Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
213/10.7TDLSB.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/04/2012
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário: Iº A expressão “prova gravada”, constante do nº4, do art.411, do Código de Processo Penal, refere-se a prova oralmente produzida em audiência de julgamento;
IIº O prazo alargado de recurso (30 dias), previsto naquele preceito legal, não é aplicável ao recurso interposto do despacho de não pronúncia, pois neste não existe uma decisão sobre matéria de facto, mas sobre indícios, não tendo o recurso por objecto a reapreciação da prova gravada;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 213/10.7 TDLSB, correu termos pelo 4.º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, A... e B..., que requereram e foram admitidos a intervir como assistentes, deduziram, individualmente, acusação particular contra C..., imputando-lhe, a primeira, factos que, em seu entender, consubstanciam a prática de um crime de injúria e outro de difamação previstos e puníveis pelos artigos 180.º e 181.º do Cód. Penal, e o segundo a prática de factos que, também na sua perspectiva, configuram dois crimes de difamação previstos puníveis pelo artigo 180.º do Código Penal.
O Ministério Público não acompanhou a acusação da assistente A..., por ter entendido que não há indícios suficientes da prática dos crimes que esta imputa ao arguido, mas acompanhou a acusação do assistente B....
Reagiu o arguido requerendo instrução, no termo da qual, em consonância com o Ministério Pública, mas contrariamente à posição dos assistentes, foi proferido despacho de não pronúncia relativamente a ambas as acusações.
A assistente A... conformou-se com a decisão, mas o assistente B... reagiu, recorrendo desse despacho de não pronúncia para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, de que, após convite para o efeito, extraiu as seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. “Existiu, pois, na apreciação da prova produzida, uma desvalorização do depoimento da Testemunha T1…, uma vez que esta afirmou, expressamente, que o Denunciado pronunciou no dia 16 de Julho de 2009, acerca do Denunciante que este “era a pessoa mais desonesta que conhecia”, que era a pessoa mãos desonesta de Lisboa” e que “ele deve-me quarenta mil escudos” – expressões que foram proferidas em francês pelo Denunciado, ora Recorrido, em contradição ao referido por este.

2. Existiu, ainda, na apreciação da prova produzida, uma desvalorização do depoimento da Testemunha T2... quando esta referiu que presenciou um “diálogo alterado” entre o Denunciado e a A..., em contradição ao referido pelo Denunciado ora Recorrido.

3. Por último, verificou-se, também, que, na apreciação da prova produzida, houve uma desvalorização do depoimento da A…, uma vez que por esta foi referido que o Denunciado afirmou, no dia 20 de Agosto de 2009, entre as 11.00 horas e as 12.00 horas, àcerca do Denunciante, ora Recorrente, e à sua então Mulher, que esta “é a mulher daquele aldrabão que não paga”.

4. Que estas desvalorizações na apreciação da prova levaram a erro na apreciação da mesma.

5. Que os depoimentos das Testemunhas T1…, T2... e da A…, são credíveis não existindo motivo para colocar em questão o que declararam quando das respectivas inquirições, tendo as duas primeiras invocado a relação existente com o Denunciante.

6. Ao contrário, do depoimento da Testemunha T3… que fere de total veracidade contrapondo-se às declarações das outras testemunhas, tendo, inclusivamente, omitido a relação com o Denunciado, ou seja, quer era noiva.

7. Deve, pois, entender-se que as expressões proferidas pelo Arguido contra o Denunciante foram devidamente provadas, tendo sido ofensivas do bom nome do Denunciante e integram a prática dos crimes de Injúria e Difamação, praticados pelo Arguido, ora Recorrido.

8. Devendo decidir-se de modo diferente no Douto Despacho, devendo o mesmo pronunciar o Arguido devido às expressões insultuosas por este proferidas contra o Denunciante ora Recorrente nos termos expostos, que integram a prática dos crimes de Injúria e Difamação”. 

Pede, por isso, a revogação do despacho (de não pronúncia) recorrido e a sua substituição por outro que pronuncie o arguido pela prática dos aludidos ilícitos criminais.
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A digna Magistrada do Ministério Público apresentou resposta em que se pronuncia pela confirmação da decisão recorrida e, portanto, pela improcedência do recurso.
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Por seu turno, na resposta que apresentou, o arguido conclui assim:
1. Não houve qualquer erro na apreciação da prova produzida perante o Tribunal de Instrução Criminal;
2. O depoimento da testemunha T3… não merece qualquer censura tendo sido prestado de forma clara e credível o mesmo já não se pode dizer do depoimento da testemunha T1…, cunhada do recorrente, que não mereceu a credibilidade do Tribunal no confronto com a demais prova produzida.

Por isso entende que o despacho de não pronúncia deve ser integralmente mantido.
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto manifestou a sua concordância com a posição tomada pela Magistrada do Ministério Público na 1.ª instância, pelo que entende não merecer provimento o recurso interposto.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
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II – Fundamentação
Uma vez concluso o processo, o relator, efectuado o exame preliminar previsto no artigo 417.º do Cód. Proc. Penal, deve, além do mais, verificar se há condições para proferir decisão sumária.
Assim acontecerá se, por exemplo, o recurso dever ser rejeitado (alínea b) do n.º 6 do citado art.º 417.º do Cód. Proc. Penal).
Impõe-se, pois, que comecemos por apreciar a tempestividade do recurso interposto, sendo certo que, se se concluir que o foi para além do prazo legal, isso implicará a sua rejeição e, portanto, o não conhecimento do seu objecto.
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Nos termos do disposto no art.º 420.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, constitui fundamento de rejeição do recurso, além de outras, a verificação de uma “causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º”.
Nos termos desse n.º 2, não pode ser admitido o recurso que seja interposto fora de tempo, expressão que, como é bom de ver, abrange o que for interposto para lá do prazo legalmente estabelecido.
Por despacho proferido a fls. 342, foi o recurso considerado tempestivo e por isso admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
No entanto, a decisão que admita um recurso (tal como a que lhe fixa o regime de subida e o efeito) não faz caso julgado e não vincula o tribunal superior (n.º 3 do citado art.º 414.º), pelo que nada obsta, antes se impõe, que se conheça da questão da sua (in)tempestividade.
Para tanto, há que ter em consideração os seguintes factos ou ocorrências (que resultam dos autos):
1. O acto de leitura da decisão instrutória (ao qual estiveram presentes o assistente, ora recorrente, B... e a sua ilustre mandatária) foi praticado no dia 17.02.2011.
2. O requerimento de interposição do recurso, com a respectiva motivação, foi entregue no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa no dia 21.03.2011 (fls. 301).
3. Através de requerimento entrado no mesmo Tribunal no dia 03.03.2011 (fls. 296) o recorrente veio pedir “a gravação do debate instrutório” e requereu “nos termos do n.º 4 do artigo 411.º do C.P.P., que o prazo de 20 dias para interposição de recurso seja elevado para 30 dias uma vez que o recurso tem por objecto também a reapreciação da prova gravada”.
4. Sobre a pretensão do recorrente de que o prazo de interposição de recurso fosse elevado para 30 dias, a Sra. Juíza de instrução proferiu o seguinte despacho: “No tocante ao prazo de recurso nada a determinar, posto que o mesmo resulta da lei”.
5. A gravação pedida foi entregue no dia 10.03.2011 

Tendo estado presente no acto, de harmonia com o disposto no art.º 307.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Proc. Penal, o assistente considera-se notificado da decisão instrutória na data da respectiva leitura, ou seja, no dia 17.02.2011.
Sendo o dia 18.02.2011 o dies a quo, o acto (de interposição do recurso) foi praticado no 32.º dia, pois o requerimento e a respectiva motivação foram apresentados no dia 21.03.2011 (segunda-feira).
Importa, então, esclarecer qual o prazo de que dispunha o recorrente.
É de 20 dias (que se conta a partir do dia seguinte ao da notificação da decisão) o prazo normal de interposição de recurso em processo penal (artigos 411.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 279.º, al. b), do Cód. Civil).
Esse prazo terminou no dia 09.03.2011.
No entanto, o prazo é alargado para 30 dias quando tiver por objecto “a reapreciação da prova gravada”, nos termos do n.º 4 do artigo 411.º do Cód. Proc. Penal, e foi esta norma que, como vimos, o recorrente invocou no requerimento apresentado no dia 03.03.2011, pois que, nas suas palavras, o recurso que pretendia interpor teria “por objecto também a reapreciação da prova gravada”.
Podia, então, o recorrente, com esse fundamento, beneficiar do alargamento do prazo do recurso?
Em anotação ao artigo 411.º do seu “Código de Processo Penal – Notas e Comentários”, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1265, Vinício Ribeiro diz, textualmente: “Note-se, igualmente, que a questão do prazo de recurso em que se visa a reapreciação da prova gravada sempre se pôs apenas em relação à sentença (…) e não ao recurso de outros despachos (v.g. despacho de não pronúncia; aliás se bem repararmos, só com a revisão de 2007 é que foi alterada a redacção do artigo 296.º, que possibilitou que as diligências de prova da instrução fossem gravadas; antes eram apenas reduzidas a auto, logo a questão nem se poderia colocar”).
A questão, tal como foi equacionada, coloca-se neste caso e a resposta é, inequivocamente, negativa.
O citado n.º 4 do art.º 411.º do Cód. Proc. Penal alude à “prova gravada” e temos por seguro e certo que, com esta expressão, pretendeu-se referir a prova oralmente produzida em audiência de julgamento (que, nos termos do disposto nos artigos 363.º e 364.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, é obrigatoriamente documentada através de gravação magnetofónica ou audiovisual).
Nas chamadas fases preliminares do processo não existe, propriamente, prova, mas sim indícios probatórios (ou prova indiciária), pois que “atribui a lei a força de prova apenas aos meios de prova que sejam produzidos, examinados e sujeitos a contradição em julgamento (art. 355 CPP)”[1]
Como ensina o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 148), “a prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão judicial da causa”. 
Por outro lado, o segmento da norma do n.º 4 do artigo 411.º (“se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada…”) remete-nos para os n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, ainda do Cód. Proc. Penal, que contêm directrizes muito precisas e exigentes para o recorrente que pretenda impugnar “a decisão proferida sobre matéria de facto”.
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
§ os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[2]);
§ as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida[3]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
O ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida impõe ao recorrente que, por referência ao consignado na acta, indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.).
É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias.
Ora, como se refere no acórdão do TRC, de 19.11.2008 (Relator: Des. Jorge Simões Raposo), cujo sumário vem transcrito no citado Código anotado e comentado de Vinício Ribeiro, o recorrente só pode prevalecer-se do prazo fixado no n.º 4 do art.º 411.º se, além do mais, b) “estiver em causa uma reapreciação, o que pressupõe que exista uma prévia apreciação da matéria de facto pelo tribunal recorrido, em relação ao qual o Recorrente pretende exprimir a sua discordância; c) estiver em causa uma decisão final sobre matéria de facto, já que a reapreciação da prova gravada é indissociável do recurso sobre matéria de facto e este só se compreende em relação à sentença que, a final, após audiência de julgamento, conheça de facto e de direito”. 
Na instrução (tal como no inquérito) não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão só a recolha de indícios de que um crime foi cometido e de quem foi o seu agente.
Os elementos de prova, nessas fases, ditas preliminares, têm por função habilitar o tribunal a decidir se estão verificados os pressupostos necessários para que o processo prossiga para julgamento, e não a conhecer do mérito da causa.
Na decisão instrutória, o juiz de instrução, com base na prova indiciária recolhida durante o inquérito e a instrução, elenca os factos que considera indiciados e os que não considera suficientemente indiciados (assim fez, e bem, a Sra. Juíza de instrução, neste caso).
Não há “matéria de facto provada”, ou melhor, não há uma decisão sobre matéria de facto, pois não é do mérito da causa que cumpre ao juiz de instrução conhecer.
Neste sentido, o acórdão do TRL, de 17.04.2009 (Relator: Des. Vieira Lamim), a cuja fundamentação aderimos sem reservas e cujo sumário (transcrito por Vinício Ribeiro, op. cit., 1288) aqui reproduzimos, na íntegra:
I – O prazo de trinta dias para recurso, previsto no n.º 4 do art. 411.º do CPP, só é aplicável se aquele tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, em relação a uma decisão proferida sobre matéria de facto (n.º 3 do art. 412.º), o que só acontece na sentença (daí a referência do n.º 4, do art. 412.º ao art. 364.º, n.º 2).
II – Compreende-se o alargamento do prazo de recurso em caso de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, constante de sentença, pois em relação a esta, e não a qualquer despacho, ocorrem as exigências do art. 374.º, n.º 2, do CPP (enumeração dos factos provados e não provados, com indicação e exame crítico das provas), susceptíveis de justificar impugnação com as especificações previstas nos n.ºs 3 e 4, do art. 412.º
III – Ao recurso do despacho de não pronúncia, não é aplicável o alargamento de prazo previsto no n.º 4 do art. 411.º, pois neste despacho não existe uma decisão sobre matéria de facto, mas sobre indícios, não estando o recorrente onerado com aquelas exigências dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º”.    
Daí que não possa dizer-se que o recurso tem por objecto a reapreciação da prova gravada, pelo que o prazo de que o assistente B... dispunha para o interpor era o prazo normal de 20 dias.
O termo desse prazo ocorreu, como já se referiu, no dia 09.03.2011, mas o requerimento de interposição e a respectiva motivação foram entregues na Secretaria do tribunal recorrido, apenas, ao 32.º dia, em 21.03.2011.
É, pois, manifestamente, intempestivo o recurso interposto e por isso tem de ser rejeitado.

III – Decisão
Em face do exposto, decide-se, sumariamente, não conhecer do objecto do recurso de B... que, nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, se rejeita porque intempestivamente interposto.
Por ter decaído, pagará o recorrente as custas do processo, fixando-se em 5 (cinco) UC´s a taxa de justiça (artigos 515.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Cód. Proc. Penal, 1.º, n.º 2, e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais).
 
Lisboa, 4 de Janeiro de 2012

Relator: Neto de Moura;
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[1] Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova” in “Jornadas de Direito Processual penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, p. 228.
[2] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[3] Idem