Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
103/09.6TYLSB-E.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITO FISCAL
PLANO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- A natureza especial do processo de insolvência e o reflexo que nele assumem os princípios da igualdade e o da auto-regulação da insolvência pelos credores, impõem um entendimento restritivo das normas tributárias constantes dos artºs. 30º nº 2 e 36º nº 3 da Lei Geral Tributária, relativas à indisponibilidade do crédito tributário e à inadmissibilidade de moratória no pagamento das obrigações tributárias fora dos casos especialmente previstos na lei.
II- O plano de insolvência tem que assentar nalguns pressupostos formais, nomeadamente os que constam do artº 195º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
III- Um plano de insolvência que não observe as regras constantes das várias alíneas do nº 2 do artº 195º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não deve ser judicialmente homologado.
IV- Também não pode ser homologado o plano de insolvência quanto aos créditos fiscais se existir violação de normas legais imperativas, não derrogáveis por vontade dos intervenientes, designadamente dos credores.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório

1- ““A” – , Sociedade Unipessoal Ldª” requereu nos presentes autos a declaração de insolvência de ““B” – Ldª”, alegando ser titular de créditos relativamente à requerida no valor de 34.070,10 €, existindo ainda outros créditos titulados por letras, a aguardar a devolução pelos bancos. Acrescenta que a requerida se encontra encerrada, não lhe sendo conhecido património.
2- Citada a requerida, a mesma não apresentou oposição.
3- Foi proferida Sentença a declarar a insolvência da requerida, nos termos do artº 20ºnº 1, al. b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), tendo sido nomeado Administrador da Insolvência.
4- Realizou-se Assembleia de Apreciação do Relatório.
5- O Administrador da Insolvência apresentou plano de insolvência, o qual foi admitido nos termos do artº 207º do C.I.R.E..
6- Realizou-se Assembleia de Credores para discussão e votação da proposta de plano de insolvência, na qual se encontravam presentes ou representados credores representando mais de um terço dos créditos com direito de voto.
7- A proposta foi aprovada pelos credores que representavam mais de dois terços dos votos emitidos e, destes, correspondendo mais de metade a créditos não subordinados, tendo havido votos contra da D.G.I. e do Instituto de Segurança Social.
8- A deliberação de aprovação da proposta do plano de insolvência foi objecto de publicação nos termos legais (artº 213º do C.I.R.E.).
9- Não foi solicitada a não homologação do plano de insolvência por qualquer interessado (artº 216º do C.I.R.E.).
10- Foi proferida Sentença homologatória da deliberação da Assembleia de Credores, nos termos dos artºs. 214º e 215º do C.I.R.E..
11- Desta decisão interpôs o M.P., em representação da Fazenda Nacional, recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1 – A relação jurídica tributária é enformada pelos princípios da indisponibilidade e irrenunciabilidade, porquanto a incidência dos impostos, taxas, formas e tempos de pagamento, bem como benefícios fiscais são apenas os estabelecidos na lei fiscal.
2 – Assim, não é possível ao Estado conceder perdões ou moratórias de pagamentos em desrespeito às normas que os estipulam – artº 103º da CRP, 85º do CPPT e 30º nº 2 e 36º nº 3 da LGT.
3 – Não é permitido aos particulares decidir quanto ao regime de pagamentos dos impostos, nem mesmo em assembleia de credores em sede de processo de insolvência,
4 – Pois o artº 192 nº 2 do CIRE dispõe que o Plano (de insolvência) só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados.
5 – E conforme é referido por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE anotado, pag. 45 “… a letra do artº 194º CIRE procurou acolher de uma forma evidente as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzida na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingidos em contrário”.
6 – Desta forma, as deliberações da assembleia de credores para discussão e votação do Plano de Insolvência terão sempre de respeitar os condicionalismos legais de pagamento das obrigações tributárias, sob pena de serem ilegais – artºs. 294º e 295º do Código Civil.
7 – O Plano de Insolvência aprovado na assembleia de credores, com o voto contra da Fazenda nacional e da Segurança Social, prevê um esquema de pagamento das dívidas fiscais que não se coaduna com o estabelecido nas leis tributárias, designadamente nos artºs. 196º e 199º do CPPT,
8 – Pelo que tendo a sentença que homologou a deliberação da assembleia de credores que aprovou o Plano de Insolvência em causa, violado o disposto em normas imperativas, nomeadamente os artºs. 103º da CRP, 85º, 196º e 199º do CPPT e 30º nº 2 e 36º nº 3 da LGT, deverá ser revogada e substituída por outra que recuse a homologação do dito Plano de Insolvência no que diz respeito aos créditos fiscais reclamados pela Fazenda Nacional, assim se fazendo JUSTIÇA”.
12- “C”, Administrador de Insolvência da ““B” – Ldª” apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões :
“A – O Plano de Insolvência foi aprovado em Assembleia de Credores nos termos e condições legais.
B – Nenhum dos credores solicitou a não homologação do plano, inclusive o credor Reclamante.
C – O Plano foi homologado nos termos legais expressos no artigo 214º do CIRE.
D – Quer o plano em si quer a sentença que o homologou não sofre de qualquer vício, quer de forma quer der substância.
Nestes termos deverá o recurso apresentado pelo Ministério Público, ora Recorrente, ser julgado improcedente e mantida na íntegra a douta sentença recorrida, com as legais consequências”.
* * *
II – Fundamentação
a) A matéria de facto a considerar é a seguinte :
1- A sociedade ““A”, Sociedade Unipessoal Ldª” requereu a declaração de insolvência da sociedade ““B” dª”, alegando ser titular de créditos relativamente à requerida no valor de 34.070,10 €, existindo ainda outros créditos titulados por letras, a aguardar a devolução pelos bancos.
2- Referiu a sociedade requerente no seu requerimento inicial que a requerida se encontra encerrada, não lhe sendo conhecido património.
3- A requerida foi citada e não apresentou oposição.
4- Foi proferida Sentença a declarar a insolvência da requerida, nos termos do artº 20º nº 1, al. b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), tendo sido nomeado Administrador da Insolvência o Dr. “C”.
5- Realizou-se Assembleia de Apreciação do Relatório.
6- O Administrador da Insolvência apresentou plano de insolvência, o qual foi admitido nos termos do artº 207º do C.I.R.E..
7- Realizou-se Assembleia de Credores para discussão e votação da proposta de plano de insolvência, na qual se encontravam presentes ou representados credores representando mais de um terço dos créditos com direito de voto.
8- A proposta foi aprovada pelos credores que representavam mais de dois terços dos votos emitidos e, destes, correspondendo mais de metade a créditos não subordinados, tendo havido votos contra da D.G.I. e do Instituto de Segurança Social.
9- A deliberação de aprovação da proposta do plano de insolvência foi objecto de publicação nos termos legais.
10- Nenhum interessado solicitou a não homologação do plano de insolvência.
11- Foi proferida Sentença homologatória da deliberação da Assembleia de Credores, referindo-se na parte decisória :
“Face ao exposto, homologa-se por sentença, nos termos dos artºs. 214º e 215º do C.I.R.E., a deliberação da Assembleia de Credores que aprovou, nos seus precisos termos o plano de insolvência contendo providências com incidência no passivo da devedora ““B” Ldª”, nipc ... com sede na ..., ..., ..., S..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de L....
Nos termos do disposto no artº 197º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e tendo em conta o conteúdo do plano, o cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes.
Custas pela requerente com taxa de justiça reduzida a 2/3 – artº 302º nº 2 do C.I.R.E..
Valor da acção para efeitos de custas : o valor do activo referido no inventário constante dos autos, nos termos do artº 301º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Registe e notifique”.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação do recorrente a única questão em recurso consiste em apreciar se o Plano de Insolvência podia ter sido alvo de Sentença homologatória.
c) Vejamos :
Lido o Plano de Insolvência verifica-se que é possível os créditos serem integralmente amortizados e obter um saldo positivo de 101.241,90 € no final do sexto ano, pelo que no mesmo se conclui “ser possível à “B” proceder ao pagamento dos créditos no período de 4 anos”.
Tal plano apenas se aplica aos créditos de cinco credores, num total de 106.962,87 €, dos quais 3.526,87 € são privilegiados e os restantes comuns.
Foi proposto (e posteriormente aprovado em Assembleia de Credores) que a amortização dos créditos, nomeadamente as dívidas ao Estado, seria feita em 47 prestações.
Entendemos que a natureza especial do processo de insolvência e o reflexo que nele assume os princípios da igualdade e o da auto-regulação da insolvência pelos credores, impõem um entendimento restritivo das normas tributárias constantes dos artºs. 30º nº 2 e 36º nº 3 da Lei Geral Tributária (L.G.T.), aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17/12, relativas, respectivamente, à indisponibilidade do crédito tributário e à inadmissibilidade de moratória no pagamento das obrigações tributárias fora dos casos especialmente previstos na lei (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 17/7/2008, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Consequentemente, pode o próprio Estado, enquanto credor tributário e simples parte ao intervir nos processos judiciais de insolvência, aderir a um plano de insolvência que preveja, quanto às dívidas fiscais, perdão parcial de juros e moratórias.
Todavia, por mais correcta que seja a orientação assumida, ela tem que assentar em alguns pressupostos formais, quais sejam, os que constam especificamente da lei relativa a tais planos.
Relativamente à objecção que coloca o M.P./apelante no que toca ao não cumprimento de algumas disposições do artº 195º do C.I.R.E., a mesma afigura-se-nos inatacável.
Dispõe o citado preceito, sob a epígrafe “Conteúdo do plano” :
“1 – O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência.
2 – O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo Juiz, nomeadamente :
a) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor ;
b) A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através de liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade ;
c) No caso de se prever a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, e balanço pró-forma, em que os elementos do activo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respectivos valores ;
d) O impacte expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de insolvência ;
e) A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação”.
A razão de ser da alínea e) parece ser a de que, uma vez que estão a ser movidos créditos de várias entidades, em derrogação de preceitos legais que em situação normal não permitiriam essa movimentação, deve o plano da insolvência indicar, com clareza e rigor, quais os preceitos legais que não são observados e qual o âmbito dessa não observação ou derrogação, em ordem a estabelecer com todo o rigor a generalidade do processo de recuperação.
Ora essa indicação não foi feita no plano ora em apreço, tornando difícil escrutinar o conteúdo e o âmbito dos preceitos legais derrogados.
O que resulta do C.I.R.E. é que, em certas ocasiões, e com vista à salvação de uma empresa, dos capitais que corporiza e dos postos de trabalho que oferece, se possa aprovar um plano de insolvência onde algumas leis sejam derrogadas, mas essa derrogação há-de constar de forma clara, rigorosa e inequívoca no plano.
Como já referimos, essa indicação não foi feita, inquinando o plano em causa de uma forma que nos parece inultrapassável.
Assim sendo, logo por esta razão a apelação terá de proceder.
d) Mas dir-se-á mais :
Outra questão levantada neste recurso tem que ver com a aplicabilidade aos créditos fiscais de um plano de insolvência, aprovado em assembleia de credores e homologado por sentença, que prevê o respectivo pagamento diferido, em prestações, mesmo tendo o Estado votado contra esse mesmo plano de insolvência.
Ora, dispõe o artº 215° do C.I.R.E. que “o Juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam proceder a homologação”.
Em anotação a este normativo, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado”, pg. 713) referem que “são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia ser afastadas com o consentimento protegido”.
No caso em apreço entendemos que, para além do motivo acima exposto, não deve ter lugar a homologação do plano de insolvência quanto aos créditos fiscais, porquanto existe uma violação de normas legais imperativas que, por isso, não podem ser derrogadas ou afastadas pela vontade dos intervenientes, designadamente dos credores.
Na verdade, decorre do artº 1° nº 1 da L.G.T., que a mesma “regula as relações jurídico-tributárias, sem prejuízo do disposto no direito comunitário e noutras normas de direito internacional que vigorem directamente na ordem interna ou em legislação especial”.
No nº 2 desse preceito dispõe-se que “para efeitos da presente lei, consideram-se relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributaria, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estes”.
Estabelece o artº 30º nº 1, al. a) da LGT, que integram a relação tributária o crédito e a dívida tributária. No nº 2 desse mesmo normativo, determina-se que “o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade”.
Por sua vez, dispõe o art° 36° da LGT que a relação jurídica tributaria constitui-se com o facto Tributário (nº 1), que os elementos essenciais da relação jurídica não podem ser alterados pela vontade das partes (nº 2), que a administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei (nº 3), e que a administração Tributária pode subordinar a atribuição de benefícios fiscais ou a aplicação de regimes fiscais de natureza especial, que não sejam de concessão inteiramente vinculada, ao cumprimento de condições por parte do sujeito passivo, inclusivamente, nos casos previstos na lei, por meio de contratos fiscais (nº 5).
Por outro lado, dispõe o 196° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (C.P.P.T.), que :
“As dívidas exigíveis em processo executivo poderão ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, no prazo da oposição, ao órgão da execução fiscal” (nº 1).
“É excepcionalmente admitida a possibilidade de pagamento em prestações das dívidas (...) desde que se preveja a substituição dos administradores e gerentes responsáveis pela não entrega das prestações tributárias em causa” (nº 3).
“O pagamento em prestações pode ser autorizado desde que se verifique que o executado, pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização” (nº 5).
Estabelece-se ainda no art° 199° n° 1 do C.P.P.T., que :
“Caso não se demonstre já constituída garantia, com o pedido deverá o executado oferecer garantia idónea, a qual consistirá garantia bancária, caução, seguro caução, ou qualquer meio susceptível de assegurar os créditos do exequente” (nº 1).
“É competente para apreciar as garantias bancárias a prestar nos termos do presente artigo a entidade competente para autorizar o pagamento em prestações” (nº 8).
Tais normas têm, clara e inequivocamente, um carácter público e imperativo e daí que, como é bom de ver, não possam ser afastadas pela vontade das partes.
E essa imperatividade impõe-se à própria administração tributária, isto no sentido de que não pode conceder, por “motu” próprio, um regime de excepção a determinado sujeito (passivo) tributário, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
Há, assim, uma dupla vinculação aos princípios da legalidade e igualdade, princípios esses enunciados nos artºs. 13°, 103° e 104° da Constituição da República Portuguesa, e que têm como consequência imediata a indisponibilidade dos direitos a eles conexos.
Para que o crédito tributário possa ser reduzido ou extinto, ainda que por iniciativa da própria administração fiscal, é necessário que essa operação esteja especialmente prevista na lei e que a mesma seja efectuada segundo os procedimentos nela previstos.
Não foi o que sucedeu no caso em apreço, desde logo por via da expressa e frontal oposição que a Fazenda Nacional veio a deduzir, no decurso da Assembleia de Credores, ao apresentado plano de insolvência.
Nessa medida, entendemos que o dito plano de insolvência não deveria ter sido homologado, isto no que tange aos créditos fiscais nele mencionados.
Pese embora se deva atender à finalidade do processo de insolvência e ao princípio geral do plano de insolvência, definidos nos artºs. 1º e 192º do C.I.R.E., a verdade é que não pode a satisfação do interesse dos credores legitimar a violação de normas imperativas que tutelam os créditos fiscais.
Por outro lado, se é certo que no n° 1 do artº 194° do C.I.R.E., se preceitua que o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas, tal não significa que o antes expendido viole esse princípio.
Com efeito, o referido princípio da igualdade apenas tem por objectivo afastar qualquer situação de privilégio quanto ao pagamento dos reclamados créditos, tudo, aliás, em consonância com o disposto no artº 97° do C.I.R.E..
A propósito, observam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado”, pg. 641) que o artº 194º nº 1 do C.I.R.E. procurou acolher de uma forma evidente as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzida na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingidos, em contrário.
A exclusão dos créditos fiscais do âmbito de aplicação, designadamente, do artº 196° nº 1 do C.I.R.E., não implica a violação do aludido princípio da igualdade de tratamento dos credores. Com efeito, com o diferente tratamento que é imposto pela lei aos créditos fiscais, dada a sua distinta natureza dos créditos comuns, o princípio da igualdade dos credores da insolvência não é violado, se a forma do seu pagamento, prevista no plano de insolvência, respeitar o regime legal de pagamento consagrado nos artºs. 196° e ss. do C.P.P.T.. Está a tratar-se desigualmente o que é desigual.
Nem se compreenderia que o princípio da indisponibilidade do imposto vinculasse a administração tributária e o próprio legislador fiscal e não vinculasse, da mesma forma, o administrador da insolvência e a assembleia de credores, em processo de insolvência. Doutro modo, estaríamos perante a faculdade concedida a uma maioria de credores num processo de insolvência, de alterar a obrigação contributiva através do perdão fiscal, fazendo letra morta do referido regime fiscal.
Deste modo, considerando a mencionada indisponibilidade do crédito tributário, afigura-se-nos inquestionável que o seu reconhecimento e posterior pagamento não pode ficar sujeito às condições de liquidação dos restantes créditos comuns, mais a mais quando o respectivo credor, no caso o Estado, se opõe a qualquer acordo que vise a diminuição do seu montante e prazo de pagamento.
Se é certo que “o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência, podem ser regulados num plano de insolvência em derrogação das normas do presente código” (artº 192° nº 1 do C.I.R.E.), também não menos é certo que, por força do n° 2 desse mesmo normativo, “o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste titulo ou consentido pelos visados”.
Em resumo :
No caso em apreço, para além de não ter havido qualquer consentimento ou acordo da Fazenda Nacional quanto à redução e prorrogação do prazo de pagamento dos créditos fiscais, e, ao contrário, ter havido uma oposição quanto a esses pontos, a verdade é que estamos perante uma relação jurídica (crédito tributário) indisponível e, como tal, não sujeita à vontade das partes, isto no que tange às questões que digam respeito ao seu montante e prazos de pagamento.
Deste modo, nesse ponto, o plano de insolvência apresentado pelo Sr. Administrador e posteriormente aprovado pelos restantes credores comuns, que não o Estado (Fazenda Nacional), não pode obter a respectiva homologação, pelo menos quanto aos créditos fiscais.
Procedem, assim, na totalidade as conclusões da alegação do recurso.
e) Sumariando :
I- A natureza especial do processo de insolvência e o reflexo que nele assumem os princípios da igualdade e o da auto-regulação da insolvência pelos credores, impõem um entendimento restritivo das normas tributárias constantes dos artºs. 30º nº 2 e 36º nº 3 da Lei Geral Tributária, relativas à indisponibilidade do crédito tributário e à inadmissibilidade de moratória no pagamento das obrigações tributárias fora dos casos especialmente previstos na lei.
II- O plano de insolvência tem que assentar nalguns pressupostos formais, nomeadamente os que constam do artº 195º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
III- Um plano de insolvência que não observe as regras constantes das várias alíneas do nº 2 do artº 195º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não deve ser judicialmente homologado.
IV- Também não pode ser homologado o plano de insolvência quanto aos créditos fiscais se existir violação de normas legais imperativas, não derrogáveis por vontade dos intervenientes, designadamente dos credores.
* * *
III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e nessa medida, revoga-se a Sentença recorrida e determina-se que seja apresentado novo plano de recuperação que respeite os preceitos acima indicados.
Custas : Pela massa insolvente (artºs. 446º do Código do Processo Civil e 304º do C.I.R.E.).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 16 de Novembro 2010

Pedro Brighton
Anabela Calafate
António Santos