é absolutamente essencial que ele tenha vontade de se reinserir socialmente e se empenhe na consecução desse objectivo.
Como se refere na Resolução de Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26 de Maio, “o instituto de suspensão da pena de prisão assenta na confiabilidade em como o delinquente enquanto cidadão, face à dimensão do delito cometido, satisfará o projecto da sua ressocialização. Este projecto é realizável em termos abstractos, mas o agente de um crime enquanto tal, não é uma abstracção, nem pode ser tido como cobaia para ver como é que as coisas poderão correr. Neste projecto o juiz tem de considerar forçosamente os índices de que dispõe e particularmente (…) a seriedade e vontade do arguido no sentido da sua reintegração e reencontro com os valores da sociedade com que esbarrou”.
Por isso se diz que a suspensão da pena é uma reacção penal de conteúdo pedagógico e reeducativo, sendo essencial à filosofia do instituto a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contenção e auto-responsabilização pelo comportamento posterior[3].
Para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça da pena, a exercer sobre si o efeito contentor em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir.
Incontornável é, assim, a exigência de que o arguido se abstenha de novas práticas delitivas, sem o que dificilmente se poderá afirmar que foram alcançadas as finalidades da suspensão.
Como já se referiu, na vigência do Código Penal de 1982, a condenação numa pena de prisão por crime doloso praticado durante o período da suspensão implicava, necessariamente, a revogação da suspensão, mas, por influência da doutrina do Professor Figueiredo Dias, com a reforma desta Codificação operada pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, deixou de haver revogação automática da suspensão, passando o art.º 56.º, n.º 1, na sua nova redacção, a estabelecer que a suspensão da execução da pena é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado
a) ….
 b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Para avaliar se o novo crime cometido durante a suspensão é susceptível de infirmar o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão assumem particular importância a sua natureza e gravidade, o que não quer dizer, contrariamente ao que pretende o recorrente, que deva ter a mesma natureza do crime ou crimes que estiveram na base da condenação em pena de prisão cuja execução foi suspensa.
Se, depois de cometer um crime de burla, pelo qual foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, o agente, no período da suspensão, comete, p. ex., um crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez, não se pode, desde logo, afirmar que, com o seu comportamento, demonstrou que não se cumpriram as expectativas que motivaram aquela suspensão, até porque não existe nenhuma conexão entre eles.
Tanto assim que, no caso, a primeira condenação por crime (de condução de veículo automóvel sem habilitação legal) cometido no período da suspensão foi em pena de prisão também ela suspensa na sua execução, pois foi, ainda, positivo o juízo de prognose efectuado pelo tribunal[4].
No entanto, não pode menosprezar-se o facto de que “o cometimento de um crime durante o período da suspensão é a circunstância que mais claramente pode pôr em causa o prognóstico favorável que a aplicação da pena de suspensão sempre supõe” (Figueiredo Dias, Op. Cit, 355).
Ora, como se salienta no despacho recorrido, foram três os crimes cometidos no período da suspensão e o primeiro foi praticado pouco tempo depois da condenação em pena suspensa.
Sendo certo que “o critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma” (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 236), impõe-se concluir que o condenado fez com que se frustrassem as expectativas nele depositadas, revelando que não era merecedor do voto de confiança que lhe foi dado.
Note-se que o condenado não só ignorou a advertência implícita na condenação em pena de prisão suspensa, assim evidenciando incapacidade de sentir essa ameaça, como nem sequer a condenação em pena de prisão efectiva (ainda que a cumprir em fins-de-semana) exerceu sobre si qualquer efeito contentor, pois que, logo de seguida, voltou a delinquir (sendo, novamente, condenado em pena de prisão a cumprir em fins-de-semana).
O tribunal tem de reportar-se ao momento em que aprecia a situação, isto é, em que faz a avaliação da manutenção, ou não, das circunstâncias que determinaram a suspensão da execução da pena e a situação com que se deparou o tribunal recorrido foi a de um condenado que revelava sérias dificuldades em conduzir a sua vida de acordo com os valores do Direito, incapaz de interiorizar a censurabilidade do seu comportamento e revelando insensibilidade às penas que o tribunal lhe cominou.
É imperioso que não se confunda (res)socialização em liberdade com impunidade e é esta ideia (de impunidade) que pode passar para o condenado que não sofre qualquer consequência por não cumprir os deveres (de facere e/ou de non facere) inerentes à suspensão da execução da pena e, desde logo, a condição básica, qual seja, a de não cometer crimes no período da suspensão.
Por outro lado, a manutenção da suspensão colocaria em crise as expectativas comunitárias na validade das normas violadas e a função do tribunal é, precisamente, a de reforçar essas expectativas.
Por tudo isto, entendemos que a decisão recorrida não é merecedora de censura.

III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto por A..., confirmando o despacho recorrido.
Por ter decaído, pagará o recorrente as custas do processo, fixando-se em quatro UC´s a taxa de justiça (artigos 513.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).  
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).   
                                                                                 
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2012

Relator: Neto de Moura;
Adjunto: Alda Tomé Casimiro;
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[1] Assim, os acórdãos (ambos disponíveis em www.dgsi.pt) da Relação de Lisboa, de 01.03.2005 (“a omissão da concessão, ao arguido, da faculdade, prevista no n.º 2 do art.º 495.º do CPP, de se pronunciar sobre o incumprimento das condições a que estava subordinada a suspensão da pena, a que fora condenado, configura a nulidade insanável estabelecida na alínea c) do art.º 119.º do CPP”) e da Relação de Évora, de 22.02.2005 (“A revogação da suspensão da execução da pena sem prévia audição do arguido constitui nulidade insanável”).

No entanto, não pode deixar de ser devidamente ponderada a posição expressa no acórdão da Relação de Lisboa, de 17.10.2007 (Relator: Des. Carlos Almeida), segundo a qual a violação do contraditório imposto, além do mais, pelo n.º 2 do art. 495.º do Cód. Proc. Penal não é um vício que afecte o despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão e por isso possa ser corrigido através de recurso interposto desse despacho, mas sim motivo para arguir, perante o tribunal de 1.ª instância, a irregularidade do procedimento adoptado e, caso o despacho que vier a incidir sobre tal arguição não lhe seja favorável, interpor o competente recurso que, a proceder, invalidaria os actos posteriores a esse despacho, incluindo a revogação da suspensão.    
[2] Na versão primitiva do Código Penal é que a condenação por crime doloso no período de suspensão determinava, ipso facto, a revogação da suspensão da execução da pena. Solução que era criticada por Figueiredo Dias (”Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 35), pois que “nesta hipótese, perde-se completamente a correlacionação entre o incumprimento e o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do delinquente, sendo, pois, a adopção pela lei de uma revogação automática profundamente criticável do ponto de vista político-criminal”.
[3] Também H.H. Jescheck (“Tratado de Derecho Penal”, Vol. II, Bosch, 1153) se refere à suspensão da pena como tendo “un aspecto socio-pedagógico activo en cuanto estimula al condenado para que sea él mismo quien com sus proprias fuerzas pueda durante el periodo de prueba reintegrarse en la sociedad”.
[4] No entanto, há que relativizar o valor deste juízo favorável porquanto, conforme decorre do texto da sentença (fls. 320 e segs.), não há nenhuma referência à condenação na pena de três anos de prisão suspensa, omissão que só pode querer dizer que o tribunal desconhecia essa condenação.