Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3084/08.0YXLSB-A.L1-1
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: OMISSÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO DA DECISÃO
Sumário: 1. Sendo a omissão total o grau máximo da deficiência, deve a Relação anular oficiosamente, nos termos do artº 712º/4 do CPCivil, o saneador-sentença que não indica a matéria de facto.
2. E isto porque, se houver uma total ausência de decisão sobre a matéria de facto, não pode este Tribunal exercer o poder censório, não só quanto à matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

         I – RELATÓRIO

         “A”, SA veio intentar a presente acção com processo sumário contra “B”, LDA., pedindo a condenação desta na quantia de € 16.776,94, acrescida de juros vincendos à taxa supletiva legal sobre o montante de € 15.167,82 até efectivo pagamento.
         Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese que:
         Contratou com a ré a prestação do Serviço de Telecomunicações Complementar – Serviço Móvel Terrestre, mediante os seguintes contratos:
         - contrato celebrado em 28/04/1993; contrato celebrado em 07/12/1996; contrato celebrado em 11/05/1999; contrato celebrado em 23/06/1999 e contrato celebrado em 20/11/2001, em virtude dos quais foram atribuídos à ré cartões de acesso ao serviço com diversos números.
         A A. cedeu à R. diversos telemóveis e, em contrapartida a R. obrigou-se a manter o seu vínculo contratual com a A. pelo período de 30 meses a contar da data de assinatura do contrato ocorrido em 20/11/2001.
         Nos termos da Clª 6ª do mesmo aditamento «em caso do incumprimento do aqui proposto, o cliente pagará à “A” a quantia equivalente ao valor das taxas relativas a 30 meses de utilização dos telemóveis deduzido das já pagas».
         O valor da taxa mensal que a R. se obrigou a pagar pelo período de 30 meses era de 462,50 €/mensais, sem IVA.
         Os cartões de acesso atribuídos à Ré foram activados e esta utilizou-os, realizando e recebendo chamadas telefónicas.
         Na sequência da prestação do mencionado serviço, a A. apresentou-lhe a pagamento as seguintes facturas:
         - factura …, emitida em 05/01/02, no valor de € 692,62 e que se venceu em 28/01/02;
         - factura …, emitida em 05/02/02, no valor de € 662,33 e que se venceu em 28/02/02;
         - factura …, emitida em 05/03/02, no valor de € 567,32 e que se venceu em 25/03/02;
         - factura …, emitida em 05/04/02, no valor de € 541,92 e que se venceu em 24/04/02;
         - factura …, emitida em 05/05/02, no valor de € 541,13 e que se venceu em 27/05/02.
         A A. emitiu e enviou à R. as mencionadas facturas nas datas de emissão das mesmas.
         A R. recebeu as facturas emitidas pela A.
         A R. não pagou à A. o valor das mesmas.
         Face ao não pagamento atempado das facturas mencionadas, a A. fixou prazo de 8 dias à R. para que esta procedesse ao pagamento das mesmas, sob pena de ser suspenso o serviço de telecomunicações.
         Em virtude do incumprimento da R., a A. fixou ainda novo 


         A ré contestou invocando a excepção de prescrição, quanto ao serviço prestado objecto desta acção, prevista no artº 10º da Lei nº 23/96 de 26 de Julho.


         Prosseguiram os autos, com a prolação de saneador-sentença que julgou procedente a excepção peremptória de prescrição dos créditos reclamados pela A. e, consequentemente absolveu a ré dos pedidos contra ela formulados.


         Inconformada, apelou a A., apresentando alegações que finalizou com as seguintes conclusões:
1- Decidiu mal a douta sentença ao absolver a ré ora recorrida do pagamento da factura de indemnização por incumprimento contratual ao abrigo do disposto na al. g) do artº 310º do Código Civil, por se tratar apenas de mais uma cláusula referente a contrato de prestação de serviço móvel terrestre.
2- É entendimento da sentença recorrida que a cláusula de permanência na rede se prolonga e renasce ao longo do tempo, na medida em que, a qualquer momento o seu valor em dívida, titulado por uma factura pode ser liquidado, ser restabelecido o serviço telefónico, e em face de novo incumprimento ser novamente accionada até ao fim do período de permanência acordado.
3- Entende também a sentença recorrida que a cláusula de permanência é apenas uma das cláusulas contratuais derivadas da realidade contratual mais vasta, de prestação de serviços móveis e sempre de natureza periódica e renovável.
4- Ora, salvo o devido respeito para com a sentença recorrida, não pode a autora ora recorrente concordar com tal entendimento, dado que a factura de indemnização por incumprimento contratual não pode considerar-se emitida ao abrigo de uma prestação periodicamente renovável.
5- São prestações periodicamente renováveis aquelas cujo cumprimento se protela no tempo através de prestações instantâneas e cujo objecto se encontra pré-fixado, periodicamente renovado.
6- Ora, obrigatoriedade de permanência na rede não se renova automaticamente, pode aliás nem ter qualquer renovação, atento que nos contratos de adesão ao serviço móvel terrestre, nos quais exista um período de obrigatoriedade de permanência na rede, findo o período de permanência acordado, o serviço móvel renova-se mensalmente, caso não seja denunciado com quinze dias de antecedência.
7- Ou seja, o serviço continua activo, mas o período de obrigatoriedade de permanência na rede extinguiu-se.
8- Acresce que, ao contrário da prestação de serviço telefónico que se renova mensalmente, o período de permanência na rede não se renova após o terminus do período acordado pelas partes.
9- O período de permanência na rede por um número determinado de meses não tem inerente sucessivas prestações, antes pelo contrário, tem apenas previsto um valor indemnizatório, caso não seja cumprido.
10-São verdadeiras cláusulas penais, que por natureza não consistem em prestações periodicamente renováveis que não poderiam considerar-se abrangidas pela previsão da alínea g) do artº 310º do CCivil e assim ser julgada prescrita, como o fez a sentença recorrida.
11-A cláusula penal que a autora reclama nos presentes autos, encontra-se abrangida pela previsão não da al. g) do artº 310º do CCivil mas antes pelo artº 309º do CCivil.
12-Verifica-se, assim, que a douta sentença recorrida decidiu mal ao considerar que a cláusula penal cujo pagamento a recorrente reclama na factura de indemnização por incumprimento contratual deriva de uma prestação periodicamente renovável e se encontra prescrita ao abrigo da al. g) do artº 310º do CCivil, razão pela qual deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência ser mantida a sentença recorrida.


Por sua vez, a ré veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões são as seguintes:
I- O douto despacho saneador-sentença considerou que todos os créditos da A., ora recorrente, se extinguiram por prescrição, absolvendo a ré do pedido, cfr. artº 493º nºs 1 e 3 do CPCivil e artºs 10º nº 1 da Lei 23/96 de 26/07, 9º nºs 4 e 5 e 16º nºs 2 e 3 do DL 381-A/97 de 30/12 e artºs 306º nº 1 e 310º al. g) do CCivil.
II- A autora, ora recorrente veio interpor o presente recurso circunscrevendo-o tão só ao excerto do saneador-sentença que absolve a ré do pedido de condenação ao pagamento de montante indemnizatório devido a título de cláusula penal.
III- A decisão em apreço não merece qualquer reparo, tendo feito um julgamento correcto e adequado da matéria em causa.
IV- Qualquer montante indemnizatório devido a título de cláusula penal partilha das características da acessoriedade, dependência ou instrumentalidade relativamente á obrigação principal, nos termos do artº 812º nº 2 do CCivil pelo que reconhecida a prescrição da obrigação principal que constitui um facto extintivo do direito da autora, acarreta a caducidade da cláusula penal que lhe estava associada.
V- Não assiste, por isso, razão à recorrente devendo manter-se a absolvição da ré do pedido. Sem prescindir,
VI- Este Venerando Tribunal dispõe das condições necessárias para conhecer do fundo da questão, porquanto a prova quanto aos factos em apreço é documental, não impugnada e que se encontra junta aos autos (artº 712º nº 1 al. a) e nº 2 do CPC).
VII- Em virtude de a A. ter procedido, em 5 de Março de 2002, à suspensão do serviço de emissão de chamadas de voz, em todos os números de telemóvel afectos aos contratos aqui em juízo, sem qualquer aviso prévio e justificação, gerando graves prejuízos à actividade comercial da ré, esta resolveu os contratos que mantinha com a A., com efeitos a 19 de Março de 2002, data em que a A. recepcionou a sua carta nesse sentido, Cf. Doc. nº 5 da Contestação.
VIII- É, nesta conformidade, absolutamente falso que tenha sido a ré a dará origem a qualquer incumprimento contratual.
IX- À data de 16 de Maio de 2002, dia em que a A. enviou à ré uma carta advertindo-a da aplicação da indemnização por incumprimento contratual, o contrato já se encontrava resolvido por incumprimento da A.!
X- A absolvição da ré do pedido de condenação ao pagamento da cláusula penal sempre adviria do facto de a autora nunca ter efectivamente procedido à resolução contratual a que estava obrigada para poder accionar a cláusula penal, nem ter alegado qualquer facto que possa consubstanciar esse elemento constitutivo do seu direito, termos em que deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida ou, caso assim não se entenda, se conheça do mérito do pedido de condenação ao pagamento da indemnização contratual, absolvendo-se a ré do pedido em conformidade com o ora alegado.


Foram colhidos os vistos legais.


II – QUESTÕES A RESOLVER

         Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio[1].
         Assim, em face das conclusões apresentadas, a única questão que se impõe a este Tribunal resolver é saber se o crédito de montante indemnizatório peticionado a título de cláusula penal se deve ou não considerar extinto por prescrição.

         III – FUNDAMENTOS DE FACTO

         Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede, que aqui se dão por reproduzidos.

         IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

De facto, não fosse entendermos que existe uma questão prévia a conhecer, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal seria a supra enunciada.
Porém, quando se conheça directamente do pedido, o despacho saneador assume, para todos os efeitos, o valor de uma sentença e como tal é designado (cfr. artº 510º al. b) do CPC).
Ora, e como prescreve o disposto no artº 659º/2 do mesmo diploma legal, o Juiz, na sentença, deve discriminar os factos considerados provados, aplicando a posteriori as normas jurídicas inerentes ao caso sob análise e concluindo pela decisão final. Ou seja, exigindo a lei que o Juiz discrimine “(…) os factos que considera provados (…)”, impõe-se concluir que na sentença de 1ª instância deve figurar o elenco dos factos dados como assentes, para que aos mesmos possa ser aplicado o direito. E tal discriminação tem de ser explícita relativamente a todos e cada um dos factos provados indispensáveis ao conhecimento de meritis.
Só face a essa indicação discriminada dos factos provados é que a Relação poderá entrar na apreciação e julgamento do recurso interposto da sentença do tribunal recorrido, pois só assim se afigura possível averiguar a correcta aplicação do direito aos factos e a correcção ou incorrecção da decisão proferida.
Com efeito, não se achando discriminada a factualidade tida por assente pelo Tribunal de 1ª instância, na sentença (ou no saneador-sentença) não pode a Relação exercer esse poder censório.
Acontece que o saneador-sentença impugnado não discriminou os factos provados, nele não se indicando, concretamente, e sem margem para dúvidas, quais os factos materiais que se têm como assentes, tendo-se, de imediato passado à fundamentação de direito e, após, à decisão. Ou seja, foi julgada procedente a excepção de prescrição invocada pela Ré, mas com absoluta omissão da decisão sobre a matéria de facto provada.
Estamos, assim, perante um caso de omissão total da matéria de facto, que precede e é substrato da decisão final, dando origem a uma natural falta de especificação dos fundamentos de facto da al. b) do nº 1 do artº 668º do CPC, nulidade esta extensível a qualquer decisão.
Esta nulidade (conexionada com a disposição geral contida no artº 158º do CPC e, mais amplamente, com o artº 205º nº 1 da CRP, não foi arguida pelas partes perante o Tribunal que proferiu a decisão, nem foi objecto de recurso, podendo sê-lo, nos termos do nº 4 do citado artº 668º do CPC.
No entanto, estendendo-se o poder censório da Relação previsto no artº 712º/4 do CPC a todos os casos em que se verifique um julgamento de facto (ou em que este deva verificar-se), se este Tribunal pode e deve anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta, o mesmo terá de acontecer nos casos em que se verifique uma total ausência da fixação da mesma matéria de facto na sentença/saneador-sentença.
E isto porque, se houver uma total ausência de decisão sobre a matéria de facto, não pode este Tribunal exercer o poder censório, não só quanto à matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável. É que os conflitos de interesses entre as partes e as relações materiais controvertidas traduzem-se em factos, aplicando-se o Direito aos factos alegados e provados, pelo que, faltando a matéria de facto provada, falta um dos pressupostos necessários de julgamento, ignorando-se e não sendo possível conhecer se foi aplicado bem ou mal o Direito correspondente. Aliás, tal procedimento também impede as partes de cabalmente argumentarem na defesa das suas posições (nomeadamente, impugnando a decisão sobre a matéria de facto) porquanto desconhecem a convicção do Mmº Juiz a quo, restando-lhes supor que factos terá considerado como provados para concluir como o fez.
Deste modo, sendo a omissão total o grau máximo da deficiência, deve considerar-se oficiosamente nulo, nos termos do artº 712º/4 do CPC, o saneador-sentença recorrido, devendo ser proferida nova decisão, fixando-se os factos provados com cumprimento integral do artº 659º do CPC.
Consequentemente, prejudicado fica o conhecimento da questão suscitada no presente recurso e supra enunciada.
Em conclusão:
Sendo a omissão total o grau máximo da deficiência, deve a Relação anular oficiosamente, nos termos do artº 712º/4 do CPCivil, o saneador-sentença que não indica a matéria de facto.


V – DECISÃO

Nesta conformidade e pelos fundamentos expostos, acordam em anular o saneador-sentença recorrido em ordem à fixação, na 1ª instância, da matéria de facto e prolação de nova decisão que proceda à sua subsunção ao direito, com o que fica prejudicado o conhecimento do recurso.

Sem custas. 

(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)

 Lisboa, 27 de Outubro de 2009

Maria José Simões                                                  
                                                         
Maria da Graça Araújo
                                                                                                            José Augusto Ramos
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[1] Cfr. artº 684º nº 3 e 690º do CPC, bem como os Acs do STJ de 21/10/93 (CJ-STJ de 3/93, 81) e 23/05/96 (CJ-STJ, 2/96, 86).