Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5688/11.4TCLRS.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Em processo de insolvência a prova da verificação de fundamento de indeferimento liminar recai sobre os credores e o administrador da insolvência, sem prejuízo da oficiosa produção de prova, que o juiz entenda dever ter lugar.
II – O retardamento da apresentação da pessoa singular à insolvência – em caso de existência de dever de apresentação, ou de inexistência deste, mas com abstenção dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência – não constitui, só por si, fundamento de indeferimento liminar da requerida exoneração do passivo restante.
III – Necessário sendo, e designadamente, que de tal retardamento resulte prejuízo para os credores.
IV – O simples acumular de juros de mora, em acréscimo à dívida de capital, não integra o conceito de “prejuízo” causado pelo retardamento na apresentação à insolvência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação

I – “A” intentou acção com processo especial de insolvência, requerendo fosse declarada aquela relativamente à sua pessoa, bem como lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante.
Alegando, e em suma, a sua impossibilidade de solver o passivo existente, na circunstância de não ser titular de quaisquer bens ou direitos, encontrando-se em situação de desemprego involuntário com o qual a Requerente e o seu marido – com o qual é casada sob o regime de separação de bens – se viram confrontados, a grave crise económica que tem devastado o tecido produtivo/empresarial português, a incapacidade de recurso ao crédito e de renegociação das obrigações vencidas, e as despesas acrescidas com o filho maior, que sendo estudante, ainda não logrou encontrar emprego.”.
Declarando encontrarem-se preenchidos todos os requisitos de que depende a exoneração do passivo restante, não se verificando nenhuma das causas de indeferimento liminar do pedido de deferimento daquele.

Por despacho de folhas 40 e 41, foi a Requerente convidada a concretizar os factos que levaram à situação de insolvência, nomeadamente concretizando desde quando é que a mesma se verifica.

Ao que aquela correspondeu, a folhas 43 a 46, especificando encontrar-se desempregada desde Abril de 2009 – após trabalhar durante vinte e nove anos para a mesma entidade patronal – recebendo subsídio de desemprego desde 04-05-2009, tendo contraído empréstimos, quando ainda, tal como o marido, se encontrava empregada, junto do BANCO 1, S.A., Banco 2 e BANCO 3, S.A., com o intuito de efetuar obras necessárias na casa de morada de família.

Por sentença de 25-07-2011, a folhas 57 a 60, foi declarada a insolvência da Requerente.

E seguidos os ulteriores termos – com processamento de apenso de reclamação de créditos – apresentou o nomeado administrador de insolvência o relatório previsto no art.º 155º do C.I.R.I., nele logo se pronunciando no sentido do deferimento da requerida exoneração do passivo restante.

Realizada a assembleia de credores, todos eles se opuseram à requerida exoneração do passivo restante, com excepção da “B” -Instituição Financeira de Crédito, S.A., cuja mandatária manifestou não se pronunciar “por não estar mandatada para o efeito”, como tudo se alcança da acta respectiva, a folhas 101 e 102.

Vindo a ser proferido o despacho de folhas 114 a 116, que julgando estar preenchido o “estatuído na alínea d) do artigo 238º n.º 1 do CIRE”, decidiu “indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente.”.

Mais sendo continuadamente proferida, a folhas 117, sentença qualificando a insolvência da Requerente como fortuita.

E, a folhas 117, 118, despacho declarando encerrado o processo de insolvência, por insuficiência de bens.  

Inconformada, com o sobredito despacho de indeferimento, recorreu a Requerente.
Formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1.ª - Os presentes autos não fornecem elementos que permitam concluir inequivocamente que a Apelante se apresentou à insolvência extemporaneamente.
2.ª - Não foram alegados e/ou provados factos que permitam inferir que os Credores tenham sofrido qualquer prejuízo acrescido, pelo facto da Apelante (supostamente) se ter apresentado à insolvência fora do prazo a que alude a al. d) do n.º 1 do art.° 238.° do C.l.R.E..
3.ª - Os autos não permitem defender que a Apelante sabia (ou não podia ignorar sem culpa grave) da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
4.ª - Como o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (fundado na al. d) do n.° 1 do art.° 238.° do C.I.R.E.) apenas é possível caso se verifiquem, cumulativamente, todos os requisitos enunciados na citada norma.
5.ª - E no caso em análise, considera a Apelante que não se encontram preenchidos os três requisitos.
6.ª - A não verificação de um desses pressupostos é suficiente para que não possa ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.
7.ª - Na esteira do entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, conforme Acórdão proferido no âmbito do processo n.° 3350/09.9TBVLG-D.P1.S1:
Não é à Apelante que cabe apresentar prova da verificação dos requisitos elencados na al. d) do n.º 1 do art.º 238.º do C.I.R.E.
8.ª - As diversas alíneas do n.º 1 do art.º 238.º do C.I.R.E. estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Portanto,
9.ª - Constituem factos impeditivos do direito da Apelante requerer esta exoneração.
Nesta medida,
10.ª - Compete aos Credores e ao Administrador de Insolvência a sua prova, nos termos do disposto no n.° 2 do art ° 342.° do C. Civil.
Ora,
11.ª - In casu caso não foram fornecidos quaisquer elementos ou factos que contrariassem o alegado pela Insolvente.
Logo,
12.ª - O pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Apelante, aquando da sua apresentação à insolvência, não enferma de nenhuma das circunstâncias elencadas no art.º 238.º do C.I.R.E., que «dariam origem ao seu indeferimento liminar.
13.ª - A inexistência de rendimento disponível não compromete por si só o disposto no art.º 239.° n.º 4 do C.I.R.E., e, como tal, não pode conduzir ao indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, pois frustrar-se-ia, desta forma, a eficácia proteccionista dos Devedores, intuito claro do legislador para a criação deste instituto.
Daí que,
14.º - Se imponha a procedência do presente Recurso. E em conformidade,
15.ª - Se requeira que o Despacho aqui em crise seja substituído por outro (designado inicial) que declare que a exoneração será concedida, uma vez observadas pela Devedora as condições previstas no art. 239.° do C.I.R.E., de acordo com o estipulado na al b) do art.º 237.° do mesmo Código.”.

Não houve contra-alegações.

II – Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684.º, n.º 3, 660.º, n.º 2 e 713.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal a de saber se não era caso de indeferimento liminar da requerida exoneração.
*
1. De acordo com o disposto no art.º 235.º do CIRE “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições deste capítulo.”.
Decidindo o juiz livremente sobre a admissão ou rejeição do pedido que apresentado haja sido até ao encerramento da assembleia de apreciação do relatório do administrador de insolvência, cfr. art.º 236.º, n.º 1, do mesmo compêndio normativo e, quanto ao alcance deste, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda.[1]

Trata-se aquela, de uma medida específica da insolvência das pessoas singulares, independentemente de serem ou não titulares de empresa, constituindo uma inovação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Agosto, com sucessivas alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 200/2004, de 18 de Agosto, 76-A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho, e 185/2009, de 12 de Agosto.
Com ela se pretendendo, sendo o devedor pessoa singular, conferir-se-lhe a possibilidade de obter a exoneração das obrigações que tem perante os credores da insolvência, e que não puderem ser liquidadas no decurso do processo de insolvência ou nos cinco anos subsequentes, em ordem a evitar que ficasse vinculado a essas obrigações até ao limite do prazo de prescrição, que pode atingir 20 anos, vd. art.º 309.º, do Código Civil (com ressalva dos créditos por alimentos, das indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, dos créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e dos créditos tributários).
Deste modo, após a liquidação ou o decurso do prazo de cinco anos sobre o encerramento do processo, o devedor tem a possibilidade de obter um fresh start e recomeçar uma actividade económica, sem o peso da insolvência anterior.
Sendo que “a concessão de uma nova oportunidade às pessoas singulares justifica-se, até porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo…”.[2]
…Como contempla a documentada circunstância de a insolvência da Recorrente haver sido classificada de fortuita.

Importando contudo precisar o alcance desse poder do juiz, de livre apreciação do pedido de exoneração.

2. De acordo com o n.º 3 do art.º 236.º do C.I.R.E., do requerimento onde tal pedido seja formulado deverá constar “expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”.
Ou seja, importa que o devedor declare a inexistência de motivo para o indeferimento liminar desse pedido, nos termos do art.º 238.º, e que se dispõe a observar todas as condições referidas no art.º 239.º, que sejam impostas no despacho inicial, previsto no art.º 237.º, alínea b).

E na fase imediata à apresentação de tal pedido de exoneração, na assembleia de apreciação do relatório do administrador de insolvência, o juiz tem de decidir sobre a sua admissão ou rejeição.
Proferindo um despacho de indeferimento liminar, ou, não sendo caso disso, o chamado despacho inicial, a que também já nos referimos.
No qual, e para além do mais, se disporá quanto à afectação do rendimento disponível que o devedor venha a auferir, no chamado “período da cessão”, e às demais obrigações a que o devedor ficará vinculado, no mesmo período, cfr. art.º 239.º, do CIRE.
Sendo proferida decisão final sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante, nos dez dias subsequentes ao termo do período da cessão, cfr. art.º 244.º, n.º 1

Estando o juiz vinculado à rejeição liminar do pedido se este for apresentado após a assembleia de apreciação do relatório.
E indeferindo liminarmente, ou admitindo o pedido, de acordo com o julgamento que “livremente” fizer acerca da verificação ou não dos fundamentos de indeferimento liminar elencados no referido art.º 238.º, n.º 1, alíneas b) a g).
Para além de no caso de omissão, no requerimento de exoneração, de todas ou algumas das legais indicações, incumprido que seja despacho de aperfeiçoamento no sentido do suprimento daquela, se impor igualmente o indeferimento do pedido, por falta de requisitos essenciais, em aplicação analógica do art.º 27.º, n.º 1, alínea b), do CIRE.

O julgamento a fazer “livremente”, do pedido de exoneração, contrapõe-se assim ao indeferimento liminar “vinculado” no caso de apresentação daquele após a assembleia de apreciação do relatório do administrador.
No primeiro caso, abrangente das situações contempladas nas sobreditas alíneas b) a g), nem se compreenderá, segundo Luís Manuel Teles de Menezes Leitão,[3] “a sua previsão como hipóteses de indeferimento liminar, uma vez que é manifesto que se terá que produzir prova destes factos, conforme resulta do n.º 2”.
Também Assunção Cristas[4] considerando que “o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada … a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável”.
Concluindo-se, no Acórdão da Relação do Porto de 2006-01-09,[5] que “da análise de todos os motivos que se impõem ao tribunal para averiguação e para deferir ou indeferir liminarmente o pedido – alíneas do n.º 1 do art.º 238.º – resulta que a função do juiz será a de verificar, mesmo com produção de prova, se necessário, se o insolvente merece ou não que lhe seja dada uma nova oportunidade, ainda que apenas com concretização a prazo de cinco anos…”.
Mais referindo Assunção Cristas,[6] que “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento (artigo 236º/1 e 4)”.
Nessa linha – e assim presente impor a lei ao devedor apenas que, no requerimento de apresentação à insolvência em que formula o pedido de exoneração do passivo restante, “expressamente declare” que “preenche os requisitos” para que o pedido não seja indeferido liminarmente – conclui-se que a prova da verificação de fundamento de indeferimento liminar recai sobre os credores e o administrador da insolvência, sem prejuízo da referenciada oficiosa produção de prova.

3. Também, dos termos da enumeração feita no citado art.º 238º do CIRE, das causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, resulta claramente a natureza taxativa daquela.

Por isso, e v.g., a oposição dos credores ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante “não é fundamento legal para o indeferimento desse pedido”, como também já decidiu esta Relação, no seu Acórdão de 24-11-2009,[7] nem é, como anotam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,[8]  “vinculativa para o juiz”.

4. Ora, fundamentando o proferido indeferimento, julgou-se na decisão recorrida:
“Não estando o devedor obrigado a apresentar-se à insolvência, para que lhe seja concedido a exoneração do passivo restante terá de vir apresentar-se nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.
(…)
Do confessado pela insolvente resulta que a mesma se encontra em situação de insolvência pelo menos desde o ano de 2009, data em que foi instaurada a acção executiva que corre os seus termos pelo Juízo de Execução do Tribunal Judicial de Oeiras sob o n° 3147/09.4TBOER e cuja quantia exequenda não foi até à presente data paga.
(…)
Dos autos resulta igualmente que foi já no decurso do presente ano, dois anos volvidos sobre a data em que a insolvente se encontra em situação de insolvência que a mesma se apresentou à insolvência.
Refira-se desde já que o desconhecimento do regime jurídico da insolvência não pode aproveitar à requerente, tal como resulta genericamente do artigo 6° do Código Civil, pelo que importa atender se do incumprimento da requerente da obrigação de se vir apresentar à insolvência nos seis meses após a verificação da situação de insolvência adveio prejuízo para os credores.

E em nosso entender esse prejuízo está verificado, com efeito a mera demora na apresentação à insolvência, quando estão já vencidas diversas obrigações, cria um prejuízo na esfera jurídica dos credores, resultante do acumular de juros que se vão vencendo. Acresce que o avolumar dos créditos resultante do vencimento de juros, torna a cada dia mais difícil o ressarcimento dos credores.
(…)
Do exposto, resulta o preenchimento do estatuído na alínea d) do artigo 238° n° 1 do CIRE, o que determina o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.”.

Com o que, e salvo o devido respeito, se postergou o carácter taxativo dos fundamentos do designado indeferimento liminar, afrontando, do mesmo passo, o disposto no citada alínea d), do n.º 1, do art.º 238.º.

4. Com efeito:
Nos termos do convocado normativo o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se “O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;”.
Tendo-se assim, que a relevância da não apresentação tempestiva à insolvência, para efeitos de indeferimento liminar, depende ainda, em qualquer das hipóteses consideradas – existência de dever de apresentação, ou inexistência deste, mas com abstenção dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência – de haver prejuízo para os credores e de o devedor saber ou não poder ignorar, sem culpa grave, que não existe “qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.[9]
Na expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2011,[10] o fundamento em causa resulta algo complexo, desmultiplicando-se em vários “requisitos de verificação cumulativa em ordem ao indeferimento da exoneração”, a saber: “a) o incumprimento pelo devedor da obrigação de apresentação à insolvência ou a abstenção dessa apresentação nos seis meses subsequentes à situação de insolvência; b) a verificação de prejuízos para os credores daí decorrentes e, c) o conhecimento pelo devedor da falta de perspectiva séria de melhoria de sua situação económica.”.

5. Ora, e desde logo, não é assimilável ao conceito normativo de prejuízo acolhido no art. 238.º, n.º 1, alínea d), do C.I.R.E., o simples retardamento da apresentação à insolvência, nem o mero aumento global dos débitos do devedor causado pelo simples acumular dos juros.[11]

Aquele retardamento, vimo-lo já, só opera como causa de indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo, em conjunto com os demais requisitos, autonomizáveis na previsão da norma.
Por isso se não concebendo – presumindo ter o legislador sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados, cfr. art.º 9.º, n.º 3, do Código Civil – que o simples acumular de juros de mora, consequência normal do atraso no cumprimento de obrigação pecuniária, pudesse integrar o conceito de “prejuízo” ocasionado pela demora do devedor – in casu, pessoa singular, não titular de empresa – na apresentação à insolvência, a que de resto não está obrigado.
É certo que um tal acumular de juros implicará acréscimo à dívida de capital a que aqueles estão adstritos.
Sucede porém que o prejuízo – ou seja, o dano concreto, real – resultante desse agravamento, para o titular dessa dívida, só contará se a mesma não for liquidada.
Ora, no procedimento da exoneração pode ter lugar a sua satisfação, e, até, alcançar-se a integral satisfação de todos os créditos sobre a insolvência, vd. art.º 243.º, n.º 3, do C.I.R.E.
Do que também decorre o prematuro, ao menos em sede de despacho liminar, da inviabilização do incidente com esse fundamento.
Por outro lado, e como também assinalam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,[12] o regime anteriormente consagrado no art.º 151.º, n.º 2, primeira parte, do CPEREF, estabelecendo que “Na data da sentença de declaração de falência, cessa a contagem de juros…”, não mereceu acolhimento no CIRE, “passando os juros a ser considerados créditos subordinados nos termos do art.º 48.º, n.º 1, alínea b).”.
Quer dizer – como se realça nos citados Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2010 e 22-03-2011 – “se no regime anterior (…) se podia pôr a hipótese de quanto mais tarde o devedor se apresentasse à insolvência, mais tarde cessaria a contagem de juros, com o consequente aumento do volume da dívida, no regime actual (…) tal hipótese não tem cabimento, uma vez que os credores continuam a ter direito aos juros, com a consequente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência para o avolumar da dívida.”.

E nem os demais elementos carreados para os autos revelam ou qualificam quaisquer outros prejuízos para os credores resultantes da apresentação tardia à insolvência da Recorrente.

6. Assinale-se ainda, conquanto apenas marginalmente, na circunstância do antecedentemente concluído, que a decisão recorrida não se pronunciou sobre esse outro requisito de o devedor saber ou não poder ignorar, sem culpa grave, que não existe «qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.».
Sendo que está em causa, quanto a um tal requisito, “apurar se a não apresentação do devedor à insolvência se pode justificar por ele estar razoavelmente convicto de a sua situação económica poder melhorar em termos de não se tornar necessária a declaração de insolvência.”.[13]

Sem que, de resto, nos autos convivam elementos que sustentem, de forma bastante, a verificação daquele.
*
Procedem assim as conclusões da Recorrente.

Não sendo pois caso de indeferimento liminar da requerida exoneração do passivo restante, com o invocado fundamento.


III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação procedente, e revogam a decisão recorrida, devendo, se a tanto nada mais obstar, ser proferido o despacho inicial previsto no art.º 239.º do CIRE.

Custas pela massa.
*
Em observância do disposto no art.º 713.º, n.º 7 do do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, como segue:
I – Em processo de insolvência a prova da verificação de fundamento de indeferimento liminar recai sobre os credores e o administrador da insolvência, sem prejuízo da oficiosa produção de prova, que o juiz entenda dever ter lugar.
II – O retardamento da apresentação da pessoa singular à insolvência – em caso de existência de dever de apresentação, ou de inexistência deste, mas com abstenção dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência – não constitui, só por si, fundamento de indeferimento liminar da requerida exoneração do passivo restante.
III – Necessário sendo, e designadamente, que de tal retardamento resulte prejuízo para os credores.
IV – O simples acumular de juros de mora, em acréscimo à dívida de capital, não integra o conceito de “prejuízo” causado pelo retardamento na apresentação à insolvência.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2012

Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Maria Teresa Albuquerque
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[1] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, Quid Juris, 2005, págs. 186-187.
[2] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência”, 2ª ed., Almedina, Julho de 2009, pág. 308.
[3] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, 2004, Almedina, Maio 2004, pág. 191, nota 2.
[4] A “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in “Novo Direito da Insolvência”, Themis, Ed. Especial, 2005, págs. 169-170. 
[5] In Col. Jurisp., Ano XXXI, Tomo I, págs., 160-162, Relator Pinto Ferreira.
[6] In op. cit., página 168.
[7] Proc. 44/09.7TBPNI-C.L1-1, Relatora: Maria José Simões, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
[8] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, Quid Juris, 2005, págs. 190-191.
[9] Vd. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Estudos…”, cit., págs. 279-280; e o citado Acórdão desta Relação de 24-11-2009.
[10] Proc. 570/10.5TBMGR-B.C1.S1, relator: MARTINS DE SOUSA, in www.dgsi.pt/jstj.nsf; aliás citando o acórdão do mesmo Tribunal de 21.10.2010, também citado pela Recorrente.
[11] Vd. o Acórdão da Relação do Porto, de 19-05-2010, proc.1634/09.3TBGDM-B.P1, Relator: Ramos Lopes, in www.dgsi.pt/jtrp.nsf.
[12] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. I, Quid Juris, 2005, pág. 368.
[13] Vd. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Estudos…”, cit., pág. 280.