Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
774/09.3TDLSB.L1-3
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DA AUTONOMIA OU INDEPENDÊNCIA SINDICAL
ASSOCIAÇÃO SINDICAL
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – O crime de violação da autonomia ou independência sindical previsto e punido pelos artigos 405.º, n.º 2 e 407.º, n.º 1 do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro – ao punir a conduta dos empregadores que promovem a constituição, mantêm ou financiam o funcionamento, por quaisquer meios, de estruturas de representação colectiva dos trabalhadores ou, por qualquer modo, intervêm na sua organização e gestão, assim como impedem ou dificultam o exercício dos seus direitos –, salvaguarda directa e imediatamente os interesses das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores.
II – A legitimidade dos sindicatos, enquanto estruturas de representação colectiva dos trabalhadores, estende-se, quer à defesa dos interesses colectivos que representam, quer à defesa colectiva dos interesses individuais dos trabalhadores.
III – O direito de contratação colectiva é um direito que compete às associações sindicais exercer, e somente a elas, não podendo ser exercido senão através delas (artigo 491.º do CT).
IV – Tem legitimidade para se constituir como assistente uma associação sindical que participou nas negociações de um acordo de empresa (AE) que não chegou a subscrever e que, em processo criminal, requer a abertura de instrução, imputando ao empregador dos trabalhadores seus associados a promoção de um processo de “adesões individuais” ao referido AE relativamente a tais trabalhadores, processo esse que, na sua perspectiva, impediu ou dificultou o exercício pela mesma associação sindical dos direitos à contratação colectiva e à representação dos seus associados que lhe são legal e constitucionalmente reconhecidos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
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1. Relatório
1.1. No processo nº 774/09.3TDLSB do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, e na sequência despacho de arquivamento que o Ministério Público proferira a fls. 670 e ss., o Sindicato Nacional dos Trabalhadores…, inconformado com aquele despacho de arquivamento, veio a fls. 686 e ss. requerer a sua constituição como assistente e a abertura de instrução, pedindo a final a pronúncia dos AA…, pela prática dolosa de um crime de violação da autonomia ou independência sindical previsto e punido pelos artigos 405.º, n.º 2 e 407.º, n.º 1 do Código do Trabalho.
Remetidos os autos ao Tribunal de Instrução Criminal, foi pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal proferido em 22 de Fevereiro de 2010 o despacho agora submetido à apreciação deste tribunal, com o seguinte teor:
“O Sindicato Nacional dos Trabalhadores… veio requerer a sua constituição como assistente.
O MP promoveu o indeferimento do pedido.
Cumpre decidir.
Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - art°. 68° n°.1 a) CPP.
É exemplo de lei especial, quando esteja em causa a "defesa dos direitos e interesses colectivos" ou "a defesa colectiva dos direitos individuais" dos trabalhadores da Administração Pública e, articulado com o disposto no D.L. n°. 84/99 de 19/3, as associações sindicais dos trabalhadores da Administração Pública têm legitimidade processual para intervir como assistentes nos processos relativos à defesa desses interesse.
No caso em apreço, não estamos perante trabalhadores da administração pública.
Como refere o MP, tal questão era habitualmente resolvida atendendo à natureza individual e supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação, apenas, no primeiro caso se admitindo a constituição de assistente. Porém, em muitos casos, apesar da natureza supra-individual do bem jurídico subjacente à incriminação, o legislador pretendeu, com a criação e tutela do bem jurídico, proteger de uma forma antecipada bens jurídico as de natureza individual. Nestes casos não há qualquer razão para não admitir a intervenção dos titulares desses bens jurídicos mediatamente tutelados como assistentes no processo penal.
O Sindicato Nacional dos Trabalhadores… não é uma entidade a quem leis especiais conferirem esse direito, não é titular do interesse protegido pela lei. A incriminação em causa nos autos não visa a protecção antecipada de qualquer bem jurídico de natureza individual, mas a exclusiva protecção de um bem supra-individual.
Por outro lado, qualquer pessoa pode, ainda, constituiu-se assistente quando estão em causa os crimes melhor discriminados na alínea e) do n°.1 do art°. 68° CPP.
Ora, o "crime de violação da autonomia ou independência sindical ou por acto discriminatório" previsto e punido pelos art°s. 405° n°.2 e 407° n°.1 do CT 2009, ilícito em causa nos autos, não se enquadra na alínea e) do n°.1 do art°. 68° CPP.
Assim, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores… carece de legitimidade para intervir como assistente nos presentes autos.
Consequentemente, não admito o requerimento de abertura de instrução.
Notifique.
Oportunamente arquive.
1.2. O Sindicato Nacional dos Trabalhadores…, interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar a respectiva motivação, as seguintes conclusões:
“A) As Associações Sindicais são a primeira estrutura de representação colectiva que os trabalhadores podem constituir para a prossecução e defesa dos seus direitos e interesses. nos termos da alínea a) do art.° 404.° do C.T.
B) De acordo com o art.° 56.° da C.R.P.. "compete às associações sindicais defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representem constituindo direitos daquelas associações, nomeadamente, "participar na elaboração da legislação do trabalho" e "exercer o direito de contratação colectiva, o qual é garantido nos termos da lei".
C) Assim sendo, o processo de “adesões individuais” promovido pelos AA... relativamente a trabalhadores associados do S... que não subscreveu o A.E./AA... 2008, objecto dos presentes autos, é manifestamente violador dos preceitos constitucionais relativos à liberdade sindical e ao direito à contratação colectiva - mormente o n.° 3 do art.° 56.° da C.R.P. - e do disposto nos art.°s 4.°, n.° 1 do 452.°, 453.°, 553.° e 554.°, todos do Código do Trabalho 2003, vigente à prática dos factos.
D) Na situação sub judice, a conduta dos AA... visou e teve como efeito impedir ou dificultar o exercício dos direitos constitucional e legalmente previstos e atribuídos às associações sindicais - in casu, o S.... – nomeadamente, o direito à representação dos seus associados e o direito à contratação colectiva. Ora,
E) Dispõe o n.° 2 do art.° 405.° do C.T. que "... os empregadores não podem (...) por qualquer modo (...) impedir ou dificultar o exercício" dos direitos das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores.
F) Neste contexto, é manifesto que o S... é o titular do interesse directa e imediatamente protegido pela norma incriminadora, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 68.°. n.° 1, al. a), do C.P.P. (a título meramente exemplilicativo, veja-se a sentença do 2.° Juízo Criminal do Tribunal da Comarca do Barreiro, cuja cópia se junta em anexo como doc. 1).
G) É que, contrariamente ao sufragado pelo Tribunal a quo, é manifesto que aquelas disposições tutelam um bem jurídico individual das Associações Representativas dos trabalhadores, a saber: o exercício dos seus direitos.
H) Sendo o S... o portador concreto do bem jurídico tutelado nos art.°s 405.°, n.° 2, e 407.°, ambos do C.T.. no caso vertente.
I) Ademais, a interpretação sufragada na decisão judicial sub judice é inconstitucional na medida em que viola a garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais (art.° 2.° da C.R.P.), o princípio do acesso ao direito (n.° 1 do art.° 20.° da C.R.P.), o princípio da tutela jurisdicional efectiva (n.° 5 do art.° 20.° da C.R.P.), a garantia do assistente de intervir no processo penal (n.° 7 do art.° 32.° da C.R.P.), o direito sindical à contratação colectiva (n.° 3 do art.° 56.° da C.R.P.) e, bem assim, o direito a um processo equitativo (n.° 1 do art.° 6.° da C.E.D.H.).
J) Com efeito, a norma extraída dos art.°s 405.°, n.° 2. e 407.° do C.T. e 68.°. n.° 1, do C.P.P.. interpretada no sentido de que:
As Associações Sindicais não têm legitimidade para se constituir como Assistentes em processo penal quando esteja em causa a violação, impedimento ou obstrução do exercício dos seus direitos, nos termos e para os efeitos dos art.°s 405.°. n.° 2, e 407.° do C.T.. é, em tal interpretação, inconstitucional, por violação dos art.°s 2.°, 20.°, n.°s 1 e 5. 32.°. n.° 7. e 56.° da Constituição da República Portuguesa e do art.° 6.° da C.E.D.H.
K) Mesmo para quem entenda que a constituição como assistente de uma associação sindical num processo crime apenas está prevista no D.L. n.° 84/99, de 19/03. o que apenas se concebe para efeitos de exercício académico, sempre terá de concluir pela existência de um caso omisso, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 4.° do C.P.P. e como tal necessita de ser integrado. Estaríamos perante uma lacuna que tinha de ser integrada com recurso à aplicação analógica daquele diploma, permitindo-se a mesma faculdade à generalidade das associações sindicais independentemente da natureza do vínculo laboral dos seus associados (Cfr. art.° 13.° da C.R.P.).
Termos em que se impõe a revogaçao do despacho recorrido, substituindo-o por outro que admita a constituição como Assistente do Recorrente. bem como o Requerimento de Abertura de Instrução oportunamente apresentado, prosseguindo os autos seus termos até final.”
1.3. Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público na 1.ª instância, pugnando pela procedência do recurso. Concluiu do seguinte modo:
“1. Tendo os autos supra epigrafados tido início com o auto de notícia de fls. 3-10, elaborado pela Autoridade para as Condições do Trabalho em 12/01/2009, dando conta de factos, imputados aos AA..., susceptíveis de consubstanciar a violação do art.° 452.°, n.° 1, do Código do Trabalho. aprovado pela Lei n.° 99/2003, de 27 de Agosto, e, como tal, (para além de uma contra-ordenação grave) o crime previsto e punido pelo art.° 611.°, n.°s 1 e 2, do mesmo Código, proferiu o Ministério Público, findo o inquérito, o despacho de arquivamento exarado a fls. 670-673.
2. Inconformado com tal despacho de arquivamento, peticionou o ora recorrente, mediante o requerimento corporizado a fls. 686-703 e concomitantemente com a sua constituição como assistente, a abertura de instrução, pugnando então, a final, no que aqui mais interessa. pela sua admissão na referida qualidade de assistente e pela pronúncia da arguida AA... pela prática do crime de violação da autonomia sindical, previsto e punido pelos art.°s 405.°. n.° 2, e 407.°. n.° 1, do Código do Trabalho.
3. Veio a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, porém, por douto despacho proferido a fls. 991-992, ao abrigo do disposto no art.° 68.°. n.° 1, alíneas a) e e), do Código de Processo Penal, a não admitir a constituição do ora recorrente na qualidade de assistente e, consequentemente, a rejeitar o mesmo requerimento de abertura de instrução, entendendo que o Sindicato Nacional dos Trabalhadores... carece de legitimidade para intervir como assistente nos autos.
4. Interpôs o Sindicato Nacional dos Trabalhadores... recurso do referido despacho, pugnando pela revogação e consequente substituição deste por outro que admita a constituição do mesmo sindicato como assistente, bem assim, consequentemente, o requerimento de abertura de instrução.
5. Ora, afigura-se-nos ter razão o Sindicato Nacional dos Trabalhadores..., ora recorrente, no essencial, atentas as razões já avançadas pelo mesmo, que assim, por meras razões de economia processual, nos escusamos de repetir aqui.
6. Designadamente, ante a verificação do bem jurídico tutelado e, no caso, violado, bem assim dos titulares do interesse especialmente protegido pela correspondente norma incriminadora, encontrando-se entre os mesmos o supra referido Sindicato.
7. Deveria, pois, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, ao invés da decisão que tomou, ter, antes, proferido despacho que admitisse o ora recorrente na qualidade de assistente — aquilatando, consequentemente, da verificação dos demais pressupostos legais exigíveis para a abertura de instrução —, merecendo-nos, assim, reparo a decisão proferida.
8. Deve, desse modo, ser dado provimento ao recurso interposto, revogando-se e. consequentemente, substituindo-se o despacho ora posto em crise nessa conformidade.”
1.4. O recurso foi admitido por despacho de fls.1057, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
1.5. Uma vez remetido o mesmo a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso (fls. 1064-1065).
1.6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, os intervenientes processuais notificados, nada vieram acrescentar ao já expendido.
1.7. Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a Conferência.
Cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação - artigos 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal -, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, a questão fundamental que é colocada à apreciação deste tribunal de recurso consiste em saber se assiste legitimidade ao ora recorrente Sindicato Nacional dos Trabalhadores…, para se constituir como assistente neste processo de natureza criminal.
Foi por afirmar a falta de legitimidade do ora recorrente para se constituir como assistente que o despacho recorrido não o admitiu como tal neste processo e, com esse fundamento, não admitiu também o requerimento de abertura da instrução por ele formulado.
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3. Fundamentação
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3.1. O auto de notícia de fls. 3 e ss., elaborado pela Autoridade para as Condições do Trabalho em 12 de Janeiro de 2009, que deu início aos presentes autos relatando a ocorrência de factos imputados aos AA…, e que aquela entidade considera consubstanciarem a violação do artigo 452.°, n.° 1, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 99/2003, de 27 de Agosto, assim integrando o crime previsto e punido pelo artigo 611.°. n.°s 1 e 2, do mesmo Código, para além da prática da contra-ordenação prevista no artigo 682.º do mesmo Código.
No requerimento de abertura de instrução o recorrente S… subsumiu a conduta ali imputada aos AA… nos correspondentes preceitos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de Fevereiro, peticionando que aquela entidade fosse pronunciada pela prática dolosa do crime de violação da autonomia ou independência sindical previsto e punido pelos artigos 405.º, n.º 2 e 407.º, n.º 1 deste Código.
De acordo com a alegação do ora recorrente constante do requerimento de abertura de instrução, o S… representa 7791 trabalhadores dos AA…, num total de, aproximadamente, 12 000 (doze mil), ou seja, cerca de 65% do universo de trabalhadores da referida empresa, sendo que os AA… promoveram um processo de "adesões individuais" ao AE/AA 2008 (que apenas havia sido subscrito por sindicatos minoritários, que no total representam aproximadamente 25% dos trabalhadores dos AA…), junto de trabalhadores filiados no Sindicato recorrente. E fê-lo quando à data da prática dos factos:
a) A relação jurídico-laboral mantida entre aqueles trabalhadores e os AA…, era regida por outro Instrumento de Regulamentação Colectiva (o AE/AA 2006); inexistindo a mais pequena margem legal para que aqueles trabalhadores sindicalizados ficassem abrangidos por outro instrumento de regulamentação colectiva, que não o AE/AA 2006;
b) A promoção do processo de "adesões individuais" dos trabalhadores sindicalizados no S…, ocorre na sequência da frustração da negociação do AE/AA 2008, entre os AA… e diversas associações sindicais, designadamente, o S…, tendo em vista ultrapassar o direito legítimo daquelas associações sindicais de não aceitarem as alterações laborais que lhes estavam a ser impostas;
c) A promoção do processo de "adesões individuais" ao AE/AA 2008, teve como objectivo concretizado o enfraquecimento e fragilização do direito à contratação colectiva daquelas associações sindicais — em particular do S… — pondo em causa o seu poder negociai em sede de discussão dos instrumentos de regulamentação colectiva, e desmobilizando diversos associados que, erradamente, julgaram estar abrangidos pelo AE/AA 2008.”
Segundo o recorrente, esta conduta dos AA… que descreve – e pormenoriza no requerimento de abertura de instrução em termos que é despiciendo agora melhor concretizar –, integra um “crime de violação da autonomia ou independência sindical”, por terem os AA…, com a sua conduta, impedido e dificultado o exercício do direito do S… como associação sindical.
Tendo presente esta narração constante do requerimento de abertura de instrução e o enquadramento jurídico que da mesma foi feita pelo recorrente, vejamos se o recorrente tem legitimidade para se constituir como assistente.
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3.2. A este propósito, há que atentar na norma fundamental do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, cuja alínea a) estabelece que podem constituir-se assistentes no processo penal “[o]s ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Para se ser ofendido, na perspectiva da norma do artigo 113.° do Código Penal e, consequentemente, ter-se legitimidade para se constituir assistente, é necessário que a pessoa assuma de facto a posição de “titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger” quando formulou a norma penal
Ofendido/assistente é “a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo” – vide Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, p. 505.
Como refere Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 2000, p. 264), não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime. Ofendido é “somente o titular do interesse que constitui objecto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afecta.” O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular.
Caso a incriminação proteja uma pluralidade de bens jurídicos de nada releva na matéria equacionar a importância relativa de cada um desses bens, pois condição necessária e suficiente à constituição do ofendido como assistente é que a ofensa daquele ponha em causa um dos bens jurídicos que a incriminação pretende salvaguardar – vide Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As ConsequênciasJurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pp. 668 e 669; vide também sobre esta matéria os AUJ do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2003, in DR, 1.ª série, de 2003.01.27 e nº 8/2006, in DR 1.ª série, de 2006.11.28.
Vejamos, pois, se o recorrente é titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação da violação da liberdade e autonomia sindical.
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3.3. Para tanto importa lançar um breve olhar sobre o crime em causa, os interesses que visa proteger e os titulares desses interesses.
O artigo 452.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 99/2003, de 27 de Agosto integra-se no Título III deste código (relativo ao Direito Colectivo), no capítulo dedicado às “estruturas de representação colectiva dos trabalhadores” e tem o seguinte o teor:
“Artigo 452º
Autonomia e independência
1 — Sem prejuízo das formas de apoio previstas neste Código, não podem os empregadores, individualmente ou através das suas associações, promover a constituição, manter ou financiar o funcionamento, por quaisquer meios, das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores ou, por qualquer modo, intervir na sua organização e direcção, assim como impedir ou dificultar o exercício dos seus direitos.
2 — As estruturas de representação colectiva são independentes do Estado, dos partidos políticos, das instituições religiosas e de quaisquer associações de outra natureza, sendo proibida qualquer ingerência destes na sua organização e direcção, bem como o seu recíproco financiamento.
3 — (…)
4 — (…).”
Por seu turno o preceito do mesmo compêndio normativo que comina uma sanção criminal para a violação deste preceito, estabelece nos seguintes termos:
“Artigo 611º
Violação da autonomia e da independência sindicais
1 — As entidades ou organizações que violem o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 452º e no artigo 453º são punidas com pena de multa até 120 dias.
2 — Os administradores, directores ou gerentes e os trabalhadores que ocupem lugares de chefia, responsáveis pelos actos referidos no número anterior, são punidos com pena de prisão até um ano.
3 — (…).”
O Código do Trabalho aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de Fevereiro, também no Título III (relativo ao Direito Colectivo) e no capítulo dedicado às “estruturas de representação colectiva dos trabalhadores”, estabeleceu em termos similares ao de 2003, no n.º 2 do seu artigo 405.º, relativo à “autonomia e independência”, que:
“Sem prejuízo das formas de apoio previstas neste Código, os empregadores não podem, individualmente ou através das suas associações, promover a constituição, manter ou financiar o funcionamento, por quaisquer meios, de estruturas de representação colectiva dos trabalhadores ou, por qualquer modo, intervir na sua organização e gestão, assim como impedir ou dificultar o exercício dos seus direitos.”
E no seu artigo 407.º, sob a epígrafe “crime por violação da autonomia ou independência sindical, ou por acto discriminatório”, que:
“1 — A entidade que viole o disposto nos n.os 1 ou 2 do artigo 405.º ou no artigo anterior é punida com pena de multa até 120 dias.
2 — O administrador, director, gerente ou outro trabalhador que ocupe lugar de chefia que seja responsável por acto referido no número anterior é punido com pena de prisão até 1 ano.
3 — (…).”
Atenta a similitude das previsões e do seu enquadramento sistemático, e porque a questão que nos ocupa consiste em saber se o recorrente tem, ou não legitimidade para se constituir assistente nestes autos, perde por ora relevância a questão de saber qual a lei substantiva aplicável.
Em ambas as codificações se proíbe que os empregadores impeçam ou dificultem o exercício dos direitos das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores – artigo 452.º, n.º 1, in fine do CT de 2003 e artigo 405.º, n.º 2, in fine do CT de 2009.
E em qualquer delas se punem com pena de multa até 120 dias as entidades ou organizações que violem aquela proibição e com pena de prisão até um ano os administradores, directores ou gerentes e os trabalhadores que ocupem lugares de chefia, responsáveis por actos que consubstanciem a referida violação – artigo 611.º, n.ºs 1 e 2 do CT de 2003 e artigo 407.º, n.ºs 1 e 2 do CT de 2009.
O bem jurídico protegido em ambas as incriminações sucessivas é a autonomia e independência sindical.
E em ambas se perspectiva o direito à autonomia e independência sindical como um direito das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores
Assim, a incriminação salvaguarda directa e imediatamente os interesses das estruturas de representação colectiva dos trabalhadores, punindo a conduta daqueles que - no que aqui nos interessa face ao modo como está estruturado o requerimento de abertura de instrução e nele configurado o crime imputado aos AA… -, impedem ou dificultam o exercício dos direitos daquelas estruturas.
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3.4. As associações sindicais são uma das estruturas de representação colectiva que os trabalhadores podem constituir para a prossecução e defesa dos seus direitos e interesses – cfr. a alínea a) do art.° 404.° do CT de 2009 e a alínea c) do artigo 452.º do CT de 2003.
O recorrente S… é uma associação sindical.
Nos termos do disposto no artigo 56.° da Constituição da República Portuguesa, “[c]ompete às associações sindicais defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representem” (n.º 1) e “[c]ompete às associações sindicais exercer o direito de contratação colectiva, o qual é garantido nos termos da lei” (n.º 3).
Por isso é reconhecido que a legitimidade dos sindicatos se estende, quer à defesa dos interesses colectivos que representam, quer à defesa colectiva dos interesses individuais dos trabalhadores – vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I, 4.ª edição revista, Coimbra, 2007, p. 742.
E em consonância, o artigo 5.º do Código de Processo do Trabalho aprovado pelo DL n.º 480/99, de 09/11 (e alterado pelos Decreto-Lei n.ºs 323/2001, de 17/12, 38/2003, de 08/03 e 295/2009, de 13/10), confere legitimidade às associações sindicais como autoras nas acções relativas a direitos respeitantes aos interesses colectivos que representam (n.º 1), embora também possam exercer o direito de acção, em representação e substituição de trabalhadores que o autorizem (n.º 2). No primeiro caso prevalece o interesse colectivo, que pressupõe uma nova e diferente entidade como titular e no segundo prevalecem os direitos subjectivos individuais dos trabalhadores. No primeiro caso a lei reconhece legitimidade às associações sindicais para o exercício de direitos que são próprios e no segundo as associações sindicais intervêm judicialmente para defender interesses individuais dos trabalhadores, cabendo a legitimidade a cada trabalhador.
O direito de contratação colectiva é um direito que compete às associações sindicais exercer, e somente a elas, não podendo ser exercido senão através delas (artigo 540.º do CT 2003 e artigo 491.º do CT 2009).
Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito do n.º 3 do artigo 56.º da Constituição da República Portuguesa, o direito de contratação colectiva, enquanto direito dos trabalhadores, “significa, designadamente, o direito de regularem colectivamente as relações de trabalho com os empregadores ou suas associações representativas, substituindo o fraco poder contratual do trabalhador individual pelo poder colectivo organizado no sindicato” (in ob. cit., p. 744).
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3.5. No requerimento de abertura de instrução é imputada aos AA… a promoção de um processo de “adesões individuais” relativamente a trabalhadores associados do S… (não subscritor do AE/AA de 2008) que, na perspectiva do recorrente – de cujo acerto, ou desacerto, nos não compete agora aquilatar –, impediu ou dificultou o exercício pelo S… dos direitos à contratação colectiva e à representação dos seus associados que lhe são legal e constitucionalmente reconhecidos.
Enquanto associação sindical, o recorrente é titular do direito à contratação colectiva e ao seu exercício livre e independente.
E tem legitimidade para o exercício deste direito, que é próprio.
É assim inequívoco que o recorrente (S…) é o titular do interesse que a lei especialmente protege com a norma que prevê e pune o crime de violação da autonomia e independência sindicais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, não havendo necessidade de lançar mão das hipóteses previstas nas demais alíneas desse preceito.
E, por isso, faz todo o sentido que tenha sido o recorrente quem comunicou à Autoridade das Condições do Trabalho (ACT) esta conduta dos AA…, sendo na sequência dessa denúncia que a ACT veio a despolotar este processo com a comunicação ao Ministério Público constante de fls. 2 e ss.
E que seja ele, também, quem requer a sua constituição como assistente neste processo criminal e requer a abertura de instrução.
Em suma, não podemos acompanhar o despacho recorrido quando afirma que o S… “não é o titular do interesse protegido com a lei”.
O recorrente assume efectivamente, no contexto descrito no requerimento de abertura da instrução, a posição de titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e tem, consequentemente, legitimidade para se constituir como assistente nos presentes autos.
Deve acrescentar-se que, diferentemente do que parece resultar do entendimento expresso pelo tribunal a quo, a existência de lei especial que concretamente confere legitimidade às associações sindicais dos trabalhadores da Administração Pública – o Decreto-Lei n.º 84/99, de 19 de Março – não contende com a legitimidade que decorre com meridiana clareza da lei processual penal, devidamente conjugada com o regime do direito à autonomia e independência sindical e à contratação colectiva que emerge do texto constitucional e das leis substantiva e adjectiva laborais.
Subscrevemos inteiramente as doutas considerações do Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto Parecer, a este propósito. Aí se lê:
“Não pode inferir-se do estabelecimento daquele regime especial para um determinado sector de actividade, a conclusão de que, por via da convocação de argumentação "a contrario", para um outro sector por ele não abrangido, o regime vigente tenha de ser de sentido oposto.
Como é sabido, só há necessidade de criação de lei especial quando se impõe ampliar ou restringir o conteúdo da lei geral.
Quando, como é o caso, a legitimidade para a constituição como assistente do sindicato ora recorrente lhe advém, inequivocamente, da própria lei geral, não se vislumbra qualquer fundamento normativo para lhe negar esse direito só porque - por razões que, "hic et nunc", não vem ao caso dilucidar - ele está conferido, por lei especial, às associações sindicais dos trabalhadores da Administração Pública.
Nesta conformidade, impõe-se reconhecer ao recorrente legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado com vista a aferir da responsabilidade criminal da entidade a quem imputa os factos que, na sua perspectiva, consubstanciam a prática daquele crime de violação da autonomia e independência sindicais.
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3.6. Invoca ainda o recorrente ser inconstitucional a interpretação sufragada na decisão judicial sub judice de considerar que as associações sindicais não têm legitimidade para se constituir como assistentes em processo em que está em causa a violação dos seus direitos.
Na medida em que, ao invés do tribunal recorrido, se concluiu que as associações sindicais têm legitimidade para se constituir como assistentes em processo em que está em causa a violação dos seus direitos, esta questão da inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 405.º e 407.º do CT e 68.º do Código de Processo Penal, mostra-se prejudicada.
Os tribunais não têm que apreciar questões que signifiquem um mero exercício teórico, sem possibilidade de relevância efectiva para a solução do caso.
Não deverá, assim, tomar-se conhecimento da invocada inconstitucionalidade (cfr. o artigo 660.º, n.º 2, primeira parte do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal).
Também em consequência da posição adoptada por este tribunal da Relação quanto à legitimidade do recorrente mostra-se, igualmente, prejudicada a questão de saber se para os trabalhadores não abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 84/99 (cujo artigo 4.º, n.º 3, estabelece ser “reconhecida às associações sindicais legitimidade processual para defesa dos direitos e interesses colectivos e para a defesa colectiva dos direitos e interesses individuais legalmente protegidos dos trabalhadores que representem”) este diploma deve aplicar-se analogicamente à generalidade das associações sindicais independentemente da natureza do vínculo laboral dos seus associados.
De todo o modo, deve notar-se que o Decreto-Lei n.º 84/99 não concretiza (nem precisava de concretizar) terem as associações sindicais dos trabalhadores da Administração Pública legitimidade para se constituírem como assistentes, sendo a sua previsão geral da legitimidade processual destas associações sindicais para a defesa dos direitos e interesses colectivos coincidente com a que emerge do artigo 5.º do Código de Processo do Trabalho, este aplicável aos trabalhadores em geral.
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3.7. Concluindo, perante os elementos constantes dos autos e na hipótese configurada no requerimento de abertura de instrução pelo recorrente Sindicato Nacional dos Trabalhadores…, este é titular do interesse jurídico-penal compreendido na esfera de protecção do crime de violação do direito à autonomia e liberdade sindical que imputa aos AA…, e, por via disso, deve ser constituído como assistente nos termos do artigo 68º nº 1 do Código de Processo Penal.
E, em consequência, deverá ser apreciado na 1.ª instância o requerimento de abertura de instrução por si formulado nos presentes autos.
Procede, totalmente, o recurso
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4. Decisão
Em face do exposto, decide-se julgar procedente o recurso e revoga-se o despacho recorrido, admitindo-se o ora recorrente Sindicato Nacional dos Trabalhadores… a intervir nos autos como assistente e determinando-se que o tribunal recorrido conheça do requerimento de abertura da instrução.
Sem custas.

(Documento elaborado pela relatora e integralmente revisto por quem o subscreve – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Lisboa, 7 de Julho de 2010

Maria José Costa Pinto
Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida