Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1761/11.7TVLSB-B.L1-6
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
POSSE
AQUISIÇÃO
PRESUNÇÃO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
DEPOIMENTO INDIRECTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A testemunha é chamada a referir as suas percepções de factos passados: o que viu, o que ouviu, o que sentiu, o que observou. O que releva como prova por si trazida ao processo, é a parte objectiva dessa percepção, e já não a subjectiva, assim se excluindo a interpretação que a própria testemunha atribui aos factos.
II. Para além disso, não releva tão pouco o testemunho indirecto, ou seja, o testemunho que foi obtido através de outrem e já contém em si uma versão e interpretação dos factos feitas por esse último. Neste caso, o que a testemunha pode narrar é apenas o que lhe foi revelado e já não o que terá acontecido, porque esse conhecimento não foi captado por si.
III. Aceitando-se que a nossa lei acolhe a concepção subjectiva da posse, a posse é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste na relação material com a coisa; e o animus, elemento psicológico que se traduz na intenção de actuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente.
IV. A aquisição da posse sem intervenção do antigo possuidor, por aquele que era o mero detentor ou possuidor precário, só pode ocorrer através de apossamento, modalidade de aquisição originária e unilateral da posse, que consiste, segundo o disposto na al. a) do artigo 1263º do Código Civil, na apropriação material de uma coisa, mediante a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício de certo direito.
V. Por conseguinte, para poder ver reconhecida a sua pretensão de restituição provisória da posse, recaía sobre a recorrente o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos desse direito, nos termos gerais previstos no art.º 342.º n.º 1 do CC, desde logo, da posse sobre a assoalhada em questão.
VI. O n.º2, do art.º 1252.º do CC, estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, aquele que tem a detenção da coisa (corpus), salvo se não foi o iniciador da posse, referindo-se esta parte final ao n.º 2, do art.º 1257.º do CC., onde se dispõe “Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou”
VII. Tendo sido afastada a presunção do n.º2, do art.º 1252.º. CC, sobre a recorrente recaía o ónus de alegação e prova, nos termos gerais previstos no art.º 342.º n.º 1 do CC, dos factos constitutivos do invocado direito à restituição provisória da posse, a que se referem os artigos 1279.º do CC e 393.º do CPC, desde logo, da posse sobre a assoalhada em questão.
(Da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO
I.1 A , instaurou o presente procedimento cautelar contra B e esposa C, alegando ser titular do direito de propriedade sobre a fracção correspondente ao 3º andar Esquerdo, identificada pela letra I, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ….., descrito na CRPredial de Lisboa sob o nº 000, da freguesia de ..., sendo os Requeridos titulares do direito de propriedade sobre a fracção H do mesmo prédio, correspondente ao 3º andar Direito do identificado prédio, pedindo a restituição provisória da posse do espaço correspondente ao quarto que, estando embora identificado no título da propriedade horizontal como integrando a fracção H, vem sendo fruído pela Requerente desde a data de aquisição por esta da fracção I, não tendo a fracção H qualquer acesso ao mesmo, actuando a Requerente como titular do direito de propriedade, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja.
Pediu, ainda, que os Requeridos sejam condenados, por cada dia, em que estes não procedam à restituição, ao pagamento de sanção pecuniária compulsória nos termos do disposto no artº 629º-A do Código Civil.
No essencial alegou que os Requeridos, durante as obras de remodelação da fracção H procederam à demolição da parede que dividia o quarto da sua fracção e impediram o acesso que aquela tinha a essa dependência através da sua fracção, bloqueando a porta pelo lado de fora. Pretende a Requerente a restituição provisória daquela assoalhada, procedendo os requeridos ao desbloqueio da porta de acesso à mesma e à tapagem da parede que derrubaram.
Inquiridas as testemunhas arroladas pela requerente e fixada a matéria de facto, sem audiência da parte contrária, foi proferida decisão julgando parcialmente procedente a providência e ordenando a restituição pelos Requeridos à Requerente da assoalhada correspondente ao quarto independente que por ela vinha sendo ocupado, devendo proceder ao desbloqueio da porta de acesso que a mesma tinha pela sua fracção e repondo a parede existente na fracção H que a separava da fracção I.
I.2 Os requeridos, notificados da decisão, vieram ao abrigo do disposto no art. 388.º, n.º 1, al. b), do CPC, deduzir incidente de oposição contra a requerente, pedindo a revogação da providência cautelar de restituição provisória da posse decretada.
No essencial, alegaram que a Requerente não é titular de qualquer tipo de posse sobre a divisão/assoalhada que ocupa, que é propriedade dos requeridos, sendo a sua ocupação e detenção ilegal e ofensiva daquela propriedade, que, aliás, os requeridos podem defender por acção directa.
Notificada da oposição deduzida, a requerente não respondeu.
Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pelos requeridos e foi proferida decisão fixando os factos, na qual, mencionando-se ter procedido à reapreciação dos factos antes considerados provados, através de uma valoração global de todos os meios de prova (apresentados por ambas as partes), foi decidido considerar provados “Todos os factos consignados no despacho de fls. 84 a 91 dos autos (de 11.07.2011), com as seguintes alterações” nomeadamente:
Arts. 12.º e 13.º - Provado apenas que, por acordo entre o anterior dono dos 3.º andar direito e 3.º andar esquerdo e as, então, inquilinas desses andares, a assoalhada do 3.º andar direito, que tem acesso directo para as escadas do prédio, foi afecta ao uso da inquilina do 3.º andar esquerdo, deixando a inquilina do 3.º andar direito de a utilizar desde então;
Art. 19.º - Não provado;
Art. 20.º - Provado apenas o que consta da resposta ao art. 4.º do requerimento inicial e que, desde que reside no 3.º andar esquerdo, a Requerente utiliza a divisão referida na resposta aos arts. 12.º e 13.º do requerimento inicial como quarto;
Art. 24.º e 36.º - Provado apenas o que consta da resposta ao art. 20.º do requerimento inicial;
Arts. 42.º e 48.º - Provado apenas o que consta das respostas aos arts. 14.º, 15.º, 16.º, 20.º e 41.º do requerimento inicial;
Art. 63.º - Provado apenas que, sem avisar previamente a Requerente, no dia 18.04.2011, o requerido marido mandou partir a parede do 3.º andar direito, abrindo, desta forma, passagem para a assoalhada referida na resposta aos arts. 12.º e 13.º do requerimento inicial, tendo, de seguida, bloqueado, do lado de dentro, a porta de acesso pelo 3.º andar esquerdo e a porta que dá para as escadas do prédio”.
No mesmo despacho, relativamente ao articulado de oposição, foi igualmente proferida decisão fixando a matéria de facto que resultou apurada.
Posteriormente, foi proferida decisão, na qual se elencaram os factos que na globalidade resultaram indiciariamente provados, para se concluir, aplicando-lhes o direito, no essencial, que dependendo a “procedência do pedido de restituição provisória da posse (..) da alegação e prova de três requisitos - a posse, o esbulho e a violência”, não estar verificada “a posse da requerida sobre a divisão assoalhada em apreço”, mas antes que esta “vem ocupando a sobredita assoalhada por mera tolerância ou inércia dos respectivos proprietários, sendo, portanto, mera detentora”.
Sustentando-se na conclusão de “inexistência de uma situação de posse ou de mera detenção digna de tutela possessória”, considerou-se estar por preencher o primeiro daqueles requisitos e foi decidido julgar a oposição totalmente procedente, por provada, em consequência, tendo sido revogada a decisão proferida sem audiência prévia dos requeridos.
I.3 Inconformada com essa decisão, quer quanto à matéria de facto considerada provada quer quanto à aplicação do direito, veio a requerente apresentar o presente recurso de apelação, o qual foi recebido na espécie própria e com o efeito e modo de subida devidos.
Com as alegações a recorrente apresentou as respectivas conclusões, as quais mereceram despacho convidando ao aperfeiçoamento, nos termos previstos nos artigos 700.º n.º 1 al. a) e n.º3, do art.º 685.º A.
No prazo legal, a recorrente apresentou as conclusões reformuladas, delas constando o seguinte:
(…)
I.4 Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
I.5 Foram colhidos os vistos legais.
I.6 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º1, do CPC), as questões a apreciar são as seguintes:
A) Se deve, ou não, ser alterada a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, nomeadamente: (i) passando a considerar-se provados os artigos 12.º e 13.º do requerimento inicial; (ii) e, alterando-se o que consta provado sob os n.ºs 14 e 15, de modo a acolher o que foi alegado nos artigos 19.º e 20.º daquele mesmo requerimento.
B) Verificar se estão preenchidos os requisitos da restituição provisória da posse, exigidos pelo n.º1 do art.º 393.º do CPC.
II. Fundamentos
II.1 Motivação de Facto
Na decisão recorrida foram considerados indiciariamente provados os factos seguintes:
1. A Requerente é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra I, correspondente ao 3.° andar esquerdo, parte integrante do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …., concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob número 000 da freguesia de ..., concelho de Lisboa, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 000 da dita freguesia.
2. Em 10 de Março de 1981 foi celebrado entre a Requerente, o seu marido à data, e os Requeridos contrato de promessa de compra e venda e recibo de sinal, referente ao imóvel acima identificado.
3. Foi celebrada a respectiva escritura pública de compra e venda no dia 24 de Maio de 1982.
4. Desde 24 de Maio de 1982, até à presente data, que a Requerente aí reside.
5. Com a partilha na sequência do divórcio, o imóvel foi adjudicado à ora Requerente.
6. Desde a data da aquisição do imóvel dos autos que a Requerente reside e habita no 3.° andar esquerdo do prédio melhor identificado no artigo primeiro.
7. Os Requeridos são donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao 3.° andar direito, sito no mesmo prédio no qual reside a Requerente e já acima identificado.
8. Na escritura de constituição da propriedade horizontal e nas plantas do edifício consta que os andares do lado direito do imóvel dos autos são constituídos por cinco assoalhadas e os andares do lado esquerdo por quatro assoalhadas.
9. De acordo com a mesma escritura a dita assoalhada a mais que integra as fracções do lado direito tem duas portas de acesso, uma através do andar respectivo e outra através das escadas do prédio.
10. Por acordo entre o anterior dono dos 3.º andar direito e 3.º andar esquerdo e as, então, inquilinas desses andares, a assoalhada do 3.º andar direito, que tem acesso directo para as escadas do prédio, foi afecta ao uso da inquilina do 3.º andar esquerdo, deixando a inquilina do 3.º andar direito de a utilizar desde então.
11. Tendo em conta tal facto, o proprietário, à data, elevou uma parede no terceiro andar direito, tapando o acesso deste à divisão e abriu um acesso à mesma no terceiro andar esquerdo.
12. Quando os Requeridos adquiriram, em 1981, a totalidade do prédio, mesmo antes da constituição da propriedade horizontal, a disposição das casas no terceiro andar já estava efectuada do modo acima descrito, tendo o terceiro andar esquerdo mais uma assoalhada do que o terceiro andar direito.
13. Quando foi constituída a propriedade horizontal, esta diferença no terceiro andar do prédio não ficou reflectida, constando que a assoalhada extra se encontrava no terceiro direito e não no terceiro esquerdo, constando do título constitutivo que a “fracção H, 3º dto. - compõe-se de cinco divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e despensa" e que a "fracção I, 3.° Esq. - compõe-se de quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e despensa".
14. Quando foi feita a visita à casa para a aquisição da mesma pela ora Requerente e ex-marido e à data da escritura pública de compra e venda, o terceiro andar esquerdo já tinha acesso à aludida assoalhada.
15. Desde que reside no 3.º andar esquerdo, a Requerente utiliza a divisão referida no n.º 10 como quarto.
16. Os factos referidos no n.º 10 eram do conhecimento de todos os moradores do prédio e dos prédios vizinhos, que frequentavam ambos os andares, e sempre souberam que era a Requerente quem tinha acesso e utilizava o quarto em causa.
17. Sem avisar previamente a Requerente, no dia 18.04.2011, o requerido marido mandou partir a parede do 3.º andar direito, abrindo, desta forma, passagem para a assoalhada referida no n.º 10, tendo, de seguida, bloqueado, do lado de dentro, a porta de acesso pelo 3.º andar esquerdo e a porta que dá para as escadas do prédio.
18. Aí permanecem todas as coisas que lá se encontravam.
19. Encontrando-se os Requeridos, na presente data, a realizar obras de remodelação no terceiro andar direito, do qual são proprietários.
20. O Requerido marido partiu a parede do andar de que é proprietário, entrando no quarto vindo de referir e tapou o acesso ao mesmo através da porta existente na casa da Requerente.
21. A Requerente ao chegar a casa foi surpreendida com a situação descrita no parágrafo anterior.
22. Ao actuar da forma descrita no n.º 20, os Requeridos impediram a Requerente de ter acesso ao quarto vindo de referir.
23. No dia 21 de Abril de 2011, a Requerente apresentou junto da PSP queixa contra o mesmo, encontrando-se a correr o respectivo inquérito, com o NUIPC 543/11.0SFLSB.
24. A aquisição a favor dos requeridos do prédio sito na Rua …foi registada através da apresentação n.º 6, de 02.07.1981, sendo que a escritura pública de compra e venda a seu favor foi outorgada no dia 24.06.1981.
25. No dia 14.07.1978 foi efectuada uma vistoria por serviços da Câmara Municipal de Lisboa ao prédio urbano sito na Rua …., em Lisboa, para se pronunciar sobre a propriedade horizontal, sendo que, por escritura pública outorgada no dia 06.08.1981, no 11.º Cartório Notarial de Lisboa, a fls. 37 a 38 verso do Livro 71-C, os Requeridos declararam constituir esse prédio em propriedade horizontal, nos termos que constam da certidão de fls. 67 a 69, que se dá por reproduzida.
26. No dia 14.07.1978, foi elaborado o auto de vistoria, relativo ao prédio sito na Rua …., em Lisboa, cuja cópia certificada consta de fls. 182 a 184 e que aqui se dá por reproduzido.
27. Entre finais do ano de 2010 e inícios do ano de 2011, os Requeridos tiveram conhecimento que a inquilina do 3.º andar direito, D. …., tinha falecido.
28. Os familiares da inquilina do 3.º andar direito, após desocuparem esse andar, pediram e entregaram as chaves aos residentes do 4.º andar direito, com a incumbência de a entregarem aos Requeridos.
29. Nessa sequência, em data não apurada, os residentes do 4.º andar direito entregaram a chave do 3.º andar direito ao Requerido marido.
30. (…) mostrou-se interessado na compra do 3.º andar direito, com a composição que consta da escritura pública de constituição da propriedade horizontal e do registo predial.
31. O Requerido marido ordenou aos seus funcionários que procedessem conforme consta dos n.ºs 17 e 20.
32. Em 09.03.2005, a Requerente subscreveu e apresentou a declaração modelo 1 do IMI, com o registo n.º ..., relativa à fracção I do art. ... de ..., e a documentação cuja cópia certificada consta de fls. 171 a 178 e que aqui se dá por reproduzida.
II.1.1 Reapreciação da matéria de facto.
A Recorrente pediu a reapreciação da matéria de facto, cuidando de indicar os concretos pontos de facto, quer na motivação quer nas conclusões, que considera incorretamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que, constantes do processo, impunham decisão diversa da adoptada pelo tribunal a quo quanto aos factos impugnados.
A decisão sobre a matéria de facto levada a cabo pela 1ª instância pode ser alterada, nomeadamente na hipótese prevista no art.º 712, n.º 1, a), do CPC, atendendo a todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto indicados, por ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados, sendo feita a impugnação, nos termos do art.º 685-B, do CPC.
Sendo inquestionável que o nosso sistema processual civil garante um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, importa contudo assinalar que igualmente continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta do artº 655.º, do C. P. Civil, o qual estatui que “o tribunal coletivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, pelo que a convicção do Tribunal não é, em princípio, sindicável.
Significa isto, que para se proceder à alteração da decisão da 1ª instância é necessário que algo de “anormal” se tenha passado na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes.
Por outro lado, deve também ter-se presente que o recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, pode não assegurar a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, funcionando essa falta de imediação como um factor limitador na reapreciação da prova [Cfr. Ac. do STJ de 27.9.2005 e de 20.5.2005, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Assim, ponderados os princípios enunciados, vejamos então os concretos pontos de facto postos em crise pela recorrente.
A) Quanto aos artigos 12.º e 13.º do requerimento inicial.
Pretende a recorrente que os artigos 12.º e 13.º do requerimento inicial sejam dados como provados, fixando-se que “no terceiro andar do imóvel a constituição das casas é ao contrario, uma vez que é o terceiro andar esquerdo que tem acesso à assoalhada extra, através de uma porta, não tendo o terceiro andar direito qualquer acesso à mesma, e tal facto acontece porque, o anterior proprietário alterou a disposição das casas no terceiro andar, dando à então inquilina do terceiro andar esquerdo, que necessitava de mais uma assoalhada, a divisão assinalada na planta e retirando a mesma ao terceiro andar direito”.
Como cuidou de se mencionar no relatório, produzida a prova na oposição, o tribunal a quo considerou “Provado apenas que, por acordo entre o anterior dono dos 3.º andar direito e 3.º andar esquerdo e as, então, inquilinas desses andares, a assoalhada do 3.º andar direito, que tem acesso directo para as escadas do prédio, foi afecta ao uso da inquilina do 3.º andar esquerdo, deixando a inquilina do 3.º andar direito de a utilizar desde então”.
Essa matéria consta na sentença sob o número 10.
Confrontando o que foi julgado assente com o que é pretendido pela recorrente, verifica-se que, para além da redacção, a diferença consiste nas partes seguintes (em itálico):
1.º - “no terceiro andar do imóvel a constituição das casas é ao contrario”.
2.º - “a anterior inquilina (..) necessitava de mais uma assoalhada”.
3.º - [dando à então inquilina do terceiro andar esquerdo, que necessitava de mais uma assoalhada] “a divisão assinalada na planta e retirando a mesma ao terceiro andar direito”.
A este propósito, na fundamentação relativa à fixação dos factos, após a produção de prova em sede de oposição, o tribunal a quo, pronunciou-se dizendo o seguinte:
-«quanto aos arts. 12.º e 13.º, na constatação de que o termo “cedeu”, para além de ser susceptível de conter implicações jurídicas, não encontra, salvo melhor opinião, apoio na prova produzida, uma vez que as testemunhas inquiridas se limitaram a confirmar a situação de facto existente no local, relativa à configuração do 3.º andar do prédio, desconhecendo, contudo, os contornos ou conteúdo do acordo feito pelo anterior proprietário e pelas suas inquilinas, o que não permite qualquer caracterização acerca do título por que foi feita a afectação do uso da assoalhada em causa ao 3.º andar esquerdo (por exemplo, algumas testemunhas referem, de forma empírica, que houve uma “cedência”, mas outras já falam em “empréstimo”, outras ainda em “promessa de venda”( …)».
Assim, em primeiro lugar, constata-se, pois, que a recorrente aceitou a decisão, na parte em que excluiu, e bem, a expressão conclusiva que constava da sua alegação nos artigos 11.º e 12.º do requerimento inicial, ou seja, “cedeu”. Com efeito, visando a reapreciação da matéria de facto, não suscita essa questão.
Em segundo lugar, quando às diferenças apontadas entre o que ficou provado e o que a recorrente pretende, salvo o devido respeito, para o caso não tem de todo qualquer relevância a motivação do acordo entre o senhorio e as anteriores inquilinas, por isso mesmo não tendo qualquer utilidade a expressão “a anterior inquilina (..) necessitava de mais uma assoalhada”. O que releva é o facto em si e o que dele recorreu, e tal consta inequivocamente fixado.
Acresce, e sem necessidade sequer de nesta parte confrontar o que a recorrente alega que foi testemunhado com o que consta nas respectivas gravações, ou seja, partindo da própria transcrição dos testemunhos apresentada pela recorrente, que logo delas resulta claro, contrariando o que afirma, que nenhuma das testemunhas tinha conhecimento directo sobre a motivação subjacente ao referido acordo.
A esse propósito, salvo o devido respeito, há aqui um equívoco por parte da recorrente quanto ao que se considera, do ponto de vista jurídico processual, conhecimento directo ou conhecimento indirecto.
Como elucida o Prof. J. Alberto dos Reis, “A nossa lei assenta no pressuposto de que a função da testemunha é única e simplesmente narrar facto. O art.º 641.º determina que a testemunha será interrogada sobre factos incluídos no questionário, articulados pela parte que a ofereceu, e deporá com precisão, indicando a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos. Portanto a testemunha é chamada para narrar ao tribunal os factos que tem conhecimento e para indicar a fonte desse conhecimento. Mais nada.” [Código de Processo Civil Civil anotado, Volume IV, Coimbra Editora, 1987, pp.327].
Àquela norma corresponde o actual n.º1 do art.º 638.º, do CPC, mantendo no essencial aquele conteúdo e sentido.
Por outras palavras, a testemunha é chamada a referir as suas percepções de factos passados: o que viu, o que ouviu, o que sentiu, o que observou [cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.º ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 609].
Mas o que releva como prova por si trazida ao processo, é a parte objectiva dessa percepção, e já não a subjectiva, assim se excluindo a interpretação que a própria testemunha atribui aos factos. Para além disso, não releva tão pouco o testemunho indirecto, ou seja, o testemunho que foi obtido através de outrem e já contém em si uma versão e interpretação dos factos feitas por esse último. Neste caso, o que a testemunha pode narrar é apenas o que lhe foi revelado e já não o que terá acontecido, porque esse conhecimento não foi captado por si.
Por conseguinte, o conhecimento directo sobre os factos é aquele que é adquirido pelo próprio, objectivamente, através dos sentidos, o que viu, o que ouviu, sentiu e observou.
Ora, quanto à alegada motivação daquele acordo entre o senhorio e as inquilinas, como resulta do transcrito e a própria recorrente refere várias vezes, as testemunhas limitaram-se a narrar em juízo a versão que lhes foi relatada pela inquilina. Ou seja, o que as testemunhas sabem a esse propósito é apenas que essa era a explicação dada pela Sr.ª …., nada mais.
Para além disso, repete-se, nem é uma questão que aqui assuma relevância para a boa decisão da causa.
Quanto aos outros dois pontos, ambas aquelas expressões (“no terceiro andar do imóvel a constituição das casas é ao contrario” e “a divisão assinalada na planta e retirando a mesma ao terceiro andar direito” são conclusivas, irrelevantes e, no caso da última, nem sequer as testemunhas tem conhecimento do que consta ou não da planta.
Em conclusão, não se reconhece razão à recorrente.
B) Quanto aos pontos 14 e 15 dos factos assentes.
Na perspectiva da recorrente os pontos 14 e 15 da motivação de facto da sentença recorrida, resultantes dos artigos 19.º e 20.º do seu requerimento inicial, devem ser alterados para deles passar a constar o seguinte:
- Ponto 14: “Quando foi feita a visita à casa para a aquisição da mesma pela ora Requerente e ex-marido e à data da escritura pública de compra e venda, o terceiro andar esquerdo já tinha acesso à aludida assoalhada, tendo-se a Requerente convencido, legitimamente, que estava a adquirir uma casa com cinco assoalhadas, uma vez que era o seu andar que tinha acesso à referida divisão”.
- Ponto 15: “Desde que reside no terceiro andar esquerdo, a Requerente utiliza a divisão referida no n.º 10 como quarto, como sendo sua coisa.”
Pelo tribunal a quo foi considerado assente o seguinte:
[14] «Quando foi feita a visita à casa para a aquisição da mesma pela ora Requerente e ex-marido e à data da escritura pública de compra e venda, o terceiro andar esquerdo já tinha acesso à aludida assoalhada».
[15] «Desde que reside no 3.º andar esquerdo, a Requerente utiliza a divisão referida no n.º 10 como quarto».
Na decisão que fixou a matéria de facto, em sede de oposição, relativamente aos artigos 19.º e 20.º, do requerimento inicial, que foram considerados não provados, foi invocado que a convicção do tribunal se formou «(..) na circunstância de nenhum elemento de prova ter permitido, salvo melhor opinião, sustentar a alegada convicção da Requerente. Ao invés, se algo decorre do conjunto dos depoimentos produzidos, é que a Requerente sabia que a fracção que adquiriu tinha a composição constante da documentação oficial e do registo e que a situação da assoalhada em causa não se encontrava titulada e era precária e provisória. Com efeito, as testemunhas que depuseram sobre esta matéria, de forma directa ou indirecta, referiram que a Requerente pedia, várias vezes, para que a situação da assoalhada fosse resolvida, assim como demonstrou, num primeiro momento, consciência de que a teria que devolver. As demais testemunhas limitaram-se a confirmar a situação existente no local e a sua antiguidade, nada sabendo sobre o conhecimento ou “animus” da Requerente. Acresce que foi junto o documento de fls. 171 a 178, de onde decorre que, pelo menos, em Março de 2005, a Requerente tinha perfeito conhecimento da composição da sua fracção e, portanto, que não podia estar convencida de que a assoalhada em causa a integrava».
Confrontando o que foi considerado assente com o que a recorrente pretende que o seja através da reapreciação da prova, verificamos que a diferença é que aqueles factos passem a incluir o seguinte:
- [14] “tendo-se a Requerente convencido, legitimamente, que estava a adquirir uma casa com cinco assoalhadas”;
- [15] “como sendo sua coisa”.
Como primeira nota, cabe assinalar que a recorrente faz uma alegação que distorce o que consta da fundamentação de facto, referindo-se só à parte final, que tem a ver com o documento, pretendendo inculcar a ideia de que foi esse o fundamento único, ou pelo menos o essencial, para o tribunal formar a convicção acima apontada, quando nela se vê claramente que o dito fundamento foi é antes um complemento dos anteriores, esses reportando-se à prova testemunhal.
Com efeito, como se pode ler no último parágrafo da fundamentação acima transcrita, ai é dito, “Acresce que foi junto o documento de fls. 171 a 178 (..), tendo o mesmo servido apenas para o tribunal afirmar que dele “ decorre que, pelo menos, em Março de 2005, a Requerente tinha perfeito conhecimento da composição da sua fracção e, portanto, que não podia estar convencida de que a assoalhada em causa a integrava».
Certo é, que quanto àqueles factos e abrangendo também os anos anteriores a 2005, o que relevou foi a prova testemunhal, relativamente à qual há uma apreciação crítica, nos termos que ali constam.
Mais, a elaborada interpretação que a recorrente faz a partir do documento, e que na sua visão seria a correcta, também não encontra suporte em que qualquer outro meio de prova, seja testemunhal, seja pericial, para a sustentar.
O documento em causa consiste no Modelo I, do IMI apresentado pela recorrente junto da repartição de Finanças, para efeitos de partilha na sequência do seu divórcio. Haver coincidência entre a área declarada e a que consta da planta, ou a explicação para dele constar mencionado T2+1, ou eventualmente ter sido preenchido em parte pela A. e noutra por funcionário das Finanças (o que nem se sabe se é certo), não exclui necessariamente que a A. não soubesse que a situação do quarto em questão estivesse por resolver.
Objectivamente, o documento contém uma declaração apresentada e subscrita pela recorrente com determinado conteúdo. Foi a isso que o tribunal a quo atendeu, no contexto da demais prova. E, mesmo que a apreciação não fosse a mais correcta, a verdade é que também dele não pode resultar qualquer contributo para a versão que a recorrente pretende ver assente, ou seja, de modo a acrescentar ao facto 14, “tendo-se a Requerente convencido, legitimamente, que estava a adquirir uma casa com cinco assoalhadas”.
Como segunda nota, cabe fazer notar que, para além do mais, aquelas expressões encerram em si um juízos conclusivos, reportados ao que a recorrente, no plano subjectivo, considerava. Ou seja, logo por ai, pelo menos naqueles termos, aquelas expressões não poderiam constar dos factos provados.
Esse obstáculo, resultante de uma deficiente alegação da própria requerente, eventualmente poderia ser ultrapassado através de respostas que retirassem o carácter conclusivo e subjectivo daquelas alegações, mas necessariamente desde que a prova o permitisse.
Ora, percorrendo as transcrições feitas pela própria recorrente dos testemunhos que invoca, a verdade é que de nenhum deles resulta seja o que for que pudesse conduzir a uma resposta no sentido pretendido. Com efeito, nenhuma delas revela qualquer conhecimento sobre a negociação que conduziu à compra e venda do 3.º andar esquerdo, pela recorrente e o ex-marido aos recorridos.
Mais, no que respeita à convicção formada pela 1.ª instância, resultante da prova testemunhal, apreciada na sua globalidade, foi entendido que a recorrente sabia que “a fracção que adquiriu tinha a composição constante da documentação oficial e do registo e que a situação da assoalhada em causa não se encontrava titulada e era precária e provisória”, mais cuidando de esclarecer que “as testemunhas que depuseram sobre esta matéria, de forma directa ou indirecta, referiram que a Requerente pedia, várias vezes, para que a situação da assoalhada fosse resolvida, assim como demonstrou, num primeiro momento, consciência de que a teria que devolver. As demais testemunhas limitaram-se a confirmar a situação existente no local e a sua antiguidade, nada sabendo sobre o conhecimento ou “animus” da Requerente”.
Remetendo para o que inicialmente se deixou dito sobre a reapreciação da prova testemunhal, essa foi a convicção do julgador na sua “prudente convicção” e, salvo o devido respeito, nada resulta dos testemunhos invocados que o possa por em causa.
Antes pelo contrário, dando razão à fundamentação que é posta em causa, é a própria recorrente que invoca que a testemunha …, administrador do condomínio, referiu expressamente que o recorrido manifestava sempre conhecimento da situação e a necessidade de a resolver. Ora, desde logo, se a testemunha sabia que havia uma situação relativa ao quarto por resolver, mal se compreenderia que a recorrente não o soubesse.
E, a verdade é que a própria recorrida o reconheceu perante …, o potencial interessado na aquisição do 3.º andar direito aos requeridos, cujo testemunho aqui invocou. Com efeito, alegado pela própria recorrente, este «(..) referiu (..) que ao falar com a recorrente a mesma lhe disse “mas o senhor … prometeu fazer a escritura deste quarto”.
As razões subjacentes àquela afirmação podem ou não ter algum fundamento e, se o houver, cronologicamente pode reportar-se a qualquer altura ao longo dos anos decorridos desde a compra e venda do andar. E, seguramente, seriam factos relevantes para terem sido alegados, mas o certo é que a recorrente não cuidou de o fazer.
Por conseguinte, se por um lado é evidente que a recorrente tem pretensões à propriedade daquele quarto, por outro não se sabe minimamente quais os fundamentos para as sustentar. Com efeito, desde logo, não decorre de qualquer facto material e concreto que a requerente, quando adquiriu o 3.º andar esquerdo, tenha ficado convencida que o negócio de compra e venda abrangia o dito quarto, ou seja, na alegação conclusiva da mesma, que se tenha “convencido, legitimamente, que estava a adquirir uma casa com cinco assoalhadas”.
Na verdade, repete-se, não há sequer factos alegados que permitam estabelecer essa conclusão.
Assim, também quanto a esta matéria não se vê razão para alterar o que foi fixado pelo tribunal.
II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
Cabe agora verificar se estão preenchidos os requisitos da restituição provisória da posse, exigidos pelo n.º1 do art.º 393.º do CPC, para o efeito tendo em conta a matéria de facto indiciariamente considerada assente na decisão recorrida.
O possuidor é admitido a socorrer-se da restituição provisória da posse, quando tenha havido esbulho violento da sua posse. É o que decorre do art.º 1279.º do CC.
Confirma-o o art.º 393.º do CPC, de onde decorre que para exercer esse direito cabe ao requerente alegar os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
O ónus de prova de prova desses factos recai, nos termos gerais, sobre o requerente (art.º 342.º n.º 1 do CC).
E, como é próprio dos procedimentos cautelares, a prova reveste-se de carácter perfunctório.
A noção de posse é dada pelo art.º 1251.º do CC, onde se lê que “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de um outro direito real”.
Nos termos previstos naquela norma, a posse consiste no exercício aparente do direito de propriedade ou de outros direitos reais (à actuação por forma correspondente ao exercício de tais direitos), e estes direitos só podem incidir sobre coisas [cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.III, 2.ª ed. Revista e actualizada, Coimbra Editora, 1984, pp. 1).
Numa outra perspectiva, a noção dada pela norma permite configurar a posse, “como uma situação jurídica que se exterioriza pelo exercício de faculdades inerentes a certo direito, independentemente de ser acompanhada pela sua titulariedade” [Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 1996, pp. 231”.
É sabido que a doutrina não tem um entendimento unânime quanto à concepção da posse consagrada no art.º 1251.º CC. Como se escreve em dois recentes Acórdãos do STJ, ambos de 03-02-2011, haverá posse «(..) quando se “actua por forma correspondente ao exercício” desse direito (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo, e, segundo alguns (embora com diversas construções), quando essa actuação (isto é, o exercício de poderes de facto sobre a coisa, salvo se tratando-se de posse derivada, que se pode revelar por outras formas, seja acompanhada da “intenção de agir como beneficiário(…) do direito” (artº 1253º, al.a), do Código Civil) – animus da posse” [Processos n.ºs 830/06.0TBCBR.C1.S1 e 1045/04.7TBALQ.L1.S1, relatados pela Ex.ma Juíza Conselheira MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase].
Por outras palavras, para uns, a norma consagra uma concepção objectiva, defendendo estes que a posse reconduz-se à situação de facto, a uma actuação material sobre a coisa, bastando-se com o que se designa por corpus da posse. Para outros, a norma encerra uma concepção subjectiva, sendo o corpus um dos elementos, necessário mas não suficiente, do conceito. Para este entendimento, para que haja posse deve acrescer outro elemento de natureza diferente, designado como o animus da posse, consistindo na intenção de agir como o titular do direito [Luís A. Carvalho Fernandes, op. cit. pp. 238].
A este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, defendem que «Ao elemento subjectivo - o animus – não se refere ostensivamente o artigo 1251.º, mas ele deriva de outras disposições do Código, especialmente do preceituado no art.º 1253.º. Não são havidos, na verdade, como possuidores, mas como mero detentores ou possuidores precários, nos termos da alínea a), os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito”; nos termos da alínea b), “os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito”; e, nos termos da alínea c), “os representantes ou mandatários do possuidor e, de uma maneira geral, todos os que possuem em nome de outrem». Para concluírem, “Verifica-se, por estas sucessivas exclusões, que o nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, consagrada em alguns códigos estrangeiros (..)”.
É este o entendimento que perfilhamos, de resto na esteira de jurisprudência firmada, como resulta, entre outros, do Acórdão do STJ de 20-05-2010, onde se lê “A posse, de acordo com a concepção subjectivista acolhida pela nossa lei, é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste na relação material com a coisa, e o animus, elemento psicológico que se traduz na intenção de actuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente” [Processo n.º12411/03.5TBVNG.P1.S1, relatado pelo Ex.mo Juiz Conselheiro Alberto Sobrinho].
A posse pode ainda ser titulada ou não titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, nas palavras do artigo 1258º do Código Civil, encontrando-se os respectivos conceitos formulados nos artigos imediatamente seguintes.
E, no que respeita à aquisição da posse, o art.º 1263.º, CC enumera quatro formas: o apossamento [al.a)]; por tradição [al. b)]; por constituto possessório [al. c)]; e, por inversão do título de posse [al. d)].
Essas formas de aquisição distribuem-se por duas modalidades distintas, a aquisição originária e a aquisição derivada. No primeiro caso enquadra-se a aquisição por apossamento e a aquisição por inversão do título de posse; e, no segundo, a aquisição por tradição e a aquisição por constituto possessório.
Por último, nesta breve incursão, cabe referir que a perda da posse vem regulada no art..º 1267.º do CC., aí se prevendo, nas alíneas a) a d), quatro modalidades. O abandono [al.a)], pressupõe um acto material, praticado intencionalmente, de rejeição da coisa ou do direito; pela perda ou destruição material da coisa ou por ela estar fora do comércio [al.b)], abrangendo os factos que impedem a prossecução da relação possessória; pela cedência [al.c)], neste caso supondo a lei a celebração de um negócio jurídico pelo qual o possuidor transmite a sua posse a outrem; e, pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do possuidor [al.d)], ou seja, por apossamento de terceiro, se a nova posse houver durado mais de um ano.
Enunciados estes princípios gerais, atentemos agora nos factos, conferindo-lhe algum arrumo lógico e cronológico, com o propósito de indagarmos, desde logo, se é possível concluir que a requerente tinha a posse da assoalhada em disputa.
Antes da aquisição do prédio pelos requeridos, o mesmo não se encontrava ainda constituído em propriedade horizontal. Os requeridos adquiriram o prédio em 24.06.1981 (factos 12 e 24) e, apesar de diligências anteriores, nomeadamente da vistoria realizada em 14.07.1978, a escritura de constituição em propriedade horizontal veio a ser outorgada em 6.08.1981 (facto 25).
Nesta última escritura consta que a assoalhada em disputa se encontrava no 3.º andar direito, constando este descrito no título constitutivo como sendo composto por 5 assoalhadas, sendo que uma delas tem duas portas de acesso, uma pelo interior da própria fracção e outra pelo exterior, nas escadas do prédio (factos 8 e 13).
Porém, na prática, desde o acordo realizado entre os anteriores proprietários - a quem os requeridos adquiriram o prédio na totalidade – e as então inquilinas dos 3.º andares esquerdo e direito, a primeira passou a usar a assoalhada que pertencia à casa arrendada à segunda. O acesso exterior permitia-o e o então senhorio elevou uma parede no terceiro andar direito tapando a porta de acesso (facto 11).
Essa era a realidade quando, em 24.06.81, os Requeridos adquiriram a totalidade do prédio. Mas também a era, quando a requerente e o ex-marido fizeram a visita ao 3.º andar esquerdo, para o adquirir (facto 14); quando celebraram o contrato-promessa, em 10 de Março de 1981 (facto 2): e, quando celebraram a respectiva escritura pública de compra e venda, no dia 24 de Maio de 1982 (facto 3).
Note-se, por um lado, que a escritura de constituição do prédio em propriedade horizontal foi realizada pelos requeridos já após a celebração do contrato-promessa de compra e venda relativo ao 3.º esq., entre aquele e a requerente e o marido, mas apesar disso a composição dos 3.ºs andares é a que foi descrita, dela constando que os andares do lado direito do prédio são compostos por 5 assoalhadas e os do lado esquerdo por 4 assoalhadas, bem assim que a assoalhada a mais que integra aqueles tem acesso por duas portas, uma interior e outra exterior, através das escadas do prédio (factos 8 e 9). E, por outro, que o negócio de compra e venda celebrado entre os requeridos e a requerente e o ex-marido, através de escritura pública, em 24 de Maio de 1982 (facto 3), tem por objecto o 3.º andar esquerdo tal qual consta descrito na escritura de constituição do prédio em propriedade horizontal (facto 13).
Com efeito, é o 3.º andar direito, ainda propriedade dos requeridos e vendedores à requerente do 3.º esquerdo (facto 7), que no título constitutivo em propriedade horizontal consta como composto por cinco assoalhadas (facto 13).
Por conseguinte, se porventura no âmbito do contrato de compra e venda do 3.º andar esquerdo, algo foi acordado entre a requerente e o ex-marido e os requeridos a propósito da dita assoalhada, nomeadamente dando fundamento a que aquela primeira tenha ficado convencida que comprava 5 assoalhadas, como aqui afirma, então cabia-lhe alegar e demonstrar os factos concretos e materiais que traduzissem essa parte do negócio e permitissem chegar àquela conclusão.
Contudo, a verdade é que a esse propósito nada foi alegado. E, salvo o devido respeito, num processo negocial que se iniciou com um contrato promessa e concluiu com a compra e venda através de escritura pública, a que se seguiu o registo do imóvel em nome dos adquirentes, não podiam a requerente e o ex-marido ignorar que o que efectivamente lhes estava a ser vendido era um andar composto por quatro assoalhadas.
É certo que a requerente usa aquela assoalhada desde que reside no andar que adquiriu (facto 15), e que esse facto é conhecido por todos os moradores do prédio e até dos prédios vizinhos (facto 16), situação que se manteve até 18.04.2011 (facto 17), o que significa que essa utilização à vista de todos existe há quase 30 anos.
Mas por outro lado, no que respeita aos requeridos, dúvidas não pode haver que à data da celebração do negócio de compra e venda do andar da recorrente, eram eles os possuidores dessa fracção, tal como das demais, sendo a sua posse titulada [art.º 1259.º n.º do CC], dado terem adquirido a propriedade de todo o prédio.
Acresce, ainda, que tendo procedido ao registo beneficiam, desde logo, do facto de o registo definitivo a seu favor constituir presunção de que o direito de propriedade existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define [art.º 7.º do Cód. Reg. Predial].
É certo que, tratando-se de uma presunção juris tantum, pode ser ilidida por prova em contrário [art. 350, nº2, do C.C].
Porém, como decorre dos factos, realizado aquele negócio de compra e venda entre a recorrente e os recorridos, em termos de escritura e registo, ficou perfeitamente definido qual era a composição do 3.º andar esquerdo, dele não constando a assoalhada. Pelo contrário, desde então e até agora, são os recorridos os proprietários da fracção em cuja constituição consta o quarto relativamente ao qual a recorrente se arroga possuidora.
Como resulta do elenco factual, não ficou provado, desde logo porque nem tão pouco foi alegado, a que título é que se iniciou a detenção daquela assoalhada pela recorrente. Apenas se sabe que recorrente usa aquela assoalhada desde que reside no andar que adquiriu, facto conhecido por todos.
Importando notar que não é possível o acesso à mesma directamente a partir do seu andar. A recorrente só acede ao quarto em questão pela porta de acesso que se situa nas escadas do prédio.
O acesso directo só era possível através do interior do andar do lado direito, até ter sido fechada a porta, na sequência do acordo entre os proprietários anteriores aos recorridos e as suas inquilinas de ambos os andares.
Porta que se mantinha e manteve fechada, dado que a inquilina dos recorridos, a D.ª …, manteve essa qualidade, ao longo destes anos, até ao seu falecimento, facto que chegou ao conhecimento do recorridos em finais de 2010 e inícios de 2011, após os familiares daquela desocuparem o andar e entregarem a chave (factos 27, 28 e 29).
Assim, sendo certo que estas foram as circunstâncias em que a recorrente passou logo a usar aquele quarto, na falta de alegação de um outro fundamento, há que excluir a possibilidade de aquela ter adquirido a posse por tradição, nos termos previstos no art.º 1263.º al. b), do CC. É que para que assim fosse, era necessário haver um qualquer acto dos recorridos, enquanto proprietários e possuidores, que material ou simbolicamente, tivesse envolvido atribuição da posse à recorrente, pela transmissão da situação de facto, mas em termos tais que a habilitasse a exercer sobre a assoalhada actos correspondentes ao exercício do direito possuído [cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. pp. 27/28; e, Luís A. Carvalho Fernandes, op. cit. pp. 261].
Todavia, como vem sendo dito, a recorrente limitou-se a alegar, conclusivamente, que se convenceu “(..) legitimamente, que estava a adquirir uma casa com cinco assoalhadas”.
Neste contexto, se não houve tradição da posse e a recorrente passou a usar a assoalhada, naquelas circunstâncias necessariamente com o conhecimento e consentimento dos recorridos, então só pode ser considerada mera detentora da mesma ou possuidora precária, nos termos previstos no artigo 1253.º alínea a), do CC, já que essa situação assenta, pelo menos inicialmente, num acto facultativo daqueles.
A mera detenção ou posse precária, prevista no artigo 1253.º, do CC, “corresponde à situação daquele que, tendo embora o corpus da posse, a detenção da coisa, não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real correspondente (com animus possidendi)” e, embora o artigo enuncie três categorias, as mesmas não correspondem a casos perfeitamente diferenciados e distinto. Longe de constituírem compartimentos estanques, correspondem antes a realidades que se interpenetram [cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. pp. 8/9].
Os actos facultativos, a que se refere a al. a), supõem a inércia do titular do direito. Compreendem tanto os praticados ao abrigo de uma autorização concedida por aquele e livremente revogável, como os permitidos por virtude do não exercício, pelo respectivo titular, de certas faculdades que integram o conteúdo de um seu direito [Luís A. Carvalho Fernandes, op. cit. pp. 242].
Em qualquer destes casos é pacífico, quer na doutrina quer na jurisprudência, que os actos facultativos não caracterizam a posse.
E, em qualquer dos casos, “só haverá posse a partir do momento em que o poder de facto exercido pelo beneficiário revestir, objectivamente, a aparência do exercício de um direito [cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. pp. 10].
Neste quadro factual, a posse só posteriormente poderia ter sido constituída na esfera jurídica da recorrente através de apossamento, modalidade de aquisição originária a unilateral da posse, que consiste, segundo o disposto na al. a) do artigo 1263º do Código Civil, na apropriação material de uma coisa, mediante a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício de certo direito.
Como elucidam Pires de Lima e Antunes Varela, para que a posse se adquira sem intervenção do antigo possuidor, é necessário que se estabeleça entre a pessoa e a coisa uma relação de facto que contenha todos os elementos daquela figura. Esses actos de per si, podem não conduzir à posse, se faltar o animus possidendi. [Op. cit. pp. 25/26).
O que se traduz em ser exigível “uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa”. Assim, a necessidade de a prática de actos materiais ser reiterada significa não só uma certa repetição de actuação material sobre a coisa, mas também, e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela” [Luís A. Carvalho Fernandes, op. cit. pp. 260].
Significando tal, caso se verificassem os requisitos apontados, no reverso, ou seja, relativamente aos recorridos, que estes perdiam a sua posse, por se ter constituído a posse de outrem (a recorrente), contra a vontade daqueles, desde que a nova posse tivesse durado por mais de um ano [al. d), do n.º 1 do art.º 1267.º do CC].
É preciso ter ainda em conta que, nesta hipótese, a perda da posse pelo antigo possuidor não ocorre imediatamente, mas apenas depois de ter ocorrido sobre o esbulho mais de um ano, sendo necessário apurar desde quando se conta a nova posse, o que depende dos termos em que se verificou o esbulho. Se a nova posse se constituiu com publicidade, conta-se desde o início; se foi tomada ocultamente, desde que é conhecida do esbulhado; e, se foi obtida com violência, só se conta a partir do momento em que esta cessar [n.º2, do art.º 1267.º].
Mas a verdade é que dos factos indiciariamente provados apenas se pode concluir pela verificação do elemento da posse corpus, mas já não que a recorrente, ao longo de todo este tempo, alguma vez actuou com animus possidendi. Se há inequivocamente “uma certa repetição de actuação material sobre a coisa”, já pelo contrário não existe qualquer facto, ainda que indiciariamente provado, como aqui é próprio, que indique uma actuação “significativa da intenção de se apoderar dela”.
De resto, cumpre assinalar, não só não existe, como nem tão pouco foi alegado, em termos concretos e materiais.
E, como defendemos, para que haja posse, é preciso algo mais do que o simples poder de facto. É necessário que haja, por parte do detentor, a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela.
Por conseguinte, é forçoso concluir que a recorrente, desde que utiliza a assoalhada em questão como quarto, apenas pode ser considerada mera detentora da mesma, usando-a ao longo dos anos com o consentimento dos recorridos [art.º 1253.º al. a), do C.C].
Por último, cabe referir que não tem aqui aplicação o disposto no n.º2, do art.º 1252.º do CC. Esta disposição estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, aquele que tem a detenção da coisa (corpus), salvo se não foi o iniciador da posse, referindo-se esta parte final ao n.º 2, do art.º 1257.º do CC., onde se dispõe “Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou”.
Com elucidam Pires de Lima e Antunes Varela, o artigo 1257.º, visa resolver o problema da conservação da posse quanto ao elemento corpus, sendo “(..) o exercício efectivo dos poderes correspondentes ao direito que marca a existência e a duração da posse. Porém para que a posse se conserve, não é necessária a continuidade do seu exercício, basta que haja a possibilidade de a continuar”. Prosseguindo depois, no que respeita à presunção do n.º 2, acima transcrita, explicando que “Desde que se prescindiu, para a manutenção da posse, de actos efectivos de actuação sobre a coisa, correspondentes ao corpus da posse, por se entender que a prática pode não os exigir do possuidor, tal como nem sempre os exige do verdadeiro titular do direito sobre a coisa, não podia o legislador deixar de admitir, em qualquer caso, a presunção da continuidade da posse por parte de quem a começou” [Op. Cit., pp. 15/16].
Ora, como resulta do que antes se disse, à data da celebração do negócio de compra e venda do andar da recorrente, os possuidores dessa fracção, tal como das demais, onde se inclui o 3.ª andar direito com toda a sua composição, eram os recorridos, sendo a sua posse titulada [art.º 1259.º n.º do CC], dado terem adquirido a propriedade de todo o prédio. Daí que, mantendo aqueles a propriedade do andar e continuando este a ser constituído por 5 assoalhadas, presume-se que a posse então iniciada continua em nome deles, nos termos previstos no n.º2, do art.º 1257.º.
E, assim sendo, vale isto por dizer que fica afastada a presunção do n.º2, do art.º 1252.º. CC.
Por conseguinte, para poder ver reconhecida a sua pretensão de restituição provisória da posse, recaía sobre a recorrente o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos desse direito, nos termos gerais previstos no art.º 342.º n.º 1 do CC, desde logo, da posse sobre a assoalhada em questão.
Como não cumpriu esse ónus, não lhe assiste fundamento para ver reconhecida razão, não merecendo a sentença recorrida qualquer censura.
***
Considerando o disposto no art.º 446.º n.ºs 1 e 2, do CPC, a responsabilidade pelas custas recai sobre a recorrente, que atento o decaimento a elas deu causa.

II. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2012

Jerónimo Freitas (Relator)
Maria Manuela Gomes (Adjunta)
Olindo Geraldes (Adjunto)