Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2254/2008-2
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
DEVER DE DILIGÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: 1- Os gerentes respondem civilmente para com a sociedade relativamente a danos causados a esta por factos próprios e violadores de deveres legais e/ou contratuais, a menos que demonstrem ter agido sem culpa.
2- A avaliação da conduta dos gerentes, passível de integrar a sua responsabilidade para com a sociedade, deve ter sempre em conta o dever geral de diligência contido no art. 64.º do CSC.
3- A responsabilidade dos administradores para com a sociedade, como responsabilidade subjectiva que é, para que possa verificar-se carece que se mostrem preenchidos os requisitos: facto ilícito, culpabilidade, prejuízo e nexo de causalidade.
4- No caso em apreço, mesmo que a culpa se não presumisse, ainda assim se diria que a atitude do gerente, aferida em função do quadro dum normal gestor (para o que aponta o art.º 64.º do CSC), seria passível de ser censurada a título de culpa, pois que é exigível que um administrador tenha especiais cuidados na forma como efectua pagamentos (essencialmente de certa monta). Com efeito, poderia/deveria previamente à concretização do depósito contactar a credora ou o seu mandatário, dando-lhe conta ou dessa sua intenção, ou solicitando-lhe indicações sobre a forma como o deveria fazer.
(S.P.)
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa,

I - RELATÓRIO

R, S.A., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra A, A e L, pedindo a condenação dos dois primeiros a pagarem-lhe a quantia de €14.854,20, bem como no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais computada nunca em menos de €10.000,00 e ainda no pagamento de juros vencidos e vincendos, ou, por mera cautela, caso se entenda que aqueles Réus não sejam responsáveis, deve então o Réu L ser condenado a pagar a quantia de €14.854,20 (esc.: 2.978.000$00).

Para tanto alegou, em síntese, que por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Dezembro de 2000, foi condenada a pagar à accionista M, a título de indemnização pessoal, a quantia de €14.854,20, para além das quantias que viessem a apurar-se em sede de execução de sentença.

Os Réus A e A eram, à data, os administradores da Autora tendo, de acordo com L (que nessa altura se encontrava em processo de divórcio com M), procedido ao depósito daquela quantia numa conta junto da Caixa Geral de Depósitos, sem que tivessem dado prévio conhecimento a M.

Efectuado o depósito, L deu ordem à Caixa Geral de Depósitos para que essa quantia fosse utilizada para amortizar um financiamento que possuía nessa instituição bancária.

Uma vez que M nada recebeu, acabou por intentar uma acção executiva. Entretanto a administração da Autora decidiu pagar àquela a dita quantia.

Referiu ainda a Autora, ter sofrido danos patrimoniais no montante de €10.000,00, os quais lhe devem ser reembolsados.

Regularmente citados, os Réus contestaram tendo excepcionado, por um lado, a incompetência do Tribunal por preterição do Tribunal Arbitral e, por outro, a incompetência em razão da matéria, entendendo que a causa de pedir se compreenderia no âmbito da competência especializada do Tribunal de Trabalho.

Mais, invocaram a excepção de prescrição do crédito, atento o facto de ter decorrido o prazo de um ano a contar do dia seguinte em que cessou a relação laboral.

Excepcionaram também a ilegitimidade passiva dos Réus A e L, sendo que quanto a este último foi referido não ter beneficiado da quantia depositada pela Autora.

Referiram, por outro lado, que o direito que a Autora, a título subsidiário, pretende fazer valer contra o Réu L, à data de entrada da petição em juízo, já havia prescrito, porquanto o prazo de três anos já teria expirado.

Invocaram ainda a irregularidade do mandato do advogado da Autora, o que se traduz numa excepção dilatória que importa a absolvição dos Réus da instância.

Excepcionaram também a incapacidade da Autora e a caducidade da acção.

Impugnaram no essencial os factos alegados pela Autora, referindo que é falso que os Réus tenham actuado de acordo e em prejuízo daquela.

Por último, os Réus peticionaram a condenação da Autora como litigante de má-fé, dado que no seu entender esta alterara a realidade de factos que não podia deixar de conhecer

A Autora replicou, pugnando pela improcedência das excepções invocadas.

Foram julgadas improcedentes todas as excepções suscitadas pelos Réus, com excepção da ilegitimidade do Réu L, cuja procedência implicou a sua absolvição da instância e levou a que ficasse prejudicada a apreciação da excepção de prescrição por este invocada.

Não foram apresentadas quaisquer reclamações à matéria de facto considerada assente e controvertida.

Procedeu-se à realização do julgamento com observância do formalismo legal.

Respondeu-se à matéria de facto não se tendo registado qualquer reclamação.

Foi proferida sentença, a qual julgou a acção improcedente por não provada e consequentemente absolveu os Réus A e A dos pedidos contra eles formulados pela Autora, tendo, por outro lado, sido absolvida esta do pedido de condenação como litigante de má fé deduzido pelos Réus.

Inconformada com tal decisão, veio a Autora recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações nas quais exibiu as seguintes conclusões:

1.         A decisão recorrida enferma de um vício de nulidade, pois é omissa quanto à matéria de direito invocada na petição inicial pela Autora, ora Recorrente;

2.         Violou, claramente, o Tribunal a quo o disposto no Artigo 668°, n.° 1, al. d) do Código de Processo Civil;

3.         No direito processual civil português impera o princípio do dispositivo, sendo as questões a dirimir submetidas e definidas pelas partes;

4.         A Autora, ora Recorrente, demandou os RR. A e A nos termos e para os efeitos dos Artigos 72.° do Código das Sociedades Comerciais, por violação do artigo 64.° desse diploma, bem como por violação dos Artigos 774.° e 841.° do Código Civil, não cumprindo convenientemente a obrigação que sobre aqueles recaiu, enquanto Administradores e representantes legais da Autora;

5.         Dos factos provados decorre suficiente substância para enquadrar o direito aplicável, nomeadamente apreciar se o pagamento efectuado pelos 1.° e 2.° RR. obedeceu às regras que sobre eles se impunham e se, incumprindo aquelas, recai sobre eles a responsabilidade de ressarcir a sociedade que representavam pelos prejuízos e danos que lhe causaram;

6.         Se por um lado há inversão do ónus da prova quanto ao modo como os RR. terão cumprido a obrigação - se é que a cumpriram! -, não tendo procurado nem logrado os RR. nada provar quanto a isso, por outro lado, os factos dados como provado são suficientes para a valoração crítica e enquadramento do direito que se impunha e se requereu ao Tribunal a quo;

7.         Com efeito, ficou provado que os RR. procederam a esse depósito (entenda-se pagamento da indemnização) sem dar prévio conhecimento a M, ficando ainda provado que o 1.° R. efectuou no dia 11 de Janeiro de 2001 o depósito em numerário de Esc. 2.978.000$00 na conta 008102158600 da Caixa Geral de Depósitos, da qual era titular M;

8.         Mas nada os RR. provaram sobre a razão ou a justificação para este modus operandi no pagamento da indemnização;

9.         Na verdade, os RR. não diligenciaram em nada no sentido de apurar o modo de pagamento da indemnização a que a sociedade - ora recorrente - estava obrigada, nem junto da credora, nem junto dos mandatários envolvidos no processo que deu lugar à condenação no pagamento da indemnização em causa;

10.       E ao não pagar a indemnização no domicílio da beneficiária M, optando por pagar por depósito bancário, sem qualquer acordo no modo e lugar do pagamento, sem aviso prévio da realização do mesmo, creditando uma conta bancária de que era co-titular o marido da beneficiária, que, sabia-se, estava em litígio com aquela, pede a Recorrente que se decida sobre a licitude de tal actuação e, a considerar-se ilícita - como alias crê a Recorrente - se afira a responsabilidade civil decorrente daquela actuação e consequentemente da obrigação de indemnizar quem com tal conduta saiu prejudicado e lesado;

11.       Na verdade, no entendimento da Recorrente, houve um pagamento que não foi efectuado na pessoa do credor, sendo esse pagamento nulo e que levou a que aquela efectuasse de novo a prestação ao verdadeiro credor;

12.       Além do mais, o pagamento não obedeceu sequer ao disposto no Artigo 774° do Código Civil, que define o lugar do pagamento das obrigações pecuniárias quando as partes nada convencionem: "se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro deve a prestação ser efectuada no lugar do domicílio do credor";

13.       A Recorrente accionou as instâncias judiciais pedindo que o Tribunal enquadrasse os factos no Direito e na legislação aplicável, nomeada e particularmente no que respeita ao modo de cumprimento da obrigação por parte dos 1.° e 2.° RR., enquanto Administradores da sociedade, ora Recorrente, e quanto à responsabilidade da sua actuação perante aquela pelos prejuízos que lhe causaram;

14.       Requereu, assim, que se apurasse o modo de pagamento da indemnização devida (obrigação) quanto ao modo e quanto ao lugar;

15.       O Tribunal a quo ao decidir olvidou os fundamentos de direito aludidos pela Autora, ora Recorrente, e aplicáveis ao caso concreto, violando as regras processuais vigentes e ferindo a douta sentença de nulidade por omissão de pronúncia;

16.       Pois que nenhuma das normas invocadas exige que haja culpa, resultando, aliás, do Código das Sociedades Comerciais deveres genéricos e outros específicos que reforçam a responsabilidade daqueles que representam e agem em nome de sociedades comerciais (in casu Administradores);

17.       E a lei civil impõe e define as regras a que se deve obedecer no cumprimento das obrigações;

18.       Não se tratam de argumentos, nem de entendimentos diferentes que o Tribunal a quo usou para decidir;

19.       Simplesmente o Tribunal a quo não decidiu, não se pronunciou, sobre a matéria de direito para que foi chamado a decidir e sobre esta fazer e aplicar a costumada Justiça!

20.       Razão por que entende a Autora, ora Recorrente, que a decisão deve ser substituída por outra, podendo o Tribunal ad quem proferir decisão quanto ao peticionado, pois dispõe de todos os elementos necessários para efectuar um juízo sobre a matéria sub judice;

21.       Pois que os RR. não cumpriram a obrigação de pagamento como a lei estipula e define, nem tão pouco usaram de qualquer cautela, zelo ou cuidado ao pagar da forma como ficou provada, nomeadamente não pagando no domicílio da credora da indemnização, nem tão-pouco fazendo qualquer convenção ou aviso prévio sobre o modo, lugar e momento em que o pagamento ia ser efectuado;

22.       Agiram os RR. de forma pouco prudente, ilícita e irresponsável!

23.       Causaram, com a sua conduta, prejuízos à Recorrente, levando a que esta despendesse novamente igual quantia, desta senda para pagar "comme il faut" e, bem assim, tivesse ainda despendido a quantia de 10.000 € com o pagamento de honorários a advogados, custas judiciais e deslocações de administradores ao processo.

Nestes termos, e nos demais que V. Exa.s doutamente suprirão,

Deve a, aliás douta, decisão recorrida ser considerada nula, por omissão de pronúncia quanto ao direito invocado pela Autora, ora recorrente, e que é aplicável aos factos provados

E, bem assim, devendo

Ser substituída por outra que sobre esta matéria decida, nomeadamente sobre o não cumprimento da obrigação nos termos prescritos na lei civil vigente, decidindo pela actuação ilícita e pouco ou nada prudente dos RR., que incorreram, dessa forma, em responsabilidade,

Decidindo, salvo melhor entendimento

Condenar os RR. pelo não cumprimento da obrigação, devendo ser responsabilizados perante a Autora, ora Recorrente, a pagar a quantia em causa, acrescida do valor referente aos danos que se lograram provar em sede de audiência de julgamento,

Só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

            Os RR apresentaram as suas contra-alegações, nas quais se podem ver as seguintes conclusões:

1.         Não existe qualquer omissão de pronúncia por parte do Douto Tribunal "a quo", na justa medida em que a sentença se pronunciou sobre toda a matéria de facto alegada pela recorrente, bem como sobre o pedido formulado por esta, pelo que a Sentença recorrida não padece do vício invocado pela recorrente, nem mesmo qualquer outro.

2.         A recorrente fundou o seu pedido de condenação dos recorridos no pagamento de quantia certa e danos patrimoniais, numa alegada conduta ilícita, porque astuciosa e que a responsabilidade decorreu de uma conjugação de esforços no sentido de ludibriar o pagamento e frustradas as expectativas da beneficiária da indemnização, nos termos. do art. 483º do C.C., conforme foi referido na sua contestação, pese embora ora venha alegar o contrário.

3.         Factos e pedido devidamente referidos e apreciadas na Douta Sentença recorrida, tanto mais que, a recorrente não alega tal omissão.

4.         A recorrente parece é querer insurgir-se quanto à qualificação jurídica dos factos, situação distinta da omissão de pronúncia.

5.         Contudo, e quanto a esta questão, considera-se que não existe, igualmente, qualquer censura a fazer à Sentença recorrida, porquanto

6.         O Douto Tribunal “a quo”, no uso dos poderes que lhe são conferidos, atento o disposto no art.º 664.º do C.P.C., "só está vinculado aos factos articulados pelas partes, mas não quanto à sua qualificação jurídica", pelo que não estava vinculado a qualquer qualificação.

7.         Por outro lado, sempre se dirá que a responsabilidade dos administradores no plano do direito das sociedades, incluindo, a responsabilidade para com a sociedade é subjectiva, baseada na culpa.

8.         Para que os recorridos fossem civilmente responsabilizados na qualidade de administradores teria sempre que se verificar os pressupostos da responsabilidade civil, o que não aconteceu.

9.         Não se provou que os Recorridos não praticaram qualquer acto ilícito e culposo,

10.       Os recorridos demonstraram que pagaram a indemnização por depósito bancário a M, em virtude de decisão judicial e na conta bancária que tinham conhecimento e que era titular M, e que deram, em acto contínuo, conhecimento de tal facto ao mandatário daquela que, conforme matéria provada e assente.

11.       Mais tendo-se provado que, na data em que foi efectuado o pagamento da indemnização pelos recorridos, L encontrava-se ocasionalmente no banco, o qual procedeu à transferência da quantia depositada, para amortização do empréstimo bancário concedido para aquisição da casa de morada de família de que aquele era co-proprietário com M.

12.       Não tendo a recorrente logrado provar que os recorridos actuaram em conjugação de esforços com L, no sentido de ludibriar o pagamento e frustradas as expectativas da beneficiária da indemnização_

13, Não tendo, igualmente, logrado, a recorrente, provar o nexo causal entre a alegada conduta dos recorridos e os prejuízos invocados, ónus da prova que recaia sobre a esta.        

14. Pelo exposto, e salvo melhor entendimento, considera-se ser de confirmar a Douta Sentença Recorrida, que considerou a acção improcedente por não provada e consequentemente absolveu os recorridos dos pedidos formulados pela recorrente.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as questões suscitadas pela apelante, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artgs. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 690.º, n.º 1, todos do CPC. 

São duas as questões apresentadas:

A – Nulidade da sentença, nos termos do art.º 668.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil

B – Erro de direito – discordância quanto à aplicação do direito aos factos dados por provados

III – FUNDAMENTOS

1.         De facto

Foram os seguintes os factos dados por provados na sentença:

1- Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 13 de Dezembro de 2000 foi a Autora condenada a pagar à accionista M a quantia de esc: 2.978.000$00, correspondente a €14.854,20 (alínea A) dos factos assentes).

2- Em 13 de Dezembro de 2000 os Réus eram administradores da sociedade ora Autora, sendo o Réu A Presidente de Administração e Director do P (alínea B) dos factos assentes).

3- Na sequência da condenação referida em A) o 1° Réu efectuou no dia 11 de Janeiro de 2001 depósito em numerário de esc: 2.978.000$00 na conta n° 0081021258600 da Caixa Geral de Depósitos, da qual era titular M e L (alínea C) dos factos assentes).

4- No dia 11 de Janeiro de 2001 L deu ordem à Caixa Geral de Depósitos relativa à sua conta n° para utilizar o montante de esc: 2.978.000$00 (€14.854,20) para amortizar o financiamento no  (alínea D) dos factos assentes).

5- M intentou a 23 de Março de 2001, acção executiva contra a aqui Autora por não ter recebido a quantia referida em A), tendo sido penhorado o único bem imóvel da sociedade (alínea E) dos factos assentes).

6- Em 14 de Janeiro de 2003 a Autora procedeu ao pagamento da quantia em apreço de €14.854,20 a M, pondo-se fim ao processo de execução (alínea F) dos factos assentes).

7- Os Réus procederam a esse depósito sem dar prévio conhecimento a M (resposta ao artigo 2° da base instrutória).

8- A conta bancária referida na alínea C) dos factos assentes era uma das contas que a administração da sociedade ora Autora tinha conhecimento por ser aquela em que M e marido, por vezes, pagavam o condomínio do Parque de Campismo , pertença da Autora (resposta ao artigo 50 da base instrutória).

9- Efectuado o depósito foi tal comunicado por volta do dia 12/13 de Janeiro de 2001 ao mandatário de M (resposta ao artigo 6° da base instrutória).

10- No dia 11 de Janeiro de 2001 L encontrava-se ocasionalmente no banco (resposta ao artigo 7° da base instrutória).

11- A ordem de transferência referida em D) destinou-se a um empréstimo de habitação da casa de morada de família da qual L era, à data, co-proprietário conjuntamente com M (resposta ao artigo 8° da base instrutória).

12- Em Julho de 2001 foi decretado o divórcio de L e M, tendo sido atribuída a casa de morada de família àquele (resposta ao artigo 90 da base instrutória).

13- A Autora despendeu a quantia de €10.000 com o pagamento de honorários a advogados, custas judiciais e deslocações de administradores ao processo que culminou com o Acórdão da Relação referido em A) (resposta ao artigo 100 da base instrutória).

Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos:

- O 1.º Réu agiu com o conhecimento e anuência do 2° Réu quando transferiu a quantia referida em C) (artigo 10 da base instrutória).

- Os Réus acordaram com L depositar, nesse dia, tal quantia na conta em apreço para que este pudesse dispor do referido montante (artigo 30 da base instrutória).

2. De direito

Apreciemos as questões suscitadas pela Apelante:

A – Nulidade da sentença, nos termos do art.º 668.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil

Sustenta a apelante que a decisão recorrida se encontrará ferida de nulidade, por a Senhora Juíza não ter apreciado na sentença todas as questões que a Autora tinha suscitado na sua petição inicial. Tal situação, enquadrar-se-ia na previsão da alínea d), do n.º1, do art.º 668.º do Código de Processo Civil.  
Preceitua este normativo queé nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar...”.
Decorre de tal norma que o vício que afecta a decisão decorre de uma omissão de pronúncia.
Na verdade, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no nº 2 do artº 660.º do Código de Processo Civil, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Ora, constituiu hoje entendimento pacífico que as “questões” referidas na citada al. d), do n.º 1, do art.º 668.º, são as respeitantes ao pedido ou à causa do pedido. Na verdade, vem sendo dominantemente entendido, que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir. Tal vício só ocorre, assim, quando o juiz deixe de se pronunciar sobre as “questões” pelas partes submetidas aos seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente[1]

No caso em apreço, verifica-se que a Senhora Juíza conheceu das questões que lhe foram suscitadas, pois que face ao pedido formulado, a Autora apresentou como causa de pedir todo um circunstancialismo fáctico fundado numa actuação dos Réus passível de fazê-los incorrer em responsabilidade civil perante ela.

A Senhora Juíza abordou na sentença a problemática envolvente a tal responsabilidade, embora o tenha feito de forma que não mereceu a concordância da Apelante, pois que o fez apenas na perspectiva da responsabilidade civil delitual, tendo ignorado as especificidades inerentes à posição de administradores que os Réus tinham na empresa.

Tal discordância, no entanto, não poderá nunca ser vista como questão de nulidade por omissão de pronúncia, antes sim poderá ser apreciada em sede de recurso como erro de direito, o que aliás será feito no ponto seguinte.  

Assim, face ao exposto, é de concluir que a sentença recorrida não enferma do vício de nulidade que lhe é apontado.

B – Erro de direito – discordância quanto à aplicação do direito aos factos dados por provados

Como se referiu na abordagem ao ponto anterior, a Apelante entende que foi feita uma errada aplicação do direito aos factos dados por provados, já que no seu entender estes permitem que se responsabilizem os Réus à luz do disposto no Código das Sociedades Comerciais (CSC), designadamente do que estabelecem os artgs. 64.º e 72.º deste diploma legal.

Concorda-se com a recorrente, no sentido de que a fundamentação da sentença se revela muito sucinta, designadamente na explicitação que faz quanto à inexistência de ilicitude, e na medida em que se entende que a mesma deveria também ter feito a abordagem da problemática envolvente, à luz dos normativos inerentes à responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade (ínsitos nos apontados artgs. 64.º e 72.º do CSC).

Vejamos.

Nos termos do art.º 72.º, n.º 1, do CSC, na redacção à data em vigor[2]

Os gerentes, administradores ou directores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.”

Daqui resulta, portanto, que os gerentes respondem civilmente para com a sociedade relativamente a danos causados a esta por factos próprios e violadores de deveres legais e/ou contratuais, a menos que demonstrem ter agido sem culpa.

A este propósito é interessante citar o que sobre tal matéria diziam Raul Ventura e Brito Correia relativamente ao que dispunha o art.º 17.º, n.º 2 do Dec.-Lei n.º 49381 de 13.11.69[3] (cuja redacção corresponde ao disposto no nº 1 do art. 72º do CSC): “O nº 2 do artigo 17º, ao admitir, na parte final, que os administradores deixem de responder para com a sociedade «...se provarem que procederam sem culpa», constitui base segura para a qualificação dessa responsabilidade como responsabilidade subjectiva. A lei tem certamente em vista a responsabilidade por acto próprio, não fazendo qualquer referência a factos doutrem, ...”.

A avaliação da conduta dos gerentes, passível de integrar responsabilidade destes para com a sociedade, deve ter sempre em conta o dever geral de diligência contido no art. 64.º do CSC, segundo o qual aqueles “...devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.

Afigura-se-nos estarmos perante situações de responsabilidade obrigacional, como é defendido por grande parte da doutrina[4], quer porque se considera que os administradores são mandatários[5], quer porque negando-lhes essa qualidade, se reconhece como fonte directa das obrigações dos administradores o acto negocial da nomeação[6].

Certo é que, tal tipo de responsabilidade – dos administradores para com a sociedade (a denominada, acção social ut universi) - como responsabilidade subjectiva que é, para que possa verificar-se carece que se mostrem preenchidos os requisitos: facto ilícito, culpabilidade, prejuízo e nexo de causalidade.

Ora, no que concerne à existência de facto ilícito, sempre se dirá que, atenta a matéria dada por provada, se considera que o mesmo se regista.

Com efeito, tendo-se apurado que as partes não tinham acordado nem o local, nem a forma de pagamento da quantia em dívida, há que considerar que a conduta assumida pelo Réu A de depositar no dia 11 de Janeiro de 2001 a quantia de esc. 2.978.000$00, numa conta conjunta de M e de L (facto 4 do probatório), sem que previamente a tivesse contactado para obter a sua concordância, terá de se considerar abusiva e ilegal.

Com efeito, desde logo terá desrespeitado o disposto no art.º 774.º do Código Civil, que consagra no seu n.º 1, que “Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, a prestação deve ser efectuada no lugar do domicílio do devedor.

Na realidade, não tendo havido nenhuma convenção sobre o local onde deveria ser cumprida a obrigação, deveria o Administrador ter tido o cuidado de, ou entrar em contacto com a credora para com ela acordar esse local, ou, não o querendo fazer, proceder à entrega do montante em dívida na residência da mesma.

Ao não ter agido dessa forma, violou não só o apontado preceito do Código Civil, como também o dever geral de diligência a que se encontrava sujeito, enquanto administrador duma sociedade comercial e decorrente do já apontado art.º 64.º do CSC, na medida em que não se terá munido da informação bastante para efectuar correctamente o cumprimento da obrigação a que a sociedade se mostrava vinculada.   

Mostra-se assim verificado o primeiro dos apontados pressupostos da responsabilidade civil.

Quanto à questão da culpa, há a registar que neste âmbito, tal como sucede com a responsabilidade civil obrigacional (art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil), a lei presume a existência da mesma, sendo que impende sobre o Administrador o ónus de prova de ausência da mesma (parte final do n.º 1 do art.º 72.º do CSC).

No caso, não logrou o Réu A conseguir demonstrar que o pagamento por si efectuado, em local inadequado e causador do prejuízo que a seguir se indicará, teve qualquer justificação ou que não tenha sido devido a culpa da sua parte.

Mesmo que tal culpa se não presumisse, ainda assim se diria que a sua atitude, aferida em função do quadro dum normal gestor (para o que aponta o art.º 64.º do CSC), seria quanto a nós passível de ser censurada a título de culpa, pois que é exigível que um administrador tenha especiais cuidados na forma como efectua pagamentos (essencialmente de certa monta), não podendo dar azo a que situações como a aqui verificada se registem. Com efeito, poderia/deveria previamente à concretização do depósito contactar a credora ou o seu mandatário, dando-lhe conta ou dessa sua intenção, ou solicitando-lhe indicações sobre a forma como o deveria fazer.

Do que se deixa dito, há pois que concluir que também se regista o elemento culpa.

Quanto ao prejuízo, também ele está comprovado, bastando para tanto ter presente o que resulta dos pontos 1, 3, 4, 5, 6, e 13 da factualidade dada por provada.

Por último, no que concerne ao nexo de causalidade adequada entre a conduta do Réu e o dano, há que ter presente o que dispõe o art.º 563.º do Código Civil: "A obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão".

Efectivamente a obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo, entendendo-se que "determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar"[7].

Assim, não basta que o evento tenha produzido naturalisticamente certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável ou adequada desse efeito, dentro da normalidade das coisas e segundo a experiência da vida[8].

Ora, tendo presente toda a dinâmica inerente ao evento e ao prejuízo sofrido, entendemos que dúvidas não restam de que se verifica também este requisito da responsabilidade civil do Administrador da sociedade, pois que o dano verificado foi resultado (causa adequada) da sua conduta.

Do que se deixa dito há pois que concluir que se registam todos os pressupostos de responsabilidade civil que levam a que o Réu A deva indemnizar a sociedade Autora dos prejuízos por esta sofridos e que vêm pedidos na presente acção.

Ao longo desta exposição, teve-se o cuidado de apenas mencionar como responsável o Réu A e não já o Réu A, pela simples razão de que pela matéria de facto dada por provada não resulta que o mesmo tivesse tido responsabilidade na produção do evento.

Com efeito, se verificarmos o ponto 3 da matéria dada como provada - Na sequência da condenação referida em A) o 1° Réu efectuou no dia 11 de Janeiro de 2001 depósito em numerário de esc: 2.978.000$00 na conta n°da Caixa Geral de Depósitos, da qual era titular M e L – e se o aliarmos à resposta dada ao quesito 1.º - NÃO PROVADO – [O 1.º Réu agiu com o conhecimento e anuência do 2º Réu quando transferiu a quantia referida em C (ponto 3 do probatório(?], facilmente concluímos que o Réu A terá sido alheio aos factos em causa.

Efectivamente, como já referimos, se tivermos presente o disposto no citado art.º 72.º, n.ºs 1 e 2 do CSC, verificamos que a responsabilidade aí prevista é uma responsabilidade subjectiva, pelo que se deverão daí extrair as devidas consequências.

Relativamente a este tipo de responsabilidade, afirma Maria Elisabete G. Ramos[9] que “…o art. 72º, nº 1, patenteia um propósito de individualização da responsabilidade – responsáveis são os titulares do órgão administrativo e não o próprio órgão. Desde logo, o teor literal da norma é revelador deste intuito. Começa este preceito por identificar os sujeitos responsáveis dizendo que “os gerentes, administradores ou directores respondem para com a sociedade …”. Ao que acresce que os gerentes, administradores ou directores são responsáveis por factos próprios. Aspecto que assume particular importância no das sociedades que têm um órgão de administração de composição pluripessoal, porque revela que a mera circunstância de uma pessoa pertencer ao órgão de administração não é suficiente para a sua responsabilização. Manifestação deste intuito individualizador é, em minha opinião, o facto de o ordenamento jurídico ter optado claramente por fundar este tipo de responsabilidade da administração perante a sociedade na culpa dos Organträger e ter rejeitado imputações objectivas. …».

No caso presente, se é certo que a Autora imputou a prática dos actos geradores da responsabilidade a ambos os Administradores, o certo é que só relativamente ao Réu A se apuraram factos passíveis de responsabilização.

Desta forma, a acção procederá apenas quanto a esse Réu e improcederá quanto ao Réu António Raposo.

IV – DECISÃO

Assim, face a todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, nessa conformidade, revoga-se em parte a sentença recorrida, daí decorrendo a seguinte decisão:

a) - condena-se o Réu A a pagar à Autora, R, SA, a quantia de 24.854,20€ (vinte e quatro mil oitocentos e cinquenta e quatro euros e vinte cêntimos), acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.

b) – absolve-se o Réu A, do pedido.

c) – mantém-se o demais decidido na sentença.

Custas por apelante e apelado, A, na proporção de 1/5 para a primeira e de 4/5 para o segundo.

Lisboa, 2/10/08

 (José Maria Sousa Pinto)

(Jorge Vilaça Nunes)

(João Vaz Gomes)

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[1] vidé a propósito, e por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.”; Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”; Ac. do STJ de 25/2/97, in “BMJ 464 . 464” e Ac. do STJ de 22/1/98, in “BMJ 473 –427
[2] A do Dec.-Lei n.º 262/86 de 2 de Setembro, visto que as alterações a estes preceitos apenas ocorreram em 29 de Março de 2006, através do Dec.-Lei n.º 76-A/2006
[3] In, “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas”, 1970, pág. 412
[4] Vide, entre outros, Raul Ventura, Dissolução II págs 211 e segs., António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, pág. 109-111 e Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade dos Administradores das Sociedades Comerciais, pág. 493 e segts., embora este admita a hipótese de cumulação das duas responsabilidades
[5] Cunha Gonçalves, Comentário Vol I, págs 427
[6] Raul Ventura, Dissolução II
[7] Cfr. G. Telles in, Manual de Direito das Obrigações, 1957, I, pg.191
[8] Vide M. Andrade in, Teoria Geral das Obrigações, I, pg. 351
[9] Problemas do Direito das Sociedades, IDET, pág. 77