Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
546/08.2TBVFX.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
ÓNUS DA PROVA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
BRISA AUTO-ESTRADAS DE PORTUGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEENTE
Sumário: I - A concessionária da conservação e exploração de auto-estrada responde pelos danos sofridos pelo utente, proprietário de veículo que colidiu com um canídeo que se encontrava na via, caso não demonstre que tomou todas as providências adequadas a evitar ocorrências como a referida.
II – Não têm seriedade suficiente para justificarem a concessão de uma indemnização os danos não patrimoniais consistentes em o condutor do veículo sinistrado ter temido pela própria vida e ter sofrido dores lombares, quando saiu ileso do acidente, nada foi alegado ou provado no que concerne a sequelas e nada se provou quanto à intensidade ou duração das ditas dores.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 29.01.2008 “A” instaurou no Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira acção declarativa de condenação com processo sumário contra Brisa Auto-Estradas de Portugal, S.A.
O A. alegou, em síntese, que em 09.02.2007, pelas 6h15m, quando conduzia o seu veículo ligeiro na A10, colidiu com um canídeo de grande porte, que inopinadamente se atravessou do lado direito para o lado esquerdo, atento o sentido de marcha do A.. Nas proximidades a vedação em arame encontrava-se danificada e naquela zona também existe uma vala em cimento com um colector de águas pluviais, onde a rede da vedação se encontrava levantada do solo cerca de 30 cm. Assim era possível a passagem para a via pública de animais, designadamente o dito cão. Acresce que naquele local foram vistos cães, alguns dias antes e depois do acidente. Em virtude da colisão o A. teve de proceder à reparação do veículo, que custou € 8 743,41, e de alugar outra viatura, durante essa reparação, no que gastou € 502,00. O veículo, apesar de reparado, sofreu uma desvalorização comercial de, pelo menos, 10% do seu valor, o que corresponde a € 2 200,00. O A. temeu pela sua própria vida, sofreu escoriações e fortes dores lombares e no tórax, danos não patrimoniais que serão compensados com o montante de € 12 500,00. A R. recusou-se a responsabilizar-se pelas consequências do acidente. Ora, como concessionária da dita auto-estrada, cabia à R. garantir o bom estado das vedações e facultar aos utentes o uso em segurança da mesma – o que não fez.
O A. terminou pedindo que a R. fosse condenada a pagar ao A. o total de € 21 245,61, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
A R. contestou, recusando a sua responsabilidade pelo acidente, alegando ter cumprido todas as obrigações que lhe cabem em ordem a evitar acidentes como o dos autos, com patrulhamento da via e fiscalização das vedações, que se encontravam em bom estado. Mais requereu a intervenção acessória da Companhia de Seguros “B”, com quem celebrara contrato de seguro garantindo a sua responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros na sua qualidade de concessionária da A10, a fim de, no caso de condenação, exercer o seu direito de regresso contra a chamada.
Admitido o chamamento da aludida seguradora, esta interveio declarando aderir ao teor da contestação.
Os autos prosseguiram os seus termos e, após audiência de discussão e julgamento, em 19.7.2010 foi proferida sentença em que se julgou a acção não provada e improcedente e consequentemente absolveu-se a R. do pedido.
O Autor apelou da sentença, tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes conclusões:
1.ª Actualmente não subsistem quaisquer dúvidas que no caso de acidentes rodoviários em auto-estradas, em virtude do atravessamento de animais, pertence à concessionária o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança e comodidade. No caso dos presentes autos à Brisa.
2.ª Quer se analise a matéria versada nestes autos do ponto de vista da responsabilidade contratual (art.º 799.º, n.° 1, do CCivil) ou da responsabilidade extracontratual (art.º 487.º e art.º 493.º do CCivil), a verdade é que estamos perante uma situação de inversão do ónus da prova, recaindo sobre a concessionária demonstrar que cumpriu as obrigações a que está adstrita.
3.ª O artigo 12, n° 1, alínea b) da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, consagrou expressamente uma situação de inversão do ónus da prova da culpa pela ocorrência de acidentes rodoviários em auto-estradas concessionadas causadores de danos em pessoas ou bens, provocados pelo atravessamento de animais, isto é, incumbe à concessionária da auto-estrada onde ocorreu o acidente provar que cumpriu todas as obrigações de segurança que sobre ela incidem, de modo a afastar a sua culpa na produção do acidente.
4.ª A lei n° 24/2007, de 18 de Julho, designadamente o seu artigo 12, trata-se de lei interpretativa e, por conseguinte, aplicável ao presente caso, aliás como consta da douta decisão ora recorrida e da maioria da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, abundantemente citada na sentença proferida em 1ª Instancia.
5.ª Da leitura das Bases, anexas ao Dec-Lei n° 264/97, de 24 de Outubro, resulta claro que a concessionaria assumiu uma série de obrigações, nomeadamente que: "... será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas...." Base XXXVI n.° 2;
"…consideram-se casos de força maior unicamente os que resultem de acontecimentos imprevistos e irresistíveis cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstancias pessoais da concessionaria, nomeadamente actos de guerra ou subversão, epidemias, radiações atómicas, fogo, raio, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem os trabalhos da concessão". Base XLVII, n°2;
"A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos dos utentes". Base XXXIII.
6.ª Sobre as concessionárias das auto-estradas recai o dever de evitar a presença de animais naquelas vias de circulação rápida, e também recai sobre elas a presunção de culpa quando esse evento não foi evitado.
7.ª Compete à Brisa tudo fazer para evitar o aparecimento de animais na faixa de rodagem da auto-estrada, pois tal facto anómalo constitui reconhecido perigo para quem nela circula ou, se quisermos, uma verdadeira armadilha para os automobilistas, como o aqui Recorrente, manifestamente incompatível com a circulação automóvel à velocidade de 120 Km/h.
8.ª A prova da negligência ou da culpa da Brisa ou da origem do cão na auto-estrada não pode recair sobre o automobilista, pela simples razão que não foi a sua prestação que falhou nem ele tem a direcção efectiva, ou melhor, o poder de facto sobre a auto-estrada, considerada como um todo.
9.ª O entendimento maioritário da nossa jurisprudência vai no sentido que não basta a Brisa mostrar que foi diligente ou que não foi negligente; terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não lhe deixou realizar o cumprimento das suas obrigações (vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n° 597/2009, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 596/2009, in Diário da Republica, 2.ª série, de 24 de Dezembro e o acórdão do STJ de 22/06/2004 in www.dgsi.pt).
10.ª No presente processo essa prova só teria sido produzida se conhecêssemos, em concreto, o modo de intromissão do animal na A1O, o que a Brisa não logrou provar, tão pouco alegou factos nesse sentido. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente.
11.ª No caso de acidentes rodoviários em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança e comodidade pertence à concessionaria (Brisa) e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem.
12.ª No caso "sub júdice" a Brisa provou apenas, genericamente, que:
- No dia do acidente as patrulhas que foram realizadas, "antes da hora ali mencionada nada detectaram de anormal nas vias de trânsito, designadamente a presença de cães" (resposta ao ponto 18);
- As patrulhas na A1O são efectuadas "24 sobre 24 horas por dia, todos os dias do ano" (resposta ao ponto 19);
- "A A1O encontra-se vedada em toda a sua extensão..."(resposta ao ponto 22);
- Na data do acidente "e antes desta, não foi detectada qualquer anomalia na vedação existente no local do embate ou nas suas proximidades" (resposta ao ponto 24);
Factos estes que, em concreto, são insuficientes para ilidir a presunção de culpa ou de incumprimento que sobre si recai ou, dito de outro modo, manifestamente insuficientes para demonstrar que a intromissão na A1O do cão, que originou o acidente, não é, de todo, imputável à Brisa, sendo antes atribuível a outrem. Não se apurou que tipo de patrulhamento foi feito. Se era possível detectar anomalias na rede através de um simples patrulhamento, etc, etc. O que sabemos é que o cão estava lá e ficamos também a saber que antes e depois do acidente foram vistos cães no local.
13.º O certo é que ficou provado que no dia do acidente "...cerca do Km 1,100, surgiu-lhe do lado direito, atento o seu sentido de marcha, um animal de raça canina de grande porte o qual se atravessou na frente do QE” (resposta aos pontos 2 e 3), que “…em datas anteriores e posteriores à do embate (...) foram vistos no local cães" (resposta ao ponto 8) e que o acidente ocorreu em virtude do embate no dito animal, aliás ficou igualmente provado que o aqui recorrente "...não teve forma de evitar o embate do QE no referido animal” (resposta ao ponto 5), não obstante ser um "condutor experiente e diligente" (resposta ao ponto 17), pelo que não obstante a Brisa ter patrulhado a A1O, 24 sobre 24h por dia, todos os dias do ano e não ter detectado a presença de cães na via, não há duvidas que ele estava lá e que a causa do acidente foi o seu atravessamento.
14.ª A Brisa não alegou factos e não produziu prova bastante que demonstre inequivocamente que a intromissão do cão na via não lhe pode ser imputada.
15.ª A vedação instalada na A1O, não obstante não ter sido detectada qualquer anomalia na zona do acidente ou nas suas proximidades, seguramente que não era suficientemente adequada para impedir a entrada dos cães nas faixas de rodagem, atenta a agilidade, ligeireza e capacidade daqueles para percorrer grandes distâncias, caso contrário o acidente não teria ocorrido e os canídeos não teriam sido vistos, dias antes e dias depois do acidente, na via (resposta ao ponto 8).
16.ª A Brisa não alegou, logo não podia ter provado, que a vedação, instalada ao longo da A1O, seja, em concreto, adequada para evitar a entrada de cães nas vias de circulação, pelo que jamais podia ilidir a presunção de culpa ou de incumprimento que sobre si impende.
17.ª A Brisa omitiu a conduta adequada à erradicação ou prevenção do perigo para a aqui Recorrente e para os demais utentes da via pública, tanto mais que ficou provado que em datas anteriores e posteriores ao acidente foram vistos no local animais daquela raça, - sem que tenha sido feito algo por parte da Brisa para evitar tal facto -, pelo que não cumpriu com as suas obrigações, nomeadamente de "assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas" (Bases XXXVI, n.° 2).
18.ª A resposta que o Tribunal "a quo" deu ao ponto 8 da matéria de facto demonstra o carácter regular e habitual da presença de cães no local do acidente, por isso ficou provado que "…em datas anteriores e posteriores à do embate (...) foram vistos no local cães".
19.ª A douta decisão recorrida ao decidir como decidiu cometeu um erro de valoração da prova ao considerar que os factos provados eram suficientes para ilidir a presunção de culpa ou de incumprimento que impende sobre a Brisa, atenta a diversidade de modos e locais possíveis para a intrusão do animal esse ónus dificilmente poderá estar cumprido sem a demonstração positiva de como, apesar de lá estar a vedação, o animal se introduziu na via. (vide Acórdão do STJ de 22/06/2004 in www.dgsi.pt).
20.ª A douta decisão recorrida cometeu também um erro de interpretação e aplicação do direito, designadamente das Bases do contrato de concessão, aprovado pelo Dec.Lei n.° 264/97, de 24 de Outubro, nomeadamente as Bases XXXIII, n°1, XXXVI, n.° 2, e XLVII, n.° 2, bem como dos artigos 483.º, 486.º, 493.º, 406.º e 799.º todos do Código Civil e, ainda, do artigo 12.º da Lei n.° 24/2007 de18 de Julho.
21.ª No processo foi produzida prova bastante do comportamento negligente, culposo e omissivo da Brisa - (tenha-se presente que ficou provado que o cão, no dia do acidente, atravessou-se na frente do QE e que em datas anteriores e posteriores à do embate foram vistos no local cães. E o que é que a Brisa fez? Nada!) -. Pelo que a Brisa e a Companhia de Seguros “B” SA, em razão do contrato de seguro, devem ser solidariamente condenadas a pagar todos os prejuízos sofridos e provados pelo Recorrente, quer se analise os factos apurados pela óptica da responsabilidade extracontratual, quer se o faça pelo prisma da responsabilidade contratual.
22.ª Caso não se perfilhe o entendimento vertido na conclusão anterior, então, sempre se dirá que a Brisa ao não provar que o incumprimento da sua prestação – facultar o uso da auto-estrada com segurança e comodidade – não procede de culpa sua, como lhe competia, tornou-se responsável pelos prejuízos causados ao aqui Recorrente e a Companhia de Seguros “B” SA (chamada ao processo pela Brisa) solidariamente responsável pelo pagamento da indemnização devida.
23.ª Por último, e em síntese, dir-se-á que é sobre as concessionárias das auto-estradas que recai o dever de evitar a presença de animais naquelas vias de circulação rápida, logo "é lógico que seja sobre elas que também recaia a presunção de culpa, quando esse evento não foi evitado, alem de que são elas que se encontram objectivamente em melhores condições para investigar, explicar e provar a concreta proveniência do animal que se atravessou na auto-estrada e causou o acidente". O que a Brisa não logrou fazer no caso em apreço. (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 596/2009).
O apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada, acolhendo-se as conclusões acima mencionadas.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO
A questão suscitada no recurso é se a apelada deve ser responsabilizada pelos danos invocados pelo apelante.
Não foi impugnada e deve ser considerada a seguinte

Matéria de Facto
1. No dia 9 de Fevereiro de 2007, cerca das 06H15, o autor circulava na A1O, no sentido Norte/Sul, conduzindo o veículo automóvel da marca Seat, com a matrícula 00-00-QE.
2. Quando, de forma repentina, cerca do Km 1,100, surgiu-lhe do lado direito, atento o seu sentido de marcha, um animal de raça canina de grande porte,
3. …o qual se atravessou na frente do QE.
4. Não obstante ter accionado os travões e virado a direcção para o seu lado esquerdo,
5. O autor não teve forma de evitar o embate do QE no referido animal.
6. Após o embate, o QE entrou em despiste e acabou por embater no separador central.
7. O local do embate fica entre duas aberturas de grandes dimensões existentes nos separadores centrais da A10.
8. Em datas anteriores e posteriores à do embate mencionado em 5, foram vistos no local cães.
9. O QE foi retirado da via através de reboque, por se encontrar impossibilitado de circular pelos seus próprios meios.
10. Perante a situação descrita, o autor apresentou reclamações junto da autora.
11. Em consequência do embate, o autor procedeu à reparação do QE, o qual permaneceu na oficina durante 60 dias.
12. A reparação do QE ascendeu a € 8.743,41.
13. O autor despendeu a quantia de € 502,00 com o aluguer de uma outra viatura, durante 29 dias.
14. Em consequência do embate, o QE sofreu uma desvalorização comercial, de pelo menos, 10% do seu valor (€ 2.200,00).
15. Ao entrar em despiste o autor temeu pela sua própria vida.
16. E como consequência directa do embate, sofreu dores lombares.
17. O autor é condutor experiente e diligente.
18. Na data mencionada em 1, as patrulhas da Brisa e da GNR/BT que foram realizadas antes da hora ali mencionada, nada detectaram de anormal nas vias de trânsito, designadamente a presença de cães.
19. Tendo as mesmas patrulhado a A10, 24 sobre 24 horas por dia, todos os dias do ano.
20. A ré Brisa tomou conta da ocorrência cerca das 06H16.
21. E fez deslocar ao local os meios competentes, que ali chegaram por volta das 06H30.
22. A A10 encontra-se vedada em toda a sua extensão, com duas fiadas de arame farpado, uma em cima e outra rente ao chão, sendo tal vedação metálica, de rede progressiva.
23. No local do embate, existe uma vala em cimento, com um colector de águas pluviais, onde a vedação tem um acrescento em baixo para tapar a meia cana, impossibilitando alguma abertura.
24. Na data mencionada em 1, e antes desta, não foi detectada qualquer anomalia na vedação existente no local do embate, ou nas suas proximidades.

O Direito
O acidente sub judice ocorreu na Auto-estrada n.º 10 (A10), ou seja, em terreno do domínio público do Estado, cuja conservação e exploração estava e está concessionada à R., então nos termos consignados no Dec.-Lei n.º 264/97, de 24.10 e nas Bases a ele anexas (posteriormente as Bases da concessão foram alteradas pelo Dec.-Lei n.º 247-C/2008, de 30.12., aliás sem modificações relevantes na matéria ora em apreço).
Do contrato de concessão nascem obrigações que, conforme se reconhece no preâmbulo do Decreto-Lei, têm em alguns casos terceiros como beneficiários: aí se expende que “o carácter contratual da concessão não é prejudicado pela integração no presente diploma das bases anexas, cuja necessidade resulta da circunstância de algumas dessas bases apresentarem eficácia externa relativamente às partes no contrato”.
No que respeita a tais obrigações, há que realçar o que consta nas seguintes Bases:
Base XLIX
Indemnizações a terceiros
1 — Serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão.
2 – (…).”
Base XXXIII
Conservação das auto-estradas
1 — A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente.
(…)”
Base XXXVI
Manutenção e disciplina de tráfego
“(…)
2 — A concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem.
(…).
Base XXXVII
Assistência aos utentes
1 — A concessionária é obrigada a assegurar a assistência aos utentes das auto-estradas que constituem o objecto da concessão, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação.
(…)”.
Na qualidade de concessionária da conservação e exploração das auto-estradas a R. está pois obrigada a zelar pela segurança da circulação nas mesmas, devendo tomar todas as medidas necessárias e possíveis para que se cumpra esse objectivo.
No caso de danos causados a utentes da auto-estrada (no seu património ou na sua pessoa) por incumprimento dessas obrigações, poderá a Brisa ser responsabilizada, ao abrigo do art.º 483.º n.º 1 do Código Civil (“aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”). Sendo também para esse efeito relevante o disposto no art.º 486.º do Código Civil, que estipula que “as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.”
Nesta perspectiva extracontratual da responsabilidade da concessionária, caberá ao lesado a prova do facto ilícito, da imputação do facto à Brisa, a título de culpa, do nexo de causalidade entre o facto e o dano (art.º 342.º n.º 1 do Código Civil). Esta visão das coisas teve acolhimento em parte da jurisprudência (v.g., acórdãos do STJ, de 12.11.1996, processo 96A373 e de 14.10.2004, 04B2885, Internet, dgsi-itij) e da doutrina (v.g., Prof. Menezes Cordeiro – “Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, Estudo de Direito Civil Português”, Almedina, 2004).
Outra fundamentação poderá ser encontrada para a responsabilização civil da concessionária: ela terá origem contratual, seja ela um contrato tacitamente celebrado entre o utente da auto-estrada e a concessionária, tendo em vista a utilização da via, mediante o pagamento de uma taxa, seja o contrato de concessão, encarado como um contrato a favor de terceiro (o utente da via) ou, pelo menos, contrato com eficácia de protecção para terceiros. Em qualquer uma destas perspectivas a responsabilidade da Brisa seria encarada nos termos da responsabilidade contratual (na jurisprudência, v.g., acórdãos do STJ, 17.2.2000, processo 99B1092 e 22.6.2004, processo 041299; na doutrina, Prof. Sinde Monteiro, Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 131.º, pág. 41 e segs., 132.º, 29 e segs. e 133.º, 27 e segs.).
A importância prática da distinção supra reside sobretudo em que se a responsabilidade do agente tiver origem contratual, recairá sobre ele o ónus de provar que não agiu com culpa (artigos 799.º n.º 1 e 344.º n.º 1 do Código Civil).
O legislador interveio nesta polémica, através da publicação da Lei n.º 24/2007, de 18.7.
Tendo por objecto, conforme consta no art.º 1.º, definir “direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto -estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e [estabelecer], nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes estabelecidos ou a estabelecer”, estipula-se no art.º 12.º, sob a epígrafe “responsabilidade”, o seguinte:
1 — Nas auto -estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
(…)”.
Relativamente a casos específicos que tinham chamado a atenção da jurisprudência e da doutrina, com divergência de soluções, o legislador veio estabelecer que recaía sobre a concessionária o ónus de provar que havia cumprido as suas obrigações e, consequentemente, que não lhe podia ser imputada, a título de culpa, a responsabilidade pelo acidente.
Trata-se, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência (cfr., v.g., acórdãos do STJ, de 13.11.2007, processo 07A3564; de 16.9.2008, 08A2094; de 02.11.2008, Col.Jur. XVI, tomo III, pág. 108; de 01.10.2009, processo 1082/041TBVFX.S1; de 02.11.2010, 7366/03.9TBSTB.E1.S1) de lei interpretativa, que por conseguinte é aplicável a situações ocorridas antes da sua entrada em vigor, excepção feita a efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença transitada em julgado, por transacção ou actos de natureza análoga (art.º 13.º n.º 1 do Código Civil).
No caso sub judice provou-se que o A., sem culpa sua, colidiu com um cão que se atravessou inesperadamente à sua frente, na A10, concessionada à R..
Cabia à R., conforme exposto, demonstrar que cumprira as obrigações de segurança destinadas a evitar eventos como o ocorrido.
Realce-se que a lei exime expressamente a concessionária de responsabilidade por incumprimento ou danos que tenham origem em razões de força maior.
Assim, na Base XLVII do contrato de concessão consigna-se, sob a epígrafe “Falta de cumprimento pela concessionária por motivo de força maior”, que:
1 — A concessionária fica isenta de responsabilidade por falta, deficiência ou atraso na execução do contrato quando se verifique caso de força maior devidamente comprovado.
2 — Para os efeitos indicados no número anterior, consideram-se casos de força maior unicamente os que resultam de acontecimentos imprevistos e irresistíveis cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da concessionária, nomeadamente actos de guerra ou subversão, epidemias, radiações atómicas, fogo, raio, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem os trabalhos da concessão.
E no art.º 12.º n.º 3 da Lei .º 24/2007 estipula-se que:
São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.
Os casos expressamente mencionados como eximidores de responsabilidade serão facilmente comprováveis, atenta a sua natureza. Mas outros poderão isentar a Ré da sua responsabilidade. Caberá, porém, a esta demonstrá-los.
No caso concreto dos autos verificou-se que um cão se movimentava na faixa de rodagem da auto-estrada. É óbvio que esse é um facto que põe em sério risco a segurança da circulação e dos utentes. Cabia à R. demonstrar que não teve culpa nesse evento.
Ora, o que se provou?
“8. Em datas anteriores e posteriores à do embate mencionado em 5, foram vistos no local cães.”
“18. Na data mencionada em 1, as patrulhas da Brisa e da GNR/BT que foram realizadas antes da hora ali mencionada, nada detectaram de anormal nas vias de trânsito, designadamente a presença de cães.
19. Tendo as mesmas patrulhado a A10, 24 sobre 24 horas por dia, todos os dias do ano.”
“22. A A10 encontra-se vedada em toda a sua extensão, com duas fiadas de arame farpado, uma em cima e outra rente ao chão, sendo tal vedação metálica, de rede progressiva.
23. No local do embate, existe uma vala em cimento, com um colector de águas pluviais, onde a vedação tem um acrescento em baixo para tapar a meia cana, impossibilitando alguma abertura.
24. Na data mencionada em 1, e antes desta, não foi detectada qualquer anomalia na vedação existente no local do embate, ou nas suas proximidades.”
Por um lado, a R. demonstrou que as vedações no local encontravam-se em boas condições. Mas será que eram suficientes para evitar a passagem de um canídeo de grande porte, como o referido nos autos? Nada foi alegado ou provado acerca das características das vedações, nomeadamente a sua altura.
Também se provou que a R. patrulha a A10 24 horas sobre 24 horas. Mas com que frequência ou cadência?
Por outro lado provou-se que em datas anteriores e posteriores ao dia do sinistro foram avistados animais no local do acidente.
Tomou a Brisa alguma providência face a isso?
A nosso ver, as dúvidas expostas revelam que, contrariamente ao entendido na sentença recorrida, a R. não logrou provar que tomou todas as providências adequadas a evitar ocorrências como a presença de animais na via. Diga-se, aliás, que algo vai mal nesse aspecto, atendendo ao número significativo de casos atinentes a acidentes provocados pela presença de animais na auto-estrada, que têm passado pelos tribunais (cfr., só no STJ, vg., 12.11.1996, processo 96A373; 22.6.2004, 04A1299; 14.10.2004, 04B2885; 13.11.2007, 07A3564; 09.9.2008, 08P1856; 16.9.2008, 08A2094).
Afigura-se-nos, pois, que a R. deve ser responsabilizada pelos danos sofridos pelo A. em consequência do acidente que este sofreu, ao abrigo do disposto nos artigos 483.º nº 1 e 486.º do Código Civil e 12.º n.º 1 da Lei n.º 24/2007, de 18.7.
O A. invocou danos patrimoniais e danos não patrimoniais.
Como danos patrimoniais indicou o custo da reparação do veículo, a sua desvalorização comercial e a despesa suportada pelo aluguer de um veículo durante a sua imobilização.
Nos termos do disposto no art.º 563º do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Quis consagrar-se aqui a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (sine qua non) do dano; é necessário ainda que, em abstracto e em geral, o facto seja uma causa adequada do dano (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, Almedina, 8ª edição, páginas 905 e 915). Na formulação que se reputa mais criteriosa (formulação negativa, de Enneccerus-Lehmann) quando a lesão proceda de facto ilícito, o facto não deve considerar-se causa (adequada) apenas daqueles danos que constituem uma consequência normal, típica, provável, dele. Deve considerar-se causa adequada mesmo daqueles danos para cuja ocorrência também concorreu caso fortuito ou conduta de terceiro. Só não será assim quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais, que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito como a um outro facto lícito (A. Varela, obra citada, páginas 909 e 910, 917).
Nos termos do art. 562º do Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.“ Em princípio a indemnização deverá visar a reconstituição natural, sendo fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (n.º 1 do art.º 566.º do Código Civil). A indemnização em dinheiro terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (n.º2 do art.º 566.º). Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (n.º 3 do art.º 566.º).
No caso dos autos provou-se que a R., interpelada pelo A., não aceitou responsabilizar-se pelo acidente e, consequentemente, recusou-se a reparar os danos por aquele sofridos.
Em virtude dessa recusa o A. pagou do seu bolso a reparação da viatura, que orçou em € 8.743,41 (n.º 12 da matéria de facto). Apesar da reparação, o veículo sofreu, em virtude do acidente, uma desvalorização não inferior a 10% do seu valor, ou seja, € 2 200,00 (n.º 14 da matéria de facto). O A. viu-se privado do uso do veículo, tendo despendido a quantia de € 502,00 com o aluguer de uma outra viatura, durante 29 dias (n.º 13 da matéria de facto).
Todos os valores supra referidos se reportam a consequências normais e previsíveis do sinistro e que, como tal, devem ser reembolsados ao A. (sobre a privação do uso de viatura, cfr., v.g. , acórdão desta Relação, 21.5.2009, relatado pelo ora relator, consultável na internet, processo 1252/08.3TBFUN.L100).
Resta apreciar os invocados danos não patrimoniais.
O art. 496º nº 1 do Código Civil estipula que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
No número 3 do mesmo artigo estabelece-se que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º”, ou seja: “grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”.
Na impossibilidade de fazer desaparecer o prejuízo, com a indemnização por danos não patrimoniais procura proporcionar-se ao lesado meios económicos que de alguma forma o compensem do padecimento sofrido. Por outro lado, sanciona-se o ofensor, impondo-lhe a obrigação de facultar ao lesado um montante pecuniário, substitutivo do prejuízo inflingido.
Conforme o diz a própria lei, relevarão tão só os “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.” Danos esses que deverão ser avaliados de forma objectiva, do ponto de vista de um cidadão médio colocado nas circunstâncias do lesado.
Ficarão de fora meros incómodos, arrelias, transtornos a que qualquer titular de direitos, por o ser e viver em sociedade, sabe que está sujeito e com que deve contar.
No caso dos autos provou-se o seguinte:
“15. Ao entrar em despiste o autor temeu pela sua própria vida.
16. E como consequência directa do embate, sofreu dores lombares.”
Resulta do provado que o A. sofreu um valente susto (temeu pela própria vida) e ainda dores lombares. Porém, o susto dissipou-se de imediato, uma vez que o A. saiu ileso do acidente, nada tendo sido alegado ou provado no que concerne a sequelas daquele. No que respeita às dores lombares, nada se provou quanto à sua intensidade ou duração.
Não se mostra, pois, que os danos não patrimoniais provados têm seriedade suficiente para justificarem a concessão de uma indemnização a esse título.
Nesta parte, pois, a acção improcede parcialmente.
Resta registar que é provavelmente por lapso que nas alegações da apelação o A. pede que a Companhia de Seguros “B” seja solidariamente condenada com a R. no pagamento da indemnização. É que a seguradora foi admitida a intervir nos autos tão só a título acessório, a fim de que o decidido produza também relativamente a ela caso julgado e a R. possa exercer contra a seguradora o seu direito de regresso no caso de condenação (artigos 330.º, 332.º n.º 4 e 341.º do CPC).
Por esse motivo o contrato de seguro celebrado entre a R. e a seguradora não foi sequer incluído na matéria de facto dada como provada.
Não há, pois, que proferir condenação contra a interveniente.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e consequentemente revoga-se a sentença recorrida e em sua substituição julga-se a acção parcialmente procedente e consequentemente condena-se a R./apelada a pagar ao A./apelante, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 11 445,41 (onze mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e quarenta e um cêntimos) e quanto ao mais peticionado absolve-se a R..

As custas são a cargo de ambas as partes, nas duas instâncias, na proporção do respectivo decaimento.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2011

Jorge Manuel Leitão Leal
Henrique Antunes
Ondina Carmo Alves