Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1242/09.9TYLSB.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: CUSTAS
ISENÇÃO DE CUSTAS
INSOLVÊNCIA
AUTOR
SOCIEDADE COMERCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: Sendo a requerente da declaração de insolvência a própria devedora, uma sociedade comercial, quando da apresentação do requerimento inicial não tem a mesma que proceder ao pagamento da taxa de justiça, atenta a isenção de custas prevista no art. 4, nº 1-t) do Regulamento das Custas Processuais.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - «MRB..., SA» veio requerer que fosse declarada a sua insolvência, dizendo fazê-lo ao abrigo do disposto nos arts. 18 e seguintes do CIRE.
            Proferido despacho que determinou o desentranhamento da petição inicial e a sua entrega à requerente por ela não haver pago a taxa de justiça devida dele recorreu aquela, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
a) Não resulta da lei nem do pensamento legislativo subjacente à isenção do pagamento de custas judiciais prevista na alínea t) do n.º 1 do RCJ que esta não se aplica ao próprio processo de insolvência, mas sim a outras acções em que seja parte uma sociedade insolvente;
b) A aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 4º do RCJ está sujeita à verificação da circunstância de a parte isenta desistir do pedido de insolvência ou de este ser indeferido, liminarmente ou por sentença, sendo de inferir, a contrario sensu, que fora desses casos, as entidades em situação de insolvência previstas na alínea t) do n.º 1 estão isentas de custas;
c) Ainda que se considere haver tratamento diferenciado entre particulares e pessoas colectivas em matéria de isenção de custas, no que não se concede, deveria a Mma. Juíza “a quo” ter presumido que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube expressar o seu pensamento em termos adequados;
d) Acresce que não resulta da isenção concedida pela referida norma qualquer prejuízo, mesmo que presumido, para os particulares que se apresentem à insolvência, em benefício das pessoas colectivas: todos pagarão custas judicias em função da capacidade da massa falida;
e) A alínea t) do n.º 1 do RCJ –norma que o despacho recorrido violou, por via de interpretação ab-rogante, consagra uma isenção de custas com base em circunstâncias objectivas, a “situação de insolvência…”, estando vedado ao juiz da causa pronunciar-se, ab initio, sem apreciar a pretensão e prova da requerente, em termos presuntivos, sobre a maior ou menor dificuldade no pagamento da taxa de justiça e das custas lato sensu;
f) A Recorrente é, como alegou no r.i. de apresentação, devedora a vários credores e tem como único activo as acções no capital social da sociedade MRB – P, S.A., declarada insolvente por sentença de 20 de Julho de 2009 e transitada em julgado em 31/08/2009, não dispondo de qualquer outro activo, designadamente, dinheiro que lhe permita pagar a taxa de justiça inicial;
g) Destarte, não pode ser coarctado o dever/direito, de a sua Administração a apresentar à insolvência, reunidos como objectivamente estão, os requisitos previstos na lei;
h) A ratio legis do regime jurídico da insolvência impõe o cumprimento do dever de
apresentação exactamente nos casos em que a apresentante reconhece não conseguir já satisfazer as suas obrigações perante os credores, não distinguindo a lei entre as entidades que ainda têm capacidade para pagar as custas judiciais e aquelas que não a têm;
i) Se se encarar, sem conceder, o Estado como credor das custas judiciais, não pode a recorrente ser impedida por um credor de se apresentar à insolvência, com o argumento de que são devidas as custas, quando se pretende, exactamente, que o Estado, através do Tribunal, declare que a Recorrente não tem capacidade de satisfazer os créditos de que é devedora;
j) Levado ao extremo tal raciocínio, para a Recorrente poder apresentar-se à insolvência e beneficiar da isenção de custas, primeiro teria de ser declarada…insolvente!
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II – Tendo em conta que, nos termos do art. 684, nº 3, do CPC, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, no caso que nos ocupa a questão que essencialmente se coloca é de se a recorrente está, ou não, obrigada a satisfazer a taxa de justiça em causa nos autos.
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            III - Com interesse para a decisão haverá que salientar as seguintes ocorrências no âmbito do processo:
            1 - «MRB..., SA» apresentou requerimento inicial do presente processo alegando que suspendeu generalizadamente os pagamentos das suas obrigações vencidas e pedindo que fosse declarada a sua insolvência.
            2 – Mais referiu, então, estar isenta do pagamento de custas judiciais ao abrigo da alínea t) do nº 1 do art. 4 do Regulamento das Custas Judiciais.
            3 – Foi proferido despacho determinando que a requerente procedesse em dez dias ao pagamento da taxa de justiça (fls. 337).
            4 – A requerente veio reafirmar entender não haver lugar ao pagamento da taxa de justiça nos termos já anteriormente adiantados, mais referindo não dispor de meios que lhe permitam satisfazer o pagamento da taxa de justiça e que tendo o dever de se apresentar à insolvência, como pessoa colectiva não poderia beneficiar de apoio judiciário (fls. 339-340).
            5 – Foi proferido despacho que determinou que a requerente pagasse a taxa de justiça sendo entendido que a isenção não tem aplicação no próprio processo de insolvência (fls. 343-344).
            6 – Como a requerente não houvesse procedido ao pagamento da taxa de justiça foi proferido despacho determinando o desentranhamento do requerimento inicial e a sua devolução à requerente uma vez que ela não havia pago a taxa de justiça devida (fls. 345) – despacho recorrido.
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            IV- 1 – Consoante decorre do nº 1 do art. 1 e do nº 1 do art. 3 do Regulamento das Custas Processuais, estando todos os processos sujeitos a custas, nos termos fixados no Regulamento, as custas processuais abrangem a taxa de justiça ([1]), os encargos e as custas de parte.
            O processo de insolvência está sujeito a custas, nos termos dos arts. 301 a 304 do CIRE, sendo que de acordo com este último artigo as custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente (constituindo dívida da mesma) ou do requerente (independentemente de ele ser o devedor ou outra pessoa para tanto legitimada) consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.
O art. 4 do referido Regulamento das Custas Processuais reporta-se, todavia, às isenções por custas, prevendo no seu nº 1-t) que estão isentas de custas as «sociedades civis ou comerciais, as cooperativas e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, nos termos da lei, salvo no que respeita às acções que tenham por objecto litígios relativos ao direito do trabalho».
            Especifica o nº 4 deste artigo que no caso acima aludido «a parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais, em todas as acções no âmbito das quais haja beneficiado da isenção, caso ocorra a desistência do pedido de insolvência ou quando este seja indeferido liminarmente ou por sentença».
            Acerca do Regulamento das Custas Processuais o Ministério da Justiça editou um conjunto de «Perguntas & Respostas» a que se poderá aceder em http://www.mj.gov.pt/ e em que é referido que o «artigo 4.º do RCP contém um conjunto de isenções, que se podem dividir em 4 categorias, consoante os objectivos da isenção em questão, que vão desde a defesa do interesse público, o exercício de funções públicas, a tutela do acesso ao direito, até razões de racionalidade e oportunidade processuais». No último grupo estariam previstas «isenções que assentam na natureza obrigatória ou simplificada do processo, em objectivos de racionalização processual ou em critérios de oportunidade processual» e neste grupo se incluiria a previsão do nº 1-t).
E, a propósito destas disposições refere Salvador da Costa ([2]) que os sujeitos susceptíveis de beneficiar desta isenção são as sociedades civis, as cooperativas em geral e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada «e o seu âmbito objectivo estende-se a toda e qualquer espécie processual, independentemente do órgão jurisdicional onde seja tramitada, com a única excepção reportada às acções do foro laboral», acrescentando que «o pressuposto essencial desta isenção é a verificação, em relação àqueles sujeitos, dos requisitos de apresentação à insolvência, ou seja, não exige a sua prévia declaração». Diz, ainda, quanto ao aludido nº 4, que a «isenção cessa quando o pedido de declaração de insolvência seja indeferido, liminarmente ou por sentença ou ocorra desistência do mesmo».
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            IV – 2 - Na decisão recorrida foi dito entender-se decorrer da análise conjugada do nº 1-t) e do nº 4 do art. 4 do Regulamento das Custas Processuais que a isenção não se aplicava ao próprio processo de insolvência, mas sim a outras acções em que seja parte uma sociedade insolvente.
Mais se acrescentou que aquele entendimento era reforçado pelo argumento de que, a não ser assim passaria a existir um tratamento de tributação processual diferente, inexplicável e sem sentido, consoante o insolvente fosse um particular ou uma empresa.
Ora, da conjugação dos aludidos no 1-t) e nº 4 do art. 4 não se vê que tenha de resultar que a isenção, no seu âmbito objectivo, não se aplique aos processos de insolvência – a redacção dos preceitos é ampla e abrangente de todo o tipo de processos, salvo aqueles expressamente ressalvados: litígios relativos ao direito do trabalho.
O elemento literal – a letra da lei – não aponta, em nosso entender, no sentido adoptado pelo tribunal de 1º instância.
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IV – 3 - Consoante salientado na decisão recorrida quando fala de um «tratamento de tributação processual diferente, inexplicável e sem sentido», no que concerne aos sujeitos susceptíveis de beneficiar da isenção são eles, nos termos da norma em referência, as sociedades civis, as cooperativas em geral e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, não abrangendo os particulares.
Vejamos.
Tratamento diferente consoante o sujeito seja um particular ou uma empresa existirá sempre, incluam-se na abrangência da norma os processos de insolvência ou não se incluam. Mesmo com a interpretação restritiva ([3]) feita pelo tribunal de 1ª instância, diversamente seriam, afinal, tratados os particulares e as empresas em todos os outros processos ([4]) …
Na fixação do sentido lógico da lei releva a consideração da razão justificativa da mesma (ratio legis).
Ora, o legislador terá tido em mente critérios de oportunidade processual, não sendo de esquecer a faceta “obrigatória” do processo do processo de insolvência quanto a alguns devedores ([5]).
Efectivamente, de acordo com o nº 1 do art. 18 do CIRE, o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, ou à data em que devesse conhecê-la, exceptuando o nº 2 do mesmo artigo do dever de apresentação à insolvência «as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência».
Como expõem Carvalho Fernandes e João Labareda ([6]), a apresentação do devedor insolvente nas condições estabelecidas nesta norma «consubstancia um comportamento que lhe está normativamente imposto e, por isso, constitui um dever autónomo em sentido técnico próprio», sendo a razão do estabelecimento deste dever «propiciar, o mais rapidamente possível, a solução da situação de acordo com os parâmetros legais, na convicção de que o seu arrastamento apenas pode gerar mais inconvenientes e prejuízos». Todavia, ficou excluído o carácter universal do dever de apresentação, o que se projecta em dois planos: por um lado, não é extensivo às pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa ([7]) na data em que incorram na situação de insolvência – neste caso o devedor poderá optar entre tomar a iniciativa de se apresentar ou deixar a situação correr, sem que daí lhe advenham consequências de índole punitiva; por outro lado, mesmo em relação às pessoas colectivas e patrimónios autónomos, não há dever de apresentação quando se verifica, quanto a eles, superioridade manifesta do passivo sobre o activo, desde que se mantenha, apesar disso, a susceptibilidade de cumprimento regular e atempado da generalidade das obrigações.
Assim, genericamente – embora com a ressalva acima aludida em segundo lugar – o dever de apresentação não incide sobre os «particulares», mas recai sobre os titulares de empresas, o que sempre poderia justificar alguma diferença de tratamento.
 Mencione-se, ainda, que muito embora tenham direito a protecção jurídica – revestindo as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário – os cidadãos nacionais e da EU, bem como os estrangeiros que reúnam o condicionalismo previsto na lei, quando demonstrem estar em situação de insuficiência económica, as pessoas colectivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a protecção jurídica, tendo as pessoas colectivas sem fins lucrativos direito à protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário, nas circunstâncias acima referidas ([8]).
Assim, enquanto aos “particulares” é possível, quando em situação de insuficiência económica recorrerem ao apoio judiciário, tal não é permitido às “empresas” o que, também, aponta para alguma diferenciação de tratamento - de sinal contrário àquela que é patenteada pelo nº 1-t) do art. 4 do Regulamento das Custas Processuais.
As leis interpretam-se umas às outras, uma vez que «cada norma e conjunto de normas funciona em relação às outras como elemento sistemático de interpretação» ([9]), formando a ordem jurídica um sistema.
Ora, nesse sistema, tendo em conta as outras normas que acabámos de referir, parece-nos não ser de aderir à interpretação restritiva seguida pelo tribunal de 1ª instância.
Nestas circunstâncias, sendo a situação dos autos abrangida pela norma do art. 4, nº 1-t) do Regulamento das Custas Processuais, dada a isenção ali prevista, não estava a requerente obrigada ao pagamento da taxa de justiça, não subsistindo justificação para o desentranhamento do requerimento inicial.
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V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando que o requerimento inicial se mantenha nos autos.
Sem custas.
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Lisboa, 11 de Fevereiro de 2010
Maria José Mouro
Neto Neves
Teresa Albuquerque

[1]              A qual corresponderá, grosso modo, à «prestação pecuniária que o Estado exige, em regra, aos utentes do serviço judiciário no quadro da função jurisdicional por eles causada ou de que beneficiam» - Salvador da Costa, «Regulamento das Custas Processuais», 2ª edição, pag. 137.
[2]              Obra citada, pags. 169-170 e 176-177.
[3]              Restritiva porque o tribunal de 1ª instância limitou a norma aparente, entendendo que o texto ia além do sentido.
[4]              Com excepção dos referentes a litígios relativos ao direito do trabalho.
[5]              É o que decorre das «Perguntas & Respostas» acima citadas.
[6]              Em «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado», vol. I, pags. 122-124.
[7]              Considerada esta como toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica.
[8]              Art. 7 da Lei nº 34/2004, de 29-7, na redacção que lhe foi dada pela Lei 47/2007, de 1-1-2008.
[9]              Ver Castro Mendes, «Introdução ao Estudo do Direito», Lições editadas pela FDL,  pag. 361.