Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1208/09.9YRLSB-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2009
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: LEVANTAR O SIGILO BANCÁRIO
Sumário: I- O segredo bancário regulado actualmente no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro, pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses.
II- Por um lado, um interesse de ordem pública, atinente ao regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança e bom funcionamento da economia.
III- Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada ancorando-se no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26º nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
IV- Porém, esse direito ao sigilo, não é um direito absoluto, podendo, pois, ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.
(LS)
Decisão Texto Integral: 1. N..., por apenso à acção de divórcio litigioso que lhe é movida pelo seu marido E...., requereu, no dia 15.01.2009, procedimento cautelar de arrolamento, pedindo, que, sem prévia audiência do Requerido, se procedesse ao arrolamento, para além do mais, do seguinte:
- Conta bancária n° ...., do M....., balcão ...., freguesia de ...., na titularidade do Requerido E....;
- Contas bancárias à ordem e a prazo e contas de carteiras de títulos (acções e obrigações), na titularidade do Requerido E... em conta individual, conjunta ou solidária com outros titulares, designadamente os pais do Requerido MS e ML, no M..., balcão de ...., na freguesia de .....
Pediu ainda que se mandasse notificar o M...., balcões de ...., na freguesia de .... para indicar o número das contas arroladas e os montantes arrolados, nos precisos termos previstos no art° 861-A do C.P.C., aplicável "ex vi" do n° 5 do art° 424 do mesmo diploma.
Ouvido o requerido, que deduziu oposição, e notificadas diversas instituições financeiras e bancárias que, na generalidade vieram informar que o requerido não era cliente delas, veio o M.... informar que considerava “…NAO PODER ENTREGAR OS ELEMENTOS, SOLICITADOS POR V/EXA., POR ENTENDER QUE OS MESMOS SE ENCONTRAM ABRANGIDOS PELO DEVER DE SEGREDO BANCÁRIO A QUE ESTA OBRIGADO NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ART° 78 DO DECRETO LEI N°298/92 DE 31 DE DEZEMBRO, NA REDACÇAO INTRODUZIDA PELO DEC.LEI N°201/2002 DE 26 DE SETEMBRO, E POR NAO TER SIDO INDICADA LEGISLAÇÃO QUE NOS EXCEPCIONE DESSE DEVER
CONTUDO PORQUE SEMPRE FOI PROPÓSITO DO BANCO ...., SA., COLABORAR COM AS AUTORIDADES JUDICIARIAS NA ESTRITA OBSERVÂNCIA DAS DISPOSIÇOES LEGAIS APLICAVEIS, ROGAMOS, RESPEITOSAMENTE A V/EXA., QUE SE DIGNE ACLARAR ESTE V/OFICIO PORQUANTO:
A) NO CASO DE V.EXA. CONSIDERAR ILEGÍTIMA A ARGUMENTAÇÃO EXPENDIDA POR ESTA INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO CONSIDERANDO QUE NAO ESTA OBRIGADA A OBSERVAR SIGILO BANCÁRIO SOBRE OS ELEMENTQS SOLICITADOS ORDENANDO A APRESTAÇAO DAQUELAS INFORMAÇÕES, ENTAO O BANCO ...., S.A., CUMPRIRÁ A REFERIDA DILIGENCIA PORQUE A ISSO ESTA OBRIGADO PELO N°2 DO ART°135° DO CODIGO DO PROCESSO PENAL.
B) NA EVENTUALIDADE DE V/EXA. CONSIDERAR QUE, NO CASO EM ANÁLISE, IMPENDE SOBRE O BANCO ...., S.A., UM DEVER DE SIGILO QUE CUMPRE REMOVER, DISPENSANDO-O DE O OBSERVAR, ENTÃO O BANCO FICARA A AGUARDAR QUE A QUESTAO SEJA SUSCITADA E RESOLVIDA NO TRIBUNAL IMEDIATAMENTE SUPERIOR EM CONFORMIDADE COM O N'º 3 DO PRECEITO LEGAL ANTERIORMENTE CITADO. (…)” (fls. 163).
Sobre o exposto pelo M...., o Tribunal Judicial da Lourinhã veio a proferir o seguinte despacho:
“Atento o disposto nos artigos 78º e 79º do RGICSF, as informações solicitadas ao M... estão cobertas pelo dever de sigilo bancário, pelo que a recusa em fornecer tais informações é legítima.
Apesar de estarmos no âmbito de um processo de índole cível, o que é certo é que o art. 519º, n.º 4, do Código de Processo Civil, remete para a Lei processual penal, sendo que, nos termos do art. 135º n.º 3, do Código de Processo Penal (acolhendo-se a doutrina que se extrai do Acórdão n.º 2/2008, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR 1 Série de 31/03/2008), sendo a recusa legítima - como é -, nos casos em que a questão seja suscitada num Tribunal de 1ª Instância, caberá ao Tribunal da Relação decidir acerca da prestação da informação sujeita a sigilo com quebra do mesmo.
De notar que a prestação de tal informação se revela essencial para a justa composição do litígio, uma vez que foi peticionado o arrolamento de contas bancárias de que o requerido seja titular ou contitular.
Assim sendo, desapense o presente processo e subam os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 135º, n.º 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 519º, nº 4, do Código de Processo Civil.”
3. Cabe apreciar o incidente de levantamento ou quebra do sigilo bancário oficiosamente suscitado, o que se faz nos termos do art. 705º do CPC, dada a simplicidade do mesmo e a jurisprudência existente relativamente a casos idênticos ou a ele reconduzíveis, designadamente a constante do acórdão do o STJ de 21.03.2000, publicado no BMJ nº 495, p. 288 e seguintes e do acórdão desta Relação de 5.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, tomo 2, p. 71.
3.1. Para a apreciação do incidente em causa importa realçar a factualidade resultante do relatório que antecede e ainda que:
- Requerente e requerido são casados um com o outro, segundo o regime de bens da comunhão de adquiridos;
- Está pendente acção de divórcio litigioso para dissolução do casamento deles.
3.2. Como é sabido, o segredo bancário regulado actualmente no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro, pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses.
Por um lado, um interesse de ordem pública, atinente ao regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos.
Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário (excepto, a nosso ver, quando relativo a pessoas colectivas) se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26º nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Porém, esse direito ao sigilo, pese embora a cobertura constitucional que deve merecer (a nosso ver, todavia limitado às pessoas singulares) não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas singulares, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário (cfr. Acórdão do STJ nº 2/2008, publicado no DR, 1ª Série, de 31.03.2008 e Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª ed., p. 253).
Posto isto, vejamos.
O art. 78º do Decreto-lei nº. 298/92, de 31 de Dezembro, consagra-se um dever de segredo, aos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, aos seus empregados, mandatários, e outras pessoas que lhes prestem serviços, a título permanente ou ocasional, não podendo revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções.
Os factos ou elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos da lei penal e de processo penal, conforme dispõem os arts. 80º e 84º do mesmo diploma legal. Por seu turno, o art. 519º do CPC., consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade, determinando o seu nº.1 que, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados, estabelecendo o seu nº.2 as inerentes sanções para tal recusa.
Todavia, o nº 3 do mesmo normativo, após enunciar as situações em que a recusa é legítima (nomeadamente, quando importa a violação da integridade física ou moral das pessoas, intromissão na vida privada, familiar, no domicílio, correspondência, violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou de segredo de Estado) remete para as regras do processo penal a verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado, nos termos do nº4 do preceito.
Ora, o art. 135º do CPP, para o qual remete o nº 4 do citado art. 519º do CPC., refere que, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos, do que deriva o dever de sigilo bancário constituir um dever de segredo profissional.
Só que, face a um potencial conflito de interesses – observância do segredo bancário, por um lado, e, por outro, o dever geral de colaboração com a administração da justiça – há que ponderar, séria e casuisticamente, qual deve prevalecer.
Como refere Lopes do Rego, “ é manifesto que o tribunal superior ao realizar o juízo que ditará o interesse que, em concreto, irá prevalecer, carece de actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “maxime ” o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão. (….); assim, por exemplo, poderá configurar-se como perfeitamente adequado que, numa acção que verse sobre direitos fundamentais, ou que contenda, em termos decisivos, com a sobrevivência económica da parte, o tribunal decida quebrar o sigilo bancário; pelo contrário, tal dispensa poderá não se configurara já como adequada e proporcional, v. g., quando se trate de vulgar acção de cobrança de dívida comercial, de valor pouco relevante para a empresa credora” (Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., I, p. 457/458).
Acresce que, nem todos os deveres de sigilo poderão ter a mesma relevância e intensidade: é claro que estando associado à reserva da esfera pessoal íntima do visado, como acontece em certas situações de segredo médico, a quebra desse dever é muito menos de admitir do que em situações da vida privada, mas com relação apenas aos seus aspectos patrimoniais, como acontece na generalidade dos casos do segredo bancário.
Em conclusão: em caso de colisão entre o dever de guardar segredo profissional e o interesse público da descoberta da verdade dos factos e da administração da justiça, há que ponderar, concreta e muito rigorosamente, qual deles deve prevalecer.

No presente procedimento cautelar está, basicamente em causa, o aparente direito da requerente a acautelar a existência e manutenção de importâncias em dinheiro, indiciariamente, bens comuns do casal, para efeitos de ulterior partilha, na sequência de processo de divórcio já pendente.
Recusando-se o requerido a autorizar o fornecimento dos montantes das contas de que é titular ou co-titular (já que diz nada lhe pertencer) a manter-se o segredo do Banco, necessariamente se chegará a um impasse, já que a requerente não terá modo de apurar quais os valores que compõem o património comum a partilhar
A partilha dos bens comuns do casal só poderá ser feita com justiça se se apurar, com verdade, e acautelar o acervo de bens a partilhar e o respectivo valor, tarefa que o tribunal terá que realizar se lhe for pedida no momento devido.
Trata-se, assim, de elemento essencial para o apuramento da verdade e realização dos objectivos da justiça e são esses elementos que, no caso concreto, justificam a quebra do sigilo bancário relativamente às contas bancárias à ordem e a prazo e contas de carteiras de títulos (acções e obrigações) na titularidade do Requerido E.... em conta individual, conjunta ou solidária com outros titulares, existentes no M...., balcão de ...., freguesia de .....
Os interesses do requerido como cliente do banco e a eventual confiança dele na instituição em causa – interesses privados - não podem, no caso, sobrepor-se ao apuramento da verdade dos factos para efeitos de ulterior partilha do património comum do casal, tarefa constitucionalmente deferida aos tribunais (art. 20º da Constituição), em situação de conflito entre os cônjuges, ou ex-cônjuges, como aquela que se mostra já suficientemente desenhada.
Impõe-se, assim, a pretendida quebra do sigilo bancário por parte da dita instituição financeira.
4. Termos em que se decide levantar o dever de sigilo do Banco M.... agência de ...., freguesia de ...., relativamente às contas bancárias à ordem e a prazo e contas de carteiras de títulos (acções e obrigações) de que seja titular ou co-titular o Requerido E.....
Custas do incidente pelo vencido a final.
Lisboa, 30 de Junho de 2009.
(Maria Manuela Santos G. Gomes)