Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6575/2008-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: VENDA A DESCENDENTES
ANULABILIDADE
CASO JULGADO FORMAL
DESPACHO SANEADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1. Se no despacho saneador se afirma expressamente que se não está perante um caso de litisconsórcio necessário passivo e foi com tal fundamento que excluiu a ré R da lide, esta fundamentação tem-se por intimamente conexionada com a decisão que julgou procedente a excepção dilatória da ilegitimidade deduzida e, forçosamente, abrangida pelos efeitos do caso julgado formal, não permitindo uma posterior decisão absolutamente contraditória com aquela.
2. A venda a filhos ou netos, possível à luz do disposto no artigo 877º do Código Civil, constitui uma modalidade de compra e venda que comporta a particularidade de exigir o consentimento dos descendentes na venda.
3. Estão previstas no nº 1 duas hipóteses: a de os pais venderem aos filhos e a de os avós venderem aos netos. Se venderem aos filhos é necessário o consentimento dos outros filhos, mas não em princípio, o consentimento dos netos. Os pais são as cabeças de estirpe e as pessoas imediatamente interessadas em evitar diminuições simuladas das legítimas. Somente se algum filho tiver falecido, é que passa tal filho para este efeito, a ser representado pelos seus descendentes”.
4. Esta limitação visa evitar uma simulação, difícil de provar, em prejuízo das legítimas dos descendentes alheios ao negócio. Sem esta restrição, consubstanciada na exigência de consentimento dos descendentes, dificilmente se obviaria à celebração de contratos de compra e venda cujo objectivo seria causar prejuízos na legítima, nomeadamente, simulando uma compra e venda para realizar uma doação.
FG
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
M intentou, em 20 de Setembro de 2004, no tribunal Judicial de Benavente acção declarativa, com processo ordinário, contra J, A, R, pedindo a declaração de anulação da escritura de compra e venda lavrada a 25 de Outubro de 1990 no 2° Cartório Notarial de Cascais respeitante aos prédios urbanos sitos na Av. do Século, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente, e o cancelamento das respectivas inscrições de aquisição a favor do réu no registo predial, com fundamento em que a dita venda foi feita entre avó e neto sem o consentimento da autora e das suas irmãs, também netas da vendedora e filhas de um filho desta já falecido à data da outorga da escritura, sendo que só em 7 de Abril de 2004 teve conhecimento da venda.
            Os réus contestaram, excepcionando a ilegitimidade da ré Rosália Ferreira, por não ter interesse em contradizer, e a caducidade do direito de acção da autora, alegando que esta teve conhecimento da venda desde, pelo menos, Setembro de 1991, tendo consentido, ao menos tacitamente, no negócio. Pediram ainda a condenação da autora por litigância de má fé em multa e numa indemnização não inferior a € 5.000,00.
A autora respondeu à matéria das excepções, que impugnou, e pediu a condenação dos réus como litigantes de má fé nos mesmos moldes por eles pretendidos.


Foi proferido despacho saneador, que julgou procedente a excepção dilatória da ilegitimidade da ré Rosália, absolvendo-a da instância, e relegou para final o conhecimento da excepção peremptória da caducidade.
Realizado o julgamento, foram os réus absolvidos da instância com fundamento na sua ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, considerando-se prejudicado o conhecimento de mérito da acção.

Inconformada recorreu a autora.
Alegou e formulou na sua alegação a seguinte síntese conclusiva:
1ª O MM. Juiz no despacho saneador apreciou, concretamente, ainda que apenas na pessoa de R, a questão da legitimidade passiva e da necessidade (ou a falta dela) do litisconsórcio passivo,
            2ª Face à decisão tomada, em sede de despacho saneador, as únicas pessoas com interesse em contradizer são os RR., os compradores;
            3ª Deste modo formou-se, porque se   tratou de questão concretamente apreciada, ao abrigo do disposto no art. 510/3 do C. P. C., caso julgado formal no despacho saneador, decidindo como decidiu violou o MM. Juiz na douta sentença o preceito legal invocado;
            4ª A anulação da escritura de compra e venda é o pedido da A. nesta acção, saber se os RR. restituem o bem à dita herança, findo que está o seu direito, voluntariamente é uma questão completamente diferente, que não é colocada nos presentes autos;
            5ª Tal situação não é de todo contundente com a demanda da A. que pretende unicamente a anulação do negócio que não mereceu o seu consentimento nos termos legais;
            6ª Da mesma forma findo que está o direito dos RR., anulando-se a escritura, o eventual direito destes a serem ressarcidos do preço que dizem ter pago na escritura também não é posto em causa;
            7ª Uma e outra situação não são de todo incompatíveis com o objecto da presente lide, uma e outra situação não põem em causa a boa decisão da presente lide;
            8ª Ao decidir, como decidiu o MM Juiz a quo, pôs em causa que a presente lide pudesse produzir o seu efeito útil normal, violando assim o disposto no art. 28/2 do C. P. C., porquanto todos os interessados estão claramente presentes na lide;
            9ª O MM. Juiz a quo ao decidir como decidiu põe claramente em causa os direitos da A., desde logo porque ao absolver os RR. da instância limita, ou elimina mesmo, a possibilidade desta vir novamente a juízo pedir a anulação da escritura, atento o prazo de caducidade inscrito no art. 877/2 do C. Civil.
            10ª Bem assim, a douta decisão, ao não decidir a causa, viola o disposto no art. 2 do C. P. C. e viola o disposto no art. 20 da C. R. P., porque coarcta direitos fundamentais da A. que vê a sua legítima e regular pretensão não ser decidida de forma eficaz.
Nestes termos, deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser proferido acórdão dessa Relação no sentido de se considerar que a lide está regularmente constituída e que nada obsta a que se profira decisão sobre as questões de mérito, podendo desde logo o Tribunal da Relação decidir, desde já a causa, atenta a prova produzida nos autos, considerando a acção inteiramente procedente e condenando os RR. nos pedidos formulados.

Não houve contra-alegação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            2. Fundamentos:
            2.1. De facto:
            Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:
            a) A A. é neta de Ana da Conceição Marques de Oliveira (A);
b) O pai da A. faleceu em 7.5.1988 (B));
c) Antes do falecimento da avó, que ocorreu em 26.4.1998 (C);
d) São também netas da falecida A as irmãs da autora (D);
e) É ainda neto da falecida A o R. M, primo da A. (E);
f) Quando faleceu A deixou com herdeiros a filha R, a A. e as irmãs, em representação do filho pré-falecido António (F);
g) Em 29.5.1990, por escritura celebrada no 2° Cartório Notarial de Cascais, a falecida A declarou vender ao neto M, ora R.: (a) um prédio urbano sito na Av. do Século, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente,; (b) um prédio urbano sito na Av. do Século, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente (G);
h) Os prédios em questão encontram-se registados a favor do R. marido, conforme inscrições G-2 (H);
i) As inscrições em questão foram lavradas com base no título correspondente à escritura de compra e venda referida (I);
j) Pelo menos em 7.4.2004 a A. teve conhecimento da celebração da compra e venda (2º);
l) A R. A foi médica assistente da A., tendo-lhe prestado consultas durante a gravidez (5°);
Com base no documento junto a fls. 12-15 resulta ainda provado, com relevância para o conhecimento do recurso, estoutro facto:
m) Na referida escritura de compra e venda, celebrada em 29 de Maio de 1990, foi exarado, além do mais, o seguinte:
Esta escritura foi lida aos outorgantes e aos mesmos explicado o seu conteúdo (…) com a advertência de que este acto é anulável nos termos do número dois do artigo oitocentos e setenta e sete do Código Civil

2.2. De direito:
Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação da recorrente, delas emergem como questões essenciais a decidir saber:
- se o despacho saneador formou caso julgado formal quanto à questão da legitimidade do lado passivo;
- se, a existir falta de consentimento na venda realizada pela avó da autora a um outro neto, o réu M, esta acarreta a anulabilidade do negócio por força do disposto no artigo 877° do Código Civil e, em caso afirmativo, se caducou o direito da autora;

 2.2.1. A presente acção entrou em juízo no dia 20 de Setembro de 2004, estando ao tempo em vigor o estabelecido no artigo 510º nºs 1 al. a) e 3 do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, nos termos do qual constitui caso julgado formal, logo que transite, o despacho que aprecie concretamente das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes ou que, face aos elementos do processo, deva apreciar oficiosamente.
No caso vertente, a ré R excepcionou a sua ilegitimidade, alegando não ter interesse directo em contradizer face à relação material controvertida desenhada pela autora na petição inicial, invocando em abono da sua tese o estatuído no artigo 26º nºs 1 e 3 do Código de Processo Civil e pugnado pela sua absolvição da instância, entendimento que, como se referiu, mereceu a oposição da autora.
Conhecendo em concreto desta excepção, considerou-se, e bem, no despacho saneador, que transitou em julgado, reconduzir-se a questão fulcral dos presentes autos à falta do consentimento devido na venda a que alude o artigo 877º do Código Civil, nele se exarando, além do mais, o seguinte:
A autora demanda o alegado comprador (e sua cônjuge), como interveniente no negócio jurídico que pretende ver anulado, bem como a co-ré R, na qualidade de filha da vendedora (avó da autora).
O interesse em contradizer é aferido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da perda da demanda (…).
Nessa óptica, não vislumbramos qual a desvantagem jurídica que poderá resultar para a co-ré R da eventual procedência da acção, na medida em que a mesma não tem nenhum interesse directo nem indirecto a tutelar, nem interveio no negócio em causa, nem sequer verá a sua expectativa jurídica hereditária afectada (bem pelo contrário) desse eventual resultado.
Assim, conclui-se pela ilegitimidade da co-ré e pela procedência da invocada excepção dilatória de ilegitimidade, motivo pelo qual se decide absolvê-la da instância…”.
Surpreendentemente e ao arrepio desta decisão, sobre a qual se constituiu caso julgado formal que a tornou obrigatória dentro do processo (artigo 672º do Código de Processo Civil), veio a concluir-se na sentença recorrida, proferida depois de realizado o julgamento e fixados os factos provados, não poder conhecer-se de mérito por existir preterição de litisconsórcio necessário passivo, posto que sem estarem ao lado dos réus todos os eventuais interessados a decisão da causa não produziria efeito útil normal (artigo 28º do citado código).
Assim considerando e entendendo que só a questão da ilegitimidade da ré R fora concretamente apreciada, decidiu-se oficiosamente pela procedência da excepção dilatória da ilegitimidade e consequente absolvição dos réus da instância.
Não pode aceitar-se, no caso, esta interpretação restritiva dos efeitos do caso julgado formal.
Na verdade, o despacho saneador foi bem claro na afirmação de que se não está perante um caso de litisconsórcio necessário passivo e foi com tal fundamento que excluiu a ré R da lide.
Esta fundamentação tem de ter-se por intimamente conexionada com a decisão que julgou procedente a excepção dilatória da ilegitimidade deduzida e, forçosamente, abrangida pelos efeitos do caso julgado formal, não permitindo uma posterior decisão absolutamente contraditória com aquela.
A não ser assim, ficariam abaladas a segurança e certeza jurídicas que o caso julgado visa salvaguardar. Na verdade, numa primeira decisão, transitada em julgado, considerou-se que nesta acção não é exigível litisconsórcio necessário passivo, deixando-se até implícito que, quando muito, poderia ocorrer litisconsórcio voluntário do lado activo, e numa posterior vem a entender-se, oficiosamente, que sem tal litisconsórcio necessário passivo a decisão não atinge o seu efeito útil normal.
O caso julgado formal que se constituiu e que é vinculativo dentro do processo impede a subsistência desta última decisão, impondo a sua revogação.
Não obstante, cumprirá conhecer, desde já, de mérito face à regra da substituição ao tribunal recorrido consagrada no nº 1 do artigo 715º do Código de Processo Civil.

2.2.2. A venda a filhos ou netos, possível à luz do disposto no artigo 877º do Código Civil, constitui uma modalidade de compra e venda que comporta a particularidade de exigir o consentimento dos descendentes na venda.
“Estão previstas no nº 1 duas hipóteses: a de os pais venderem aos filhos e a de os avós venderem aos netos. Se venderem aos filhos é necessário o consentimento dos outros filhos, mas não em princípio, o consentimento dos netos. Os pais são as cabeças de estirpe e as pessoas imediatamente interessadas em evitar diminuições simuladas das legítimas. Somente se algum filho tiver falecido, é que passa tal filho para este efeito, a ser representado pelos seus descendentes”.[1]
Esta limitação visa evitar uma simulação, difícil de provar, em prejuízo das legítimas dos descendentes alheios ao negócio. Sem esta restrição, consubstanciada na exigência de consentimento dos descendentes, dificilmente se obviaria à celebração de contratos de compra e venda cujo objectivo seria causar prejuízos na legítima, nomeadamente, simulando uma compra e venda para realizar uma doação[2].
No caso em apreço, a autora Maria e suas irmãs são netas da falecida Ana. É ainda neto da falecida Ana o réu M, primo da autora e filho da R.
No dia 29 de Maio de 1990 a falecida A, por escritura outorgada no 2° Cartório Notarial de Cascais, declarou vender ao neto M, réu nesta acção, dois prédios urbanos situados na Av. do Século, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente, descritos na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob os n°s.1617 e 1619 de Samora Correia e inscritos na respectiva matriz predial sob os artigos 52.2 e1696.
À data da celebração daquela escritura já havia falecido, em 7 de Maio de 1988, o pai da autora, vindo a sua avó Ana, mãe daquele e de R, a falecer no dia 26 de Abril de 1998.
Neste contexto tornava-se necessário o consentimento da autora e das suas irmãs, por força da representação sucessória (artigo 2039º do Código Civil) face ao óbito do seu pai, filho da vendedora, consentimento que, embora não carecendo de forma especial, não foi prestado, como se deixou consignado na escritura de compra e venda, o que basta para se ter por cumprido o ónus de alegação e prova desse facto pela autora, ónus que lhe estava cometido por se entender que se trata de facto constitutivo do seu direito potestativo de anulação (artigo 342º nº 1 do Código Civil)[3].
Excepcionaram, porém, os réus a caducidade desse direito, alegando que a anulação não foi pedida dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, como o impõe o nº 2 do artigo 877º.
Acontece que os réus não lograram demonstrar a facticidade correspondente, ónus que sobre eles recaía por força do disposto no artigo 342º nº 2 do Código Civil, tendo resultado apenas provado que a autora tomou conhecimento da celebração da compra e venda, pelo menos, em 7 de Abril de 2004 (cfr. resposta ao artigo 2º da base instrutória), pelo que a instauração da presente acção no dia 20 de Setembro de 2004 teve lugar muito antes de decorrido o aludido prazo de um ano sobre tal conhecimento, ou seja, antes de operar a caducidade do direito de a autora pedir a anulação da venda.
Logo, tem de concluir-se pela procedência da acção, com a consequente anulação da compra e venda realizada entre a falecida Ana e o réu M, seu neto, através da escritura celebrada em 29 de Maio de 1990, anulação que tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, em conformidade com o que dispõe o artigo 289º do Código Civil.
Procedem, assim, as conclusões da alegação da autora, recorrente.
3. Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, e, consequentemente, julga-se a acção procedente e anula-se a venda realizada pela escritura pública de compra e venda lavrada a 25 de Outubro de 1990 no 2° Cartório Notarial de Cascais respeitante aos prédios urbanos identificados supra, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, e determina-se o cancelamento, na Conservatória do Registo Predial de Benavente, da inscrição G-2 referente ao prédio descrito sob o nº 1617 – Samora Correia, e da inscrição G-2 referente ao prédio descrito sob o nº 1619 – Samora Correia, lavradas a favor do réu M.
Custas nas duas instâncias pelos réus.
26 de Junho de 2008
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)
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[1] P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., pág. 165.
[2] Cfr.Baptista Lopes, Contrato de Compra e Venda, pág. 51, e Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) Compra e Venda, Locação, Empreitada, 2ª ed., Almedina, pág.58.
[3] Cfr.P. Lima e A. Varela, ob. cit. pág. 166, e Pedro Romano Martinez, ob. cit, pág.59.