Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
412/07.9TBVFX.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
POSSE
TRADIÇÃO DA COISA
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Se a alteração da factualidade provada em nada interferir com a apreciação de mérito, pode o tribunal de recurso deixar de proceder à requerida reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
II - A outorga de contrato promessa de compra e venda de bem imóvel com a tradição para o promitente comprador da coisa objecto do contrato, não é suficiente para se concluir pela posse, em nome próprio, do imóvel; contudo, situações existem em que o promitente comprador exerce sobre a coisa posse em nome próprio, exercendo poderes de facto sobre a mesma como se seu proprietário fosse e assim se considerando.
III - A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.
IV - Visando o direito de retenção, como garantia real, garantir direitos obrigacionais do promitente-comprador, pressupondo ser a coisa de terceiro, o mesmo mostra-se incompatível com a invocação do direito de propriedade (de gozo) sobre a mesma coisa.
V - Para que ocorra a inversão do título de posse, nos termos do art. 1265º do CC, por forma a concluir-se que, a partir dessa altura o R. passou a ter a posse da fracção como se seu proprietário fosse, importa que resultem provados factos que permitam concluir que, aqueles actos, foram praticados com o conhecimento da proprietária, assumindo o possuidor perante esta uma posição categórica e demonstrativa da qualidade em que age.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
Banco , S.A. intentou contra B…, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo que se declare ser o A. dono e legítimo proprietário da fracção autónoma correspondente ao … andar esq. do prédio urbano sito na …, da freguesia de, inscrito na matriz sob o art. e que se condene o R. a reconhecer ao A. aquele direito de propriedade, desocupando e restituindo a fracção ao A., bem como a pagar-lhe uma indemnização pelos danos emergentes da ocupação e utilização indevida, até restituição da mesma livre e devoluta de pessoas e bens, a liquidar nos termos dos arts. 47º, nº 5 e 378º, nº 2 do CPC.
A fundamentar o peticionado, alega, em síntese, que:
O A. é proprietário da fracção autónoma designada pela letra “W”, correspondente ao … andar esq. do prédio urbano sito na …, da freguesia de, descrito na CRP de, sob o nº, inscrito na matriz sob o art., por a ter adquirido por arrematação em hasta pública, em 30.10.1992, pelo valor de Esc. 7.500.000$00, realizada no P. nº, que correu termos na ª S. do º J. Cível de, aquisição devidamente registada.
Não obstante as várias interpelações do R., para entrega da fracção ou negociação de um acordo, aquele nunca mostrou interesse na resolução da situação, mantendo-se, até à data, a ocupar a fracção de forma ilegítima.
A conduta do R. provoca sérios e graves prejuízos aos A., que não é possível, ainda, quantificar.

Regularmente citado, o R. contestou, por excepção, invocando a caducidade do direito de indemnização, por impugnação, propugnando pela improcedência da acção, e deduziu reconvenção, pedindo que: a) se declare o R. proprietário da fracção; b) se condene o A. a reconhecer o R. como proprietário da fracção; c) se ordene o cancelamento de quaisquer registos efectuados sobre a fracção a favor do A., nomeadamente o que corresponde à inscrição G-2, Ap. 05/....
 A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese, que:
Em 26.10.1983, S & C– Sociedade, Lda., era proprietária da fracção objecto dos autos e, nessa data, celebrou com o R. um contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual aquela se obrigou a vender a fracção ao R., que se obrigou a comprar, pelo preço de Esc. 3.250.000$00, tendo o R. dado, a título de sinal, a quantia de Esc. 500.000$00, devendo o remanescente do preço ser pago no acto de escritura.
Em 3.03.1986, o R. e a referida S & C celebraram uma ADENDA ao referido contrato promessa, nos termos da qual o R. entregou a quantia de Esc. 1.600.000$00, a título de reforço de sinal, a S & C entregou ao R. as chaves da fracção e esta, estipulando que a escritura seria celebrada até ao dia 15.01.1987.
Em finais de Março de 1986, o R. entregou a S & C o resto do preço, Esc. 1.150.000$00, a seu pedido e para a sociedade evitar uma execução fiscal, ficando de lhe enviar o respectivo recibo de quitação, o que nunca fez, afirmando-lhe aquela sociedade que, a partir daquela data, considerava a fracção vendida ao R.
E a partir daquela data, a S & C ausentou-se, nunca mais aparecendo, tendo o R. como certo que tinha comprado a fracção, aí passando a viver, com carácter de habitualidade, o que continua a fazer até à presente data, sendo convocado e participando nas assembleias de condóminos, contratando fornecimento de energia eléctrica, água e gás, fazendo obras, à vista de toda a gente, de forma pacífica e boa fé.

O A. replicou, propugnando pela improcedência da excepção alegada e impugnou a factualidade alegada na reconvenção, propugnando pela sua improcedência, bem como peticionou a condenação do R. como litigante de má fé.
O R. treplicou, concluindo como na contestação.
Após demais processado [1], foi admitida a reconvenção, proferido despacho saneador, que relegou para final o conhecimento das excepções invocadas, e seleccionadas matéria de facto assente e B.I., tendo esta sofrido reclamação, que foi atendida.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, vindo, oportunamente, a ser proferida sentença, que julgou a acção procedente, por provada, e consequentemente:
1.1. Declarou que o autor Banco, SA., é o legítimo proprietário da fracção autónoma designada pela letra “W”, correspondente ao …andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Rua, nºs, freguesia de, concelho de, descrita na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º e aí registada em seu favor sob a cota G-…, Ap. …;
1.2. Condenou o réu R:
1.2.1. A reconhecer esse direito de propriedade do autor;
1.2.2. A restituir essa fracção autónoma, livre de pessoas e bens, ao autor;
1.2.3. A pagar ao autor indemnização dos danos decorrentes da ocupação dessa fracção autónoma até à sua restituição, de valor a determinar em liquidação ulterior;
E julgou a reconvenção improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu totalmente o reconvindo Banco, SA., dos pedidos contra ele formulados pelo reconvinte R.

Não se conformando com a decisão, dela apelou o R., formulando, no final das respectivas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1 – Deve a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” sobre a Matéria de Facto constante nos Quesitos 10º e 11º ser alterada, dando-se como provado:
- Provado apenas que o Réu procedeu conforme referido na resposta aos Quesitos 3º a 9º, inclusivé, à vista de toda a gente, designadamente dos vizinhos, de forma pacífica e sem oposição de ninguém até ao dia 30 de Janeiro de 2007;
Ou então
- Provado apenas que o Réu procedeu conforme referido na resposta aos Quesitos 3º a 9º, inclusivé, à vista de toda a gente, designadamente dos vizinhos, de forma pacífica e sem a oposição de ninguém até ao início do ano de 2007.
2 – O elemento material referente à posse do Apelante, ou seja, o “Corpus” encontra-se plenamente preenchido, nos termos do artº 1251º, nº 1, e artº 1257º, do Cód. Civil, pelo que o mesmo existe.
3 – O Apelante exerceu a posse sobre a Fracção Autónoma com intenção de exercer um direito próprio correspondente à actuação de um proprietário, pelo que o elemento “Animus” também existe na posse do Apelante.
4 – A posse do Apelante sobre a Fracção Autónoma é, e sempre foi, pública, pacífica e de boa fé.
5 – A posse do Apelante iniciou-se em 03 de Março de 1986, pelo que em 30 de Janeiro de 2007 já tinha decorrido um período superior a vinte anos.
6 – O Apelante adquiriu o direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma através da usucapião, passando a ser legítimo proprietário da mesma.
7 – Mesmo que se conte a posse do Apelante a partir de 8 de Julho de 1988 ou a partir de 1990, em qualquer uma destas situações, à data de 30 de Janeiro de 2007 já tinham decorrido mais de quinze anos, pelo que, mesmo face a estas datas, de igual modo, o Apelante adquiriu, o direito de propriedade da Fracção Autónoma através da usucapião, passando a ser o legítimo proprietário da mesma, por ser um possuidor de boa fé e, neste caso, serem apenas necessário quinze anos para usucapiar.
8 – O Apelante goza de presunção legal de aquisição do direito de propriedade sobre a Fracção Autónoma, que tem propriedade sobre a presunção resultante do registo de aquisição a favor da Apelada.
9 – Houve, assim, por parte da sentença proferida pelo Tribunal “a quo” errada aplicação da Lei processual e substantiva, nomeadamente, os artºs 3º, 264º, nº 2 e 481º, do Cód. Proc. Civil, artºs 323º, 1251º, 1257º, 1260º, 1263º, 1267º, 1268º, 1292º e 1296º, do Cód. Civil, pelo que deve ser dado provimento ao presente Recurso, alterando-se a Decisão sobre a Matéria de Facto, revogando-se a sentença recorrida e proferir-se decisão que julgue o pedido Reconvencional totalmente procedente, por provado, com todas as legais consequências, para assim se fazer Justiça.
O A. contra-alegou, propugnando pela manutenção da sentença recorrida.

QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), as questões a decidir são:
a) reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente no que respeita à resposta aos quesitos 10 e 11;
b) se se verifica o elemento do “animus” na posse do apelante;
c) se o apelante adquiriu a fracção por usucapião.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1.1. S & C – Sociedade , Lda. teve registada em seu favor, sob a inscrição G-1, Ap. 37/23.02.1978, a aquisição, por compra, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua, nºs (anterior Urbanização), da freguesia de, do concelho de, descrito sob a ficha n.º e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (cfr. alíneas A) e D) dos factos assentes e doc. junto a fls. 47-69, cujo teor se dá por reproduzido);
1.2. No âmbito do processo de execução de sentença n.º 1…-A, apenso à Acção Ordinária que, sob o n.º 1… do ano de 1984, correu termos pela ª Secção do º Juízo Cível de , movida pelo autor contra a referida S & C…, Lda., o autor arrematou em hasta pública, no dia 30 de Outubro de 1992, pelo preço de 7.500.000$00/37.409,84€, a fracção autónoma designada pela letra “W”, correspondente ao 7º andar esquerdo, do referido prédio urbano, na sequência do registo da respectiva penhora, efectuado em 25 de Junho de 1991 (cfr. alínea E) dos factos assentes e docs. juntos a fls. 37-69, cujo teor se dá por reproduzido);
1.3. O autor tem essa aquisição da propriedade dessa fracção autónoma, registada em seu favor, sob a inscrição G-2, Ap. … da correspondente descrição predial efectuada sob a ficha n.º (cfr. alínea D) dos factos assentes e doc. junto a fls. 47-58, cujo teor se dá por reproduzido);
1.4. Por escrito intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 26 de Outubro de 1983, subscrito pelo réu e pelo procurador da referida S & C…, Lda., VM , e com a assinatura deste reconhecida presencialmente em 30/12/1986, no … Cartório Notarial de Lisboa, a mesma prometeu vender ao réu, que prometeu comprar, “a fracção autónoma a designar e correspondente ao sétimo andar esquerdo”, do prédio correspondente ao lote 6, da referida Urbanização , pelo preço de 3.250.000$00/16.210,93€, do qual a promitente vendedora declarou ter recebido na mesma data, do promitente comprador, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 500.000$00/2.493,99€ (cfr. alínea B) dos factos assentes e doc. junto a fls. 110-111);
1.5. Por escrito intitulado “Adenda”, datado de 3 de Março de 1986, subscrito pelo procurador da referida S & C…, Lda., VM , e com a respectiva assinatura reconhecida presencialmente em 30/12/1986, no .. Cartório Notarial de Lisboa, a mesma declarou ter recebido na mesma data, do réu, a título de reforço do sinal e princípio de pagamento, a quantia de 1.600.000$00/7.980,77€, e feito entrega ao 2º, que declarou receber, das chaves da referida fracção, passando o mesmo a poder habitá-la ou frui-la (cfr. alínea C) dos factos assentes e doc. junto a fls. 112, cujo teor se dá por reproduzido);
1.6. Em 21 de Julho de 1987, o réu propôs contra a referida S & C…, Lda., Acção Declarativa Ordinária, que sob o n.º 6…/87, correu termos na ª Secção do º Juízo Cível de, na qual, invocando o incumprimento culposo pela mesma do referido contrato promessa, a entrega à mesma, a título de sinal e princípio de pagamento do preço, da quantia global de 2.100.000$00/10.474,76€, e a entrega pela mesma da posse da fracção autónoma prometida vender, peticionou a sua condenação no pagamento da quantia de 4.200.000$00/20.949,51€, correspondente ao dobro do sinal entregue, e o reconhecimento do direito de retenção sobre a fracção até efectivo pagamento dessa quantia, a qual não foi contestada e foi julgada totalmente procedente por sentença proferida em 8 de Julho de 1988, transitada em julgado (cfr. alínea F) dos factos assentes e doc. junto a fls. 206-217, cujo teor se dá por reproduzido);
1.7. Por requerimento apresentado em 12 de Dezembro de 1988, o fiel depositário nomeado nos autos de Carta Precatória n.º ..…/92, do º Juízo, ª Secção do Tribunal de , extraída do processo de execução de sentença n.º 1…-A, referido em 1.2., para venda da referida fracção autónoma, deu conhecimento da existência do referido contrato promessa celebrado com o réu (cfr. alínea H) dos factos assentes e doc. junto a fls. 199-205, cujo teor se dá por reproduzido);
1.8. Em 30 de Outubro de 1992, o réu apresentou nesses autos de Carta Precatória, requerimento em que, informando do teor da sentença proferida na Acção Declarativa Ordinária n.º 6…/87 referida em 1.6., requer que na abertura da praça seja declarado o seu direito de retenção sobre a fracção por conta do seu crédito de 4.200.000$00/20.949,51€, que nela lhe foram reconhecidos, e que caso não a arremate não a disponibilizará enquanto esse crédito não for satisfeito (cfr. alínea G) dos factos assentes e doc. junto a fls. 199-205, cujo teor se dá por reproduzido);
1.9. Com a aquisição da referida fracção autónoma, o autor pretendia proceder à sua posterior alienação (cfr. resposta ao quesito 1º da base instrutória);
1.10. O réu recusou entregar ao autor as chaves da referida fracção autónoma, quando pelo mesmo foi interpelado para o fazer, no início do ano de 2006 (cfr. resposta ao quesito 2º da base instrutória);
1.11. Desde 1990 até hoje, o réu passou a dormir, confeccionar e tomar refeições, receber pessoas e correspondência, na referida fracção autónoma, bem como a pagar o fornecimento de água, luz e gás à mesma, e ainda a participar nas reuniões de condóminos em representação da mesma, e a pagar os correspondentes encargos de condomínio e de obras realizadas pelo condomínio (cfr. resposta aos quesitos 3º a 9º, inclusive, da base instrutória);
1.12. O réu procedeu desse modo, à vista de toda a gente, designadamente dos vizinhos, de forma pacífica e sem oposição de ninguém, até ao início do ano de 2006 (cfr. resposta aos quesitos 10º e 11º da base instrutória);
1.13. O réu substituiu o piso do hall interior da referida fracção (cfr. resposta ao quesito 14º da base instrutória);
1.14. Foram realizadas pelo condomínio obras numa parte do tecto da referida fracção autónoma, que ficou danificado por infiltração de águas pluviais (cfr. resposta ao quesito 17º da base instrutória).

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Começa o apelante por se insurgir contra a decisão da matéria de facto, pedindo a sua reapreciação, nomeadamente quanto à resposta dada aos quesitos 10 e 11 da B.I., e, mais concretamente, “só na parte que julgou a posse do Apelante sem oposição de ninguém, apenas até ao início do ano de 2006”.
Entende o apelante que a resposta a tais quesitos deveria ter sido dada num dos seguintes termos: ou provado apenas que o Réu procedeu conforme referido na resposta aos quesitos 3º a 9º, inclusive, à vista de toda a gente, designadamente dos vizinhos, de forma pacífica e sem oposição de ninguém até ao dia 30 de Janeiro de 2007, ou então, provado apenas que o Réu procedeu conforme referido na resposta aos quesitos 3º a 9º, inclusive, à vista de toda a gente, designadamente dos vizinhos, de forma pacífica e sem a oposição de ninguém até ao início do ano de 2007.
Como de seguida se explicará, a alteração da factualidade provada em nada interfere com a apreciação de mérito no caso em apreço, ou seja, ainda que se altere a resposta aos mencionados quesitos nos termos requeridos, tal factualidade não tem a virtualidade de alterar a decisão de direito.
Assim sendo (na esteira de entendimento semelhante sufragado no Ac. da RL de 21.06.2007, P. 5629/2007-8, rel. Desemb. Salazar Casanova, in www.dgsi.pt) entende-se não ser de proceder à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
Peticionou o apelante, em sede reconvencional, que se reconhecesse ser proprietário da fracção reivindicada, por a ter adquirido por usucapião.
Tal direito não lhe foi reconhecido, desde logo, por ter o tribunal recorrido entendido que, não obstante se verificar ter o R. exercido poderes de facto sobre a fracção reivindicada, não actuou com animus possidendi, pelo menos até 30.10.1992.
E a entender-se que, a partir dessa data, actuou com animus possidendi, então não adquiriu por usucapião, por não terem decorrido, ainda, 15 anos (pelo menos) até à data da citação para a acção.
Insurge-se o apelante contra o decidido, sustentando que, face à factualidade provada se mostram preenchidos os 2 elementos da posse (o corpus e o animus), a qual decorreu por período superior a 15 anos, pelo que adquiriu a fracção por usucapião, ao contrário do entendido pelo tribunal recorrido.
Analisemos, adiantando que nenhuma razão assiste ao apelante.
Nos termos do art. 1316º do CC, o direito de propriedade adquire-se por usucapião, a qual, nos termos do art. 1287º do mesmo diploma legal, se traduz na posse do direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo.
Por seu turno, o art. 1251º do CC diz-nos que a posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade [2], esclarecendo o art. 1253º os casos em que existe simples detenção, isto é, quando apenas se verifica o corpus, faltando o animus possidendi.
No caso em apreço, dúvidas não existem que da factualidade provada, se verifica o elemento corpus da posse da fracção pelo R., o que, aliás, foi pelo tribunal recorrido reconhecido (embora o apelante entenda que tais actos de posse se manifestam desde 3.3.1986, altura em que a fracção lhe foi entregue, e o tribunal recorrido considere que os actos materiais reveladores do exercício dos poderes de facto sobre a fracção apenas se reportam a 1990).
A questão está em saber se se verifica, também, o elemento animus, como sustenta o apelante e ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido.
O contrato promessa não tem, em regra, eficácia translativa, sendo o seu objecto a prestação de um facto positivo, ou seja a realização do contrato prometido, podendo aquela eficácia ser-lhe atribuída se o contrato respeitar a imóveis ou móveis sujeitos a registo e as partes lhe atribuírem, expressamente, eficácia real e levarem ao registo (arts. 410º, nº 1 e 413º do CC)
Daqui que se venha unanimemente entendendo que o contrato promessa, por si só, não é susceptível de transmitir a posse, sendo o promitente comprador, nas situações em que houve tradição da coisa, mero possuidor em nome alheio, por força de um outro acordo negocial, “exterior” ao próprio contrato promessa [3].
E também se vem entendendo que, em determinadas situações, excepcionais, com a tradição da coisa, o promitente comprador passa a exercer posse em nome próprio, como se exercesse o correspondente direito de propriedade.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 12.07.2011, P. 899/04.1TBSTB.E1.S1, rel. Cons. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt, “ é que – sendo evidente e incontroverso que tal tradição da coisa prometida vender, assente na pressuposição e expectativa de que será cumprido o contrato definitivo, equivalendo, quando muito, à outorga ao promitente comprador de uma situação equiparável a um direito pessoal de gozo (cfr. Ac. de 17/04/07, proferido pelo STJ no P. 07A480), apenas desencadeará normalmente uma situação de mera detenção, enquadrável no art. 1253º do CC, possuindo aquele interessado o imóvel em nome do proprietário/promitente vendedor, sem que tal envolva a transmissão a seu favor da posse sobre o imóvel – poderá naturalmente ocorrer, nomeadamente, uma situação de inversão do título da posse, prevista no art. 1265º do CC, susceptível de desencadear supervenientemente a aquisição de posse – verdadeira e própria – por parte do – até então – mero detentor”.
Tudo estará em analisar as situações concretas do negócio e intenção das partes, como se afirma, também, no acórdão acabado de referir.
Ou seja, a outorga de contrato promessa de compra e venda de bem imóvel com a tradição para o promitente comprador da coisa objecto do contrato, não são suficientes para se concluir pela posse, em nome próprio, do imóvel; contudo, situações existem em que o promitente comprador exerce sobre a coisa posse em nome próprio, exercendo poderes de facto sobre a mesma como se seu proprietário fosse e assim se considerando.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 23.05.2006, P. 06A1128, rel. Cons. Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt, “a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio”, … sendo “concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse”.
E no Ac. do STJ de 17.04.2007, P. 07A480, relator Cons. Alves Velho, in www.dgsi.pt, sumariou-se que não é “possível qualificar dogmaticamente como mera posse precária ou como verdadeira posse a detenção exercida pelo promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido em que é beneficiário de traditio, havendo de ser o acordo de tradição e as circunstâncias relativas ao elemento subjectivo a determinar a qualificação da detenção” [4].
Cumpre, então, analisar todas as circunstâncias do caso em apreço para aquilatar se as mesmas permitem concluir ter o R. actuado como possuidor em nome próprio, desde logo se referindo que, ao contrário do sustentado pelo apelante e não obstante o mesmo não tenha invocado “como causa de pedir o direito de retenção, nem o contrato promessa de compra e venda”, mas a entrega da fracção, tal entrega e a natureza da sua posse não podem ser dissociados daquele direito e contrato, como melhor se explicará.
Alega o apelante que, desde 3.03.1986 (data em que lhe foi transmitida a fracção) até à presente data, actua como proprietário da fracção, com essa intenção, usando-a, sem pagar qualquer renda, fazendo obras, e pagando a sua quota no condomínio.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não é isso que resulta da factualidade provada, devendo começar-se por sublinhar que, ao contrário do sustentado, o tribunal recorrido só deu como provado o exercício de poderes de facto sobre a fracção a partir de 1990.
Resulta da factualidade provada que, em 3.3.1986, a promitente vendedora e o apelante, promitente comprador, fizeram uma adenda ao contrato promessa de compra e venda da fracção celebrado em 26.10.1983, fazendo constar que, naquela data, a promitente vendedora tinha recebido a quantia de Esc. 1.600.000$00, a título de reforço de sinal, e tinha feito a entrega ao R., que declarou receber, das chaves da fracção, passando o mesmo a poder habitá-la e frui-la.
Atente-se que, do que se fez constar na adenda, não se pode concluir, sem mais, que a entrega das chaves e da fracção foi feita com o propósito de entregar definitivamente ao R. a fracção, para que a passasse a possuir como se seu dono fosse, antes demonstrando que, apenas, se facilitou ao R. o uso da fracção prometida vender [5].
E isto porque, apesar do reforço do sinal, o preço ainda não se mostrava totalmente pago, devendo o remanescente em dívida (Esc. 1.150.000$00) ser pago no acto da escritura, como se encontrava estabelecido no contrato promessa, a qual, de acordo com a adenda, seria celebrada até ao dia 15.11.1987 [6].
Mas mais: em Julho de 1987, o R. propôs contra a promitente vendedora acção declarativa, na qual, invocando o incumprimento culposo desta, o recebimento da quantia de Esc. 2.100.000$00 a título de sinal e a entrega da posse da fracção prometida vender, peticionou a sua condenação ao pagamento do sinal em dobro e reconhecimento do direito de retenção sobre a fracção até ao efectivo pagamento dessa quantia, o que veio ser julgado procedente, por sentença datada de 8.07.1988, transitada em julgado.
Ou seja, por incumprimento culposo da promitente vendedora, o R. exerceu o seu direito à resolução do contrato promessa, pondo-lhe fim, mantendo a posse da fracção [7] apenas por força do direito de retenção da mesma, que lhe foi judicialmente reconhecido e como meio de garantia do crédito que passou a deter contra a promitente vendedora faltosa.
O direito de retenção é um direito real de garantia que se traduz no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de uma coisa que devia entregar a outrem, de não o fazer enquanto esta não satisfizer o seu crédito (art. 754º do CC).
Subjacente ao pedido de reconhecimento do direito de retenção sobre a fracção, está, necessariamente, o conhecimento de que, com a resolução do contrato, a fracção, pertencente à promitente vendedora, tem de lhe ser devolvida.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 17.04.2007 supra referido, visando o direito de retenção, como garantia real, garantir direitos obrigacionais do promitente-comprador, pressupondo ser a coisa de terceiro, o mesmo mostra-se incompatível com a invocação do direito de propriedade (de gozo) sobre a mesma coisa.
Assim, a partir de, pelo menos, 8.07.1988, não pode o R. invocar possuir a fracção como se seu proprietário fosse.
E poder-se-á entender que, passando a residir efectivamente na fracção a partir de 1990 - aí dormindo, confeccionando e tomando refeições, recebendo pessoas e correspondência, pagando o fornecimento de água, luz e gás, e ainda participando nas reuniões de condóminos em representação da mesma, e pagando os correspondentes encargos de condomínio e de obras realizadas pelo condomínio – ocorreu a inversão do título de posse, nos termos do art. 1265º do CC, por forma a concluir-se que, a partir dessa altura o R. passou a ter a posse da fracção como se seu proprietário fosse [8]?
Certamente que não.
Desde logo, porque não resultam dos autos quaisquer factos que permitam concluir que, todos aqueles actos, tenham sido praticados com o conhecimento da S & C, assumindo o R. perante esta uma posição categórica e demonstrativa da qualidade em que agia.
Mas principalmente, porque resultou provado que, em 30.11.1992, o R. apresentou nos autos de carta precatória remetida ao Tribunal de para venda da fracção, requerimento em que, informando do teor da sentença proferida na acção declarativa ordinária n.º 6…/87 que havia intentado contra a promitente vendedora, requereu que na abertura da praça fosse declarado o seu direito de retenção sobre a fracção por conta do seu crédito de 4.200.000$00 que nela lhe foram reconhecidos, e que caso não a arrematasse não a disponibilizaria enquanto esse crédito não fosse satisfeito.
A invocação desse direito de garantia demonstra a qualidade em que assume deter a fracção e é incompatível com a posterior invocação do direito de propriedade, como já supra referido.
E poder-se-á entender que, a partir dessa data (30.10.1992) se verifica a inversão do título de posse ?
Mais uma vez se nos afigura que tal não é possível, face à factualidade provada.
Por um lado, o que o R. declarou na referida praça (na qual o A. adquiriu a fracção) foi que não disponibilizava a fracção enquanto o seu crédito não fosse satisfeito.
Por outro lado, da factualidade provada resulta que o único acto de oposição ao A. ocorreu no início do ano de 2006, altura em que o R. se recusou a entregar-lhe as chaves da fracção [9].
Mas ainda que se concluísse ter ocorrido inversão do título da posse naquela data (30.10.1992) e que o prazo de usucapião era de 15 anos [10], verifica-se não ter ocorrido, ainda, à data da citação [11], a usucapião.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido ao decidir pela improcedência da reconvenção, nenhuma razão assistindo ao apelante.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2012

Cristina Coelho
Maria João Areias
Luís Lameiras
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[1] Registo da reconvenção e audiência preliminar.
[2] Ou seja, quando alguém exerce sobre a coisa determinados poderes de facto (corpus) com a intenção de se comportar como titular do direito real correspondente (animus).
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. III, 2ª ed. rev. e actualiz., a págs. 6 e 7 escrevem que “O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (…)”.
[4] Calvão da Silva in Sinal e Contrato-Promessa, pág. 160, nota 55, entende que tudo dependerá do animus que acompanhe o corpus, escrevendo que “Se o promitente-comprador tiver animus possidendi – o que não é de excluir a priori – será possuidor, o que pode acontecer derivadamente, nos termos da al. b) do art. 1263º (…), ou originariamente, nos termos da al. a) do art. 1263º (…). Se o promitente-comprador tiver animus detinendi, exercendo, por exemplo o corpus em nome de outrem, por acto de tolerância do promitente-vendedor (art. 1253º, al. c), será detentor ou possuidor precário”.
[5] Da qual, aliás, o R. não passou a usufruir, só o tendo feito, repita-se, a partir de 1990.
[6] Aliás, este mesmo foi o entendimento do R. que, na contestação – arts. 24º a 32º - alegou que, após pagar o remanescente do preço em finais de Março de 1986 (o que não resultou provado) é que “teve como certo que tinha comprado” a fracção e que “o direito de propriedade sobre este andar lhe tinha sido transmitido” pela promitente vendedora, que lhe disse que, a partir daquela data (fins de Março de 1986) considerava o andar “vendido ao réu e para este transmitido o direito de propriedade sobre o mesmo”, passando, com habitualidade, a aí residir – o que, também, não resultou provado.
[7] Que estaria obrigado a entregar por força da resolução do contrato promessa.
[8] Posse essa que, a verificar-se, seria não titulada, presumindo-se de má fé – art. 1260º, nº 2, parte final -, e que não permitira concluir pela usucapião, uma vez que, à data da citação (interromptiva do decurso do prazo – arts. 1292º e 323º, nº 1 do CC) não se mostravam, ainda, decorridos 20 anos – arts. 1290º e 1296º do CC.
[9] Só nesta data se poderia, eventualmente, falar em inversão de título da posse.
[10] O que se nos afigura também não ser possível concluir, conforme referido na nota 8.
[11] 6.02.2007 – cfr. fls. 77.