Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9854/2006-6
Relator: MANUEL GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE CONTA CORRENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A existência de «conta corrente contabilística» entre sociedades comerciais, é prática corrente e obedece mesmo às boas técnicas contabilísticas, não podendo confundir-se com o «contrato de conta-corrente».
II - Para que se verifique a existência do «contrato de conta-corrente» é necessário antes de mais que haja um acordo vinculístico das partes nesse sentido. Depois, é necessário que ambas as partes tenham valores a entregar uma à outra e que com essas entregas se opere a compensação ou novação, obrigando-se ambas a exigir apenas o saldo final, após liquidação desses valores.
(M.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

L A, intentou processo de injunção contra H L, pedindo a condenação desta no pagamento de: 18.881,59 euros de capital; 4.272,29 euros de juros de mora à taxa de 12% entre 24.10.2002 e a data da entrada da providência, invocando o fornecimento de bens e serviços.
Contestou a requerida (fol. 5), dizendo em síntese o seguinte:
Existia uma conta corrente, que a Requerida mensalmente amortizava, consoante os fornecimentos.
Todavia no passado dia 3 de Setembro de 2003, e sem nenhuma razão aparente, a Requerente exigiu que a Requerida liquidasse de forma imediata e integral a totalidade da conta corrente.
Não obstante a inesperada posição assumida pela Requerente, esta também sem nenhuma explicação suspende todos os fornecimentos à Requerida.
Quanto aos juros peticionados pela Requerente, estes não são de todo devidos, uma vez que a existência da conta corrente foi iniciativa da Requerente, e não da Requerida.
Remetidos os autos à distribuição, passaram a seguir a forma ordinária.
Respondeu a autora (fol. 28).
Foi proferido despacho saneador (fol. 102) e seleccionada a matéria assente e a base instrutória, sobre que recaiu reclamação, que foi decidida.
Procedeu-se a julgamento (fol. 135), após o que foi proferida decisão da matéria de facto (fol. 136).
Foi proferida sentença (fol. 139), em que se julgou procedente a acção e se condenou o R. a: «pagar à A. o montante de 18.881,59 euros, acrescido de juros de mora incidentes sobre os valores parciais e desde o momento de vencimento de cada uma das facturas, às taxas legais acima indicadas, até integral pagamento».
Inconformado, recorreu o R. (fol. 153), recurso que foi admitido como apelação (fol. 157), subida imediata e efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentou, formula o apelante, as seguintes conclusões:
1- O presente recurso decorre da discordância relativamente à douta sentença proferida nos presentes autos em 20 de Junho de 2006, constante de fls.139 a 145.
2- A douta sentença julgou a acção procedente e provada, condenando a Ré a pagar à Autora o montante de € 18881,59, acrescida de juros de mora incidentes sobre os valores parciais e desde o vencimento de cada uma das facturas, às taxas legais, até integral pagamento.
3- A sentença deu ainda como provado que Autora e Ré acordaram que o preço dos bens fornecidos deveria ser pago no prazo de sessenta dias a contar da emissão da respectiva factura.
4- O que é certo é que desde o momento em que a Autora começou a fornecer material da sua especialidade à Ré, acordaram verbalmente que não compraria apenas os produtos (vídeos) mais comercializados, mas sim um conjunto de produtos entre os quais se destacariam também os menos vendáveis.
5- Como contrapartida a Ré beneficiaria de preços especiais, i.e., preços muito inferiores aos praticados no mercado e também aos praticados com os seus concorrentes.
6- Em conformidade existia uma conta corrente, que a Ré mensalmente amortizava, consoante os fornecimentos.
7- Todavia no passado dia 3 de Setembro de 2003, e sem nenhuma razão aparente, a Autora exigiu que a Ré liquidasse de forma imediata e integral a totalidade da conta corrente.
8- E não obstante a inesperada posição assumida pela Autora, esta também sem nenhuma explicação suspende todos os fornecimentos à Ré.
A suspensão supra referida, causou à Ré enormes prejuízos económicos, uma vez que esta não dispunha conforme habitualmente de produtos novos, e muito comerciais. Dinheiro faz dinheiro e com o negócio suspenso começaram a surgir dificuldades económicas para a Ré, pois que não tendo material para comercializar as vendas diminuíram, diminuindo consequentemente a capacidade económica da Ré para honrar os seus compromissos.
9- No entanto, e porque a Ré sempre pautou o seu comportamento comercial pela honestidade, e pelo cumprimento exemplar das suas obrigações, esta mesmo sem qualquer fornecimento por parte da Autora, continuou a amortizar mensalmente a conta corrente, e sem nunca contestar aos valores apresentados.
A Ré relembra que, a Autora nunca lhe mostrou nenhuma tabela de preços; desconhecendo-se desta forma se o valor reclamado corresponde ou não à verdade. Quanto aos juros peticionados pela Autora, estes não são de todo devidos, uma vez que a existência da conta corrente foi iniciativa da Autora, e nunca da Ré. Ou melhor, a existência de uma conta corrente, foi uma manobra comercial que a Autora utilizou para melhor atingir os seus fins comerciais.
Ao agir assim, a autora excedeu manifesta e ostensivamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo próprio fim imposto pelo Direito em questão.
A Autora, ao permitir a existência de uma conta corrente, que era conforme já referido amortizada mensalmente, não poderá sem motivo aparente exigir o seu pagamento imediato, pois que ao actuar desta forma está em clara situação de “venire contra factum proprium”.
10- O contrato de conta corrente vem definido no artigo 344° do C. Com e pressupõe que as partes tenham convencionado proceder, entregando valores uma à outra e obrigando-se a transformar os seus créditos em artigos de deve” e “haver” quanto aos créditos recíprocos e a só considerar exigível o saldo final, pelo que não existe tal contrato quando as partes adoptam o processo contabilístico de efectuar os lançamentos dos débitos e dos créditos resultantes das suas operações ou transacções com o consequente saldo credor ou devedor.
O mero registo diagráfico da escritura consubstanciado no processo contabilista contendo os lançamentos de débitos e créditos resultantes de transacções efectuadas entre duas partes e de onde resulte um saldo devedor, não constitui um contrato de conta corrente. O contrato de conta corrente pressupõe que as duas partes tenham valores a entregar uma à outra, que essas entregas se façam com a correspectiva compensação e novação, obrigando-se ambas a exigir apenas o saldo final, após a liquidação daqueles valores.
Há que distinguir entre contrato de conta corrente ( definido no art.344 do Código Comercial) e conta corrente como sistema de escrita.
11- No caso em apreço muito embora Autora e Ré não reduzissem a escrito o contrato de conta corrente, a verdade é que ambas aceitavam a sua existência e sempre assim funcionou.
Como tal, não é possível exigir o pagamento imediato e integral de um valor não apurado em virtude de existir uma conta corrente.
Parece-nos que o Tribunal ad quo, violou o artigo 344°, do C. Com., ao dar interpretação diferente a este caso em concreto.
A douta sentença deveria ter absolvido a Ré.

Foram oferecidas contra alegações (fol. 195).
Corridos os vistos cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.
É a seguinte a matéria de facto considerada assente:
1- A Autora dedica-se à distribuição de obras cinematográficas, quer para exibição pública quer, uma vez fixadas em videogramas, para aluguer e venda directa.
2- A Ré explora uma rede de estabelecimentos que se dedicam ao aluguer de filmes, geralmente designados por clubes de vídeo.
3- No exercício da sua actividade, a Autora forneceu à Ré diversos videogramas de filmes, que a Ré por sua vez utilizou na sua actividade, cedendo aos seus clientes o seu uso, mediante remuneração ou vendendo- os.
4- Os videogramas e expositores vendidos pela Autora à Ré são os constantes das facturas nºs 70906,71471,71990,72345,72989,72990,72991,73201, 73787, 73796, 73961, 74175, 74994, 75319, 75780, 76175, 76262, 76693, 76975, 77086, 77672, 78533, 78889,79253, 79353, 79421, 80151, 80152, 80174, 80707, 81465, 81722, 82547,496,548,572,98707,778, 104699, discriminados nos documentos que constituem fls. 33 a 65, 69 e 71 e nas quantidades e preços deles constantes, tudo no valor global de 28.072,56 Euros.
5- O preço dos videogramas e expositores vendidos e entregues pela Autora à Ré, foi com esta previamente acordado.
6- Por cada fornecimento de videogramas ou expositores, a Autora emitiu uma factura que enviou à Ré, nela mencionando os videogramas vendidos, tipo de suporte (DVD ou VHS), respectivos preços e condições de pagamento.
7- Autora e Ré acordaram que o preço dos bens fornecidos deveria ser pago no prazo de sessenta dias a contar da emissão da respectiva factura.
8- E que todas as facturas deveriam ser pagas em dinheiro.
9- A Autora suportou 77,15 Euros referente ao valor das despesas a que se referem os documentos juntos a fls.66 a 68 e 70 e relativas a despesas que lhe foram debitadas pelas instituições financeiras onde apresentou a pagamento cheques que lhe foram entregues pela Ré e vieram a ser devolvidos ou por falta de provisão ou por a Ré ter comunicado o seu extravio.
10- Com data de 5/3/2004 e para pagamento de parte do montante constante da factura nº 70906, a Ré entregou à Autora o valor de 600,00 Euros.
11- Com data de 18/3/2004 e para pagamento de parte do montante constante da factura nº 70906, a Ré entregou à Autora o valor de 800,00 Euros.

O DIREITO.
O âmbito do recurso afere-se pelas conclusões das alegações do recorrente, art. 660 nº 2, 684 nº 3 e 690 CPC. Assim, só das questões postas nessas conclusões haverá que conhecer.
Atento o teor das conclusões formuladas, a questão posta tem a ver com a existência ou não de um contrato de conta corrente entre Autora e Ré.
Dispõe o art. 344 C. Com. que «dá-se contrato de conta corrente todas as vezes que duas pessoas, tendo de entregar valores uma à outra, se obrigam a transformar os seus créditos em artigos de «deve» e «há-de haver», de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação seja exigível». No art. 346 C. Com, dispõe-se que «São efeitos do contrato de conta corrente: (...) 3º A compensação recíproca entre os contraentes até à concorrência dos respectivos crédito e débito ao termo do encerramento da conta corrente». O referido contrato tem o prazo convencionado (art. 349 C. Com..
A existência, nas sociedades comerciais de «conta-corrente contabilística», é prática corrente e obedece mesmo à boa técnica contabilística, atento o teor do POC (Plano Oficial de Contabilidade). Isso porém nada tem a ver com o já referido «contrato de conta corrente», regulado no art. 344 C. Com. Antes de mais, para se concluir pela sua verificação, necessário é provar-se que se está perante um «contrato», ou seja «um acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade(oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro) contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visem estabelecer uma composição unitária de interesses» (Antunes Varela – Das Obrigações em Geral – Vol. I, 10ª edc., 212). Ora, do factualismo provado e ainda que para este tipo de contrato, não exija a lei forma especial, não resulta que o referido acordo de vontades tenha existido.
Acresce que a celebração de um tal contrato, tal como configurado por lei (art. 344 C. Com.) pressupõe uma situação em que ambas as partes «tenham valores a entregar uma à outra e que essas entregas se façam com a correspectiva compensação e novação, obrigando-se ambas a exigir apenas o saldo final, após a liquidação daqueles valores» (Ac TRL de 15.11.2001, relator Sousa Grandão, proc. nº 0082356).
No mesmo sentido, pode ver-se ainda a seguinte jurisprudência: Ac TRE, de 14.03.1996, CJ 96, II, 273; Ac TRL de 15.11.90, relator Mora Vale, proc. nº 0034432; Ac TRL de 16.05.2000, relator André Santos, proc. nº 0007431; Ac TRL de 13.02.92, relator Cruz Broco, proc. nº 0037926 – estes últimos consultáveis na internet).
No caso presente, atento o factualismo assente, a situação não é susceptível de gerar créditos e débitos recíprocos, pois que a autora (apelada) fornecia à R. (apelante) bens do seu comércio, que esta se obrigava a pagar. Também o prazo de pagamento acordado entre as partes, nos afasta do regime do «contrato de conta-corrente», pois que no caso o pagamento deveria ocorrer no prazo de sessenta dias, a contar da emissão da factura.
Nas suas alegações invoca também o apelante o «abuso de direito». Para o efeito refere que «a autora ao permitir a existência de uma conta-corrente, que era amortizada mensalmente, não poderá sem motivo aparente exigir o seu pagamento imediato, pois ao actuar dessa forma está em clara situação de «venire contra factum proprium».
Para que se verifique o abuso de direito, exige-se que o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, art. 334 CC. «A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros» (Coutinho Abreu – Do Abuso de Direito, pag. 55). A boa-fé, «provoca por parte do devedor, a assunção de uma série de deveres conexionados com o dever de prestar principal ... São deveres acessórios ... certos deveres de lealdade e consideração, de notificação e informação, de assistência e protecção, etc, com os quais devem ser garantidos o desenvolvimento e realização obrigacional» (Menezes Cordeiro – Dir. Das Obrigações, Vol. I, pag. 149).
Como se refere no acórdão desta Relação de 01.04.2003, relatado por Pereira da Silva (CJ 2003, II, pag. 103), «o venire contra factum proprium está contido no segmento da norma que alude aos limites impostos pela boa fé (Baptista Machado, in RLJ, ano 117, pag. 136 e segs.) traduzindo o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, comportamento esse que criou na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido».
A propósito, refere Antunes Varela (Das Obrigações em Geral – Vol. I, pag. 500 – 5ª edição). «A fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato».
No caso presente, entende a apelante que a apelada permitiu que entre as partes existisse «uma conta corrente» que era amortizada mensalmente, pelo que não pode agora exigir o pagamento imediato do crédito existente a seu favor. Como se viu, a situação reconduz-se à existência de uma «conta corrente contabilística», que nada tem a ver com o «contrato de conta corrente». Também se viu que a existência de «conta corrente contabilística», é comum e obedece à boa prática de organização contabilistica das empresas, não podendo pois concluir-se que na relação comercial que teve com apelante, a apelada a convenceu da existência de tal contrato.
Não pode concluir-se pela verificação de abuso de direito, não merecendo a conduta da apelada qualquer censura.

O recurso não merece provimento.
DECISÃO,
Em face do exposto, decide-se:
1- Negar provimento ao recurso, confirmado-se a sentença recorrida.
2- Condenar o apelante nas custas.

Lisboa, 26 de Abril de 2007.

Manuel Gonçalves
Aguiar Pereira
Gilberto Jorge.