Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2892/08.6TBAMD.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
LEI APLICÁVEL
SENHORIO
USUFRUTUÁRIO
MORTE
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Uma Sentença nula não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia.
II- A Sentença padece de nulidade quando não declara a caducidade do contrato de arrendamento dado à acção, quando tal foi expressamente pedido.
III- A morte do usufrutuário, que outorgou o contrato de arrendamento do prédio urbano como senhorio, determina a caducidade daquele contrato, nos termos do artº 1051º al. c) do Código Civil.
III- Essa caducidade opera “ope legis”, não necessitando, para produzir efeitos, de qualquer declaração.
( Da responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :

I – Relatório

1- A intentou a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo sumário (despejo), contra B e C , pedindo que seja decretada a caducidade do contrato de arrendamento trazido aos autos e que, em consequência, os R.R. sejam condenados a despejarem imediatamente o arrendado, entregando-o livre e devoluto à A. e a pagarem à A., de indemnização, nos termos do artigo 1045º do Código Civil, a quantia de 492 €, mais o que for devido a contar de Junho de 2008 até à efectiva desocupação, à razão de 98,40 € por mês.
Fundamenta o seu pedido na caducidade do contrato de arrendamento em causa e na recusa dos RR. em deixarem o andar livre e desocupado.
2- Os R.R. foram citados e contestaram, reconhecendo a caducidade do referido contrato de arrendamento por morte do senhorio usufrutuário (pai da A.). Porém, entendem que têm direito a novo arrendamento, bem como o direito de preferência na compra do andar, sendo certo que a A. já declarou querer vendê-lo.
Em reconvenção, pedem os R.R. que a A. seja condenada a pagar-lhes, a título de benfeitorias, obras e reparações feitas no andar, a quantia de 4.880 €.
3- A A. respondeu à contestação, defendendo a improcedência do pedido reconvencional.
4- Finda a fase dos articulados foi proferido Saneador Sentença a julgar a acção improcedente, constando da sua parte decisória :
“Pelo exposto, julgo improcedente a presente acção e, em consequência, absolvo os R.R. do pedido de despejo formulado, ficando prejudicado o conhecimento do pedido indemnizatório formulado pela A. e do pedido reconvencional deduzido pelos R.R..
Custas pela A. (artigo 446º, nºs. 1 e 2, do CPC).
Registe e notifique”.
5- Desta decisão interpôs a A. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1- Foi dado como provado que por escrito datado de 24.09.1974, o pai da apelante/autora, Manuel ….., na qualidade de usufrutuário deu de arrendamento ao apelado/réu marido, para habitação, o r/c, correspondente à actual fracção autónoma designada pela letra “C”, do prédio urbano, actualmente em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……, nºs 26 e 26-A, freguesia da ..., concelho da ....
2- Foi dado como provado que, no mencionado acordo, fez-se expressa menção da qualidade de usufrutuário em que o referido Manuel …… interveio.
3- Foi dado como provado que o pai da apelante adquiriu o usufruto do prédio de que faz parte o andar dos autos, conjuntamente com a sua mulher Maria ……, por escritura de compra e venda outorgada em 1.07.1971, tendo, nessa mesma escritura, a apelante adquirido a nua propriedade do mesmo imóvel.
4- Foi dado como provado que Maria …… faleceu em 11.10.1973, tendo o mencionado Manuel ... ficado como o único usufrutuário do imóvel.
5- Foi dado como provado que Manuel …… faleceu em 27.06.2007.
6- Em virtude do óbito do dito Manuel ….. a apelante consolidou em si a plena propriedade do andar dos autos.
7- Também em virtude do óbito de Manuel ….. verificou-se a caducidade do contrato de arrendamento celebrado com o apelado marido, em virtude do preceituado na alínea c), do artigo 1051º, do Código Civil.
8- Em razão da caducidade a apelante comunicou ao apelado marido que o andar lhe deveria ser entregue devoluto no prazo estabelecido no artigo 1053º do Código Civil, ou seja, seis meses após a data do óbito do mencionado Manuel …...
9- Os apelados recusaram a entrega do andar e invocaram direito a novo arrendamento.
10- Alegam os apelados, tese que mereceu o acolhimento da decisão recorrida, que apesar de o nº 1 do artigo 59º do Novo regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, estipular que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias,
11- O nº 3 do mesmo preceito preceitua que «As normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável».
12- Sustentando a aplicação desta excepção ao caso em apreço entendem que a norma que deve regular a presente relação é a que se encontrava em vigor à data da celebração do contrato, ou seja, o artigo 5º do Decreto-Lei nº 445/74, de 12 de Fevereiro, que estipula que “Não poderá ser recusado durante mais de cento e vinte dias o arrendamento de qualquer fogo que tivesse sido destinado a habitação no último arrendamento ou que, não tendo sido nunca arrendado, se destine àquele fim nos termos do respectivo projecto ou da licença de utilização a que se refere o artigo 8º do regulamento Geral das Edificações Urbanas”.
13- Assim, entendem ter direito a novo arrendamento.
14- A decisão recorrida, ainda que entenda que o contrato de arrendamento haja caducado, acolheu tal tese, decidindo, por isso, no despacho saneador, decidir de mérito e julgar improcedente a acção proposta absolvendo os apelados/réus do pedido, não tomando conhecimento do pedido indemnizatório formulado pela apelante nem do pedido reconvencional deduzido pelos apelados.
15- Porém, entende a apelante que, no caso em apreço, não há lugar á aplicação do preceituado no referido nº 3 do artigo 59º do NRAU.
16- Na realidade o preceito em causa é bem claro quando estabelece «As normas supletivas contidas (…) quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente …».
17- A excepção, assim, verifica-se na eventualidade de estarmos perante normas supletivas o que tem razão de ser uma vez que se as partes aceitaram que determinada norma supletiva em vigor à data da celebração do contrato, que dispunha em determinado sentido, fosse a norma aplicável se se verificassem as circunstâncias necessárias à sua aplicação, não faria sentido que depois se vissem obrigadas a ver regulado esse mesmo aspecto da sua relação por norma de sentido contrário, entrada em vigor posteriormente à celebração do contrato.
18- Porém entende a apelante que não é este o caso dos autos uma vez que não estamos perante qualquer norma supletiva.
19- Recorrendo-se ao que a doutrina refere a este respeito, designadamente o Prof. Antunes Varela, quando na sua obra “Noções Fundamentais de Direito Civil, Volume I, Nova Edição”, procede à distinção deste tipo de normas face outros tipos de normas, designadamente as qualificadas como imperativas, facilmente se percebe, como se detalhou e transcreveu nas alegações, que a norma em causa é claramente uma norma imperativa, distinta das normas denominadas facultativas de que a norma supletiva é um sub género. Na realidade a norma imperativa impõe uma determinada conduta, sendo que as facultativas nada ordenam, nem proíbem, concedendo (permitindo) apenas certa faculdade.
As normas facultativas podem revestir diversas variantes sendo uma delas as de normas supletivas que são “as que visam suprir a falta de manifestação da vontade das partes.”
20- Também o Prof. Dr. Oliveira Ascensão, in “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, página 201 e seguintes, faz a distinção entre regras injuntivas e regras dispositivas, salientando-se que, conforme refere na citada obra na página 203, este autor prefere chamar injuntivas ao tipo de regras que frequentemente se chama de normas imperativas.
Refere ele que “Regras injuntivas são as que se aplicam haja ou não declaração de vontade dos sujeitos nesse sentido; dispositivas são as que têm entre os seus pressupostos uma determinada posição da vontade das partes quanto a essa aplicação.
Regras dispositivas são as que só se aplicam se as partes suscitam ou não afastam a sua aplicação.
As regras dispositivas podem ser permissivas, interpretativas e supletivas.”
21- Face ao teor do mencionado artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº445/74, de 12 de Setembro, reproduzido na conclusão nº 12, facilmente se vê que estamos perante uma norma tipicamente imperativa e nunca supletiva. Esta disposição não poderia ser afastada pela vontade das partes nem estas poderiam acordar em sentido diverso.
Aliás, quando se diz que “não poderá ser recusado” trata-se, atentos os circunstancialismos existentes à época, de uma norma de interesse público. Isto, aliás, resulta do próprio preâmbulo do Decreto-Lei 445/74, reproduzido em parte nas alegações.
Esta norma nem sequer pressupõe que existam duas partes que possam optar ou não pela sua aplicação, como é característico das normas supletivas.
22- Assim, esta disposição não cabe dentro da previsão a que se reporta o citado nº 3 do artigo 59º do NRAU.
23- Por outro lado também não se descortina qual a norma supletiva, existente no NRAU, a que se pretende fazer referência na decisão proferida e que seja de sentido oposto a esta.
24- Na realidade o NRAU não prevê sequer o direito a novo arrendamento.
25- Como se referiu, apenas o artigo 1091º, nº 1, alínea b) do Código Civil prevê o direito de preferência a um novo arrendamento. No entanto, não só essa norma também não é supletiva, como pressupõe que se pretenda celebrar um novo arrendamento, para além de tal direito de preferência só existir, nos termos do estipulado no nº 2 do mesmo preceito, enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053º. Este último, por seu lado, fala no prazo de seis meses, já há muito esgotado.
26- Entende-se, assim, que houve uma errada aplicação da excepção preceituada no nº 3 do artigo 59º do NRAU, ao considerá-lo aplicável à situação em apreço.
27- Por outro lado houve errada interpretação do tipo de norma que constitui o artigo 5º do Decreto-Lei nº 445/74, de 12 de Fevereiro, ao considerá-la uma norma supletiva quando, pelo contrário, estamos perante uma norma imperativa, tal como, aliás, o artigo 1091º, nº 1, alínea b) do Código Civil.
28- Ao aplicar o mencionado nº 3 do artigo 59º do NRAU a douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação e de aplicação, a mencionada norma legal.
29- A norma a ser aplicada deveria ter sido o artigo 1051º, alínea c) do Código Civil, decretando-se a caducidade do contrato de arrendamento e consequente despejo do andar, conforme o previsto no artigo 1053º do mesmo Código e, consequentemente, ter-se decidido quanto ao pedido indemnizatório formulado pela apelante.
30- Por outro lado, a demandante peticionou na acção interposta que fosse declarada a caducidade do contrato. Na fase final da sua p.i. a demandante refere: “Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, em consequência, ser decretada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado e os réus condenados: (…).
31- Ora sucede que, apesar de constar do teor da sentença recorrida que:
“Com o falecimento deste, operou-se a caducidade do arrendamento (artigo 1051º, nº 1, alínea c), do CC).
Isso é inequívoco.”
E mais adiante:
“Sendo, portanto, obrigatório o arrendamento e tendo os RR. direito à sua celebração, à luz das disposições legais vigentes à data da celebração do contrato, entretanto extinto, por caducidade, tal regime (…).”.
A mesma sentença, na parte da Decisão, não declara a extinção do contrato por caducidade, conforme o peticionado.
32- Verifica-se, por isso, também uma nulidade da sentença, nos termos previstos no artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, uma vez que na decisão o Meritíssimo Juiz “a quo” não declarou tal caducidade.
Nestes termos e no mais que doutamente será suprido por V. Exas., deve ser julgado totalmente procedente o recurso interposto e revogada a douta sentença de que ora se recorre a qual deverá ser substituída por outra que condene os apelados/réus conforme o já peticionado fazendo-se, assim, a habitual Justiça”.
6- Os R.R. contra-alegaram, pugnando pela manutenção da Sentença recorrida, apresentando as seguintes conclusões :
“1. As normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao da norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que essa a norma aplicável ;
2. Norma supletiva em matéria de arrendamento é aquela que ainda que as partes no contrato não regulem, a lei especialmente prevê e regula.
3. Em matéria de arrendamento são essenciais a identificação das partes contratantes, a identificação do locado, o quantitativo da renda e a data de celebração do contrato (vide n.º1 do art.º 8º do RAU).
4. Os demais elementos ou não são necessários ou através das normas supletivas podem ser supridas.
5. Em matéria de arrendamento vigora o princípio da liberdade contratual, donde, ninguém pode ser obrigado a contratar.
6. Porém, à data da celebração do contrato, a situação estava supletivamente regulada na medida em que por razões de ordem social e económica o Governo veio regulamentar essa matéria.
7. Não ocorreu, pois, no caso dos autos qualquer violação da lei.
Termos em que a sentença recorrida deve ser mantida, pois só assim se fará Justiça”.
* * *
II – Fundamentação
a) A matéria de facto a considerar é a seguinte :
1- Por acordo escrito, datado de 24/9/1974, o pai da A., Manuel ….., na qualidade de usufrutuário, deu de arrendamento ao R. B , para habitação, o rés-do-chão, correspondente à actual fracção autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano, actualmente em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……, nºs. 26 e 26-A, freguesia da ..., concelho da ..., pela renda mensal de 1.500$00 (7,48 €).
2- No mencionado acordo, fez-se expressa menção da qualidade de usufrutuário em que o referido Manuel ….. interveio.
3- O pai da A. adquiriu o usufruto sobre o prédio de que faz parte a fracção identificada em 1., conjuntamente com a sua mulher Maria ……, através de escritura de compra e venda outorgada em 1/7/1971.
4- Maria …… faleceu em 11/10/1973.
5-A A., pela escritura pública referida em 3., adquiriu a nua propriedade do identificado prédio.
6- Manuel ….., na qualidade de usufrutuário, e a A., na qualidade de titular da nua propriedade, passaram o prédio ao regime de propriedade horizontal, por escritura pública outorgada em 4/9/1979.
7- Manuel ….. veio a falecer em 27/6/2007.
8- À data do óbito, a renda que se encontrava em vigor, em função das actualizações entretanto verificadas, era de 49,20 €.
9- Em razão do ocorrido em 7., a A. comunicou ao R. marido que o andar lhe deveria ser entregue devoluto seis meses decorridos sobre a data do óbito, ou seja, em 27/12/2007.
10- Os R.R., pela carta cuja cópia consta de fls. 49, deram conhecimento à A. de que pretendiam exercer o seu direito a um novo arrendamento relativo ao andar em causa.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da apelante, as questões em recurso consistem em determinar :
-Se existem motivos para declarar a nulidade da Sentença.
-Se existem motivos para decretar o pretendido despejo.
-Se existem motivos para julgar procedente o pedido reconvencional em caso de procedência da acção.
c) Quanto à primeira das referidas questões, isto é, verificar se existem motivos para declarar a nulidade da Sentença.
Afirma a recorrente ter havido omissão de pronúncia. Em sua defesa refere que o Tribunal “a quo” não declarou a caducidade do contrato de arrendamento dado à acção, quando tal foi expressamente pedido.
Ora, as causas de nulidade da Sentença vêm taxativamente enunciadas no artº 668º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece :
“É nula a sentença :
a) Quando não contenha a assinatura do juiz ;
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ;
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
O Prof. Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 297), na análise dos vícios da Sentença enumera cinco tipos :
-vícios de essência ;
-vícios de formação ;
-vícios de conteúdo ;
-vícios de forma ;
-vícios de limites.
Refere o mesmo Professor (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308), que uma Sentença nula “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Por seu turno, o Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, pg. 686),no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do artº 668º do Código de Processo Civil, salienta que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.
Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pgs. 668 e 669) considera que apenas a “falta de assinatura do juiz” constitui fundamento de nulidade, pois trata-se de “um requisito de forma essencial. O acto nem sequer tem a aparência de sentença, tal como não tem a respectiva aparência o documento autêntico e o documento particular não assinados”. A respeito das demais situações previstas na norma, considera o mesmo autor tratar-se de “anulabilidade” da sentença e respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença”.
Ora, afirma a recorrente que a Sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia (artº 668º nº 1, al. d) do Código de Processo Civil).
O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” (cf. artº 660º nº 2 do Código de Processo Civil).
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito que o Juiz na Sentença “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Como salienta o Prof. Alberto dos Reis (in “CPC Anotado”, Vol. V, pg. 143) :
“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (artº 511º nº 1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido : por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida ; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (artº 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”
Resulta desta interpretação que a Sentença não padece de nulidade quando não analisa um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.
No caso presente o Juiz do Tribunal “a quo” analisou as diversas questões colocadas pelas partes e, quanto ao aspecto que ora interessa, pronunciou-se expressamente, dizendo mesmo que é inequívoco que se deu a caducidade do arrendamento.
Porém, na parte decisória (final) da Sentença acabou por nada dizer, limitando-se a julgar a acção improcedente.
É, assim, óbvio que o Tribunal de 1ª instância, ao não ter declarado a invocada (e reconhecida) caducidade, não decidiu sobre uma questão sobre a qual devia ter tomado posição.
Assim sendo, na parte em que não declarou a caducidade do arrendamento, a Sentença sob recurso é nula, pelo que, nesta parte, o recurso procede.
d) Há agora que verificar se existem motivos para decretar o peticionado despejo.
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) foi aprovado pela Lei nº 6/2006 de 27/2, tendo entrado em vigor, como decorre dos artºs. 1º e 65º, em 28/6/2006.
O Título III dessa Lei contém normas transitórias, sendo as do seu Capítulo II referentes aos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais celebrados antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15/10.
O artº 27º do NRAU estabelece que tais contratos passam a estar submetidos ao NRAU.
E o artº 59º nº 1 do mesmo NRAU preceitua que este “aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.
Assim sendo, não oferece dúvida a aplicabilidade do novo regime do arrendamento urbano (o já mencionado NRAU) à situação “sub judice”, já que a presente acção judicial, de despejo com fundamento na caducidade do contrato por morte de senhorio usufrutuário, não se mostra excepcionada pelos artºs. 26º e 28º da Lei nº 6/2006 de 27/2 (cf. artºs. 59º nº1 e 60º nº1 da referida Lei).
Ora, o artº 3º do NRAU, conjugadamente com a revogação em bloco do RAU e salvas as excepções na lei indicadas, aditou ao Código Civil os artºs. 1064º a 1113º, reintroduzindo naquele Código a disciplina material específica do arrendamento de prédios urbanos, que o normativo revogado havia dele retirado, mas dando aos artigos reintroduzidos um conteúdo inovatório.
e) Entre as formas de cessação do contrato de locação (do qual o arrendamento urbano para habitação é uma subespécie) figura, ao lado da revogação, da resolução e da denúncia, a caducidade (artº 1051º do Código Civil).
No caso “sub judice”, o contrato de arrendamento cuja caducidade a apelante invoca e pretende ver declarada, foi celebrado em 24/9/1974.
Mas, independentemente da data da celebração e de início de vigência do arrendamento em causa, a disciplina aplicável ao mesmo, em matéria de causas de caducidade, seria sempre a que estivesse em vigor à data do facto determinante da caducidade, isto é, a morte do usufrutuário, ocorrida em 27/6/2007, já na vigência do NRAU.
Assim sendo, é inquestionável (e tal nem sequer é posto em causa pelos apelados) que a morte do usufrutuário, que outorgou o contrato de arrendamento do prédio urbano, determinou a caducidade daquele contrato, nos termos do artº 1051º al. c) do Código Civil.
A caducidade opera “ope legis”, não necessitando, para produzir efeitos, de qualquer declaração.
Com a caducidade do contrato de arrendamento extingue-se a respectiva relação jurídica.
f) No entanto, defende a decisão sob recurso, que, por força do disposto no artº 59º nº 3 do NRAU (“As normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”), haverá que aplicar ao caso o artº 5º nº 1 do Decreto-Lei 445/74 de 12/9, em vigor à data da celebração do contrato, o qual dispõe que “não poderá ser recusado durante mais de 120 dias o arrendamento de qualquer fogo que tivesse sido destinado à habitação no último arrendamento”.
Refere-se na decisão que :
“Sendo, portanto, obrigatório o arrendamento e tendo os R.R. direito à sua celebração, à luz das disposições legais vigentes à data da celebração do contrato, entretanto extinto, por caducidade, tal regime, por oposto ao actual, deve ser aplicado ao caso dos autos, ex vi do n.º 3 do citado artigo 59º do NRAU.
Ora, os RR. já manifestaram essa vontade à A.
Se o mesmo não foi celebrado, tal facto é imputável à A., que não aos RR., razão suficiente para naufragar o pedido de despejo formulado pela A (…)”.
Ou seja, para a decisão em causa não haverá que aplicar o artº 1091º nº 1, al. b) do Código Civil (segundo o qual o arrendatário apenas tem direito de preferência “na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado”), mas sim o artº 5º nº 1 do Decreto-Lei 445/74 de 12/9, por se estar perante duas normas supletivas, sendo de aplicar a vigente à data da celebração do contrato, por força do artº 59º nº 3 do NRAU.
Será assim ?
Segundo se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/2/2007 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt), “é incontroverso que as disposições legais onde se elencam as causas de caducidade do arrendamento habitacional são de qualificar como pertinentes a um “estatuto legal” e não a um “estatuto contratual”, sendo certo que elas são dirigidas “à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica” (in casu, uma relação jurídica de arrendamento urbano habitacional), “de modo a poder dizer-se que tais disposições atingem essas pessoas, não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo tipo de vínculo contratual (...enquanto senhorios e inquilinos...)” (Baptista Machado in “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, Coimbra, 1968, pg. 122)”.
E mais se afirma no mesmo Acórdão :
“Tudo isto para concluir que, independentemente da data em que foi celebrado o contrato de arrendamento (…), será sempre a Lei Nova entretanto (isto é, na sua vigência) sobrevinda a disciplinar vinculisticamente os efeitos do arrendamento urbano habitacional a competente para regular as causas de caducidade do referido contrato e as excepções a essas mesmas causas”.
Mas independentemente de tal posição, também por outras razões entendemos ser de aplicar ao caso a Lei Nova.
Com efeito, o artº 5º nº 1 do Decreto-Lei 445/74 de 12/9, até pela sua redacção, é inequivocamente uma norma imperativa (a expressão “não poderá ser recusado (…) o arrendamento” é esclarecedora.
Além disso, o aludido diploma legal, no seu preâmbulo, salienta que pretende ajudar a solucionar “o problema do alojamento, designadamente no que respeita à imediata obtenção de habitações acessíveis aos níveis de rendimentos da maioria da população trabalhadora”. Assim, dentro do espírito da época (apenas tinham decorrido cinco meses sobre o 25 de Abril) o Decreto-Lei em apreço, pretendendo resolver o problema da habitação, estabeleceu, nomeadamente no seu artº 5º nº 1, um verdadeiro “dever de arrendar”.
Assim sendo, é óbvio que inexistem duas normas supletivas para colocar em confronto, como impõe o artº 59º nº 3 do NRAU, motivo pelo qual é inaplicável ao caso o disposto no artº 5º nº 1 do Decreto-Lei 445/74 de 12/9.
Deste modo, haverá que dar razão à recorrente e revogar a Sentença nesta parte.
g) Assente que à situação dos autos é apenas aplicável o actual regime do arrendamento urbano, “quid juris” ?
Vimos já que a morte do usufrutuário, pai da recorrente, que outorgou o contrato de arrendamento do prédio urbano, determinou a caducidade desse contrato, nos termos do artº 1051º al. c) do Código Civil.
E de acordo com o artº 1053º do Código Civil, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade.
Assim, tendo o usufrutuário-senhorio falecido em 27/6/2007, a restituição do andar só poderia ocorrer a partir de 27/12/2007.
E foi esse o procedimento da apelante. Com efeito, depois da morte do seu pai, aquela comunicou ao apelado que o andar lhe deveria ser restituído após a última das indicadas datas.
De acordo com o artº 1091º nº 1, als. a) e b) do Código Civil, os recorridos apenas têm direito de preferência :
-Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado.
-Na celebração de novo contrato de arrendamento.
E não ficou demonstrado que a apelante pretenda celebrar novo contrato de arrendamento ou vender o imóvel, motivo pelo qual não assiste aos inquilinos qualquer direito de preferência.
Assim sendo, é manifesto que haverá que decretar o peticionado despejo.
h) No que diz respeito ao pedido indemnizatório formulado pela recorrente.
Dispõe o artº 1045º nº 1 do Código Civil, referente à indemnização pelo atraso na restituição da coisa, que “se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida”.
E acrescenta o nº 2 do mesmo normativo que “logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro”.
Assim, sendo a renda de 49,20 € mensais, e estando os recorridos em mora desde Janeiro de 2008, terão eles de pagar à recorrente uma indemnização de 98,40 € mensais (49,20 € x 2) desde tal data, até efectiva desocupação do locado.
i) Finalmente, há que apreciar o pedido reconvencional formulado pelos recorridos.
Pretendem estes que a recorrente lhes pague a quantia de 4.880 € a título de benfeitorias por eles realizadas no andar em causa.
Da leitura da contestação teremos de concluir que aquilo que os recorrentes classificam de benfeitorias mais não são do que obras se conservação (se bem que o artº 1074º nº 5 do Código Civil as equipare para efeitos de compensação no final do contrato).
Ora, o artº 1074 nº 1 do Código Civil dispõe que “cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário”.
E “o arrendatário apenas pode executar quaisquer obras quando o contrato o faculte ou quando seja autorizado, por escrito, pelo senhorio” (artº 1074 nº 2 do Código Civil).
Caso se trate de reparações urgentes, o arrendatário tem direito a ser ressarcido das despesas tidas com as mesmas através de compensação desse crédito com a obrigação de pagamento da renda (artº 1074 nº 3 do Código Civil). Mas o arrendatário que pretenda exercer esse direito à compensação tem de comunicar essa intenção “aquando do aviso da execução da obra e junta os comprovativos das despesas até à data do vencimento da renda seguinte”.
Acontece que, ao formularem a sua pretensão, os recorridos não alegam ter sido autorizados por escrito, pelo senhorio, a realizá-las.
Por outro lado, mesmo que estivéssemos perante obras urgentes (o que é duvidoso em face das reparações que alegam ter feito) sempre teriam que fazer o aviso da execução da obra. O que não é alegado.
Assim, os recorridos não alegaram, e era seu o ónus, de terem constituído a recorrente em mora, no que às invocadas obras diz respeito.
Assim sendo, teremos de concluir que, perante os factos alegados, o pedido reconvencional é manifestamente improcedente.
j) Procedem, pois, as conclusões da recorrente, pelo que há que revogar a Sentença sob recurso.
k) Sumariando :
I- Uma Sentença nula não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia.
II- A Sentença padece de nulidade quando não declara a caducidade do contrato de arrendamento dado à acção, quando tal foi expressamente pedido.
III- A morte do usufrutuário, que outorgou o contrato de arrendamento do prédio urbano como senhorio, determina a caducidade daquele contrato, nos termos do artº 1051º al. c) do Código Civil.
III- Essa caducidade opera “ope legis”, não necessitando, para produzir efeitos, de qualquer declaração.
* * *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e nessa medida :
1º- Declara-se a nulidade da Sentença recorrida, por omissão de pronúncia.
2º- Revoga-se a Sentença recorrida.
3º- Em face do determinado em 2º, julga-se procedente o pedido formulado pela A. e, consequentemente :
-Declara-se a caducidade do contrato de arrendamento para habitação, respeitante ao rés-do-chão, correspondente à actual fracção autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano, actualmente em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …., nºs. 00 e 00-A, freguesia da ..., concelho da ..., celebrado entre as partes.
-Condenam-se os R.R. B e C a despejarem imediatamente o arrendado, entregando-o livre e devoluto à A..
-Condenam-se os R.R. a pagarem à A. uma indemnização, no valor de 98,40 € por mês, contados desde Janeiro de 2008 até à efectiva desocupação.
4º- Julga-se improcedente por não provado o pedido reconvencional formulado pelos R.R. e, consequentemente, absolve-se a A. do mesmo.

Custas : Pelos recorridos (artigo 446º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 7 de Junho de 2011

Pedro Brighton
Anabela Calafate
António Santos