Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
373/09.0SZLSB.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
DIREITOS DE DEFESA DO ARGUIDO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº Podendo a alteração da valoração jurídico-penal dos factos assumir vários cambiantes, o critério para se determinar se se impõe, ou não, a comunicação da alteração a que se refere o art.358, do Código de Processe Penal, é o da salvaguarda das garantias de defesa do arguido: se, de modo relevante, o direito de defesa sai afectado com a alteração da qualificação jurídica, há que comunicar a alteração nos termos do nº3 desse preceito;
IIº Definido e delimitado o objecto do processo pela acusação (ou pela pronúncia, tendo havido instrução), assim se fixando o thema decidendum, a regra é a de que esse quid (“pedaço da vida real portador de uma unidade de sentido”) deve manter-se inalterado até ao trânsito em julgado da condenação. No entanto, o princípio da vinculação temática não pode ser entendido e aplicado com uma rigidez tal que o tribunal fique impedido na sua actividade cognoscitiva e decisória de atender a factos que não foram objecto da acusação, sejam quais forem as circunstâncias, o que pode conduzir a alteração da qualificação jurídica, em consequência da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia;
IIIº Estando o arguido acusado da prática de crimes de injúria agravada e resistência e coacção sobre funcionário, sendo condenado pelo crime de injúria agravada e por crime de ofensa à integridade física simples, após acrescento de factos novos, não descritos na acusação, relativos ao tipo subjectivo deste crime e necessários à concretização dos factos que suportavam a imputação subjectiva no crime de injúria agravada, ocorreu uma alteração jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa, que impunha o cumprimento do disposto no nº1 do art.358, do Código de Processo Penal, sem o que as garantias de defesa do arguido serão intoleravelmente afectadas;
IVº Não tendo o tribunal cumprido o dever de comunicar a alteração ao arguido e de lhe dar a oportunidade de defesa, a sentença é nula nos termos do art.379, nº1, al. b), do Código de Processe Penal, devendo o tribunal de recurso declarar essa nulidade e determinar a reabertura da audiência para cumprimento do dever omitido e para que o tribunal a quo elabore nova sentença;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 373/09.0 SZLSB, corre termos pela 8.ª Vara Criminal de Lisboa, A... foi submetido a julgamento, por tribunal singular, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de injúria agravada, um crime de resistência e coacção sobre funcionário e um terceiro crime de roubo simples na forma tentada, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 181.º e 184.º, 347.º, n.º 1, e 22.º, n.º 1, 23.º, n.ºs 1 e 2, e 210.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, por acórdão de 09.06.2011 (fls. 291 a 307), foi o arguido absolvido do crime de roubo tentado, mas condenado, após convolação, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e outro de injúria agravado, previstos e puníveis pelos artigos 143º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, e 184.º, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, respectivamente, nas penas parcelares de 1 (um) ano e de 2 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 13 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período. 
Foi, ainda, o arguido/demandado A... condenado a pagar ao Estado Português, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 781,67, acrescida de juros de mora.
Discordando parcialmente do acórdão proferido, o Ministério Público dele interpôs recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, de que extraiu as seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
1. “Delimitando o objecto do presente Recurso, consigna-se que o MºPº se conforma, quer com a condenação pela prática de um crime agravado de injúrias, quer com a absolvição pelo crime de roubo simples, na forma tentada;
2. A discordância cinge-se, assim, à requalificação do crime de resistência e coacção sobre funcionário (do artº 347º, nº 1, do C. Penal) para o crime de ofensa à integridade física simples (artº 143º, nº 1, do C. Penal), ao modo como foi operada e às correspondentes medidas das penas (parcelar e, consequentemente, única);
3. O Tribunal fundamentou a não condenação pelo crime previsto no artº 347º, no facto de não ter resultado "… provado nos autos que o arguido tivesse usado de violência sobre o agente da PSP B... para se opor a que ele praticasse acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que ele desenvolvesse uma determinada acção no desempenho das suas funções, tanto mais que nem sequer se provou que o referido agente, na altura, pretendesse identificar ou deter o arguido, ou que lhe tivesse dado alguma ordem nesse sentido.";
4. Todavia, melhor analisando a Acusação, constatou-se que, nesta, havia sido omitido um elemento típico do crime;
5. No Libelo, consignara-se, tão só, que "o arguido agiu por meio de violência constrangendo agentes de forças públicas de segurança no desempenho das suas funções a uma acção e a suportar uma actividade desenvolvida contra si.", mas, não, que agira "para se opor a que ele" (in casu, o Agente da PSP) praticasse "acto relativo ao exercício das suas funções";
6. Alegando-se, expressamente, que o Arguido "agiu por meio de violência constrangendo agentes de forças públicas de segurança no desempenho das suas funções… a suportar uma actividade desenvolvida contra si ", omitiu-se o elemento essencial que consistiria no facto de o Arguido ter agido para se opor a que o Sr. Agente da PSP praticasse acto relativo ao exercício das suas funções;
7. Daí que, não possa deixar de se concluir que o Tribunal, em sede de Fundamentação, tenha considerado como não provado um facto que, não só a Acusação omitira, como, ainda, que nem sequer fizera constar dos "Factos não Provados";
8. A consequência, a nosso ver, do que vem de explanar-se, é que, face às deficiências assinaladas à Acusação, o Arguido nunca poderia ter sido condenado pelo crime previsto no artº 347º, do C. Penal. Não pelas razões que o Acórdão refere, mas, sim, por omissão, naquela, de um dos elementos típicos do crime em apreço;
9. Por outro lado, ao "convolar" a infracção, o Tribunal afastou a verificação da qualificativa prevista na l), do nº 2, do artº 132º (ex vi do disposto nos artºs. 145º, nºs. 1, a) e 2, com referência ao artº 143º, do C. Penal), por ter entendido que o Arguido "... actuou no contexto de uma discussão, onde normalmente os ânimos se mostram exaltados, consubstanciando tal conduta do arguido um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artº. 143º, nº. 1 do mesmo diploma legal,…";
10. Desta solução, o MºPº discorda frontalmente, uma vez que, dos "Factos Provados" resulta, à saciedade, que a actuação do Arguido foi particularmente perversa e censurável;
11. Tratava-se de um Agente da Autoridade - facto que, comprovadamente, o Arguido conhecia, posto que a Vítima se encontrava fardada -, no exercício das suas funções, o qual procurava por fim a uma agressão perpetrada numa terceira pessoa pelo próprio Arguido;
12. A agressão teve lugar na via pública, tendo sido presenciada por várias pessoas e acompanhada de expressões comprovadamente injuriosas, aliás, agravadas pela circunstância de terem sido dirigidas a uma das pessoas referidas na l), do nº 2, do artº 132º - ex vi do artº. 184º, do C. Penal (uma vez que, neste caso, a Lei não exige a verificação da especial perversidade ou censurabilidade, funcionando a agravante, sem mais, ope legis);
13. Acresce que as agressões foram reiteradas, violentíssimas e persistentes, tendo o Arguido agredido a Vítima, com socos e pontapés, atingindo o Sr. Agente da PSP, sucessivamente, "na zona do tronco, na zona abdominal, na cabeça e no rosto, até este cair no solo", sendo certo, ainda, que "Enquanto o ofendido B... permanecia no chão, o arguido desferiu-lhe vários pontapés" - cfr. itens nºs. 2 e 4, dos "Factos Provados";
14. Por outro lado, "Em consequência das agressões de que foi vítima, sofreu o ofendido traumatismo na face, no cóccix e nos membros inferiores e escoriações várias na região frontal direita, na região malar direita e no hemilábio superior direito, equimoses na face anterior da perna esquerda e no terço inferior da face externa da coxa esquerda, lesões essas que determinaram um período de 5 dias de doença, sendo 3 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 5 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional", agindo com intenção de causar padecimento à Vítima, o que conseguiu  - cfr. itens nºs. 5 e 7, dos "Factos Provados";
15. A única explicação que o Acórdão dá para assim ter considerado é que o Arguido "actuou no contexto de uma discussão, onde normalmente os ânimos se mostram exaltados". Note-se que o que acaba por constituir a razão de ser do afastamento da qualificativa, paradoxalmente, decorre de uma outra agressão de que estava a ser vítima uma outra pessoa e que precedeu a agressão perpetrada no Agente da PSP que interveio para obstar à continuação daquela;
16. Daí que não possa deixar de concluir-se que, não só o motivo referenciado pelo Acórdão não é causa de afastamento da qualificativa, como, ao invés, conjuntamente com toda a factualidade provada e que se salientou, impunha a caracteri-zação da conduta do Arguido como especialmente perversa e censurável e, como tal, subsumível, não, como foi, ao artº 143º, nº 1, mas, antes, ao artº 145º, nºs. 1, a) e 2, do C. Penal;
17. Face à gravidade dos factos consignados no Acórdão e que foram tidos em conta na escolha e medida da pena, entende-se por adequada uma pena parcelar de 2 anos e 6 meses de prisão e única de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, não se configurando qualquer factor que leve a admitir uma prognose favorável, relativamente à conduta do Arguido, antes se lhe impondo a aplicação de uma pena de prisão efectiva;
18. Em qualquer caso, ainda que, porventura, se entendesse ser de manter a qualificação pelo artº 143º, nº 1, do C. Penal, ainda assim, a medida da pena aplicada é manifestamente desajustada;
19. O MºPº entende que, nesse caso, se imporia uma agravação de 1 ano, para 1 ano e 9 meses de prisão e, em concurso com a pena de 2 meses de prisão, aplicada ao crime agravado de injúrias, a pena única de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, a qual, pelas razões apontadas, se entende não dever ser suspensa na sua execução;
20. Por fim, haverá que avaliar se a "convolação" operada (para o artº 143º, nº 1), ou (como defendemos), a operar (para o artº 145º, nºs. 1, a) e 2), impunha/õe, ou não, a comunicação de uma alteração não substancial, nos termos do artº 358º, do CPP;
21. Ao requalificar a conduta do Arguido, do artº 347º, nº 1, para o artº 143º, nº 1, do C. Penal, o Tribunal entendeu que não era de proceder a qualquer comunicação;
22. Se é certo que os interesses tutelados, em primeira linha, nuns e noutro, são diversos (no que aos primeiros diz respeito, o bem protegido é a integridade física da pessoa humana, ao passo que, no que tange ao segundo, tratando-se de um crime de perigo, o bem jurídico tutelado é a autonomia intencional do Estado, com a qual "pretende evitar-se que não-funcionários ponham entraves à livre execução das "intenções" estaduais, tornando-as ineficazes"), não é menos certo que, como mais patente ficou, após a revisão de 2007, a tutela da integridade física do funcionário se inclui, concomitantemente, na previsão normativa do crime de resistência e coacção sobre funcionário;
23. O mesmo se deverá considerar se a "convolação" for, como defendemos que seja, para o artº 145º, do C. Penal, uma vez que todos os elementos do tipo, incluindo os que caracterizam a especial perversidade e censurabilidade da conduta do agente, estão descritos na Acusação, posto que, tratando-se a censurabilidade e a perversidade de asserções conclusivas, hão-de elas emergir das condutas típicas descritas na Acusação, as quais, relevarão, ou não, para o integral preenchimento dos elementos típicos, consoante, a final, sejam, ou não, considerados provados;
24. Como bem se refere no Ac. do TRG, de 29.11.2010 "As fórmulas usadas pelo legislador nas normas incriminatórias são, por regra, conclusivas. Podem conter elementos de facto, mas mesmo nesses casos, os factos contidos na norma terão de permitir a sua decomposição em outros que inevitavelmente os demonstrem.";
25. Ao contrário do que se refere no Acórdão, não é o facto de a moldura penal do "novo" crime ser menos gravosa que dispensa a comunicação. Tratando-se de diversa qualificação jurídica, pouco importa que a "convolação" seja para crime mais ou menos grave;
26. Como resulta, expressamente, do nº 3, do artº 358º, do CPP, “O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”, sendo pacífico, quer em sede de Doutrina, quer de Jurisprudência, o entendimento segundo o qual a alteração da qualificação jurídica configura alteração não substancial, ainda quando a modificação implique a imputação de crime mais grave;
27. Por outro lado, não haverá que proceder a qualquer comunicação, nos termos do artº 358º, do CPP, posto que todos os elementos que integram, quer o crime previsto no artº 143º, quer o previsto no artº 145º, ambos do C. Penal, constituem um minus relativamente ao crime previsto no artº 347º;
28. A omissão, em sede de Acusação, do elemento típico "para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções" não releva para a caracterização dos crimes de ofensa à integridade física (simples ou qualificada), antes constituindo o elemento diferenciador sem o qual o crime de resistência e coacção sobre funcionário não pode ter-se por verificado;
29. O MºPº reconhece que, neste particular segmento, a questão lhe suscite algumas dúvidas, não sendo peremptório no juízo que formulou, assim admitindo como possível o entendimento segundo o qual a "convolação" por que propugna (do crime previsto no artº 347º, para o crime previsto no artº 145º, nºs. 1, a) e 2, do C. Penal) imponha uma comunicação da alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no nº 3, do artº 358º, do CPP;
30. Ao não proceder como vem de expor-se, o Acórdão recorrido violou o disposto nos artºs. 50º, nº 1, 71º, 143º, 145º, nºs. 1, a) e 2 e 347º, nº 1, do C. Penal e, ainda, porventura, o artº 358º, nº 3, do CPP.
Pretende, pelo exposto, que o acórdão recorrido seja revogado e substituído por outro no qual se consagre a condenação nos termos propugnados ou que se ordene a baixa do processo à 1.ª instância para aí se proceder à comunicação da alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no art.º 358.º, n.º 3, do CPP.
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Não houve resposta do arguido/recorrido.
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Na vista a que alude o art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Quando o tribunal de recurso, em processo em penal, conhece de um recurso ordinário, deve começar por proceder à delimitação objectiva do seu âmbito.
O art.º 402.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal dispõe que o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, mas ressalva o disposto no artigo seguinte, onde se procede a delimitação objectiva do âmbito do recurso.
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Do artigo 403.º decorre que o recorrente pode limitar o recurso a uma parte da decisão, desde que ela possa ser separada da parte não recorrida.
Mas, sendo as conclusões do recurso que, em primeira linha, delimitam o horizonte cognitivo do tribunal de recurso, nada obsta a que (antes se impõe que) o tribunal aprecie outras questões que são de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insupríveis
Conforme resulta das conclusões do recurso que ficaram transcritas, o recorrente não questiona a decisão sobre matéria de facto, tal como, em matéria de direito, aceita a absolvição do arguido pelo crime de roubo tentado e a condenação pelo crime de injúria agravado.
A sua discordância dirige-se ao enquadramento jurídico-penal dos factos feito pelo tribunal recorrido, pois considera que a convolação (ou requalificação) deveria ser para o crime de ofensa à integridade física qualificado, e não para o mesmo ilícito penal, mas na formulação matricial do artigo 143.º, n.º 1, do Cod. Penal, e à medida da pena que, em qualquer caso, se lhe afigura desajustada e deve ser de prisão efectiva.
Embora com dúvidas, admite que se imponha a comunicação da alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 358.º, do Cód. Proc. Penal.
São, pois, as seguintes as questões que coloca à apreciação deste tribunal:
§ nulidade da sentença, por não comunicação da alteração da qualificação jurídica;
§ valoração jurídico-penal dos factos provados;
§ medida da pena;
§ suspensão da execução da pena.

II – Fundamentação
Para uma correcta decisão das questões colocadas à apreciação deste tribunal pelo recorrente, a começar pela nulidade da sentença, é fundamental conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida, pelo que aqui se reproduzem (ipsis verbis) os factos que o tribunal recorrido deu como provados e não provados:
Factos provados
1. No dia 3 de Dezembro de 2009, cerca das 8 horas e 15 minutos, na Av. Almirante Reis, rente ao n.º …., em Lisboa, o arguido envolveu-se numa desavença familiar tendo os populares que por ali passavam chamado B..., Agente Principal da PSP, que ali se encontrava a regular o trânsito no exercício de funções públicas, devidamente uniformizado.
2. Quando o referido agente da PSP se interpôs entre o arguido e a mulher que o acompanhava visando terminar a agressão de que aquela estava a ser vítima, o arguido percorreu cerca de nove metros sempre a desferir pontapés e socos que atingiram o agente B... na zona do tronco, na zona abdominal, na cabeça e no rosto, até este cair no solo.
3. Ao mesmo tempo que agredia o Agente Principal da PSP ia dizendo: “bóia de merda, seu grande cabrão”.
4. Enquanto o ofendido B... permanecia no chão, o arguido desferiu-lhe vários pontapés.
5. Em consequência das agressões de que foi vítima, sofreu o ofendido traumatismo na face, no cóccix e nos membros inferiores e escoriações várias na região frontal direita, na região malar direita e no hemilábio superior direito, equimoses na face anterior da perna esquerda e no terço inferior da face externa da coxa esquerda, lesões essas que determinaram um período de 5 dias de doença, sendo 3 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 5 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional.
6. O arguido sabia que ao dirigir as mencionadas expressões a um agente da PSP, no exercício das suas funções, o ofendia na sua honra e consideração pessoal e profissional que lhe era devida, o que quis e fez.
7. O arguido quis actuar pela forma atrás descrita, com o propósito de molestar fisicamente o agente da PSP B... e causar-lhe padecimento, o que conseguiu.
8. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
9. Em consequência da conduta do arguido, o agente da PSP B... esteve 11 dias de baixa médica.
10. Durante esse período, o Estado Português desembolsou a quantia de € 765,27 com vencimentos e outros subsídios correspondentes aos 11 dias de baixa médica que lhe foram atribuídos em consequência das agressões de que foi vítima e que o mesmo auferiria se estivesse ao serviço.
11. O próprio sinistrado despendeu € 16,40 referente à assistência hospitalar que lhe foi prestada no Hospital de São José, no dia 3 de Dezembro de 2009.
12. O Agente Principal B..., na data da ocorrência, efectuava serviços remunerados, os quais são feitos nas suas horas de folga.

Mais se apurou que:
O arguido, de 39 anos de idade, é casado e tem como habilitações o 7.º ano de escolaridade.
O arguido trabalha como motorista distribuidor, por conta própria, auferindo em média entre € 700 e € 850 mensais.
Vive com uma companheira, que está desempregada, e uma filha desta com 7 anos de idade, em casa arrendada de que paga uma renda mensal no montante de € 350.
O arguido tem seis filhas – uma com 18 anos, duas com 14 anos, uma com 11anos e duas gémeas com 4 anos de idade – que vivem com as respectivas mães.
O arguido regista as seguintes condenações:
a) por sentença proferida em 12/07/96, no processo comum singular n.º 351/92.6 SDLSB do 4.º Juízo Criminal de Lisboa – 3.ª Secção, foi condenado pela prática, em 23/01/92, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 100 dias de prisão, substituídos por igual tempo de multa à taxa diária de 600$00 ou, em alternativa, 66 dias de prisão, a qual foi declarada perdoada;
b) por sentença proferida em 24/04/97, no processo comum singular n.º 79/96 do 2.º Juízo – 2.ª Secção do Tribunal Judicial de Torres Novas , foi condenado pela prática, em 29/05/95, de um crime de furto simples, na pena de 240 dias de multa à taxa diária de 700$00, o que perfaz a quantia total de 168 00$00;
c) por acórdão proferido em 5/07/2001, no processo comum colectivo n.º 3092/00.9 JDLSB (14/2001) da 4.ª Vara Criminal de Lisboa – 1.ª Secção, foi condenado pela prática, em 25/06/2000, de um crime de receptação, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 400$00 ou, em alternativa, 80 dias de prisão;
d) por sentença proferida em 27/11/2002, no processo sumário n.º 257/02.2 PXLSB do 2.º Juízo – 3.ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi condenado pela prática, em 29/11/2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 4, o que perfaz a quantia total de € 480, com 80 dias de prisão subsidiária;
e) por sentença proferida em 3/10/2003, no processo sumário n.º 14/03.9 GQLSB do 2.º Juízo – 1.ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi condenado pela prática, em 3/10/2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos;
f)      por sentença proferida em 3/06/2004, no processo comum singular n.º 601/01.0 PGLSB do 3.º Juízo Criminal de Lisboa – 2.ª Secção, foi condenado pela prática, em 23/11/2001, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 2;
g) por sentença proferida em 5/12/2006, no processo comum singular n.º 258/02.0 PXLSB do 4.º Juízo Criminal de Lisboa – 2.ª Secção, foi condenado pela prática, em 11/11/2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.

Factos não provados
- que o arguido tivesse tentado apoderar-se da arma de serviço que estava distribuída ao Agente da PSP, de valor seguramente superior a € 150,00, só não logrando alcançar os seus intentos por razões alheias à sua vontade;
- que o arguido, depois de algemado, lograsse ainda pontapear o ofendido nas pernas e dissesse “a ti, tirei-te a fotografia, vou-te fazer a folha”;
- que o arguido, por meio de violência, tivesse constrangido agentes de forças públicas de segurança no desempenho das suas funções a uma acção e a suportar uma actividade desenvolvida contra si;
- que o arguido tivesse agido por meio de violência com intenção de fazer sua a arma que estava confiada ao Agente Principal da PSP, e pertença do Estado, bem sabendo que não lhe pertencia e que actuava contra a vontade e sem autorização do dono, só não logrando alcançar os seus intentos por razões alheias à sua vontade;
- que no período em que esteve de baixa médica, o arguido poderia ter efectuado 4 serviços remunerados no período nocturno no valor de € 47,55, o que perfaz a quanta de € 90,20, e 2 serviços remunerados no período diurno, no valor de € 31,70.
*
A nulidade da sentença por não cumprimento do disposto no art.º 358.º do Cód. Proc. Penal.
Podendo a nulidade invocada ter como consequência a anulação do acórdão recorrido, é pelo seu conhecimento que se impõe começar.
Importa, no entanto, e desde já, dar nota que, na nossa perspectiva, não é, apenas, em relação ao crime de resistência e coacção sobre funcionário que a questão da alteração se coloca.
Pelas razões que adiante referiremos, também em relação ao crime de injúria agravado a questão da alteração de factos tem de ser equacionada e resolvida.
Uma alteração da qualificação jurídica dos factos, mesmo que de um crime menos grave para outro mais grave, desde que se mantenham inalterados os factos que constituem o objecto do processo (delimitado pela acusação/pronúncia), é admissível e equipara-se a uma alteração não substancial, face ao disposto no art. 358.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal[1].
A alteração da qualificação jurídica tanto pode ter lugar no tribunal de primeira instância como no tribunal de recurso.
Se, em recurso, o tribunal superior decidir alterar oficiosamente a qualificação jurídica (mesmo que para um crime mais gravemente punido, embora respeitando a proibição da reformatio in pejus), tal alteração tem de ser, previamente, comunicada ao arguido para que este, querendo, se pronuncie (art.º 424.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal).
Se a decisão de alteração da qualificação jurídica ou convolação ocorrer no decurso do julgamento em primeira instância, antes de tomar essa decisão, o tribunal tem de comunicá-la ao arguido e conceder-lhe prazo para preparação da defesa, se este o requerer (n.ºs 1 e 3 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal).
O recorrente expressa a sua dúvida sobre se, no caso, se “impunha/õe, ou não, a comunicação de uma alteração não substancial, nos termos do artº 358º do CPP”, e a sua hesitação é plenamente justificada, pois que, apesar de ser um tema abundantemente tratado pela doutrina e na jurisprudência, está longe de se conseguir uniformidade de entendimento.
A evolução jurisprudencial – com reflexos ao nível da própria uniformização jurisprudencial e da jurisprudência do Tribunal Constitucional - e legislativa que se verificou nos anos noventa do século passado é claramente reveladora da importância e dificuldade das questões relacionadas com os contornos da vinculação temática do tribunal e com a eventual incidência nesses contornos das questões de qualificação jurídica, sendo de realçar que o STJ começou por fixar jurisprudência no sentido de que, mesmo para uma figura criminal mais grave, a alteração da qualificação jurídica era livre e totalmente isenta de restrições, por não representar nenhuma alteração do objecto do processo, mantendo-se os factos idênticos (assento n.º 2/93, DR, I-A, de 10.03.1993).     
Depois de uma longa controvérsia jurisprudencial (reflectida no Assento n.º 2/93, nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 279/95, 445/97 e 518/98 e acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2000) que originou alterações legislativas nesta matéria (primeiro, as introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou o actual n.º3 do artigo 358.º, e depois a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que aditou o n.º 3 ao artigo 424.º), pode hoje considerar-se estabilizada a jurisprudência no sentido de que uma alteração (substancial ou não substancial) dos factos da acusação/pronúncia ou uma alteração do enquadramento jurídico-penal dos factos só será admissível e tida em conta pelo tribunal numa condenação se o arguido for prevenido dessa possível alteração, ou seja, se essa alteração lhe for previamente comunicada (nos termos dos citados artigos 358.º e 359.º), com a concessão de prazo razoável (mas não superior a 10 dias) para a preparação da defesa, se tal for requerido. Se assim não se proceder, isto é, não se cumprindo esse dever de comunicar a alteração ao arguido e de lhe dar a oportunidade de defesa, a sentença é nula nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal, devendo o tribunal de recurso declarar essa nulidade e determinar a reabertura da audiência para cumprimento do dever omitido e para que o tribunal a quo elabore nova sentença (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário…”, 966-967, e acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ n.º 7/2008, DR, I, n.º 146, de 30.07.2008).
Porém, a aplicação dos n.ºs 1 e 3 do art.º 358.º continua a suscitar controvérsia[2], pois não é qualquer alteração que faz surgir esse dever de comunicação.
Importa, pois, precisar quando há necessidade de efectuar tal comunicação.
No acórdão recorrido, o tribunal a quo entendeu que, no caso, podia, livremente, proceder à convolação (não se impondo, portanto, a comunicação) “por se tratar apenas de uma diferente qualificação dos factos constantes da acusação, que determina a imputação ao arguido de um crime com uma moldura penal menos gravosa”.
No entanto, salvo o devido respeito, não se trata aqui de uma simples alteração da qualificação jurídica e nem sempre a alteração para um crime menos grave do que aquele que é imputado na acusação ou na pronúncia dispensa a comunicação.
Como se afirma no Acórdão do TC n.º 279/95, de 31.05.1995, “um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar de ter por referência um enquadramento jurídico-penal preciso” e a salvaguarda das garantias de defesa passa por proporcionar ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre as questões que, directa ou indirectamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado (pretensão de que ele é o alvo), como sucederá com a alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados.
Foi essa a doutrina que, com a reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, como já referimos, passou a estar consagrada no texto da lei (n.º 3 do art.º 358.º).   
Mas se é assim quando há simples alteração da qualificação jurídica, quando se verifica uma alteração de factos relevante maior terá de ser a exigência de salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido.
A este propósito, é frequente a afirmação de que a comunicação prevista naquele normativo não é necessária quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de um crime que representa um minus relativamente ao da acusação ou da pronúncia.
Isto porque, diz-se, o arguido teve conhecimento de todos os elementos constitutivos e por isso teve possibilidade de os contraditar.
Mas quando se diz que a nova imputação (o crime pelo qual o agente é condenado) c0nstitui um minus relativamente ao crime pelo qual estava acusado ou pronunciado, nem sempre se alude à mesma realidade.
Como se observa no acórdão do STJ, de 06.04.2006, disponível em www.dgsi.pt/jstj (Relator: Cons. M. Simas Santos), há que ter em consideração a distinção (porque é a própria lei que distingue) entre alteração de factos da incriminação e alteração da qualificação jurídica perante os mesmos factos.
Quando está em causa a mera alteração da valoração jurídico-penal dos factos, a alteração pode assumir vários cambiantes.
Sem a preocupação de sermos exaustivos, podemos elencar as seguintes situações:
§ alteração para um crime mais grave, por dela resultar um agravamento das sanções aplicáveis (é o caso, apreciado no acórdão do STJ, de 17.09.2009, de incriminação por homicídio em substituição de uma incriminação por roubo qualificado pela morte, de que estava acusado o arguido);
§ alteração para um crime diferente, mas de gravidade idêntica (por exemplo, o agente é condenado pela autoria de crime de roubo simples, quando lhe era imputado na acusação um crime de furto qualificado por alguma das circunstâncias do n.º 2 do art.º 204.º do Cód. Penal);
§ alteração para um crime diferente, mas que é uma forma equivalente de manifestação do mesmo tipo incriminador (no caso de crime de falsificação de documento agravado, o agente, acusado nos termos do art.º 256.º, n.º 1, al. c), e n.º 3, é condenado pelo crime previsto no art.º 256, n.º 1, alíneas a) ou b), e n.º 3, do Cód. Penal);
§ alteração para uma incriminação idêntica, mas menos grave, por ser menos gravosa a sanção aplicável (caso do arguido acusado por tráfico de estupefacientes na formulação base do art.º 21.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que é condenado por tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do mesmo diploma legal);
§ alteração para uma incriminação diferente e menos grave, por ser menos gravosa a sanção aplicável (é o caso, apreciado no acórdão do STJ, de 28.05.2008, do arguido acusado por violação e condenado por crime de coacção sexual e os casos dos acórdãos do TRC, de 23.11.2011, e do TRP, de 18.5.2011, em que os arguidos estavam acusados da prática de um crime de  violência doméstica e foram condenados pelo crime de ofensa à integridade física simples);
§ alteração resultante da modificação do tipo de participação na execução dos factos (condenação como autor de um arguido acusado em co-autoria ou de arguido acusado como autor e condenado como cúmplice, e vice-versa);
§ alteração resultante da modificação da forma do crime ou do título de imputação subjectiva (arguido acusado pela prática de um crime consumado e condenado pelo mesmo crime, mas na forma tentada; arguido acusado da prática de uma crime de violação na forma continuada e condenado por vários crimes, em concurso real; arguido acusado de crime doloso e condenado por crime negligente).
Perante esta diversidade de situações, a jurisprudência não tem encontrado soluções idênticas para casos iguais ou idênticos.
Dois exemplos[3] para ilustrar esta afirmação:
No acórdão desta Relação, de 03.04.2008 (Relator: Des. Fernando Estrela), em que o arguido, acusado da autoria de um crime de tráfico de estupefacientes (art.º 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1), foi condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade (art.º 25.º), sem que tenham sido alterados os factos, decidiu-se que “no caso de condenação por crime diverso, mesmo de menor gravidade, há que cumprir a comunicação ao arguido, nos termos do disposto no art.º 358.º do Código de Processo Penal, pois que ele deve ser defendido de mudanças-surpresa, sendo ou podendo ser diferente a estratégia de defesa no que concerne a infracções tipificadas diferentemente”.
No entanto, no acórdão do TRC, de 14.09.2011 (Relator: Des. Paulo Guerra), em que o arguido estava acusado da autoria de um crime de tráfico de estupefacientes agravado (art.º 24.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1) e foi condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes do art.º 21.º, decidiu-se que não havia que efectuar a comunicação prevista no n.º 3 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal porque o direito de defesa foi exercido, pois “quem se defendeu do mais, defende-se do menos”.
Nos já citados acórdãos do TRP, de 18.05.2011, e do TRC, de 23.11.2011 – em que os arguidos estavam acusados da prática de crimes de violência doméstica e foram condenados pelos crimes de ameaça agravada e/ou ofensa à integridade física simples – no primeiro, decidiu-se que a alteração da qualificação jurídica tinha que ser comunicada ao arguido nos termos do art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Proc. Penal, ao passo que no segundo entendeu-se que “a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação de uma infracção que é um minus relativamente ao crime de violência doméstica” e que não é necessária a comunicação “porque o arguido teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime por que foi condenado e possibilidade de os contraditar, dado que constavam da pronúncia”.
Temos para nós que o critério para se determinar se se impõe, ou não, a comunicação da alteração não pode deixar de ser a salvaguarda das garantias de defesa do arguido: se, de modo relevante, o direito de defesa sai afectado com a alteração da qualificação jurídica, há que comunicar a alteração nos termos do n.º 3 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal. 
Se um arguido está acusado como cúmplice de um crime de tráfico de estupefacientes do art.º 21º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e, sem que se alterem os factos, é condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade (art.º 25.º do mesmo diploma legal), mas como autor, impõe-se a comunicação da alteração para que possa pronunciar-se sobre essa nova imputação.
Se da alteração da qualificação jurídica resultar a imputação de um crime de natureza diferente (por exemplo, de um crime da natureza pública para crime semi-público), também deve ser feita a comunicação, já que pode ser muito diferente a estratégia de defesa do arguido (orientada para uma eventual desistência de queixa, mediante adequada reparação do dano causado).
Se da alteração resulta a imputação de crime (mesmo que punido com sanção menos gravosa) cujo interesse tutelado é diverso daquele por que foi acusado ou pronunciado e em que é diferente algum (ou alguns) dos seus elementos constitutivos, ainda se impõe a comunicação a que alude o n.º 3 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal, pois o arguido não pôde defender-se em relação a esses elementos.
A alteração da qualificação jurídica pode decorrer da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. 
Definido e delimitado o objecto do processo pela acusação (ou pela pronúncia, tendo havido instrução), assim se fixando o thema decidendum, a regra é a de que esse quid (“pedaço da vida real portador de uma unidade de sentido”) deve manter-se inalterado até ao trânsito em julgado da condenação.
No entanto, o princípio da vinculação temática não pode ser entendido e aplicado com uma rigidez tal que o tribunal fique impedido na sua actividade cognoscitiva e decisória de atender a factos que não foram objecto da acusação, sejam quais forem as circunstâncias.
Como ensina o Professor Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, Verbo, pág. 273), “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo”.
A alteração (referimo-nos, está claro, à alteração não substancial dos factos, admissível desde que se cumpra o disposto no n.º 1 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal) ocorre quando aos factos da acusação (ou da pronúncia) se aditam outros, se excluam ou se substituam alguns deles.
Para o efeito que aqui interessa, a alteração não substancial terá de ser jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa[4].
Assim será, quer no caso em que a alteração pode influir na determinação da medida da pena[5], quer quando da modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo e seja também distinto o juízo de valoração social[6], quer ainda quando a modificação tenha reflexos ao nível da tipicidade.
Cabe aqui referir que o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 450/2007, de 18.09.2007, DR, II, de 24.10.2007) já se pronunciou pela não inconstitucionalidade do conjunto normativo integrado pelos artigos 1.º, n.º 1, al. f), 358.º e 359.º do Cód. Proc. Penal na interpretação segundo a qual deve qualificar-se como não substancial a alteração dos factos relativos aos elementos típicos do crime e à “intenção dolosa do agente”[7].
Retornando ao caso concreto, dir-se-á que, tal como alega o digno Magistrado do Ministério Público recorrente, a acusação evidencia deficiências e, na nossa perspectiva, essas deficiências são particularmente patentes no que tange à descrição dos factos que integrariam o tipo subjectivo dos ilícitos imputados ao arguido.     
Fixemo-nos no crime de resistência e coacção sobre funcionário do n.º 1 do art.º 347.º do Cód. Penal.
O preenchimento do tipo objectivo requer que o agente empregue violência (vis phisica ou vis compulsiva) contra funcionário, membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança para:
a) se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções ou
b) o constranger a que pratique acto relativa ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres.
O tipo subjectivo deste ilícito não exige um dolo específico, basta-se com o dolo genérico em qualquer das suas modalidades, ou seja, é necessário, mas também suficiente, que o agente actue com conhecimento e vontade de empregar violência contra funcionário, membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança para atingir os fins (ou um dos fins) referidos.
Ora, a acusação omite completamente os factos relativos à imputação subjectiva deste ilícito.
O que nela se afirma é que “o arguido agiu por meio de violência constrangendo agentes de forças públicas de segurança no desempenho das suas funções a uma acção e a suportar uma actividade desenvolvida pelo arguido contra si”.
Não dá para entender qual a acção a que o agente da PSP B... foi constrangido pelo arguido e cremos não correr grande risco de errar afirmando que o magistrado do Ministério Público acusador confundiu aqueles fins da acção violenta (elemento do tipo objectivo) com o dolo.
O tribunal recorrido considerou não provado aquele facto, mas, tendo dado como provado que o arguido agrediu fisicamente (desferindo-lhe socos e pontapés que o atingiram em diversas partes do corpo e lhe causaram vários ferimentos) aquele agente da PSP, condenou-o pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
Para tanto, acrescentou factos novos, não descritos na acusação, precisamente os factos relativos ao tipo subjectivo do crime pelo qual condenou o arguido: “o arguido quis actuar pela forma atrás descrita, com o propósito de molestar fisicamente o agente da PSP B... e causar-lhe padecimento, o que conseguiu” (n.º 7 dos factos provados).
Mas a acusação era, ainda, deficiente no que se refere à descrição dos factos que suportam a imputação subjectiva no crime de injúria agravado.
Com efeito, diz-se na acusação deduzida que “o arguido sabia que ao dirigir aquelas expressões a um agente da PSP, no exercício de funções, ofendia a honra e consideração pessoal e profissional que lhe era devida”.
Concretiza-se factualmente o elemento cognitivo do dolo, mas omite-se o elemento volitivo.
O Colectivo de juízes deu-se conta da deficiência e por isso aditou a expressão “o que quis e fez”, ficando o n.º 6 dos factos provados com a seguinte formulação:
O arguido sabia que ao dirigir as mencionadas expressões a um agente da PSP, no exercício das suas funções, o ofendia na honra e consideração pessoal e profissional que lhe era devida, o que quis e fez”.
Temos, pois, uma alteração não substancial de factos que, manifestamente, é jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa, pois foram acrescentados factos que a acusação não continha e que respeitam aos elementos constitutivos dos crimes de ofensa à integridade física e de injúria, pelos quais o arguido foi condenado.
Por isso impunha-se o cumprimento do disposto no nº 1 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal, sem o que as garantias de defesa do arguido seriam intoleravelmente afectadas.
Certo é, porém, que a comunicação da alteração não foi efectuada, pelo que importa extrair dessa omissão as respectivas consequências.
Nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (havendo-a), fora dos casos previstos nos artigos 358.º e 359.º.
                                                   *
Uma vez declarada a nulidade do acórdão recorrido, fica prejudicada a apreciação das demais questões enunciadas, mesmo aquelas que são de conhecimento oficioso, como acontece com o vício da contradição insanável da fundamentação que afecta a decisão.
 Com efeito, deu-se como provado que, “em consequência das agressões de que foi vítima, sofreu o ofendido traumatismo na face, no cóccix e nos membros inferiores e escoriações várias na região frontal direita, na região malar direita e no hemi-lábio superior direito, equimoses na face anterior da perna esquerda e no terço inferior da face externa da coxa esquerda, lesões essas que determinaram um período de 5 dias de doença, sendo 3 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 5 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional (sublinhado nosso).
No entanto, também integra o elenco de factos provados que “em consequência da conduta do arguido, o agente da PSP B... esteve 11 dias de baixa médica” e foi com base neste número de dias de “baixa médica” que o arguido foi condenado a pagar ao Estado a quantia de € 765,27, correspondente aos “vencimentos e outros subsídios” pagos durante esse período.
Fica-se, pois, sem se saber qual foi, afinal, o período de doença sofrido pelo agente da PSP ofendido em consequência das lesões físicas que o arguido lhe infligiu.
Uma vez que tem de ser reaberta a audiência e proferida nova decisão, nada obsta a que o tribunal, com respeito pelas garantias de defesa do arguido, elimine esse vício do acórdão.
O mesmo se diga do erro manifesto existente no último parágrafo dos factos não provados (pág. 5 do acórdão), pois aí se menciona “o arguido” quando é óbvio que se pretendeu referir “o ofendido”.   

III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em, concedendo provimento ao recurso, anular o acórdão recorrido, devendo ser reaberta a audiência para que seja dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal, após o que será elaborada nova sentença.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas). 
  
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2012

Relator: Neto de Moura;
Adjunto: Alda Tomé Casimiro;
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[1] Apesar de, ainda, haver quem sustente que esta interpretação afronta os princípios constitucionais do direito de defesa e do contraditório. Não é esta, porém, a melhor (nem dominante) doutrina, conforme evidencia Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 904-907), e na jurisprudência (incluindo a do Tribunal Constitucional) não tem tido aceitação.
[2] Havendo mesmo quem defenda (e o caso de Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2.ª edição, Lisboa, Verbo, p. 278 e segs.) que a interpretação do n.º 3 do art.º 358.º no sentido de que é admissível a alteração da qualificação jurídica, apenas com o condicionamento da comunicação prévia dessa alteração ao arguido, é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do direito de defesa e do contraditório.  
[3] E outros podiam ser apontados, designadamente nos casos de condenação por uma forma equivalente de manifestação do mesmo tipo penal, como sucede no crime de falsificação de documentos (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário…”, 908, e Acórdão do STJ, de 11.12.2002; Relator: Cons. Leal-Henriques).
[4] Assim, não será relevante a alteração que consiste na exclusão, pura e simples, de factos que configuram uma circunstância qualificativa ou agravativa, resultando da alteração a imputação de um crime simples em vez do crime qualificado inicialmente imputado.
Ao nível do STJ, a jurisprudência é unânime em considerar que, nestes casos, não há lugar ao cumprimento do disposto no n.º 1 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal e não vemos razão válida para discordar desta orientação jurisprudencial.
Não há alteração alguma de factos quando na sentença são descritos os mesmos factos da acusação ou da pronúncia, mas com uma formulação distinta, ou quando se explicitam ou concretizam factos (já narrados sinteticamente na acusação ou na pronúncia) que não sejam relevantes para a tipificação ou para a verificação de qualquer agravante qualificativa.
Discutível (se há ou não alteração não substancial dos factos que imponha a comunicação prevista no art.º 358.º, n.º 1) é a situação em que o tribunal, apenas, dá como provados factos constitutivos do dolo eventual, quando o arguido vinha acusado de ter agido com dolo directo.   
[5] Será o caso apreciado no acórdão do TRP, de 25.05.2011 (www.dgsi.pt) em que o arguido estava acusado de “deter” produto estupefaciente e foi dado como provado que ele “detinha para venda”. Trata-se de uma alteração não substancial de factos e entendeu-se (bem) que, apesar de não ter qualquer reflexo na qualificação jurídica, essa alteração era relevante porquanto influi na gravidade do ilícito e, logo, no grau de culpa, com inevitáveis reflexos na medida da pena – por isso impunha-se o cumprimento do disposto no nº 1 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal.
[6] Será o caso sobre que se debruçou o Tribunal da Relação do Porto no acórdão de 06.05.2009 (Relatora: Des. Isabel Pais Martins): arguidos acusados por furto qualificado (por introdução em casa de habitação) e condenados por violação de domicílio – provaram-se menos factos (não se provou que os arguidos se tivessem apoderado de quaisquer bens do interior da casa, ou sequer que fosse essa a sua intenção) do que os descritos na acusação.
Caso idêntico é o julgado pelo acórdão desta Relação, de 06.03.2006 (Relatora: Des. Conceição Gomes) em que o arguido estava acusado da prática de um crime de roubo simples e o tribunal não deu como provada a matéria relativa à violência contra a vítima. Entendeu-se que o tribunal não podia condenar o arguido por furto simples sem antes dar cumprimento ao disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Proc. Penal.
[7] Os factos que não constavam da acusação eram que “o arguido A não é titular de licença de uso e porte de arma” e “conhecia as características das pistolas que detinha, sabia ainda que não estava autorizado a detê-las”.