Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8103/03.3TVLSB-A.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
IRC
HIPOTECA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: O crédito da fazenda nacional relativo a IRC deve ser graduado após o crédito hipotecário, uma vez que apenas goza de privilégio imobiliário geral, não lhe sendo aplicável o disposto no art. 751º do CC, mas antes o estatuído no art. 749º do mesmo diploma legal.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.

            Nos autos de execução que B  S.A. intentou contra I, Lda., J e M, foi, em 22.06.05, penhorado um prédio urbano sito na Rua..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo , descrito na CRP de Alcanena sob a ficha nº  da referida freguesia, tendo tal penhora sido registada 9.01.06.
Por apenso à referida execução, veio o MP reclamar o crédito global de € 300,56, resultante de IRC dos anos de 2003 e 2004, inscritos para cobrança, respectivamente, em 2005 e 2006, e juros de mora contados até Dezembro de 2006.
Admitida a reclamação e efectuadas as notificações legais, não foi o crédito reclamado impugnado.
Foi proferida sentença, na qual se declarou o crédito reclamado reconhecido e o graduou da seguinte forma: 1º - crédito reclamado; 2º - crédito exequendo.

            Não se conformando com a decisão, dela interpôs recurso o exequente, tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:
a) Por Sentença proferida em 16/7/2008, nos autos que com o n.º, correm termos na Vara Cível, da Comarca de Lisboa, a ora recorrente viu reconhecido o seu crédito no montante de € 146 049, 54, tendo sido graduado em 2.º lugar.
b) A Douta sentença recorrida graduou em primeiro lugar um crédito da Fazenda nacional, referente a Imposto sobre o rendimento das pessoas Colectivas, dos anos de 2003 e 2004, no montante de € 300,56.
c) Sucede porém que o crédito exequendo goza não só da garantia que lhe é conferida pela penhora, como está garantido com uma hipoteca voluntária sobre o imóvel penhorado nos autos.
d) Acresce que a hipoteca registada a favor do B, SA destina-se a garantir o Garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade “ I, Lda.” com sede em” até ao montante máximo de € 167 226.58.
e) Ora o crédito exequendo goza de garantia real que lhes é conferida pela hipoteca registada pela inscrição C-1 do imóvel penhorado nos autos.
f) Tanto a hipoteca como as penhoras encontram-se devidamente registadas, pelo que, e salvo melhor opinião, não poderá deixar de lhes ser aplicável o disposto no artigo 686.º C.Civil, que lhes confere o privilégio imobiliário especial sobre o imóvel penhorado nos autos.
g) Salvo melhor entendimento, a Douta Sentença recorrida ao fazer prevalecer o crédito da fazenda Pública, sobre um crédito garantidos por hipoteca devidamente registada a favor do exequente viola por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 108.º do CIRC, bem como, o disposto no artigo 751.º C.Civil.
h) A nossa jurisprudência é unânime nesse sentido, o privilégio creditório do Estado é um privilégio mobiliário geral, que não poderá preferir aos privilégios imobiliários especiais, como seja, a hipoteca voluntária devidamente registada como é o caso dos autos,
i)Nos termos do art° 749° CC “o privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao Exequente”. Ou seja, e para o que aqui importa, o privilégio (imobiliário geral) não poderá ser oponível a qualquer direito real anterior ou posterior ao débito garantido.
J) Nos termos do artigo 686°, 1 “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozam do privilégio especial ou de prioridade de registo. Isto é, o credor hipotecário tem o direito a ser pago pelo valor da coisa objecto da garantia, com preferência sobre os demais credores (desde que estes não gozem de qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo).
K) Relacionando o estatuído desta norma, com o regime do artigo 749° do C.Civil, temos de concluir que o crédito do Recorrente, porque garantido por hipoteca anteriormente registada, tem prioridade de pagamento em relação aos créditos da Fazenda Nacional de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas garantido por privilégio mobiliário geral.
L) Neste sentido vai também a orientação do Tribunal Constitucional tomada no acórdão 160/000 de 23.03.00 (DR.H Série de 10,10.00) que considerou que “o princípio da confiança, incito na ideia de Estado de direito democrático (a que se refere o art° 2° da Constituição) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e relevantemente contar ... A esta luz pergunta-se ... que segurança jurídica constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutralize a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao inicio da vigência das normas em causa.”
M) Nesta conformidade, é entendimento unânime da jurisprudência dos tribunais superiores que, em relação ao produto da venda resultante do bem imóvel atrás identificado, a crédito do ora Recorrente garantido por hipoteca voluntária anteriormente registada, deve prevalecer sobre os créditos da Fazenda pública (garantido por privilégio mobiliário geral).
Termina propugnando pela revogação da sentença recorrida, e sua substituição por outra que gradue o crédito do recorrente com primazia face ao crédito da fazenda pública proveniente de dívida de imposto sobre as pessoas colectivas, no que tange ao pagamento pelo produto da venda do imóvel hipotecado ao recorrente.
            Não foram apresentadas contra-alegações.
           
QUESTÕES A DECIDIR.
            Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente ( art. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC ) a única questão a decidir é se o crédito exequendo deve ser graduado antes do crédito reclamado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.
           
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
            Com vista à apreciação do recurso, consideram-se relevantes, para além dos já referidos no relatório, os seguintes elementos constantes dos autos:
            1º- Na sequência de contrato de mútuo celebrado entre o B, S.A. e J e esposa, M, por si e em representação da firma I, Lda., estes constituíram a favor daquele (B) hipoteca sobre o seguinte imóvel: Prédio urbano sito na Rua..., inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo , descrito na sob a ficha nº ... da referida freguesia, tendo tal hipoteca sido registada em 2001.01.09.
            2º- Na sequência de incumprimento do referido contrato de mútuo, o B, S.A. intentou o processo de execução de que os presentes autos são apenso, no qual foi lavrado, em 2005.06.22, termo de penhora do imóvel hipotecado, penhora essa registada em 2006.01.09.
3º- Os créditos reclamados de € 149,09 e € 121,80, são resultantes de IRC dos anos de 2003 e 2004, respectivamente, inscritos para cobrança, em 2005 e 2006, respectivamente, a que acrescem juros de mora contados até Dezembro de 2006.

            FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
            A sentença recorrida graduou os créditos pela forma seguinte:
            1º- créditos reclamados pelo MP em representação do Estado, por dívida de IRC;
            2º- crédito exequendo.
            Insurge-se o recorrente contra a graduação feita, porquanto defende que os créditos reclamados pela Fazenda Nacional não têm prevalência sobre o seu crédito que goza da preferência resultante da hipoteca registada, devendo aplicar-se, na graduação, o disposto no art. 749º do CC.
            Apreciemos, adiantando que assiste razão ao recorrente, como vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores [1] .
            O crédito do exequente, graduado em 2º lugar, é um crédito hipotecário, conforme resulta da factualidade fáctica supra referida, não beneficiando, apenas, do privilégio resultante da penhora efectuada nos autos de execução (art. 822º do CC) [2], mas também, do privilégio resultante da referida hipoteca registada, nos termos do disposto nos arts. 686º e 687º do mesmo diploma legal.
Os créditos reclamados graduados em 1º lugar gozam de “privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente”, conforme resulta do art. 111º do CIRC, na redacção dada pelo DL 198/2001 de 3.07.
Não questiona o recorrente que os créditos reclamados gozem do referido privilégio imobiliário geral [3] estabelecido no mencionado diploma legal.
O que questiona é que tal crédito, por força do referido privilégio imobiliário geral, prefira ao crédito do exequente que goza de garantia especial resultante da hipoteca do imóvel.
Dispõe o art. 686º, n.º 1 do CC que “ a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo ” ( sublinhado nosso ).
A hipoteca tem de ser registada sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes – arts. 687º do CC e 2º, n.º 1, al. h) e 4º, n.º 2 e 5º, n.º 1 do CRP.
            Os privilégios creditórios em geral consubstanciam-se na faculdade que a lei, em atenção à causa do direito de crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros ( art. 733º do CC ).
            Distinguem-se em mobiliários e imobiliários, consoante incidam sobre bens móveis ou imóveis.
            Os mobiliários são gerais se abrangem todos os bens móveis do património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente, e especiais se compreenderem o valor de determinados bens móveis ( art. 735º, nºs 1 e 2 do CC ).
            Os imobiliários seriam sempre especiais de acordo com o n.º 3 do art. 735º do CC.
            Após a entrada em vigor do CC, leis especiais instituíram vários privilégios imobiliários gerais, tendo ficado afectado o mencionado normativo enquanto expressava que os privilégios imobiliários são sempre especiais, vindo o DL. 38/03 de 8.03 a alterar a redacção do mencionado dispositivo legal, concretizando que “os privilégios imobiliários estabelecidos neste código são sempre especiais” (sublinhado nosso).
Com a redacção introduzida pelo mencionado DL. 38/03 de 08.03, concretizou-se, ainda, que só os “privilégios imobiliários especiais” gozam da preferência referida no art. 751º do CC  [4], que estatui que “ os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”.
De entre os privilégios, só os especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem, pois, em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se os gerais a constituir mera preferência de pagamento [5].
A estrutura dos privilégios imobiliários especiais é, assim, diversa da dos privilégios mobiliários gerais, o que afasta a aplicação do art. 751º do CC a estes [6], verificando-se uma lacuna legal nesta matéria.
E, como se refere no Ac. dos STJ de 13.05.05, P. 04B4398, relatado pelo Cons. Salvador da Costa, in www.dgsi.pt [7], “atendendo ao elemento negativo constituído pela ausência de sequela, a similitude que se impõe ao intérprete é entre privilégios imobiliários gerais e privilégios mobiliários gerais (art. 10º, nº 2 do CC). A referida lacuna deve, por isso, ser suprida por via de uma regra equivalente à do nº 1 do artigo 749º do Código Civil, ... segundo a qual, os direitos de crédito ... garantidos por privilégios imobiliários gerais ..., são preteridos pelos direitos de crédito de outrem garantidos por hipoteca” [8].
            Assim sendo, porque os créditos reclamados apenas gozam de privilégio imobiliário geral e o crédito exequendo goza do privilégio resultante de hipoteca registada, aqueles não prevalecem sobre este, procedendo o recurso e devendo a sentença recorrida ser alterada, em conformidade.
            Resta referir que, como refere o recorrente, o Ac. do TC nº 362/02 de 17.09, publicado no DR, I Série de 16.10.02 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança ínsito no artigo 2º da CRP, da norma constante do artigo 111º do CIRS, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do CC.
            Este juízo de inconstitucionalidade afigura-se-nos, efectivamente, extensível ao privilégio imobiliário geral concedido pelo art. 108º do CIRC, entendido como sendo-lhe aplicável o regime do art. 751º do CC.

            DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, e altera-se a sentença recorrida, passando a graduação a fazer-se da forma seguinte: em 1º lugar, o crédito exequendo; em 2º lugar, os créditos reclamados pela Fazenda Nacional.
            Sem custas.
                                                           *
Lisboa, 27 de Outubro de 2009
                                              
Cristina Coelho                                                        
Soares Curado                                                          
Roque Nogueira

-----------------------------------------------------------------------------------------
[1] Cfr., entre outros, e a título meramente exemplificativo, os Acs. do STJ de 22.03.07, P. 07A580, da RP de 09.05.07, P. 0750820 e da RL de 25.09.07, P. 10347/2006-1, todos in www. dgsi.pt.
[2] Como se entendeu na sentença recorrida.
[3] Que incide sobre todos os bens imóveis do sujeito passivo em determinada data.
[4] Sendo certo que não se limitam tais privilégios aos constantes do Código Civil, apenas se esclarecendo no art. 735º, n.º 3 do mesmo diploma legal que os previstos no Código Civil são sempre especiais.
[5] Como escreve Salvador da Costa, in O Concurso de Credores”, 3ª ed., pág. 165, “Discute-se a natureza dos privilégios creditórios, porque nuns casos só relevam enquanto os bens se encontrarem  no património do devedor, mas noutros a garantia que veiculam é susceptível de relevar sobre bens já integrados na esfera jurídica de terceiros. No que concerne, porém, aos privilégios mobiliários especiais e aos privilégios imobiliários especiais, porque envolvidos de sequela, assumem a natureza de garantia real de cumprimento das obrigações. Todavia, no que respeita aos privilégios mobiliários e imobiliários gerais, como, em razão da sua indeterminabilidade, não são envolvidos de sequela, a qualificação que melhor lhes enquadra é a de mera preferência de pagamento de determinados direitos de crédito”
[6] Afigurando-se-nos que a redacção introduzida no preceito demonstra a clara intenção do legislador de excluir do seu âmbito de aplicação os privilégios imobiliários gerais.
[7] A propósito dos direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores garantidos, também, por privilégios imobiliários gerais constantes das Leis nºs 17/86 de 14.06 e 96/01 de 20.08”.
[8] Também na obra cit. na anotação 5, a págs. 304, Salvador da Costa escreve que “o art. 751º do Código Civil contém um princípio geral insusceptível de aplicação a quaisquer privilégios imobiliários gerais, por estes terem natureza excepcionalíssima, não incidirem sobre bens determinados, não serem conhecidos aquando do início da vigência do Código Civil e, por não estarem sujeitos a registo, afectarem gravemente os direitos de terceiros. Os privilégios imobiliários gerais traduzem-se, na realidade, em meras preferências de pagamento, por isso só susceptíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns. Decorrentemente, aos privilégios imobiliários gerais é aplicável, pelo facto de serem gerais, o regime do artigo 749º do Código Civil, pelo que os créditos por eles garantidos cedem na ordem de graduação perante direitos de crédito garantidos por hipoteca,...”.