Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3537/06.4TVLSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
PACTO SOCIAL
EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Num contrato de cessão de crédito no qual, sob o carimbo da firma cedente se acha a assinatura do seu gerente, que é simultaneamente um dos dois gerentes da empresa cessionária, deve entender-se que tal assinatura abrange ambas as contraentes.
II. Estabelecendo o pacto social que a sociedade se obriga apenas com a assinatura dos seus dois gerentes e mesmo que se entenda que no contrato apenas figura a assinatura de um deles, isto não impede a eficácia da declaração perante terceiros, podendo apenas gerar responsabilidade do gerente para com a sociedade.
III. Sendo comunicado por uma empresa que se responsabiliza pelo pagamento da dívida da outra a quem a comunicação foi feita, e sendo o gerente da primeira igualmente o gerente da credora, pode entender-se existir aqui uma ratificação tácita pela credora do acordo de assunção de dívida.
IV. Contudo, para que a devedora anterior fique libertada da sua dívida é necessária uma declaração expressa da credora, nesse sentido.
V. Caso se entenda que uma tal declaração representa uma promessa de exoneração do promissário de uma dívida para com terceiro, o promissário só do promitente poderá exigir o cumprimento da promessa, estando-lhe vedado exigir do credor que reclame o pagamento do seu crédito à referida promitente. (AV)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Veio nos presentes autos B Lda pedir a condenação de G Lda a pagar-lhe a quantia de € 72.246,08 de capital acrescida de € 36.221,79 de juros de mora vencidos até 25/5/2006 e nos vincendos até integral pagamento.
Alega e em síntese que a empresa S Lda lhe cedeu um crédito que detinha sobre a Ré, correspondente a materiais fornecidos, conforme duas facturas, de € 55.560,00 e de € 14.686,08.
Alega ainda que tal cedência foi comunicada à Ré.
Contestou a Ré, excepcionando a ineficácia do contrato de cessão de créditos, já que apenas um dos gerentes da Aª o outorgou, sendo necessárias as assinaturas de dois gerentes.
Por impugnação, alega que quem lhe forneceu os materiais constantes das facturas cedidas foi a empresa BM, a qual, por razões de ordem interna, solicitou à Ré que fosse a S a proceder à facturação, por o gerente de ambas ser a mesma pessoa.
Além disso, alega que foi acordado que haveria encontro de contas entre a Ré e a BM a qual levaria em conta o valor dessas facturas, sendo que a BM sempre se responsabilizou pelo pagamento das facturas emitidas pela S à Ré. Como a Ré dispunha de um crédito de de € 159.079,10 sobre a BM, foi descontado nesse crédito o montante de € 72.246,08 correspondente ao valor das facturas, pelo que não podia a S ceder qualquer crédito à Aª.
A Aª respondeu, alegando que ambos os gerentes assinaram o contrato.
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A acção seguiu os seus termos, realizando-se o julgamento e vindo a ser proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando a Ré a pagar à Aª a quantia de € 72.246,08 acrescida de juros de mora.
Inconformada, recorre a Ré, concluindo que:
A Aª obriga-se com a assinatura de dois gerentes que eram, à data dos factos, Carlos e Silva, tendo este renunciado à gerência em 15/4/2004 e sendo nomeado gerente José.
A BM tem como único gerente o mesmo Silva.
O mesmo Silva assinou o contrato de cessão de créditos por baixo da expressão “a primeira outorgante (cedente)”.
Provou-se que o Silva não assinou o contrato por baixo da expressão “segundo outorgante (cessionário)”.
A outra assinatura sob a expressão “segundo outorgante (cessionário)” é ilegível.
Não podendo assim ser atribuída ao outro gerente, Carlos.
Assim, não se demonstra que qualquer dos gerentes da sociedade cessionária tenha assinado o contrato.
E mesmo que se considere que o Silva, enquanto gerente da S, tenha assinado o contrato em representação das duas contraentes, faltaria a assinatura do outro gerente para obrigar a sociedade cessionária.
Por outro lado, a BM assumiu que se responsabilizava pelo pagamento das facturas emitidas pela S, conforme documento assinado por Silva.
O qual era igualmente o gerente da S, o que conduz a considerar que esta consentiu em tal assunção de dívida.
O contrato de cessão de créditos data de 16/3/2004. O documento assinado pelo legal representante da BM assumindo a responsabilidade pelo pagamento das mencionadas facturas, data de 17/7/2003.
Assim, na data em que foi celebrado o contrato de cessão de créditos, a S não podia desconhecer que não detinha qualquer crédito sobre a ora Ré.
A Aª contra-alegou, defendendo a bondade da sentença recorrida.
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Foram dados como provados os seguintes factos:
1) Entre a Aª, na qualidade de cessionária, e a S Lda, foi celebrado, em 16/3/2004, um acordo escrito intitulado “acordo de cessão de crédito”, no qual a S declarou ser titular de um crédito sobre a Ré no montante de € 72.246,08, proveniente de fornecimentos efectuados pela mesma S e representados pelas facturas 210020 e 210025, vencidas a 27/9/2001 e 29/10/2001 respectivamente.
2) Declarando a S que cede esse crédito à Aª, pelo seu valor.
3) Na parte inferior direita desse documento, consta uma assinatura ilegível por baixo da expressão “segunda outorgante (cessionária)” e, do lado esquerdo do documento consta uma assinatura sob o carimbo “S Lda” a gerência, por baixo da expressão “a primeira outorgante (cedente)”.
4) A Spager tem como gerente, desde 6/10/92, Silva.
5) A Autora obriga-se com a assinatura de dois gerentes e tinha como gerentes Carlos e Silva, tendo este renunciado à gerência em 15/4/2004, sendo nomeado gerente José.
6) A BM tem como único gerente Silva.
7) A cedência do referido crédito foi comunicada à Ré quer pela Sr quer pela Aª, por carta registada com aviso de recepção, recebidas pela Ré em 18/3/2004.
8) A S emitiu em nome da Ré a factura nº 210020, com vencimento a 27/9/2001 no valor de € 55.560,00, e a factura nº 210025, com vencimento a 29/10/2001 no montante de € 16.676,08, ambas relativas a fornecimentos descritos a fls. 11 e 12.
9) A S forneceu à Ré os materiais a que se reportam tais facturas.
10) A Ré tinha uma relação com a BM pela qual esta lhe fornecia materiais.
11) A Ré executava, em regime de sub-empreitada, trabalhos para a BM.
12) A BM, invocando razões de ordem interna, solicitou à Ré que fosse a S a fornecer-lhe os materiais encomendados.
13) O que a Ré aceitou.
14) A BM assumiu que se responsabilizava pelo pagamento das facturas a emitir pela S.
15) A Ré detinha um crédito sobre a BM no montante de € 159.079,10.
16) A Ré descontou o valor de € 72.246,08 no crédito que detinha sobre a BM.
17) O Silva assinou o contrato de cessão de créditos, por baixo da expressão “a primeira outorgante (cedente)”.
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Cumpre apreciar.
As questões que aqui se colocam são essencialmente as seguintes:
A) Saber se o contrato de cessão de créditos pode produzir efeitos, na medida em que a Aª se obriga com a assinatura de dois gerentes e, no entender da recorrente, apenas consta do contrato a assinatura de um deles.
B) Saber se, face à responsabilização pela BM pelo pagamento dos montantes constantes das duas facturas, a S podia ceder tal crédito.
Quanto à primeira questão, analisado o contrato de cessão de crédito de fls. 41, verifica-se que, sob os dizeres “A Primeira Outorgante” (Cedente), e do carimbo com a firma “S Lda” se encontra a assinatura de Silva, gerente da mesma.
No canto inferior direito do mesmo contrato, sob os dizeres “A Segunda Outorgante” (cessionária) encontra-se uma assinatura ilegível.
Esta segunda outorgante, a B, cessionária do crédito, obriga-se com a assinatura de dois gerentes sendo um deles, à data, o Silva.
A questão suscitada pela recorrente prende-se com o facto de o contrato não se mostrar assinado, no que à B diz respeito, pelos seus gerentes.
Na sentença recorrida entendeu-se que, tendo o Silva assinado o contrato, embora enquanto gerente da cedente, se deve concluir que materialmente os dois gerentes da cessionária assinaram o contrato.
Nas alegações de recurso, insurge-se a recorrente contra o facto de, sendo ilegível a assinatura, o tribunal considerar que se trata da assinatura do outro gerente da B, Carlos.
Não se entende porém tal argumento. Na sua contestação (art. 10º), a Ré afirma que a B está representada apenas pela assinatura de um dos gerentes. Tal gerente, uma vez que não se trata de Silva terá de ser Carlos.
Na sentença, o Mº juiz limitou-se pois a acatar os termos da contestação da Ré, assumindo que um dos gerentes da cessionária assinou o contrato, e preocupando-se apenas em indagar dos efeitos jurídicos da falta de assinatura do Silva.
Ora, sendo o Silva gerente único da cedente e um dos dois gerentes da cessionária, há que entender que o facto de ter assinado o contrato em representação da cedente significa manifestação de vontade na celebração de tal contrato, cujas cláusulas antecedem as assinaturas. E tal manifestação de vontade, tratando-se de uma e mesma pessoa física, naturalmente que terá de abranger as duas sociedades de que era gerente.
Independentemente disto, e face ao disposto no art. 260º nº 1 do CSC, sempre estaria a B obrigada, perante terceiros, pelos actos dos seus gerentes, independentemente da possibilidade de poder vir a responsabilizar tais gerentes.
Como se observa no Acórdão da Relação do Porto, de 28/2/91 – BMJ nº 404, pág. 518 - “a circunstância de o gerente assinar sozinho, em nome da sociedade, não obstante o pacto social exigir a assinatura de mais algum gerente, tem como consequência a responsabilidade daquele para com a sociedade mas não a ineficácia da obrigação desta para com terceiros”.
Sublinhe-se ainda que a B, Aª na presente acção, não questiona a eficácia da sua declaração negocial. Pelo contrário, é com base na sua plena eficácia que deduz a sua pretensão, o que demonstra do modo mais evidente a sua plena aceitação da conduta dos seus gerentes na celebração do contrato e aceitação do clausulado neste acordado.
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A outra questão suscitada no presente recurso prende-se com a declaração de 17/7/2003, a fls. 54, na qual Silva, enquanto gerente da BM comunica à ora Ré:
Em resposta ao vosso faxe datado de 14/7/2003 sempre vos foi dito que a BM é responsável pelo pagamento das facturas emitidas pela S”.
Vem isto no seguimento da comunicação da BM à ora Ré, de 26/6/2001, junta a fls. 53, na qual aquela empresa pergunta à Ré se não vê qualquer inconveniente em que seja a S a emitir a facturação dos gabiões PVC encomendados pela Ré.
Diz-se ainda que sendo a mesma a gerência das duas empresas – BM e S – será feito um encontro de contas entre a BM e a G, ora Ré.
Entende a recorrente que sendo gerente de ambas as firmas, Silva, este não só assume a dívida em nome da BM como representa a aceitação da mesma pela S.
Contrariamente à recorrente, entendemos que a questão aqui se coloca em plano diferente da anterior.
Com efeito, ao subscrever o contrato de cessão de crédito entre a S e a ora Aª, na qualidade de representante legal da S, Silva, gerente igualmente da Aª, acaba por mostrar que esta esteve igualmente representada na celebração de tal contrato, no qual de resto figuram os carimbos de ambas as sociedades e a assinatura do outro gerente da cessionária.
Mas ao responsabilizar a BM pela dívida, enquanto gerente desta, numa carta enviada à Ré, o referido gerente não está a produzir declaração de aceitação dessa assunção de dívida pela S.
Explicando-nos melhor:
A assunção de dívida consiste na transmissão de uma dívida por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor ou por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor (art. 595º nº 1 do Código Civil).
No caso dos autos, o devedor originário é a Ré e o credor a S. O que ocorre então é o assumir da responsabilidade pela dívida pela BM, mas numa declaração endereçada apenas à ora Ré.
Ou seja, a aceitar-se que tal declaração representa uma declaração negocial e a aceitar-se igualmente que a Ré anuiu a tal declaração, estamos perante um contrato celebrado entre ambos os devedores sem participação do credor.
Nos termos do nº 2 do mesmo art. 595º, “a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado”.
Uma vez que, no caso em apreço, estamos perante um acordo pelo qual um novo devedor – a BM – assume a dívida do devedor originário – a Ré – seria de exigir uma declaração negocial por parte do credor – a S – aceitando tal transmissão de dívida.
Como salienta Menezes Cordeiro - “Direito das Obrigações” 2º, pág. 113 - “o acordo do credor deve traduzir-se numa declaração expressa de que libera o antigo devedor do seu débito (...). Não basta assim, a participação do credor no próprio acto transmissivo, com a intervenção do devedor e do terceiro adquirente ou a sós com aquele.” (sublinhados do autor).
Como resulta do próprio texto legal, a ratificação pelo credor do contrato entre o antigo e o novo devedor tem de ser ratificada, expressa ou tacitamente, pelo credor. Porém, e face ao nº 2 desse art. 595º, a transmissão só exonera o antigo devedor se existir declaração nesse sentido – e aqui terá de ser expressa – por parte do credor.
Ora, o certo é que não existe nenhuma declaração da S não só a ratificar o acordo entre a BM e a Ré, como não existe nenhuma declaração expressa da mesma S exonerando a Ré da responsabilidade pelo débito.
O facto de Silva ser simultaneamente gerente da BM e da S ainda poderia levar a um entendimento – mesmo que um pouco forçado, desconsiderando a personalidade jurídica da S enquanto pessoa colectiva - de que esta última, tacitamente, ratificava o acordo de assunção de dívida.
Mas continuaria a faltar a declaração expressa, da mesma S, libertando a Ré do seu débito.
E sem isso, a Ré continua a responder perante o credor, mesmo que se entendesse que o faz solidariamente com a BM.
No regime da solidariedade passiva, cada devedor responde pela totalidade da prestação. E não vemos que este regime seja afastado mesmo o caso presente em que a solidariedade é imperfeita – na medida em que não existe direito de regresso entre os devedores.
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Na sentença recorrida, aventou-se ainda a possibilidade de caracterizar o acordo dos autos nos termos do art. 444º nº 3 do Código Civil, ou seja, como “promessa de exonerar o promissário de uma dívida para com terceiro”.
Contudo, nesta situação, a Ré só poderia exigir o cumprimento da promessa à BM, a qual nem sequer é parte nos presentes autos. Mas não podia exigir à credora, a S, que responsabilizasse a BM pelo cumprimento da promessa, na qual não foi, nem poderia ser parte. Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela, neste caso nem sequer estamos perante um verdadeiro contrato a favor de terceiro (“Código Civil Anotado”, I, pág. 297).
Assim, qualquer que seja o ângulo por que se interprete a natureza jurídica da declaração da BM a fls. 54, sempre estará a ora recorrente obrigada ao pagamento do débito cedido.
Conclui-se pois que:
Num contrato de cessão de crédito no qual, sob o carimbo da firma cedente se acha a assinatura do seu gerente, que é simultaneamente um dos dois gerentes da empresa cessionária, deve entender-se que tal assinatura abrange ambas as contraentes.
Estabelecendo o pacto social que a sociedade se obriga apenas com a assinatura dos seus dois gerentes e mesmo que se entenda que no contrato apenas figura a assinatura de um deles, isto não impede a eficácia da declaração perante terceiros, podendo apenas gerar responsabilidade do gerente para com a sociedade.
Sendo comunicado por uma empresa que se responsabiliza pelo pagamento da dívida da outra a quem a comunicação foi feita, e sendo o gerente da primeira igualmente o gerente da credora, pode entender-se existir aqui uma ratificação tácita pela credora do acordo de assunção de dívida.
Contudo, para que a devedora anterior fique libertada da sua dívida é necessária uma declaração expressa da credora, nesse sentido.
Caso se entenda que uma tal declaração representa uma promessa de exoneração do promissário de uma dívida para com terceiro, o promissário só do promitente poderá exigir o cumprimento da promessa, estando-lhe vedado exigir do credor que reclame o pagamento do seu crédito à referida promitente.
Termos em que acordam os juízes desta Relação julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
LISBOA, 2/4/2009
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Pais