Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3734/2007-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
MATÉRIA DE FACTO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA
Sumário: 1. Existe uma contradição intrínseca entre os fundamentos invocados na sentença e a decisão nela tomada, quando a fundamentação aponta num sentido e a decisão nela tomada segue um caminho completamente oposto.
            2. O recurso interposto da decisão da autoridade administrativa só pode ser decidido por simples despacho, nos termos do art. 64º, n.ºs 1 e 2 do RGCO, nos casos em que o juiz, depois de examinar o processo administrativo, a decisão impugnada e a alegação da impugnação, considere desnecessária a audiência de julgamento, por o processo já conter todos os elementos de facto necessários para decidir.
            3. Havendo insuficiências, no âmbito da matéria de facto que se impunha suprir para determinar a moldura abstracta da coima aplicável e a medida concreta da coima (v.g.  o grau de culpa, o volume de negócios, a situação económica da arguida e o benefício económico que esta retirou da prática da contra-ordenação), bem como para liquidar a quantia devida ao trabalhador a título de indemnização, o juiz não pode decidir o recurso interposto da decisão da autoridade administrativo por simples despacho.
4. A lei impõe ao juiz que indique as razões por que não considera provados os factos ou porque entende que não constituem uma contra-ordenação. Os objectivos de transparência da actividade jurisdicional e de ponderação das decisões judiciais que estão subjacentes à exigência da fundamentação destas não deixam de valer nos casos em que haja uma divergência entre a posição assumida pelo tribunal e a subjacente à decisão administrativa de condenação, pelo que se impõe que qualquer divergência seja sempre fundamentada.

         (sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO

(M), S.A., com sede no ... Ponta Delgada, impugnou judicialmente a decisão da
Inspecção Regional do Trabalho, que lhe aplicou a coima de € 600,00, pela prática da contra-ordenação, prevista e punida pela cláusula 78ª, n.º 1 do CCT, celebrado entre a Câmara de Comércio, Indústria, Turismo, Serviços e Correlativos da Região Autónoma dos Açores, publicado no Jornal Oficial, IV Série, n.º 13, de 19/07/2001, com PE publicada no Jornal Oficial IV Série, n.º 15, de 16/08/2001, art. 687º, n.º 2 e 620º, n.º 2, al. b) do Código do Trabalho.

O Tribunal do Trabalho de Ponta Delgada julgou procedente o recurso, revogou a decisão recorrida e ordenou que, após o trânsito, a IRT determinasse o montante a pagar pela arguida ao trabalhador (JA), a título de complemento de subsídio de doença, desde 21/04/2005 a 19/01/2006.

Inconformado, o Digno Magistrado do MºPº interpôs recurso da referida decisão, no qual formulou as seguintes conclusões:
1ª) - Decidindo a impugnação judicial de decisão da autoridade administrativa que condenou a arguida no pagamento de, além do mais, uma coima, ao longo da sentença agora sob recurso são afastados os argumentos que fundamentam a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa;
2ª) - A sentença até mantém a condenação em pagamento de complemento de subsídio por doença do trabalhador – cujo não pagamento constitui contra-ordenação e originara a condenação em pagamento de coima – mas apenas ordena à IGT que altere o cálculo do seu montante;
3ª) - E, no entanto, contraditoriamente, revoga a decisão da autoridade administrativa;
4ª) - Existe clara e insanável contradição entre os fundamentos da sentença e a sua parte decisória, como previsto no art. 410º, n.º 2, al. b) do CPP;
5ª) - Deve a sentença, agora sob recurso, ser revogada e substituída por outra que mantenha a condenação da arguida no pagamento da coima aplicada pela autoridade administrativa (IRT).
A arguida, na sua contra-alegação, pugnou pela manutenção da sentença recorrida e pelo não provimento do recurso.

Admitido o recurso na forma, com efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a esta Relação onde, depois de colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

A questão que se suscita neste recurso consiste em saber se existe contradição entre a fundamentação da sentença e a decisão nela tomada e, na afirmativa, se se deve manter ou não a coima que a autoridade administrativa aplicou à arguida.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de 1ª instância considerou provada apenas a seguinte matéria de facto:
1. No dia 31 de Maio de 2006, foi levantado um auto de notícia à ora arguida, por esta não ter pago ao trabalhador (JA), em situação de baixa desde 11 de Abril até ao presente, o complemento de subsídio de doença previsto na cláusula 78º, n.º 1 da CCT, celebrado entre a Câmara de Comércio, Indústria, Turismo, Serviços e Correlativos da Região Autónoma dos Açores, publicado no Jornal Oficial, IV Série, n.º 13, de 19/07/2001, com PE publicada no Jornal Oficial IV Série, n.º 15, de 16/08/2001;
2. O referido trabalhador está reformado desde 20 de Janeiro de 2006;
3. O trabalhador em questão, durante o período em que esteve de baixa apenas recebeu os montantes pagos pela Segurança Social.

II. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como dissemos atrás, a questão fulcral que se suscita neste recurso consiste em saber se, como sustenta o recorrente, existe contradição insanável entre a fundamentação da sentença e a decisão nela tomada.
Desde já se adianta que assiste razão ao recorrente.
Existe, efectivamente, uma contradição intrínseca entre os fundamentos invocados na sentença pelo julgador e a decisão nela tomada. Na verdade,
Tendo o juiz recorrido dado como provado que a arguida não pagou ao trabalhador (JA), durante o período de baixa por doença, o complemento de subsídio de doença previsto na cláusula 78ª, n.º 1 do CCT, celebrado entre a Câmara de Comércio, Indústria, Turismo, Serviços e Correlativos da Região Autónoma dos Açores, publicado no Jornal Oficial, IV Série, n.º 13, de 19/07/2001;
Tendo o juiz recorrido considerado provado que, durante o período de baixa médica, aquele trabalhador recebeu apenas os montantes pagos pela Segurança Social, a título de subsídio de doença;
Tendo o juiz recorrido sustentado na fundamentação da sentença que o trabalhador (JA), tem direito ao referido complemento de subsídio de doença desde o início da baixa médica até 20/01/2006 (data em que se reformou), e não, como se sustenta na decisão da IRT, até 19/05/2005, uma vez que aquele, a partir da data em que se reformou, já não é trabalhador da arguida e já não se pode considerar na situação de baixa por doença;
Tendo o juiz recorrido, julgado improcedentes todos os fundamentos do recurso interposto pela arguida da decisão da IRT e rebatido todos os argumentos invocados por esta, na sua alegação de recurso, excepto o invocado em relação à inadmissibilidade de pagamento do referido complemento, no período que sucedeu à data da reforma;
Tendo o juiz recorrido concluído, depois de rebater todos os argumentos da arguida, que não se vê razão para que esta não cumpra o estatuído na referida cláusula;
A consequência lógica de tudo quanto foi expendido na fundamentação da sentença recorrida seria a condenação da arguida, nunca a revogação da decisão da autoridade administrativa.
Apontando os fundamentos da sentença, de forma clara, para a condenação da arguida pela prática da contra-ordenação que lhe foi imputada pela IRT, a única consequência lógica seria confirmar essa condenação, alterando apenas o montante da coima aplicada e o montante da indemnização arbitrada ao trabalhador, a título de complemento de subsídio de doença, atendendo a que, como resulta da referida fundamentação, o ilícito contra-ordenacional cometido perdurou até ao dia 20/01/2006 (data da reforma do trabalhador) e não até 19/05/2006, ou seja, perdurou apenas durante um período de cerca de 9 meses e não durante um período de 13 meses, como se refere na decisão da IRT.
Aliás, em consonância, com o que acabamos de afirmar, o Mmo juiz a quo, na parte decisória da sentença, alterou o segmento da decisão da IRT, respeitante ao montante a pagar ao trabalhador, a título de complemento de subsídio de doença, tendo determinado que no cálculo dessa quantia, fosse apenas levado em consideração o período compreendido entre o início da baixa médica e o dia 19/01/2006 e não o período levado em consideração pela IRT (entre 21/4/2005 e 19/5/2006). O que não se compreende é que não tenha procedido da mesma forma em relação ao 1º segmento da decisão.
Verifica-se, assim, uma contradição intrínseca entre os fundamentos invocados na sentença e o primeiro segmento da decisão nela tomada.
A fundamentação da sentença aponta num sentido e a 1ª parte da decisão nela tomada segue um caminho completamente oposto.
Além desta contradição, a sentença recorrida enferma ainda de mais vícios, designadamente, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, n.º 2, al. a) do CPP) e do incumprimento flagrante do disposto nos n.ºs 2, 3, 4 e 5 do art. 64º do RGCO.
Estabelecendo o n.º 1 da cláusula 78ª do CCT atrás referido que, durante o período de baixa médica do trabalhador, a entidade empregadora está obrigada a pagar a este a diferença entre a retribuição que ele normalmente auferiria se estivesse a trabalhar e o subsídio de doença que lhe for pago pela Segurança Social, e estando provado, no caso em apreço, que durante o período de baixa médica do trabalhador (JA), a arguida não lhe pagou o referida diferença, tendo o mesmo, nesse período, recebido apenas o subsídio de doença, é essencial apurar, para determinar o montante da quantia que o trabalhador tem direito a receber, a título de complemento de subsídio de doença, qual o salário mensal que o mesmo auferia, ultimamente, ao serviço da arguida e qual o montante do subsídio de doença mensal que o mesmo auferiu da Segurança Social, no período da baixa médica.
Por outro lado, para determinar a moldura abstracta da coima aplicável à contra-ordenação cometida, é necessário apurar se houve dolo ou negligência, da parte da arguida na prática da infracção que lhe é imputada e qual o seu volume de negócios nos anos de 2004 e 2005 (art. 620º, n.ºs 1 e 5 do Código do Trabalho). A decisão da IRT pronunciou-se sobre esta matéria e considerou provados alguns elementos de facto com interesse para a apreciação desta matéria (cfr. fls. 20, 25 e 28 do processo administrativo), mas a sentença recorrida omitiu todos esses elementos de facto – não os considerou provados nem os considerou não provados – não tendo apresentado qualquer justificação para essa omissão.
Finalmente, a determinação da medida concreta da coima faz-se em função da gravidade da infracção, da culpa, da situação económica da arguida e do benefício económico que esta retirou da prática da contra-ordenação, e na decisão da matéria de facto, também não se faz qualquer referência a esta matéria, nem se justificou tal omissão.
O Mmo juiz a quo estribou-se no art. 64ºdo RGCO, para decidir o recurso por simples despacho, mas nem o processo reunia as condições para se decidir sem necessidade de audiência de julgamento, nem foi dado cumprimento ao disposto nos n.ºs 4 e 5 deste artigo. Invocou-se o art. 64º para não realizar a audiência de julgamento, mas não se teve o cuidado de verificar se o processo estava em condições para decidir, nessa fase, nem se deu cumprimento às exigências dos n.ºs 4 e 5 daquele artigo. O estatuído nos n.ºs 2, 3, 4 e 5 do art. 64º do RGCO foi, pura e simplesmente, ignorado pelo juiz recorrido.
O Digno Magistrado do MºPº, quando o processo lhe foi remetido pela IRT, ainda requereu a produção de prova (inquirição da inspectora autuante e da instrutora do processo administrativo - cfr. fls.1), mas essa prova não chegou a ser produzida. O Mmo juiz a quo, acabou por decidir o recurso por simples despacho, com a concordância da arguida e do próprio MºPº, não obstante as mencionadas insuficiências serem manifestas (cfr. fls. 50 a 56). Tão manifestas, que o Sr. juiz, mesmo depois de proferir o despacho de fls. 50, se sentiu obrigado a realizar a diligência de prova de fls. 57 a 60 (sobre a situação laboral do trabalhador). O que não se compreende é que, além desta, não tenha determinado a realização de outras (diligências) que se impunha realizar ou não tenha procedido à audiência de julgamento.
O recurso interposto da decisão da autoridade administrativa só pode ser decidido por simples despacho (art. 64º, n.ºs 1 e 2 do RGCO), nos casos em que a decisão final não dependa da realização de diligências de prova, nos casos em que o juiz, depois de examinar o processo administrativo, a decisão impugnada e a alegação da impugnação, não considere necessária a audiência de julgamento, por o processo já conter todos os elementos de facto necessários para decidir.
Assim, o recurso poderá ser decidido por simples despacho, sempre que se verifique (ou seja de julgar procedente) alguma excepção dilatória ou peremptória, ou (quando) a questão objecto do recurso for apenas de direito ou, quando a questão objecto do recurso for de facto, e o processo forneça todos os elementos necessários para o seu conhecimento.
Ora, no caso em apreço, o processo não continha, na altura em que o juiz proferiu a decisão recorrida, os elementos de facto necessários para decidir o recurso por simples despacho, pois, como já dissemos atrás, embora a prática da infracção seja inequívoca, havia insuficiências, no âmbito da matéria de facto que se impunha suprir, designadamente, para determinar a moldura abstracta da coima aplicável, para determinar a medida concreta da coima e para liquidar a quantia devida ao trabalhador a título de complementos de subsídio de doença.
Além de não ter respeitado o art. 64º, n.º 2, o Mmo juiz a quo ignorou, por completo, o disposto no art. 64º, n.ºs 4 e 5 do RGCO.
As decisões no processo contra-ordenacional têm de ser fundamentadas, à semelhança do que se prevê no n.º 4 do art. 97º do CPP, para as decisões proferidas em processo penal, em que se impõe que as decisões sejam fundamentadas, com especificação dos fundamentos de facto e de direito.
No n.º 4 do art. 64º do RGCO enunciam-se os requisitos da fundamentação das decisões que mantenham ou alterem a condenação do arguido, exigindo este preceito que, nestes casos, o juiz fundamente a sua decisão, tanto no que concerne aos factos (provados e não provados) como quanto ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.
No n.º 5, enunciam-se os requisitos da fundamentação da decisão, nos casos de absolvição. Nestes casos, a lei impõe ao juiz que indique as razões por que não considera provados os factos ou porque entende que não constituem uma contra-ordenação.
A lei impõe também, nestes casos, que o juiz especifique os fundamentos de facto e de direito da decisão. Os objectivos de transparência da actividade jurisdicional e de ponderação das decisões judiciais que estão subjacentes à exigência da fundamentação destas não deixam de valer nos casos em que haja uma divergência entre a posição assumida pelo tribunal e a subjacente à decisão administrativa de condenação, pelo que se impõe que qualquer divergência seja sempre fundamentada.
Ora, no caso em apreço, além do processo não fornecer todos os elementos necessários para decidir o recurso, por simples despacho, o Mmo juiz a quo não indicou, na sua decisão, as razões por que não julgou provada toda a matéria de facto que a decisão administrativa considerou assente, designadamente a relativa à culpa e ao volume de negócios da arguida, nem enunciou as razões que o levaram a absolver a arguida da coima que lhe foi aplicada pela IRT e a manter a sua condenação no pagamento do complemento de subsídio de doença ao trabalhador (JA), reduzindo apenas o período em que esse complemento é devido.
Impõe-se, assim, a anulação da decisão recorrida, devendo o processo, nos termos dos arts. 75º, n.º 2 do RGCO e 426º, n.º 1 do CPP, baixar ao tribunal recorrido para eliminar a contradição que se verifica entre os fundamentos da sentença e a decisão nela tomada e para, em audiência de julgamento, serem supridas as insuficiências da matéria de facto atrás mencionadas, devendo, a seguir, ser proferida nova decisão, devidamente fundamentada, tanto no que concerne aos factos (provados e não provados) como no que concerne ao direito aplicado e às circunstâncias determinantes da medida da coima.

IV DECISÃO

Em conformidade com o exposto, concede-se parcial provimento ao recurso, e em consequência decide-se:
1. Anular a decisão recorrida;
2. Devolver o processo ao tribunal recorrido para eliminar a contradição que se verifica entre os fundamentos da sentença recorrida e a decisão nela tomada e para, em audiência de julgamento, serem supridas as insuficiências da matéria de facto atrás mencionadas, devendo, a seguir, ser proferida nova decisão, devidamente fundamentada, tanto no que concerne aos factos (provados e não provados) como no que concerne ao direito aplicado e às circunstâncias determinantes da medida da coima.
3. Condenar a recorrida nas custas do recurso.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2007

Ferreira Marques
Ramalho Pinto
Duro Mateus Cardoso