Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9216/2003-9
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: INTERNAMENTO
TOXICODEPENDENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.ª Secção Criminal de Lisboa:

I.
No processo de internamento compulsivo n.º 8430/03.0 TBOER do 2º Juízo Criminal de Oeiras, JP e P vieram requerer o internamento compulsivo do seu filho M nos termos da Lei 36798 de 24/7.
O M.º Juiz titular dos autos indeferiu liminarmente ao requerido por entender que a toxicodependência aludida pelos requerentes não constitui fundamento do internamento.
Notificados de tal decisão vieram os requerentes suscitar a nulidade de tal despacho por omissão dos exames periciais psiquiátricos requeridos e previstos.
Tal requerimento mereceu do Mº Juiz Titular dos autos o seguinte despacho:
“Por manifesta improcedência, indefere-se ao requerido.
Notifique.”
Inconformados com esta decisão, vieram os recorrentes interpor recurso da mesma (bem como do despacho relativamente ao qual foi arguida a nulidade), com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
“9.º
Pelas regras da experiência comum, inferem os requerentes que o seu filho não tem um comportamento que se enquadre no normal comportamento psíquico de um adulto, atribuindo tal comportamento a um grave desequilíbrio mental provocado pelo consumo de estupefacientes.
10.º
É da mesma forma, do conhecimento público, que o consumo de estupefacientes, designadamente de drogas "duras', provoca uma série de desequilíbrios mentais, provocando, inclusive, anomalias psíquicas.
11º
Os bens de vizinhos dos requerentes encontram-se em risco, e os requerentes já suportaram economicamente, a verificação material desse risco, de modo a poderem andar de "cara limpa" perante os vizinhos que foram furtados.
12.°
Os requerentes já sofreram fisicamente, com os distúrbios que o consumo, ou a falta dele, de estupefacientes provocou no internando.
13.°
Foi negado aos requerentes/pais o direito natural de providenciar pelo bem estar e saúde do seu filho, o internando. Direito esse, que sendo reposto, poderá concluir, com o início da recuperação psíquica, de que o internando sofre, bem como recuperar um homem para a vida.
14.°
Deverá ser declarado nulo o despacho exarado a fs. 27 e ordenada a execução de exames clínico-psíquiatricos ao internando, aferindo-se da existência ou não de anomalia psíquica por parte do internando, que sofre de grave distúrbio mental provocado pelo consumo de estupefacientes.
Conclui pela declaração de nulidade do despacho de fls. 27 e seja ordenada a execução dos exames clinico-psiquiátricos.
O Mº Juiz titular dos autos não admitiu por extemporâneo o recurso do despacho de indeferimento liminar (não admissão transitada em julgado) mas admitiu o relativo ao despacho de fls. 33 supra transcrito.
O Magistrado do Mº Pº junto do tribunal a quo respondeu ao recurso concluindo:
“3.1. 0 recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do art° 428° n° 2 do C. P. Penal;
3.2.Impunha-se por isso ao recorrente que, nas conclusões da sua motivação - além de resumir as razões do pedido ( n° 1 do art° 412° do CPP) - cumprisse o preceituado nas alíneas a), b) e c) do n° 2 do art° 412° citado, sob pena de rejeição;
3.3. Não o fez e, só por isso, deve rejeitar-se o recurso - a menos que o recorrente supra a deficiência apontada, para o que deve ser convidado.
3.4. É manifesta a improcedência do recurso que, também por isso, deve ser rejeitado - art° 420°, n° 1 do C. P. Penal;”
Termina por pedir a confirmação a decisão recorrida.
Neste tribunal superior, a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta lavrou parecer no qual propugna pela procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 CPP.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
A questão suscitada no presente recurso resume-se a saber se o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de internamento está ferido de alguma nulidade nomeadamente por não ter ordenado os exames psiquiátricos requeridos pelos recorrentes.
Nos termos do art. 12º da Lei 36/98 de 24/7 é susceptível de ser sujeito a medida de internamento
“1 — O portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado.
2 — Pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado.”
Resumem-se, deste modo, os pressupostos do internamento a:
- verificação de que o sujeito se encontra afectado de anomalia psíquica;
- emergência de uma situação grave para os bens jurídicos,
- recusa de o portador da anomalia se submeter a tratamento.
Nos termos do art.º 14º dessa mesma lei o requerimento, dirigido ao tribunal competente, é formulado por escrito, sem quaisquer formalidades especiais, devendo conter a descrição dos factos que fundamentam a pretensão do requerente e, sempre que possível, o requerimento deve ser instruído com elementos que possam contribuir para a decisão do juiz, nomeadamente relatórios clínico-psiquiátricos e psicossociais.
Conjugando essa mencionada possibilidade com a obrigação, decorrente do estatuído no art.º 16º n.º 1 do mesmo diploma legal, de o juiz, oficiosamente, determinar a avaliação clinico psiquiátrica do internando (sendo que esta avaliação só pode ser prescindida pelo juiz quando a verificação da anomalia psíquica foi constatada no decurso de internamento voluntário em curso, o que parece não ser o caso), tanto mais que o juízo técnico cientifico inerente à avaliação clinico psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz, resulta forçosamente que o despacho que indeferiu liminarmente o internamento se encontra afectado de uma nulidade, a decorrente da não realização dessa avaliação clinico psiquiátrica.
A não realização dessa avaliação, na medida em que era obrigatória e essencial para a determinação se o internado era portador de anomalia psíquica, traduz-se na falta de inquérito, em suma, a nulidade constante do art.º 119º al. d) CPP aplicável ao abrigo do art.º 9º da Lei 36/98 de 24/7.
Tal nulidade tem por efeitos os mencionados no art.º 122º n.ºs 1 e 2 CPP arrastando nos seus efeitos de invalidade quer o despacho ora em recurso quer o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de internamento, o qual deve ser substituído por outro que, dando cumprimento ao disposto nos art.ºs 15º n.º 1 e 16º n.º 1 da Lei 36/98, dê continuidade o processo.

III.
Por todo o exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, declaram-se inválidos os despachos de fls. 33 dos autos bem como o de fls. 25, o qual deve ser substituído por outro nos termos e com as finalidades acima mencionados.
Sem custas.

Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2004.
João Carrola
Silveira Ventura
Carlos Benido