Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
121/08.1TELSB-B.L1-3
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I - O decurso do prazo normal de inquérito previsto no artigo 276.º do CPP, sem que o Ministério Público requeira, antes dele findar, a declaração de excepcional complexidade do processo ou o adiamento do acesso aos autos nos termos do artigo 89.º, n.º 6 do CPP, implica a cessação do segredo de justiça na sua dimensão interna, não havendo necessidade de uma decisão que expressamente o declare.
II - O pedido do Ministério Público, de prorrogação do acesso aos autos deve ser feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no artigo 276.º do CPP.
III - É desconforme com o regime do segredo de justiça resultante da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o despacho proferido num momento em que se havia completado o prazo normal de inquérito previsto no artigo 276.º do CPP e em que findara o segredo de justiça na sua vertente interna, que determinou, ao arrepio do disposto no artigo 89.º, n.º6, que os autos se mantenham em segredo de justiça por um período transitório, até ser proferido um ulterior despacho a apreciar o requerimento de excepcional complexidade do processo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
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1. Relatório
1.1. Nos autos de inquérito com o n.º 121/08.1telsb-B.L1, em que, além do mais, são arguidos A… e B…, o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu em 6 de Novembro de 2009 que “por via do alargamento do prazo de inquérito ou por via do adiamento por três meses do acesso aos autos, [s]e mantenha o regime do segredo de justiça a vigorar nos presentes autos”.
Sobre esta promoção recaiu o despacho ora sob recurso, proferido em 9 de Novembro de 2009 pelo Mmo. Juiz do Tribunal Central de Investigação Criminal, que decidiu nos seguintes termos:
«Sem se tomar, desde já, posição definitiva sobre o adiamento do acesso aos autos pelo período de três meses, conforme dispõe o art. 89° – 6 do CPP, mas por forma a acautelar o segredo da investigação, versus pendência de requerimento de declaração de excepcional complexidade, determina-se que os autos se mantenham em segredo de justiça até à prolação da decisão sobre o requerimento de excepcional complexidade, aí se tomando, então, decisão conclusiva sobre a necessidade de adiamento do acesso aos autos e consequentemente o términos do prazo por que os autos se manterão nessa situação, desde logo levando em conta o período de tempo que vier a decorrer entre o dia 03/11/2009 e o momento da prolação desse despacho.»
1.2. Os arguidos A… e B… interpuseram recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar a respectiva motivação, as seguintes conclusões:
1. Na sequência do promovido pelo Exmo. Senhor Procurador da República decidiu o Exmo. Juiz de Instrução o seguinte: "Sem se tomar, desde já, posição definitiva sobre o adiamento do acesso aos autos pelo período de três meses, conforme dispõe o art. 89°– 6 do CPP, mas por forma a acautelar o segredo da investigação, versus pendência de requerimento de declaração de excepcional complexidade, determina-se que os autos se mantenham em segredo de justiça até à prolação da decisão sobre o requerimento de excepcional complexidade, aí se tomando, então, decisão conclusiva sobre a necessidade de adiamento do acesso aos autos e consequentemente o términos do prazo por que os autos se manterão nessa situação, desde logo levando em conta o período de tempo que vier a decorrer entre o dia 03/11/2009 e o momento da prolação desse despacho.
2. Tendo o Exmo. Procurador da República promovido que “por via do alargamento do prazo de inquérito ou por via do adiamento por três meses do acesso aos autos, se mantenha o regime do segredo de justiça a vigorar nos presentes autos”.
3. Antes de mais, impõe-se referir que o presente inquérito teve início em 3 de Março do corrente ano, tendo sido nesse momento em que o mesmo passou a correr contra pessoa determinada com a identificação dos sujeitos que foram sujeitos a intercepções telefónicas.
4. Assim, e tendo em conta os crimes em causa nos presentes autos – burla qualificada. fraude fiscal qualificada, abuso de confiança e branqueamento de capitais – o prazo de duração do inquérito é, nos termos do preceituado no artigo 276°. n.° 2, alínea a) do Código de Processo Penal, de oito meses.
5. O que significa que os oito meses – prazo de duração do inquérito – terminaram no passado dia 3 de Novembro de 2009.
6. porém, que, embora o prazo se tenha esgotado no dia 3 de Novembro, a promoção do Exmo. Procurador da República concernente ao segredo de justiça data de 6 de Novembro de 2009, ou seja, 3 dias depois de o prazo de inquérito estar legalmente esgotado.
7. Sendo que a validação – não naqueles termos como infra de demonstrará – por parte do Exmo. Juiz de Instrução ocorreu no dia 9 de Novembro, validação essa que não podia ter lugar, uma vez que encontravam e encontram já esgotados os prazos máximos de conclusão do presente inquérito.
8. Ora, é manifesto que não é permitido, nem tão pouco lógico que se requeira o adiamento de um prazo – in casu do acesso aos autos - depois de findo o prazo de inquérito; pois, se assim pudesse suceder podia o Ministério Público a seu bel-prazer requerer o adiamento do acesso aos autos depois de decorridos, por hipótese, 2 meses do prazo máximo de duração do inquérito em total desrespeito pelo princípio plasmado no art. 86°, n.° 1 CPP, que dispõe que o processo penal é, a todo o tempo e sob pena de nulidade, público (com as excepções previstas na lei).
9. Dito de outro modo, "O pedido do MP de prorrogação do segredo interno deve ser feito antes de expirado o prazo de inquérito previsto no artigo 276° (correspondente neste ponto com Lamas Leite, 2006:571)." – in Comentário do Código de Processo Penal por Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 89° do CPP. página 253.
10. Mas para além disso e mais grave que o supra exposto foi o facto de ter o Exmo. Juiz de Instrução extrapolado, completa e manifestamente, o promovido pelo Ministério Público.
11. Pois, o Exmo. Juiz de Instrução determinou que os autos permanecem em segredo de justiça até à prolação da decisão sobre o requerimento de excepcional complexidade, ou seja, decide manter o segredo de justiça por um período indeterminado – até à prolação da decisão sobre o requerimento de excepcional complexidade.
12. O que é totalmente perverso, pois bem sabe o Exmo. Juiz de Instrução que a promoção do Ministério Público entrou fora de prazo, com também bem sabe que, não pode a mesma ser validada e por isso, para acautelar, não o segredo da investigação, mas sim por forma a negar aos Arguidos o conhecimento dos elementos constantes dos autos de modo a que estes últimos se vejam privados do direito de defesa constitucionalmente consagrado, determinou sem qualquer base legal para isso, que os autos se mantenham em segredo de justiça por um período indeterminado.
13. E, bem sabendo também o Exmo. Juiz de Instrução que logo que findos os prazos previstos no artigo 276° podem os Arguidos ter imediato acesso a todos os elementos dos autos, descortina aquela solução totalmente violadora do plasmado no artigo 86°. n.° 1 do CPP.
14. O que causa aos Arguidos uma profunda e séria estranheza pois tal entendimento/decisão – que considerou adiar o acesso aos autos por um período indeterminado – é, PARA ALÉM DE NULO, perfeitamente irrazoável e violadora dos mais elementares direitos e garantias dos arguidos em processo penal
15. Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no dia 27 de Fevereiro de 2008, disponível in www.dqsi.pt:
"Recordemos que o processo penal também serve para proteger e garantir os direitos dos arguidos e que a tensão entre publicidade e segredo – que hoje tende expressamente para a primeira – não pode obnubilar, nem ofuscar os direitos e as garantias de quem está sujeito a um processo de natureza criminal."
16. O que significa que, com a alteração ao Código de Processo Penal no respeitante ao regime do segredo de justiça, passou a vigorar a regra da publicidade do processo desde o instaurar do inquérito – conforme dispõe o n.° 1 do artigo 86.° do C.P.P.
17. Em prejuízo da eficácia da garantia constitucionalmente consagrada de que o processo criminal assegura (no tempo adequado) todas as garantias de defesa ao arguido – nos termos do preceituado no n.° 1 do artigo 32.° da CRP – nega-se o acesso aos autos por período indeterminado, tendo por base uma promoção intempestiva, e uma decisão nula na medida em que viola de forma flagrante o art°. 86° n.°1 do C.P.P., devendo por consequência o despacho do Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal ser revogado por V. Exas..
18.Para além da violação clara das garantias de defesa do arguido aquela decisão do Exmo. Juiz de instrução – que determinou que ao autos permanecessem em segredo de justiça por um período indeterminado – ofende o preceituado no artigo 20°, n.° 4 e n.° 5 da CRP.
19.Ora, ín casu verifica-se o ilegal adiamento do acesso aos autos, tendo por base uma promoção fora de prazo, ofendendo princípios constitucionalmente consagrados, tais como, decisão em prazo razoável e a supra referida celeridade processual – artigo 20º n.° 4 e n.° 5 da CRP.
20.Inconstitucionalidade que desde já se invoca. Em Conclusão:
21.O prazo máximo para a conclusão do inquérito era, no caso em apreço, de 8 meses – alínea a) do n.° 2 do artigo 276° por referência ao n.° 2 do artigo 215° do CPP.
22. Prazo que findou no passado dia 3 de Novembro de 2009.
23. A promoção do Ministério Público ocorreu no dia 6 de Novembro, 3 dias após o prazo máximo de conclusão do inquérito, o que não podia ser atendido pelo Exmo. Juiz de Instrução por ser manifestamente intempestivo.
24. Porém, o Exmo. Juiz de Instrução não só atendeu à pretensão do Ministério Público como a extrapolou – determinando que o segredo de justiça permanecesse durante período indeterminado –: decisão essa que é claramente nula e violadora do preceituado nos artigo 89° n.° 6, 86°, n.° 1 do C.P.P. e artigo 32°, n.° 1, 20°, n.° 4 e 5 da C.R.P.
25. Face ao supra exposto, reitera-se, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 89° n.° 6, 86 n.° 1 do CPP e o preceituado nos artigos 32°, n.° 1, 20°, n.° 4 e 5 da CRP.
26. Nesses termos, requerem os Arguidos que seja revogada a decisão recorrida por ser nula e violadora dos alegados normativos e, em consequência, seja concedido o seu imediato e absoluto acesso aos presentes autos de inquérito.
Termos em que deve dar-se provimento ao recurso apresentado pelos Arguidos e, em consequência, ser declarado o acesso imediato e absoluto aos autos por já terem sido esgotados os prazos de duração do inquérito e por ser aquela decisão do Exmo. Senhor Juiz de Instrução nula.”
1.3. Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do acórdão recorrido.
Conclui do seguinte modo:
“1º - O regime do segredo de justiça foi aplicado nestes autos, em sede provisória, pelo nosso despacho de folhas 357, tendo por base a salvaguarda dos interesses da investigação, decisão que foi judicialmente validada a folhas 363 e 364, nos termos do art. 86º-3 do Cod. Processo Penal.
2º - Foi identificado, de uma forma que mereceu a concordância judicial e a aceitação pelos ora recorrentes, o momento em que, por a investigação ter passado a decorrer contra pessoa certa, se deve começar a contar o prazo normal para o decurso do Inquérito, conforme art. 276º-3 do Cod. Processo Penal, data essa fixada no dia 3 de Março de 2009.
3º - Para a definição do prazo normal aplicável ao Inquérito, suscitámos, através do nosso despacho de folhas 2674, que fosse reconhecida a excepcional complexidade do processo nos termos e para os efeitos do art. 215º-3 e 276º-2 c) do Cod. Processo Penal.
4º - Independentemente de tal declaração de excepcional complexidade, atentos os crimes de burla agravada e de branqueamento de capitais em causa nos autos, sempre seria aplicável a figura do adiamento do acesso aos autos por um período de três meses, previsto no art. 89º-6 do Cod. Processo Penal.
5º - A decisão recorrida aprecia e afirma a existência de fundamentos para ser reconhecido o adiamento por três meses do acesso aos autos, nos termos do art. 89º-6 do Cod. Processo Penal, mas, ao mesmo tempo, admite e sujeita a contraditório o pedido de declaração de excepcional complexidade, que implica o alargamento dos prazos do Inquérito e logo do regime de segredo de justiça.
6º - Por esse motivo, o despacho recorrido reconhece que o segredo de justiça deveria subsistir até se definir qual o prazo efectivamente aplicável ao Inquérito, não tomando uma decisão definitiva sobre a prorrogação do segredo de justiça por um período de três meses, nos termos do art. 89º-6 do Cod. Processo Penal.
7º - A decisão recorrida aprecia e reconhece que a investigação se não encontra concluída e que deveria prosseguir sob segredo de justiça,
8º - limitando-se a apreciar e decidir sobre as questões colocadas pela nossa promoção, sem suspender ou alterar as regras de contagem dos prazos de vigência do Inquérito e sem atingir os direitos de defesa dos arguidos, não se verificando, por isso, qualquer nulidade que o possa afectar.
9º - A declaração de excepcional complexidade do processo foi suscitada atempadamente e não mereceu sequer a oposição dos agora recorrentes - conforme art. 215º-4 do Cod. Processo Penal.
10º - Por sua vez, a vigência do regime de segredo de justiça tem os seus prazos aferidos pelos legalmente admitidos como prazo normal de duração do Inquérito, por remessa do art. 89º- 6 para o art. 276º do Cod. Processo Penal.
11º - Logo, a vigência do segredo de justiça adere aos prazos legalmente admitidos como prazos normais do Inquérito, sendo estes alargados, nos termos do art. 215º-3 do Cod. Processo Penal, quando ocorrer a declaração de excepcional complexidade do processo.
12º - Uma vez declarada a aplicação ao Inquérito do regime de segredo de justiça e enquanto não existir decisão que expressamente levante esse regime, não podemos, em rigor, falar de um prazo para a duração do segredo de justiça, mas sim de um prazo de duração do Inquérito.
13º - Qualquer alteração processual que contenda com a definição do prazo do Inquérito, como é o caso da declaração de excepcional complexidade, do art. 215º-3, por referência do art. 276º-2 c) do Cod. Processo Penal, reflecte-se na subsistência do regime de segredo de justiça.
14º - O segredo de justiça não se extinguiu com o termo do prazo previsto no art. 276º-2 a) do Cod. Processo Penal, precisamente porque se veio a alargar o prazo do Inquérito, ao se revelar o procedimento como de excepcional complexidade, conforme admitido no mesmo art. 276º-2 b) e c) do Cod. Processo Penal, razão pela qual se pode afirmar que não se encontrava expirado o prazo do Inquérito, quando foi colocada a questão da continuação do segredo de justiça.
15º - Ao contrário do que os recorrentes insinuam, a decisão recorrida não implica uma vigência do segredo de justiça para além do prazo do Inquérito e este não é interrompido nem suspenso na sua contagem - razão pela qual a decisão de folhas 2910 e seguintes veio a fixar o termo do prazo normal do Inquérito na data de 3-3-2010, sem prejuízo das prorrogações admitidas pelo art. 89º-6 do Cod. Processo Penal.
16º - Quanto ao regime vigente no período entre 3-11-2009, em que terminou o primeiro prazo de oito meses aplicável ao Inquérito, e a data de 9-11-2009, em que veio a ser proferida a decisão agora recorrida, o mesmo nunca seria o da publicidade processual, mas sim, um regime de segredo com diminuição da sua vertente interna, isto é, com acesso aos autos por alguns dos seus intervenientes.
17º - Com efeito, o regime estabelecido no referido art. 89º-6 do Cod. Processo Penal, que se traduz no acesso aos autos por parte dos intervenientes, é bem diverso do estabelecido no art. 86º-6 do mesmo Código, onde se define em que é que se traduz o regime da publicidade.
18º - Uma vez decretada nos autos a aplicação do regime de segredo de justiça, apenas por via do levantamento do mesmo, seja por decisão judicial seja por concordância do Ministério Público, nos termos do art. 86º- 4 e 5 do Cod. Processo Penal, se volta a tornar aplicável o regime da publicidade processual.
19º - No caso dos presentes autos, não foi proferida qualquer decisão de levantamento do segredo de justiça nem o mesmo foi aliás requerido por qualquer dos intervenientes, razão pela qual, ao contrário do afirmado pelos Recorrentes, a afirmação da verificação de uma pretensa nulidade por violação da regra da publicidade dos autos, com a reclamada aplicação do art. 86º- 1 do Cod. Processo Penal, constitui um verdadeiro absurdo.
20º - Os recorrentes alegam que a decisão recorrida diminuiu os seus direitos de defesa, por lhes ter sido vedado o acesso aos autos, mas o que se verifica é nunca foi sequer solicitada nos autos a consulta de qualquer peça processual, mesmo após o interrogatório judicial a que os recorrentes foram sujeitos, nunca tendo sido usada a prerrogativa prevista no art. 89º-1 e 2 do Cod. Processo Penal.
21º - A opção do legislador da reforma processual penal de 2007, no sentido de impor a publicidade como regra, compreendia a consagração de excepções, sendo estas susceptíveis de ser aplicadas por iniciativa de diferentes intervenientes processuais, para além do Ministério Público – art. 86º-2 e 3 do Cod. Processo Penal.
22º - Entre essas excepções contam-se as circunstâncias, verificadas no caso concreto dos autos, de o segredo de justiça ter sido determinado no interesse da investigação, nos termos do art. 86º-3 do Cod. Processo Penal, e de estar em causa criminalidade altamente organizada, caso em que é admitida a dupla prorrogação da vigência do segredo de justiça, já para além do prazo normal de vigência do Inquérito, conforme art. 89º-6 do Cod. Processo Penal.
23º - Atendendo a que, nos presentes autos, se visam investigar sucessivos negócios na área imobiliária e accionista, realizados à conta de financiamentos bancários fraudulentos e através de entidades veículo em of-shore, com a forte suspeita de visarem atribuir vantagens patrimoniais a terceiros, entre os quais se incluem os ora recorrentes, percebemos porque razão se impõe e se justifica, no caso concreto, o regime excepcional que a nova Lei processual penal não deixou de consagrar para os casos de criminalidade altamente organizada.
24º - A estrutura constitucional concebida para o processo penal não deixou de assentar numa base acusatória, temperada pela atenção a um princípio de tutela da investigação, de tal forma que o próprio segredo de justiça mereceu consagração na Lei constitucional – art. 20º-3 da Constituição da República.
Tudo visto, entendemos que a decisão recorrida aplica correctamente a Lei e realiza o Direito, pelo que não merece censura.”
1.4. O recurso foi admitido por despacho certificado a fls. 124.
1.5. Uma vez remetido o mesmo a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido de que o despacho recorrido foi proferido nos termos do artigo 89.º, n.º 6 do CPP e que é irregular (pois o adiamento referido naquele preceito não pode ser decretado intercaladamente), irregularidade que deveria ter sido arguida no prazo de três dias, o que não foi feito. Acrescenta que, com o despacho de 10 de Dezembro a declarar a especial complexidade do processo e a consequente prorrogação do prazo e manutenção do segredo de justiça, a irregularidade quanto ao segredo de justiça ficou sanada, pelo que o recurso não merece provimento.
1.6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, os arguidos apresentaram resposta em que reiteram o pedido de provimento do recurso por si interposto.
1.7. Foi proferido despacho preliminar.
Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que os recorrentes produziram para fundamentar a sua impugnação, onde sintetizam as razões da discordância do decidido e resumem as razões do pedido - artigos 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal -, as questões que fundamentalmente se colocam à apreciação deste Tribunal são as de saber:
1.ª – Se o decurso do prazo normal de inquérito previsto no artigo 276.º do Código de Processo Penal, sem que o Ministério Público requeira, antes dele findar, a declaração de excepcional complexidade do processo ou o adiamento do acesso aos autos nos termos do artigo 89.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, implica a cessação do segredo de justiça na sua dimensão interna;
2.ª – Se o despacho recorrido, proferido em 9 de Novembro de 2009, se fundamenta em motivo legal bastante para manter o inquérito em segredo de justiça nos mesmos moldes em que se encontrava até então e se o mesmo viola a Constituição da República;
3.ª – Se deve determinar-se o imediato acesso aos autos.
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3. Fundamentação
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3.1. Nos autos de inquérito em que foi interposto o presente recurso investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática de crimes de burla qualificada, abuso de confiança, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea a) e 368.º-A do Código Penal e pelos artigos 103º, n.º 1, alíneas a) e c) e 104º, n.º 1, alíneas d) e f) e n.º 2 do RGIT.
Relembremos a cronologia dos factos relevantes ocorridos no inquérito, em face do que decorre dos documentos certificados nestes autos e do que resulta pacificamente aceite pelos intervenientes processuais nas diversas peças por eles subscritas:
· 3 de Março de 2009 – início da contagem do inquérito, por ter nesse momento passado a correr contra pessoa determinada [artigo 276.º, n.º3, do CPP];
· 6 de Novembro de 2009 – promoção do Ministério Público de que seja declarada a excepcional complexidade dos autos e se mantenha a vigorar o regime do segredo de justiça, “por via do alargamento do prazo de inquérito ou por via do adiamento por três meses do acesso aos autos;
· 9 de Novembro de 2009 – despacho que mantém os autos em segredo de justiça até à prolação da decisão sobre o requerimento de excepcional complexidade;
· 10 de Dezembro de 2009 – despacho que declara a “excepcional complexidade da investigação nos termos e para os efeitos dos art.º s 215.º, n.ºs 3 e 4 e 276.º, n.ºs 1 e 2 do CPP" e, como consequência de o prazo do inquérito se elevar para um ano, “ex vi dos art.ºs 276.º n.ºs 1 e 2 alínea c) e 215.º, n.º 3, do CPP", mantém os autos “sujeitos ao regime do segredo de justiça até 03/03/2010, altura em que, em face do evoluir da investigação, se decidirá quanto à eventual necessidade de uma prorrogação do segredo de justiça, caso esta venha a ser requerida”.
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3.2. Como resulta desta cronologia, o fim do prazo normal do inquérito – 8 meses, de acordo com o artigo 276.º, n.º2, alínea a) do Código de Processo Penal – ocorreu em 3 de Novembro de 2009.
Quando o Ministério Público se aprestou a promover a manutenção do segredo de justiça nos moldes em que vigorava até então (com um duplo fundamento invocado em alternativa), fê-lo em 6 de Novembro de 2009, ou seja, três dias depois de o prazo normal do inquérito se ter esgotado.
Por isso se coloca a primeira questão enunciada, de saber se o decurso do prazo normal de inquérito previsto no artigo 276.º do Código de Processo Penal, sem que o Ministério Público requeira, antes dele findar, a declaração de excepcional complexidade do processo ou o adiamento do acesso aos autos nos termos do artigo 89.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, implica a cessação do segredo de justiça na sua vertente interna.
Os presentes autos nasceram já sob a égide do regime do segredo de justiça tal como ele foi delineado na lei adjectiva penal, com a reforma operada em 2007.
De acordo com o nº1 do art.º 86º do Código de Processo Penal, “[o] processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei”.
O inquérito passou assim a ser, em regra, público.
Reflectindo sobre a configuração actual do regime do segredo de justiça no processo penal, salienta Costa Andrade (“Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 137.º, nº 3949, Março-Abril de 2008, pp. 230-231):
«Significa isto que, no contexto do novo ordenamento positivado, as situações de segredo de justiça ficaram reduzidas a casos decididamente marginais e excepcionais. Cabendo precisar que a marginalidade e excepcionalidade não se revelam apenas no plano fáctico ou quantitativo segundo o modelo regra-excepção. Intervém também aqui um factor simbólico, expresso no teor “fraco” da dignidade normativa reconhecida ao segredo de justiça: tanto na existência como na essência, quer no se, quer no quando ou quanto, o segredo de justiça está hoje inteiramente dependente da iniciativa e da intervenção dos sujeitos processuais (arguido, assistente, Ministério Público, Juiz de Instrução), segundo diferentes modelos de interacção. Não resultando em nenhum caso de imposição ou injunção directa da lei, o segredo está em toda a linha cometido à disponibilidade dos sujeitos processuais.».
Com efeito, no âmbito do inquérito, a excepção à publicidade e submissão ao segredo de justiça apenas pode ocorrer nos termos prescritos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, sob iniciativa dos sujeitos processuais ali identificados, valendo o regime do segredo de justiça que nessa sequência se determinar enquanto perdurar o inquérito e vinculando todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo (nº 8 do art.º 86º).
Especificamente no que diz respeito ao segredo de justiça na sua vertente interna – o que está em causa neste recurso –, o legislador fez coincidir a duração do segredo de justiça com os prazos de duração máxima do inquérito previstos no art.º 276º do Código de Processo Penal ao estabelecer no nº 6 do art.º 89º daquele diploma processual que:
Findos os prazos previstos no art.º 276º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do art.º 1º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação”.
Deste preceito resulta claramente o fim do segredo de justiça, na sua dimensão interna (relativamente ao arguido, assistente e ofendido), uma vez decorrido o prazo máximo de duração do inquérito previsto na lei.
Mais uma vez lançando mão da palavra de Costa Andrade, dir-se-á que o n.º 6 do artigo 89.º é portador de uma “cominação”: o fim do segredo de justiça interno. A cominação em exame “assume o significado de uma sanção pela ultrapassagem dos prazos consignados para o inquérito”. Ou seja, no essencial, este preceito “decreta o fim do segredo de justiça interno uma vez ultrapassados os prazos consignados (artigo 276.º do CPP) para o inquérito” (loc. cit., pp. 236 e 238).
O n.º 6 do referido artigo 89.º tem suscitado várias dificuldades de interpretação, designadamente no que diz respeito ao termo inicial de contagem do prazo de adiamento e à duração do prazo de prorrogação, ambos nele previstos (vide, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 2008.04.03, Processo n.º 0841343, in www.dgsi.pt, da Relação de Lisboa de 2008.09.17, Processo n.º 5036/08, in www.pgdlisboa.pt, e da Relação de Lisboa de 2009.01.06, Processo n.º 6085/2008-5, in www.dgsi.pt).
Mas dele resulta, a nosso ver, de forma clara, o fim do segredo de justiça, na sua vertente de segredo interno, relativamente ao arguido, assistente e ofendido, uma vez decorrido o prazo máximo de duração do inquérito previsto na lei.
Esta a perspectiva que foi acolhida no Acórdão desta Relação e Secção de 2008.10.08 (Processo n.º 5079/08, sumariado in www.pgdlisboa.pt), cujas considerações a este propósito inteiramente subscrevemos, e que a dado passo refere:
“Tal como resulta do próprio preceito, o segredo interno cessa automaticamente a não ser que o M.º Público requeira o adiamento da quebra desse segredo pelo prazo máximo de 3 meses, prazo esse que pode ser prorrogado por uma só vez, pelo tempo objectivamente indispensável à conclusão da investigação e caso se trate de algum dos crimes previstos nas alíneas i) a m) do art.º 1º do CPP.
Estes adiamentos da quebra do segredo interno só podem ter lugar a requerimento do M.º Público, independentemente do arguido, do assistente ou do ofendido manifestarem ou não a vontade de consultar o processo, e têm de ser requeridos ainda antes do termo do prazo legal do inquérito, ou antes do termo do primeiro adiamento por 3 meses, no caso de ser possível a prorrogação deste prazo, sob pena de o segredo de justiça interno caducar no termo desses prazos, relativamente ao arguido, ao assistente e ao ofendido.”
Também neste sentido, de que o pedido do Ministério Público, de prorrogação do segredo de justiça, deve ser feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no artigo 276.º do Código de Processo Penal foi recentemente proferido o Acórdão da Relação de Coimbra de 2010.02.20 (Processo n.º 167/08.0GACLB-A.C1 in www.dgsi.pt) e pronuncia-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, Lisboa 2009, p. 253, citando Lamas Leite, “Segredo de justiça interno, inquérito, arguido e seus direitos de defesa”, in RPCC, ano 16, 2006, p. 571.
Não sendo o pedido do Ministério Público, de prorrogação do segredo de justiça, feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no artigo 276.º do Código de Processo Penal, e completando-se desse modo o prazo normal do inquérito, sem que nele exista decisão judicial susceptível de determinar a elevação de tal prazo para uma data posterior por força da eventual excepcional complexidade que caracterize o processo, cessa o segredo de justiça na sua vertente interna.
Invoca o Digno Magistrado do Ministério Público na sua resposta que sempre seria necessária uma decisão que determinasse o levantamento do segredo de justiça para que pudesse voltar a aplicar-se o regime da publicidade processual, daqui inferindo que o mero decurso do prazo de inquérito não tem aquela consequência.
Como decorre do já exposto, não perfilhamos este entendimento no que diz respeito ao segredo de justiça na sua vertente interna, a única que está em causa neste recurso.
Nesta vertente, o segredo de justiça pode findar pelo mero “esgotamento dos prazos em que pode vigorar de acordo com a versão em vigor do Código” (partindo deste pressuposto, vide o Parecer da PGR n.º 25/2009 - V/6 - in DR II série, de 17 de Novembro de 2009).
O levantamento do segredo de justiça referenciado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 86.º – e nenhum outro preceito prevê a prolação de uma decisão judicial no sentido do levantamento do segredo de justiça – pressupõe que esteja em vigor o regime do segredo de justiça e que o Ministério Público, o arguido, o assistente ou o ofendido entendam ser oportuno fazê-lo cessar, renascendo a regra geral da publicidade prescrita no n.º 1 do mesmo artigo 86.º. É esta a conclusão a que conduz o teor literal dos preceitos e, também, a sua inserção sistemática.
Nestes casos, cabe em princípio ao Ministério Público (por iniciativa própria ou a requerimento) determinar o levantamento do segredo de justiça, pertencendo a decisão final sobre o assunto ao Juiz de Instrução quando o Ministério Público não deferir o requerimento que lhe haja sido formulado nesse sentido pelo arguido, pelo assistente ou pelo ofendido.
Uma vez decidido o levantamento do segredo de justiça, ressurge a regra geral da publicidade, pondo fim ao segredo de justiça tanto na sua dimensão interna (perante os sujeitos processuais) como na sua dimensão externa (perante o público em geral).
Verificando-se, tão só, que se completou o tempo prescrito no artigo 276.º do Código de Processo Penal, cessa ope legis o segredo de justiça na sua dimensão interna nos termos do preceituado no n.º 6 do artigo 89.º do mesmo código, não havendo qualquer necessidade de uma decisão que expressamente o declare.
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3.3. Debrucemo-nos agora, sobre a 2.ª questão enunciada de saber se o despacho recorrido, proferido em 9 de Novembro de 2009, se fundamenta em motivo legal bastante para manter, então, o inquérito em segredo de justiça.
3.3.1. O despacho em análise surgiu na sequência da promoção de 6 de Novembro de 2009 em que o Digno Magistrado do Ministério Público requereu a declaração de excepcional complexidade do inquérito e promoveu que, “por via do alargamento do prazo de inquérito ou por via do adiamento por três meses do acesso aos autos, [s]e mantenha o regime do segredo de justiça a vigorar nos presentes autos”.
Para melhor compreensão e interpretação do despacho recorrido, lembremos o seu teor integral:
«Por despachos de fls. 357 e 363 a 364, nos presentes autos, foi aplicado o regime de segredo de justiça nos termos do disposto no art.° 86.° - 3 do CPP.
Como já anteriormente referido, versam os presentes autos, a prática de factos susceptíveis de integrarem, para além do mais, os crimes de burla qualificada, fraude fiscal qualificada, abuso de confiança e branqueamento de capitais.
Os presentes autos tiveram origem numa queixa apresentada contra incertos, tendo passado a correr contra pessoa determinada em 03/03/09 com a identificação de suspeitos que foram sujeitos a intercepções telefónicas.
Atento os crimes em causa nos presentes autos o prazo de duração do inquérito é de oito meses – ex vi do disposto no art.° 276.° - 2 a) do CPP.
Assim, pese embora o prazo de duração do inquérito tenha decorrido no passado dia 3 do corrente mês de Novembro, o período de duração de tal prazo está naturalmente dependente da decisão que vier a ser tomada sobre o pedido de declaração de excepcional complexidade formulado pelo M.° P.° - ex vi do disposto no art.° 276.° - 2 c) do CPP.
Como bem refere o detentor da acção penal, caso o pedido de excepcional complexidade não venha a ser reconhecida, sempre o acesso aos autos poderá ser adiado por um período de três meses – ex vi do art.° 89.° - 6 do CPP.
Compulsados os autos, verifica-se que, a presente investigação, não se mostra ainda concluída, nem tão pouco se encontram esgotadas todas as diligências que importa realizar.
Atenta a matéria sob investigação nos presentes autos, entendemos que a publicidade, nesta fase, iria afectar de modo irremediável a investigação em curso, a eficácia das futuras diligências e, bem assim, a descoberta da verdade material sobre os factos ilícitos sob investigação.
Sem se tomar, desde já, posição definitiva sobre o adiamento do acesso aos autos pelo período de três meses, conforme dispõe o art. 89° – 6 do CPP, mas por forma a acautelar o segredo da investigação, versus pendência de requerimento de declaração de excepcional complexidade, determina-se que os autos se mantenham em segredo de justiça até à prolação da decisão sobre o requerimento de excepcional complexidade, aí se tomando, então, decisão conclusiva sobre a necessidade de adiamento do acesso aos autos e consequentemente o términos do prazo por que os autos se manterão nessa situação, desde logo levando em conta o período de tempo que vier a decorrer entre o dia 03/11/2009 e o momento da prolação desse despacho.»
3.3.2. Conforme constitui jurisprudência pacífica - cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2002.12.05 (Processo: 02B3349, in www.dgsi.pt) e de 1997.01.28 (in CJ, Acs do STJ, ano V, tomo I, p. 83) - a interpretação de uma sentença judicial, como acto jurídico que é, deve obedecer, por força do disposto no artigo 295.º do Código Civil, aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos.
Significa isto que um despacho – que, tal como a sentença, constitui um acto jurídico - deve ser interpretado de acordo com o que dispõe o nº 1 do artigo 236.º do Código Civil, ou seja com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do seu contexto, devendo analisar-se para o efeito os antecedentes lógicos da decisão nele contida, que a tornam possível e são seu pressuposto, dada a sua íntima interdependência.
De realçar, ainda, que, embora o objecto da interpretação seja a própria decisão judicial, deverão nessa tarefa interpretativa ter-se em conta outras «circunstâncias», mesmo que anteriores ou posteriores, que funcionam como «meios auxiliares de interpretação», na medida em que daí se possa retirar «uma conclusão sobre o sentido» que se lhe quis emprestar (cfr. Vaz Serra, in RLJ, Ano 110º, p. 42).
3.3.3. Em face dos termos concretos do despacho, e procedendo à interpretação do seu conteúdo de acordo com a teoria geral da impressão do destinatário consagrada no artigo 236.º do Código Civil, podemos adiantar que o mesmo, efectivamente, ao determinar que os autos se mantenham na situação de segredo de justiça até à prolação da decisão sobre a excepcional complexidade, profere uma decisão com características eminentemente cautelares sem que se fundamente em qualquer das hipóteses legais em que são admitidas excepções ao segredo de justiça na sua dimensão interna.
Embora não diga expressamente se mantém o segredo de justiça apenas relativamente ao plano externo, ou se a sua decisão também se projecta no plano interno, resulta dos termos anteriores do despacho que a decisão no mesmo contida se projecta nos dois planos.
Com efeito, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal pondera em primeiro lugar qual o prazo de duração do inquérito a que tem que atender em face dos crimes em causa – “o prazo de duração do inquérito é de oito meses – ex vi do disposto no art.° 276.° - 2 a) do CPP" – e conclui que ele decorreu “no passado dia 3 do corrente mês de Novembro”. Afirma-o sem margem para dúvidas.
Refere, após, que o período de duração do inquérito pode vir a alterar-se, o que depende da decisão “que vier a ser tomada sobre o pedido de declaração de excepcional complexidade formulado pelo M.° P.°” e afirma que “caso o pedido de excepcional complexidade não venha a ser reconhecida, sempre o acesso aos autos poderá ser adiado por um período de três meses – ex vi do art.° 89.° - 6 do CPP". Situa, pois, sempre, num momento futuro, a possibilidade de preenchimento dos requisitos da manutenção dos autos em segredo de justiça perante os sujeitos processuais enumerados no n.º 6 do artigo 89.º.
E, no excerto final – em que condensa a sua posição quanto à promoção alternativa do Ministério Público de manter o segredo de justiça, ou por uma via, ou por outra –, vem a explicitar, claramente, que afasta em primeiro lugar a via do adiamento por três meses do acesso aos autos conforme dispõe o artigo 89.º, n.º 6 (não toma posição definitiva eventualmente para salvaguardar um acesso ulterior a essa via) e, quanto à segunda via relacionada com o alargamento do prazo do inquérito por força da pretendida declaração da sua excepcional complexidade (artigos 276.º, n.º 2, alínea b) e 215.º, n.º 3 do Código de Processo Penal), inicia os procedimentos necessários à sua apreciação em despacho a proferir após cumprido o contraditório.
Em face da exclusão a que procede das duas vias colocadas em alternativa pelo Ministério Público, o Mmo. Juiz a quo, fica sem base legal para a manutenção transitória a que procede do segredo de justiça interno.
Vindo a manter os autos em segredo de justiça interno com exclusivo fundamento no objectivo de (ou, na expressão que utiliza, “por forma a”) “acautelar o segredo da investigação, versus pendência de requerimento de declaração de excepcional complexidade”.
Ou seja, temos que concluir que o despacho recorrido, proferido num momento em que se havia completado o prazo normal de inquérito previsto no artigo 276.º do Código de Processo Penal e em que, nos exactos termos previstos na 1.ª parte do n.º 6 do artigo 89.º do mesmo diploma, findara o segredo de justiça na sua vertente interna, determinou, ao arrepio do disposto naquele preceito, e sem base legal para a excepção que consagra, que os autos se mantenham em segredo de justiça por um período transitório, até ser proferido um ulterior despacho.
Assiste, neste aspecto, razão aos recorrentes.
3.3.4. Concluindo pela ilegalidade do despacho recorrido, fica prejudicada (por carecer consequencialmente de relevância prática para a decisão) a questão, também suscitada no recurso, de saber se o mesmo, ao decidir que os autos permanecessem em segredo de justiça por um período indeterminado e com base numa promoção intempestiva, também ofende o preceituado nos artigos 20.º, n.ºs 4 e 5 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República.
Deverá o recurso proceder, na medida das considerações antecedentes.
3.3.5. Divergimos, contudo, na qualificação a que os recorrentes procedem da desconformidade do despacho com a lei, quando invocam ser o mesmo nulo (conclusões 14.ª, 17.ª e 26.ª).
Com efeito, o erro de que enferma o despacho recorrido não constitui um vício formal do mesmo, situando-se ao nível da substância do despacho, do seu conteúdo decisório, do acerto ou desacerto da solução que consagra.
Cabendo-lhe apreciar a promoção do Ministério Público no sentido da manutenção do segredo de justiça, o tribunal a quo apreciou efectivamente a pretensão contida na promoção daquele magistrado e deu-lhe uma solução que, como vimos, é desconforme com a lei, mas sem que o despacho, em si, enferme – nem os recorrentes o apontam – de qualquer vício formal.
Ora só se o despacho estivesse inquinado, ele próprio, de um vício formal, é que poderia assacar-se-lhe uma invalidade processual e, eventualmente, declarar-se a sua nulidade, como pretendem os recorrentes (vide José A1berto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, pp. 507 e ss.).
No caso em análise, o despacho recorrido merece censura na medida em que cria uma espécie de regime “transitório” de segredo de justiça ao arrepio do que a lei estabelece, nos termos já explanados, mas não se vislumbra que padeça de qualquer vício formal intrínseco susceptível de levar a afirmar a sua invalidade.
Não deve, pois, ser declarada a nulidade do despacho, impondo-se, isso sim, a sua revogação (o que os recorrentes também pedem, apesar de simultânea e contraditoriamente, invocarem que o despacho é nulo) por decidir a questão que lhe foi colocada em desconformidade com a lei adjectiva vigente.
3.3.6. No douto parecer emitido, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, suscitou o problema de saber se a declaração judicial de excepcional complexidade, verificada em 10 de Dezembro de 2009, e a decisão então proferida de manutenção dos autos em regime de segredo de justiça até 3 de Março de 2010, é susceptível de sanar a, por ele denominada, “irregularidade” do despacho recorrido.
Como vimos, o despacho recorrido não enferma de vício susceptível de o invalidar, embora deva ser revogado por não ter decidido de forma acertada, face ao regime legal do segredo de justiça em vigor.
Não subscrevemos, pois, a perspectiva adoptada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer.
Deve acrescentar-se que o despacho recorrido, proferido em 9 de Novembro de 2009, e o despacho que veio a ser proferido em 10 de Dezembro – que neste recurso não nos cabe apreciar – têm absoluta autonomia, sendo proferidos em circunstancialismos distintos e fundando-se em pressupostos diversos.
A apreciação dos efeitos daquele despacho extrapola, claramente, o objecto do presente recurso.
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3.5. Concluindo-se que deve ser revogado o despacho recorrido, por manter o processo em segredo de justiça na sua vertente interna num momento em que este havia cessado, cabe agora apreciar se deve proceder a pretensão, também formulada no recurso, de que “seja concedido o seu imediato e absoluto acesso aos presentes autos de inquérito”.
E a resposta terá que ser negativa.
Com efeito, sendo os recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais, e não meio de obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não colocadas perante o tribunal recorrido.
Como é jurisprudência uniforme e reiteradamente afirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas, sim, a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso (vide, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2002.06.06, Processo n.º 1874/02-5.ª Secção, de 2003.10.30, Processo n.º 3281/03-5.ª Secção, de 2007.10.10, Processo n.º 3634/07-3.ª Secção, de 2008.12.04 Processo n.º 2507/08-3.ª Secção e de 2009.09.23, Processo n.º 5953/03.4TDLSB.S1-3.ª Secção, todos sumariados in www.stj.pt).
Os recursos ordinários visam a reponderação da decisão proferida, dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu.
Ora a questão do imediato e absoluto acesso aos autos não foi colocada ao tribunal da 1.ª instância, nem o despacho recorrido sobre a mesma se debruçou, o que impede a sua apreciação ex novo por este tribunal de recurso. Não consta efectivamente dos autos que os arguidos tenham pretendido consultar o processo ou elementos deles constantes e tenham formulado um requerimento com tal objectivo, não incidindo o despacho recorrido sobre uma qualquer pretensão nesse sentido, ou similar.
Sempre se dirá, todavia, que a apreciação da pretensão do acesso aos autos não depende exclusivamente do que aqui foi decidido quanto ao mérito do despacho judicial proferido em 9 de Novembro passado, dependendo, igualmente, do conhecimento cabal da ulterior tramitação dos autos e dos elementos que destes resultem, o que não está ao alcance deste tribunal superior.
Improcede, nesta parte, o recurso.
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Em face do decaimento parcial, os recorrentes suportarão custas nos termos do art.º 513º, nº 1 do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça a cargo de cada um deles em 5 Ucs.
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4. Decisão
Nesta conformidade, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso, e, em conformidade:
- revoga-se o despacho recorrido na parte em que determina que os autos se mantenham em segredo de justiça “até à prolação da decisão sobre o requerimento da excepcional complexidade”, no que diz respeito à vertente interna do segredo de justiça;
- não se toma conhecimento do recurso no que diz respeito ao pedido de acesso imediato aos autos.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça individual em 5 Ucs.
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(Documento elaborado pela relatora e integralmente revisto por quem o subscreve – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Lisboa, 17 de Março de 2010

Maria José Costa Pinto
Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida