Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
142/10.4IDSTB-A.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº A constituição de arguido e o termo de identidade e residência constituem actos processuais com carácter próprio e pessoal tão acentuado - porque deles emergem direitos e deveres - que a sua aceitação, em representação da insolvente/arguida, exorbita a natureza exclusivamente patrimonial das funções do administrador de insolvência.
IIº Assim, não cabe no âmbito das funções do administrador de insolvência, aceitar a constituição como arguido e assinar o termo de identidade e residência, em representação de pessoa colectiva insolvente, em processo cuja responsabilidade criminal resulta de factos anteriores ao processo de insolvência;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

O Juiz de Instrução Criminal da Comarca do Seixal proferiu o seguinte despacho:
“ Vem A… requerer que não seja considerado representante legal da sociedade B…, SA, porquanto apenas tem a qualidade de Administrador da Insolvência daquela sociedade.
Relativamente ao requerido, pronunciou-se o Ministério Público nos termos de fls. 55 e ss., posição que corroboramos e que se dá, para todos os efeitos, como reproduzida.
Assim, indefiro a pretensão do requerente que deverá manter a qualidade de representante legal da arguida.
Notifique”.
O despacho que antecede só se entende se aqui deixarmos a seguinte promoção do Ministério Público:
“ Por intermédio do requerimento de fls. 35 a 44, dirigido ao Mm.º Juiz de Instrução, A…, liquidatário judicial nomeado à arguida "B…, S.A.", requereu que seja proferido despacho a considerar que não representa a sociedade arguida para efeitos penais, devendo, para esses efeitos, ser considerados responsáveis os gerentes à data dos factos.
Para o efeito alega, em síntese, que a dissolução da sociedade apenas transfere para o liquidatário (administrador de insolvência) os poderes de administração e disposição de bens.
Aqui chegados, importa salientar, como decorre de resto de f1s. 27, que quem prestou TIR foi a sociedade arguida, e não o requerente como referiu.
Por outro lado, desde já se refere que não concordamos com a posição perfilhada pelo requerente.
Com efeito, a declaração de falência de uma sociedade leva a que se passe a uma outra fase, isto é, à fase em que se procede à liquidação da sociedade.
Ora, enquanto não se encontrar encerrada a fase de liquidação, incumbe ao administrador da insolvência representar a todos os níveis a sociedade.
Com efeito, e embora um determinado processo-crime possa, como é normal acontecer nestas situações, correr termos por factos anteriores, o que é facto é que, por a sociedade ser pessoa distinta dos seus sócios e/ou gerentes, a decisão a proferir no âmbito criminal produz efeitos na sua esfera jurídica, o que poderá, inclusive, ter repercussões ao nível da fase de liquidação, com a aplicação, por exemplo, de uma pena de multa.
Acresce que, fruto da declaração de falência, nesta fase os sócios e/ou gerentes à data dos factos em regra já não têm interesses coincidentes com os da sociedade, preocupando-se com a sua defesa mas sendo indiferentes às consequências para a sociedade.
Não se descura que o facto dos liquidatários representarem as sociedades no âmbito de processos-crime lhes possa acarretar prejuízos e incómodos.
Contudo, afigura-se-nos que apenas eles as poderão representar nesta fase, como se nos afigura decorrer dos seguintes acórdãos analisados: Ac. RL, Processo n.º 7867/2008-3, de 20-07-2009, e Ac. STJ, Processo 06P2930, de 12.10.2006, ambos in www.dgsi.pt..
Por se entender pertinente, e para terminar, passa-se a transcrever a seguinte parte do aludido acórdão do STJ:
«( ... ) Com efeito, pese embora a declaração de falência, resta um espesso «substrato» da sociedade em causa, circunstância que, à saciedade, impede que se defenda que da pessoa jurídica, nada mais resta, tal como de pode afirmar da pessoa do ser humano após a morte.
De resto, como bem salienta o recorrente, por força do disposto no art. 141º°, nº 1 e), art. 146º, nº 2 e art. 160º, nº 2, todos do CSC, se é certo que as sociedades comerciais se dissolvem pela declaração de falência, o certo é que, ao invés das pessoas singulares cuja personalidade cessa com a morte - art.º 68.º, n.º 1, do Código Civil ­aquelas mantêm a personalidade jurídica na fase da sua liquidação, considerando-se apenas extintas pelo encerramento dessa liquidação.
E, como aponta o mesmo recorrente podem, nesse interim, ser objecto de vicissitudes várias, entre elas o reatamento da actividade nas condições previstas na lei.
Nem se diga, como o faz a recorrida, que decisão contrária à impugnada não tem qualquer efeito.
As penas previstas para as sociedades comerciais são, naturalmente, de natureza não pessoal, em geral, sanções pecuniárias. Como tal, quando existam, podem e devem ser levadas em conta, no momento da liquidação, assim atingindo o objectivo para que foram previstas, o que reforça a demonstração de que a falência da sociedade não pode para o efeito em causa, ser equiparada à morte da pessoa singular, já que, em relação a esta, pena alguma pode surtir efeito após esse evento fatal do ser humano.
Por outro lado, improcede o argumento invocado pelo tribunal recorrido, segundo o qual «a eventual condenação da arguida pelo crime imputado não teria qualquer consequência a nível da sua actividade», pois, inter alia, a real possibilidade supra referida de retoma dessa mesma actividade não obstante a declaração de falência, aliada aos eventuais futuros efeitos da condenação penal, nomeadamente para efeitos de reincidência e (ou) sucessão de crimes e suas consequências jurídicas, mostram justamente o contrário. ( ... )”.
Pelo exposto, o Ministério Público promove que se indefira o requerido”.
Inconformado, o Administrador de Insolvência interpôs recurso do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal do Seixal, formulando as seguintes conclusões:
“ 1) Em 18 de Fevereiro de 2010 foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade por quotas "B…, SA" ­conforme anúncio publicado no Diário da República, II Série, em 2 de Março de 2010, cuja cópia se juntou como doc.1. no requerimento de fls. 35 a 44.
2) Em 10 de Fevereiro de 2011, porque para isso foi notificado, o recorrente deslocou-se às instalações da Direcção de Finanças de S... para prestar TIR no âmbito dos presentes autos, na qualidade de representante da sociedade por quotas referida, pelo simples motivo que é o seu Administrador de Insolvência, tendo esta sido constituída arguida naquela data, na pessoa do ora recorrente.
3) Decerto que os factos que motivaram a abertura de inquérito nos presentes autos são anteriores à nomeação do ora recorrente como Administrador de Insolvência da sociedade arguida.
4) Sendo a qualidade de Administrador de Insolvência adquirida por nomeação judicial com o intuito de dispor e administrar os bens da sociedade, isto é, disposição de carácter patrimonial, entende o ora recorrente não ter legitimidade para representar a sociedade arguida na medida em que a representação exigida e conferida nos presentes autos de processo-crime é de natureza pessoal e não estritamente patrimonial - o que, como se disse, extravasa manifestamente as competências e deveres legais de um Administrador de Insolvência.
5) O recorrente discorda da sua constituição como representante da sociedade arguida, visto a única ligação entre este e a referida sociedade por quotas residir no facto de o mesmo se encontrar investido na qualidade de Administrador de Insolvência da mesma.
6) Resulta expressamente dos n.os 1 e 4 do art. 81º e do n.º 1 do art. 82º do C.I.R.E. que a dissolução da sociedade apenas transfere para o liquidatário (administrador de insolvência) os poderes de administração e disposição de bens e isto não passa por constituir este como representante da sociedade arguida.
7) Quando se opera a falência de uma sociedade a fase seguinte é a de liquidação da mesma; nos termos do art. 164 do CIRE, cabe ao administrador de insolvência escolher a modalidade da venda e ir administrando e dispondo dos bens da sociedade até que a liquidação da mesma se conclua.
8) É este o poder do administrador de insolvência - como já se disse anteriormente - poder de disposição de natureza patrimonial.
9) Enquanto não se encontrar encerrada a fase de liquidação, incumbe efectivamente ao administrador de insolvência representar a sociedade não a todos os níveis, como se afirma no despacho recorrido, mas somente a nível patrimonial.
10) A função primordial do administrador de insolvência é a liquidação do património do devedor, se outra não for a intenção dos credores manifestada num plano de insolvência (art.192º CIRE).
11) Embora tenha sido a sociedade B…, SA a ser constituída arguida, e o ora recorrente seu representante legal, a verdade é que, materialmente, esta representação imputa na esfera jurídica do representante todos os direitos e deveres do arguido.
12) Sendo a prática dos alegados factos anterior à sua nomeação como administrador de insolvência e se este em nada participou nem teve qualquer intervenção, não pode trazer qualquer esclarecimento para o processo nem tão-pouco contribuir para uma efectiva defesa da sociedade arguida.
13) Não sendo o recorrente formalmente arguido, a verdade é que a partir do momento em que prestou TIR, enquanto legal representante da sociedade, é a ele que cabe representá-la em todos os actos em que esta tem de comparecer enquanto arguida.
14) O que, bem se compreende não pode ser!
15) Diga-se, de passagem, que já existe, inclusivamente, jurisprudência sustentando a impossibilidade de o Administrador de Insolvência prestar TIR em lugar da sociedade arguida, mesmo quando o M.P. e o próprio tribunal entendem que, para todos os efeitos, é o seu representante legal (cf. despacho proferido no âmbito do processo nº 114/05.0IPLSB, que corre termos na 1ª secção do 5º juízo do Tribunal Criminal de Lisboa - e que se acha já parcialmente transcrito no corpo do presente recurso).
16) A função primordial do administrador de insolvência é a liquidação do património do devedor, se outra não for a intenção dos credores manifestada num plano de insolvência (art.192º CIRE).
17) Nos termos do art. 81º do CIRE, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente passando estes a competir ao administrador de insolvência.
18) O administrador assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
19) Podemos então concluir que o administrador de insolvência passa a ser legal representante da sociedade para todos os efeitos de carácter patrimonial, não cuidando a lei de lhe impor também a representação da sociedade para efeitos de natureza pessoal, como seja a sua representação como arguida em processo penal.
20) Se é verdade que, em abstracto, o presente processo criminal, por ser a arguida uma pessoa colectiva, apenas importará consequências patrimoniais, em concreto, quanto ao seu representante legal, aqui recorrente, o mesmo não pode ser dito.
21) Com efeito, existem efectivamente efeitos pessoais (para o recorrente), como p. ex: a obrigação de sujeição a termo de identidade e residência implica, nos termos da alínea b) do nº 3 do art. 196º do Código de Processo Penal que o ora recorrente - na sua condição de, para efeitos do processo criminal em apreço, representante legal da arguida ­não possa mudar de residência ou dela se ausentar por mais de 5 dias, sem que comunique a nova residência ou lugar onde possa ser encontrado.
22) Acresce que, como é sabido, e está plasmado no nº 3 do art. 61º do CPP, enquanto legal representante da arguida, o ora recorrente encontra-se sujeito a uma série de deveres.
23) Ainda que não constituído formalmente, tem o recorrente na prática o estatuto de arguido estando por isso sujeito ao regime vertido no art.61º do C.P.P.
24) A título meramente exemplificativo, tem, nos termos da alínea f) do nº 1 do art. 61 do CPP, direito a constituir advogado.
25) Além do mais o recorrente, enquanto representante da sociedade arguida, tem o dever de comparecer perante o Juiz, M.P. ou órgãos de polícia criminal, sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido devidamente convocado - alínea a) do nº 3 do art. 61º do CPP.
26) É ainda de ter em conta todos os incómodos e óbvios prejuízos para o exercício da sua actividade profissional, até porque o objectivo de tais deveres tem o propósito de esclarecer as autoridades dos factos em apreço e sendo a prática dos mesmos anterior à sua nomeação como administrador de insolvência, é natural que o recorrente nada possa esclarecer.
27) Não é admissível, tratando-se a arguida de uma pessoa colectiva, que se reflicta no administrador de insolvência todos os direitos e deveres de arguido e respectiva medida de coacção de TIR, pois não obstante formalmente assim não se possa considerar, materialmente e na prática assim sucede, o que não deixa de ser uma forte e incompreensível limitação à actividade desempenhada pelo recorrente, a qual tem inegável interesse público.
28) E se é verdade que a decisão judicial que venha a ser tomada, no âmbito dos presentes autos, será sempre exclusiva à sociedade B…, SA (arguida), como supra se deixou já bem claro, em concreto o ora recorrente, enquanto legal representante daquela, vê-­se onerado com as obrigações decorrentes da qualidade de arguida que aquela detém.
29) Por definição, toda e qualquer medida de coacção, só pode ser sofrida por aquele que for constituído arguido em processo penal, ora sendo a pessoa colectiva é uma ficção jurídica, qual ser etéreo, quem tem como resultado prático o facto das obrigações impostas pelo TIR, bem como dos deveres constantes do estatuto de arguida serem sofridos pelo seu representante legal, que, inegavelmente, são limitadores da sua liberdade.
30) Por outro lado, ainda no âmbito da presente problemática, deve ser respigado o modelo da responsabilidade penal das pessoas colectivas constantes do art.º 11º do Código Penal e que foi também ignorado pelo despacho recorrido.
31) Segundo Germano Marques da Silva "o art. 11º do Código Penal parece assentar a responsabilidade da pessoa colectiva na acção e culpa das pessoas físicas que, ocupando uma posição de liderança, agem em nome dela, partindo da ideia de que essas pessoas físicas não são distintas da sociedade pelo que ao agirem é a própria pessoa colectiva que age. Ora, a partir do pressuposto que as infracções são cometidas pelas pessoas que na pessoa colectiva ocupem uma posição de liderança, parece ser condição necessária da responsabilidade das pessoas colectivas que os titulares dos seus órgãos, os seus representantes ou outras pessoas que nela tiverem autoridade para exercer o controlo da sua actividade tenham praticado um crime. Não parece exigir que essas pessoas físicas sejam efectivamente condenados, mas, numa interpretação literal do texto, é necessário que pelo menos seja apurada a culpa dessas pessoas físicas que actuam em nome e no interesse da pessoa colectiva".
32) Por outro lado, e agora de uma perspectiva constitucional, nem a lei, nem o Julgador podem emitir ou interpretar normas incompatíveis com os direitos fundamentais, por violação de liberdades e garantias constitucionais sob pena da sua inconstitucionalidade.
33) Se é certo que o direito à liberdade não é um direito absoluto, admitindo restrições, estas estão previstas e justificadas constitucionalmente, não podendo a lei criar outras (art.º 27º nº 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa).
34) Quaisquer restrições ao direito à liberdade, enquanto direito fundamental, integra também a categoria dos "direitos, liberdades e garantias" previstos no art.º 18º nº 2 e 3 da C.RP.
35) A liberdade tal como se encontra constitucionalmente consagrada naquele preceito reveste diversos graus de intensidade de confinamento, que só podem ser restringidas nos casos previstos no nº 1 e 2 do art. 27º da C.RP.
36) Esse carácter mais abrangente do direito à liberdade previsto constitucionalmente assegura que ninguém pode ser limitado na sua liberdade injustificadamente, sendo certo que qualquer medida de coação é uma limitação à liberdade individual, pelo que não podemos deixar de daí retirar consequências para o caso em apreço.
37) Com efeito a limitação de movimentos imposta ao recorrente como consequência de, por seu intermédio, ter sido aplicada a medida de coacção de TIR à arguida, apresenta-se-nos como manifestamente violadora dos referidos nºs 1 e 2 do art. 27º da C.RP., sendo ainda violador dos mais elementares direitos, liberdade e garantias ínsitos nos art.º 18º nº 1 e 2 da C.RP.
38) Ora, a interpretação que o tribunal recorrido faz do nº 4 do art. 81º e 55º nº 1 al. a), ambos do C.I.R.E. segundo a qual a o administrador de insolvência assume não só a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência, mas também assume a representação da pessoa colectiva para efeitos de natureza pessoal, designadamente, representação em processo crime, sujeitando-se às obrigações adstritas à qualidade de arguida da sociedade insolvente, é inconstitucional por violação dos art.º 18º nº 1 e 2 e 27º nºs 1 e 2 da C.R.P - inconstitucionalidade que, para os devidos efeitos, desde já se invoca.
39) Assim, considera o recorrente que a interpretação conjugada dos artºs. 81º nº 4 e 55º nº 1 al. a) e b) do CIRE apenas atribuem efeitos de disposição de natureza patrimonial ao administrador de insolvência e não também efeitos de natureza pessoal (nos quais se insere a representação para efeitos penais)”.
O MP veio responder ao recurso (embora não se saiba como conclui, em virtude de faltar uma folha na certidão que foi extraída pela tribunal a quo).
O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
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III – Fundamentação
O despacho recorrido adere integralmente à promoção do Ministério Público. De resto, o despacho é só isso, um como se promove mais alargado. O juiz a quo não olhou com olhos de ver para a promoção. Pareceu-lhe bem e aderiu. Porque, se a tivesse visto, facilmente verificaria que o Ministério Público ainda está no tempo das falências e dos liquidatários judiciais.
O Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) é de 2004 e este recurso trata de uma declaração de insolvência e não de falência (CPEREF).
Agora – melhor desde 2004 – fala-se de administradores de insolvência e já não de liquidatários judiciais.
Aqui chegados, a promoção – só nos interessa na medida em que foi acolhida e reproduzida pelo despacho cego do tribunal a quo – não tem qualquer fundamento minimamente válido. Porque aborda um regime – o do CPEREF – que nada tem a ver com a situação em apreço, a ser apreciada à luz do CIRE.
Apreciemos então o recurso e a sua motivação.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente – art.º 1.º, do CIRE (aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de Março), de onde serão os restantes artigos em que se não fizer menção ao respectivo diploma).
Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – art.º 81.º, n.º 1.
A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo – art.º 46.º, n.º 1.
O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – art.º 81.º, n.º 4.
1 - Os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, mas os seus titulares não serão remunerados, salvo no caso previsto no artigo 227.º, podendo renunciar aos cargos com efeitos imediatos.
2 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.
3 - Compete unicamente ao administrador da insolvência a exigência aos sócios, associados ou membros do devedor, logo que a tenha por conveniente, das entradas de capital diferidas e das prestações acessórias em dívida, independentemente dos prazos de vencimento que hajam sido estipulados, intentando para o efeito as acções que se revelem necessárias – art.º 82.º.
Esta a Lei.
Basicamente: (i) o processo de insolvência visa a liquidação da massa insolvente para repartir o respectivo produto pelos credores; (ii) o administrador da insolvência – que é apenas um órgão da insolvência – assume a representação da insolvente tão-somente para os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência; e (iii) os órgãos sociais da insolvente mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência.
Ora, in casu, é da responsabilidade criminal da insolvente que se trata. Por factos seguramente anteriores ao processo de insolvência.
Não é função do administrador de insolvência andar de tribunal em tribunal ou de repartição de finanças em repartição de finanças a assinar termos de identidade e residência. O administrador de insolvência é um profissional nomeado pelo juiz da insolvência. Não tem qualquer ligação pessoal à insolvente. E esta questão leva-nos ao termo de identidade e residência:
1 - A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado nos termos do artigo 250.º
2 - Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.
3 - Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento:
a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º
4 - A aplicação da medida referida neste artigo é sempre cumulável com qualquer outra das previstas no presente livro – art.º 196.º, do CPP.
Como todo o verdadeiro direito público, tem o direito processual penal na sua base o problema fulcral das relações entre o Estado e a pessoa individual e da posição desta na comunidade”(…) “A via para um correcto equacionamento de evolução do processo penal nos quadros do Estado de Direito material deve partir do reconhecimento e aceitação da tensão dialéctica inarredável entre a tutela dos interesses do arguido e tutela dos interesses da sociedade representados pelo poder democrático do Estado - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, pgs. 33 e 50.
Nem sequer já nos atrevemos a citar Locke ou Hobes e afirmar que todos nós somos outorgantes de um contrato social pelo qual assumimos direito e deveres e que o compromisso de lealdade para com o Estado deve estar inscrito em cada cidadão. Porém, mais prosaicamente, diremos que o arguido que deu a sua residência no processo cumpriu, também, uma obrigação de informação a que o Estado vai corresponder informando-o, no mesmo local indicado, de toda a decisão que possa afectar os seus interesses – Acórdão do STJ n.º 6/2010 (de fixação de jurisprudência).
Dispõe o art.º 60.º, do CPP, que desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e de deveres processuais, sem prejuízo da aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei, sendo que a constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe (art.º 58.º, n.º 2, do CPP). É, antes do mais, uma posição processual: fica o arguido a saber que é visado num processo-crime. Por isso é titular de direitos e deveres específicos.
Ora, aqui chegados, é óbvio que a assinatura do termo de identidade e residência, mesmo em representação de uma pessoa colectiva, tem muito de próprio, que claramente extravasa o âmbito das funções exclusivamente patrimoniais do administrador de insolvência.
O administrador de insolvência não é nomeado para assumir, em nome da insolvente, a tal dialéctica processual penal com o Estado, entre a tutela dos interesses da arguida e os do poder democrático. O administrador de insolvência não representa, para tais efeitos, os interesses da insolvente, cabendo-lhe apenas preservar a massa insolvente, a sua liquidação e distribuição do produto pelos credores. O administrador de insolvência não está em condições de, em nome dos interesses da insolvente, assumir qualquer compromisso de lealdade com o Estado, vinculando-se com obrigações e assumindo direitos a que manifestamente é alheio.
A constituição de arguido e o termo de identidade e residência constituem importantes actos processuais, em que, pelo lado do arguido, faz emergir um conjunto de obrigações e direitos de carácter processual penal. Que são próprios do arguido. Não se vê como o administrador de insolvência possa assumir tais vestes. Não tem qualquer ligação pessoal com a insolvente. Só a representa para efeitos da insolvência. Como pode um administrador de insolvência assumir, por exemplo, o dever de se não ausentar do seu domicílio (seja profissional, seja pessoal) sem avisar o Tribunal onde corre um processo-crime contra a insolvente? E se o administrador de insolvência for removido do cargo? Como pode manter tais obrigações de carácter processual penal?
Dir-se-á, todavia, que a condenação da insolvente em multa criminal tem efeitos de carácter patrimonial. É certo. E, por isso, não obstante entender-se que o TIR não possa ser assinado pelo administrador de insolvência, nada impede que constitua mandatário para defesa da massa insolvente no processo-crime.
Em síntese, a constituição de arguido e o termo de identidade e residência constituem actos processuais com carácter próprio e pessoal tão acentuado - porque deles emergem direitos e deveres - que a sua aceitação, em representação da insolvente/arguida, exorbita a natureza exclusivamente patrimonial das funções do administrador de insolvência. Porém, nada impede, se a defesa da massa insolvente o justificar, que o administrador constitua mandatário para evitar condenações em multa ou em pedidos de indemnização cível.
Procede assim o recurso, pelo que deve o tribunal a quo comunicar à Direcção de Finanças de S... que o administrador de insolvência A… não representa a arguida B…, SA, para efeitos de aceitação da constituição de arguido e sujeição a termo de identidade e residência.


IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, e em consequência se determina que o tribunal a quo comunique à Direcção de Finanças de S... que o administrador de insolvência A… não representa a arguida B…, SA, para efeitos de aceitação da constituição de arguido e sujeição a termo de identidade e residência no âmbito do NUIPC 142/10.4IDSTB.
Sem custas.

Lisboa, 13 de Setembro de 2011

Relator: Paulo Barreto;
Adjunto: Margarida Blasco;