Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1071/09.0JDLSB.L1-5
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: PERDA DE VEÍCULO
PERDA DE INSTRUMENTO DO CRIME
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº A perda de objectos, não é uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem um efeito da condenação, porque não depende da existência de condenação, nem uma medida de segurança, pois não se baseia na perigosidade do agente;
IIº A perda de objectos é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção;
IIIº Incluindo-se o veículo cujo perdimento é pedido, nos denominados “instrumento sceleris” (objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico), é necessário, além do mais, que “pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso ofereça séria risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”;
IVº Para a declaração da perigosidade do objecto, não deverá atender-se somente à sua natureza e características, mas também às circunstâncias do caso e à sua ligação ao agente do facto ilícito típico;
Vº Tendo o veículo de mercadorias apreendido sido usado, pelo seu proprietário, para o transporte para Espanha de objectos por si receptados, assumindo o mesmo um papel imprescindível na consumação do crime, já que a vantagem patrimonial subjacente à receptação tinha como condição sine qua non a venda posterior dos bens e em causa estavam bens pesados, que nem todo o tipo de viatura tinha capacidade para transportar com a celeridade necessária, justifica-se a formulação de um juízo de perigosidade quanto à sua utilização futura em transportes de natureza idêntica, circunstância que legitima a declaração de perdimento de tal viatura;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
1-No âmbito do processo acima referenciado foi proferido acórdão em 8 de Julho de 2010, que julgou a acusação parcialmente provada e parcialmente procedente e, em consequência decidiu:

a)Absolver o arguido A... da prática de quatro crimes de furto qualificado p. e p. pelo arts. 203° e 204 n° 2, al. a) d) e e) do Código Penal (CP);
b) Absolver o arguido A... da prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 2° n° 1 al. p) e n° 2 al. c), art. 3° n° 6, al. a) e art. 86° al. c), da Lei 5/2006, de 23/02;
c)Absolver o arguido A... da prática de quatro crimes de contrabando qualificado p e p pelo art. 92° n° 1 al. c) do RGIT;
d)Condenar o arguido A... como autor de quatro crimes de receptação p. e p. pelo art. 231° n° 1 ° do CP, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão para cada crime;
e)Em cúmulo jurídico, condenar o arguido A... na pena única de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período;
f)Julgar o pedido de indemnização civil improcedente, por não provado e dele absolver o arguido A...;
g) Condenar o arguido no pagamento de 4 UCs de taxa de justiça, e nas demais custas do processo, fixando no mínimo o valor da procuradoria, (artigos 513° e 514° do Código de Processo Penal, 82° n° 1, 85° e 93° do Código das Custas Judiciais).
h) Condenar o arguido no pagamento da quantia correspondente a 1% da taxa de justiça ora aplicada, a reverter para o Cofre Geral dos Tribunais, nos termos do disposto no artigo 13°, n° 3, do Dec. Lei 423/91, de 30 de Outubro.
i)Custas cíveis a cargo do demandante;
j) Restituir ao arguido o veículo de matrícula …;
k)Declarar perdida a favor do Estado a arma apreendida e ordenar a sua entrega à PSP;
l)Proceder à restituição a J... o cartão e a caderneta identificados a fls. 25 e 26 do apenso A;
m) Remeta boletim à Direcção dos Serviços de Identificação Criminal.

Mais declarou extinta a medida de coacção imposta ao arguido por terem deixado de subsistir os pressupostos que a impuseram.

2- O Ministério Público veio recorrer deste Acórdão apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem:
(…)
a) Por um lado, consta da fundamentação conjugada (Matéria de facto provada) dos factos 5, 8, 12, 16 e 19 dados como provados, que o arguido, no âmbito da prática dos factos e crimes pelos quais foi condenado, transportou para a Espanha todos os objectos por si receptados no seu veículo de mercadorias, marca Iveco, modelo Dily 35C18, matrícula …, deste modo os levando e entregando ao arguido L… vendendo-lhos e recebendo deste uma quantia monetária a título de pagamento do preço respectivo, ou para que este arranjasse clientes para tais objectos e depois repartissem entre eles o preço da venda.
b) Consta da decisão, em contradição insanável com o atrás narrado em a), que inexiste qualquer ligação funcional ou instrumental entre o automóvel do arguido (pertença do arguido e por este conduzido, e que com ele se deslocou, por quatro vezes, a Espanha transportando os objectos furtados) e o crime de receptação perpetrado pelo mesmo, “uma vez que entre a utilização do automóvel e a prática do crime não se verifica uma relação de causalidade adequada, consabido que sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma”. “Com efeito, o arguido sempre ter-se-ia deslocado a Espanha utilizando um outro meio de transporte”.
c) Resulta dos factos provados que a viatura em causa foi elemento essencial no âmbito da prática dos factos pelo arguido, existindo forte ligação funcional e instrumental entre os factos, o automóvel e o arguido autor dos factos, já que tudo se consumou num contexto organizado em que se impunha a colocação célere dos objectos em Espanha, no mesmo dia dos furtos ou em horas próximas,
d) e em que, assim, a viatura assume papel imprescindível na consumação do crime, já que a receptação tinha como condição sine qua non a venda posterior dos bens, venda essa possível apenas se os objectos chegassem a Espanha, ao arguido …, que era quem tinha a possibilidade de os colocar no mercado, e a decisão proferida tinha de estar em conformidade com estes factos apurados e, antes, está em clara contradição insanável com os mesmos.
e) Ao proferir o Acórdão o julgador está cingido aos factos provados e não provados, não podendo ir além do que resultou concretamente apurado, conjecturando sobre o que poderia ter resultado provado e não resultou, e assim conhecendo, valorando e relevando tais conjecturas para efeitos de decisão concreta.
f) Por outro lado, dos factos provados resulta manifesto que a viatura apreendida, pertença do arguido e por este conduzido, e que com ele se deslocou, por quatro vezes, a Espanha transportando os objectos furtados, foi essencial e determinante para a prática e concretização do crime, sem a qual o arguido … não praticaria o crime de receptação porque este pressupunha a venda dos objectos (não os queria para seu uso/colecção particular) e a sua colocação quase de imediato a seguir ao seu furto em Espanha e no L…, para a qual, no âmbito desta actuação planeada e organizada e para sua concretização, o arguido tinha ao seu dispor a viatura apreendida.
g) Ao afastar o preenchimento do elemento “ligação funcional ou instrumental entre o automóvel do arguido e o crime de receptação perpetrado pelo mesmo e a relação de causalidade adequada “entre a utilização do automóvel e a prática do crime”, o Tribunal a quo não teve em conta que é regra de experiência comum, e o que se exige a um homem médio, que um indivíduo (o arguido, no caso) que é dono de uma viatura como a apreendida, e que a conduz, ao receber objectos furtados que pretende posteriormente colocar à venda a fim de receber o lucro do pagamento da mesma - venda de objectos que sabia provenientes de furto e que tinham de ser transportados para Espanha quase de imediato para consolidação dos crimes fora do espaço territorial nacional e para a sua posterior venda em Espanha por quem, conhecido do indivíduo em causa tinha as condições necessárias para o efeito, peças essas de peso tal que não podiam ser levadas a “braço” - tem em conta como determinante e condição sine qua non para a prática do crime a utilização de tal viatura necessária para o cometimento e concretização do crime.
h) Não podia, pois, o Tribunal ter-se decidido no sentido de que “sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma” e de que “o arguido sempre ter-se-ia deslocado a Espanha utilizando um outro meio de transporte”, sem a mínima base de sustentação na factualidade dada como provada, ou não provada.
i) E, assim, o Tribunal a quo errou na apreciação da prova ao não ter em linha de conta todos os factos provados que, no nosso modesto entender, infirmam de forma inequívoca e notória a errada apreciação da prova que determinou a decisão de entrega da viatura apreendida ao arguido.
j) Nesta conformidade, o douto Acórdão violou o disposto nos arts.127º e 410º, nº2, als.b) e c), do C.P.P., devendo ser declarado nulo e ser substituído, nesta parte, por outro que corrija os apontados vícios, e julgue em conformidade, ordenando o perdimento a favor do Estado da viatura apreendida nos autos.
l) Vem ainda o Ministério Público especificar que, em cumprimento do disposto no nº5 do art.412º do C.P.P., mantém interesse na apreciação do recurso interlocutório atempadamente interposto e junto aos presentes autos a fls.1241 a 1253, requerendo a repristinação do conhecimento e consequente decisão do mesmo.
(…)

3- O recorrido veio apresentar a sua resposta de onde constam as seguintes conclusões que se transcrevem:
(…)

Dos crimes de que mostrava pronunciado, foi absolvido deles todos, vindo a ser condenado por convolação em quatro crimes de receptação. (Em nosso entender deveria ser apenas um, sob a forma continuada.

Ficou inactivo práticamente um ano, devido à medida de coacção de pulseira electrónica, que lhe foi aplicada. Sofreu assim reclusão domiciliária.

Foi ordenada a restituição do veículo de sua pertença, objecto agora de recurso, por parte do Exm° Magistrado do M°P°.
4°
A decisão tomada pelo douto Tribunal " ad quo", baseou-se em, face à factualidade apurada, em não se verificar uma relação de causalidade adequada entre a utilização do automóvel e a prática do crime, consabido que, sem a utilização do veiculo, a infracção, teria sido praticada na mesma.

Do livre arbítrio do douto Tribunal, e em convicção com a prova produzida, a decisão de entrega em nosso modesto entender e salvo o devido respeito, parece-nos correcta e de douta sabedoria.

E em acrescento, permitimo-nos afirmar que nas regiões em causa, e no comércio deste tipo ali reinante, é comum haver empréstimo, facilitação e troca de bens e serviços, baseados no sentido de entreajuda naquelas populações, a que vulgarmente se chama de " comunismo cristão".

Provado está, que este veículo servia igualmente para, entre outros favores, transportar sucata para uma testemunha, o ...

Em qualquer altura e lugar, o arguido teria, como efectivamente aconteceu, alguém que lhe fornecesse transporte aos bens que necessitava mover.

Também o comprador se deslocaria a ir buscar mercadoria caso assim fosse ajustado, aliás como é muito comum na actividade comercial, Verifica-se assim a desnecessidade da utilização do veículo para a actividade perpetrada pelo arguido.
10°
Bem entendeu assim o douto Tribunal, e um sapiente " bonus pater famílias ", pelo que, em nosso modesto entender, a douta decisão está inteiramente correcta, não se verificando nenhum dos vicies invocados pelo Ilustre Magistrado do M°P°,
Negando-se provimento ao recurso apresentado,
(…)

4- O recurso foi devidamente admitido e fixado o efeito legal.

5- Subiram os autos a este Tribunal, onde no Parecer a que corresponde o art. 416º do CPP, a Exma. Procuradora – Geral Adjunta sufragou a posição do MP em 1ª Instância, devendo o recurso proceder.

6- Cumprido o art.417º, nº 2 do CPP, veio o recorrido pugnar pela improcedência do recurso.

7- Efectuado exame preliminar, foram os autos remetidos para conferência.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.
1- Recorde-se o teor do acórdão recorrido na parte que interessa à decisão do recurso (transcrição):
(…)
2.1. Matéria de facto provada
Do julgamento realizado resultaram demonstrados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1-O arguido A... também conhecido por "…", não possui qualquer estabelecimento mas negoceia em antiguidades e velharias;
2-O arguido L.., negoceia em pedras artificiais, através da empresa Pedras Naturales El Colorado, sita em El …, Espanha;
3-Sendo conhecido do …, cuja casa, em T…, frequenta;
4-No dia 14 de Dezembro de 2007, entre as 18.00 e as 19.00, de modo não concretamente apurado, indivíduos não identificados transpuseram o muro que rodeia a residência, sita na Avenida da …, pertença de …, penetrando no jardim, de onde retiraram uma escultura em mármore;
5-O arguido … adquiriu essa escultura a uns indivíduos, de raça cigana, e em seguida levou-a, no dia 20 de Dezembro de 2007, para Espanha e entregou-a ao …;
6-No dia 21 de Dezembro de 2007 o … vendeu a escultura em causa;
7-Na noite de 19 para 20 Abril de 2009, a hora não concretamente apurada, do Solar de …, indivíduos não identificados retiraram dois bustos em pedra mármore, que se encontravam em cima de dois pilares que ladeiam a entrada da porta principal desse Solar, de que … é comproprietário;
8-O arguido … adquiriu esses dois bustos aos mesmos indivíduos de raça de cigana, que o procuraram na sua residência, pelo valor de 300€ cada e, em seguida, transportou-os para Espanha e vendeu-os ao … pelo preço de 600€;
9-Que, por sua vez, os vendeu, a 23 de Abril de 2009;
10-A hora não determinada, mas que ocorreu após as 17 000 do dia 9 de Julho de 2009, de forma não determinada, indivíduos não identificados transpuseram o muro que ladeia o Museu da Cidade de .., sito no …, penetrando no jardim, de onde retiraram quatro (bustos) e quatro colunas/peanhas, que suportavam dois desses bustos que ai se encontravam expostos;
11-Logo nesse dia, o arguido … adquiriu-as aos mesmos indivíduos de raça cigana, que o procuraram na sua residência, pelo valor de 300€ cada;
12-Em seguida transportou-os e entregou-os, no dia 9 de Julho de 2009, ao arguido … para que este arranjasse um cliente para os mesmos;
13-Na posse de quem foram ainda apreendidas, no dia 21 de Julho de 2009, pela Guarda Civil de Madrid — Unidade Central Operativa — Grupo Património Histórico, Espanha.
14-Pelas 03.00, do dia 14 de Julho de 2009, da Fonte da ..., inserida na zona de Protecção de Imóvel de Interesse Público do Palácio ..., Largo ..., P..., indivíduos não identificados retiraram duas figuras, que serviam de bocais da fonte;
15-0 arguido … adquiriu, por valor não apurado, os objectos aos mesmos indivíduos de raça cigana;
16-No dia 21 de Julho de 2009 o arguido … transporta-as e entrega-as ao L… para que este arranjasse um cliente para as «bonecas»;
17-Na posse de quem foram apreendidas, no dia 21 de Julho de 2009, pela Guarda Civil Espanhola.
18-As nove esculturas e quatro pilares acima referidos foram apreendidos em Espanha, pela Unidade da Guarda Civil e devolvidas a Portugal em Fevereiro de 2010;
19-0 arguido transportou para a Espanha todos os objectos acima referidos no seu veículo de mercadorias, marca Iveco, modelo Dily 35C18, matrícula …;
20-Do exame efectuado às esculturas e pilares resulta:
As do Solar de ...
Um (1) par de bustos em mármore branco, representando um casal de figuras, esculturas do Sec.XVIII, com 74 cm de altura.
As peças estão em bom estado de conservação, tendo sido avaliadas em vinte mil euros (E 20 000, 00);

Da Fonte da ...
Um (1) par de puti-tritoes, em pedra liós rosada, com altura máxima de 88 cm, esculturas do século XIX tardio (1894), que servem como grifos de fontanário, avaliadas em trinta mil euros (€ 30 000, 00);

Do Museu da Cidade de ...
Quatro (4) bustos em pedra mármores, representando três figuras femininas e uma masculina, esculturas estas do século XVIII, com altura máxima de 75, 5 cm e mínima de 74 cm e ainda quatro (4) plintos de pedra mármores, dois (2) em forma de balaústre e dois (2) em forma de paralelepípedo truncado, as quatro figuras tem o nariz quebrado, tudo avaliado em quarenta mil euros (E 40 000, 00);

Da Residência Particular
Pedras de Armas com Brasão de D. Tomas de Almeida, 1° Cardeal Patriarca de Lisboa, em mármore branco, do Século XVIII, com 103 cm dealtura, apresentando coroa e tiara papal, com a representação das armas dos Almeidas, sendo avaliada em quarenta mil euros (€ 40 000, 00);
21-No sótão da residência onde o arguido … reside, foi apreendida uma espingarda caçadeira com canos basculantes, calibre 12, marca El Reno, com o número de serie JU69570, de origem espanhola, com a coronha quebrada;
22-Submetida a exame revelou estar mau estado de conservação, quebrada/desgregada, com várias partes
24-As pessoas a quem o arguido negociar nas feiras;
25-0 arguido quando adquiriu passou qualquer recibo;
26-0 arguido quando adquiriu origem ilícita mas, mesmo assim, decidiu ficar com as mesmas;
27-Agiu o arguido com o intuito de as vender em seguida e obter uma vantagem patrimonial que sabia não ter direito;
28-0 arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo serem as suas condutas proibidas por lei;
29-0 arguido não tem antecedentes criminais;
30-0 arguido frequentou a escola até ao 3° ano de escolaridade;
31-0 arguido mostra-se integrado na sua zona de residência, convivendo com indivíduos da sua etnia cigana e fora dela;
33-0 arguido vive com a sua mulher e duas filhas menores de idade, numa casa propriedade da sua mãe;
34-A família é beneficiária do rendimento social de inserção;
35-0 arguido encontra-se a frequentar um curso de formação para adultos do 1° ciclo;
36-0 arguido dedica-se à comercialização de peças antigas e velharias;
37-0 arguido mostrou-se arrependido;
38-Os quatro bustos subtraídos do Museu da Cidade encontravam-se na alameda principal dos jardins do museu;
39-Com vista à colocação dos quatro bustos no local de origem, o Município de Lisboa teve de recorrer a uma empresa da especialidade;
40-Os bustos terão que ser fixados nos plintos e respectivas bases além de terem de ser reconstruídos e limpos;
41-0 valor de reparação e instalação dos quatro bustos é de 11.160,00€.

Factos Não Provados

1-Sabendo que as esculturas portuguesas, pela sua originalidade e riqueza artística, são altamente cotados no mercado das obras de arte e como tal objecto de elevada procura, nomeadamente no mercado espanhol, decidiu o arguido … sonegar em Portugal obras desta natureza que o … se encarregaria de escoar.
2-Para tanto, o … dissimulou os objectos debaixo de outros de maiores dimensões, usualmente carroças, e transportou-os no seu veículo de mercadorias, marca Iveco, modelo Dily 35C18, matrícula …;
3-No dia 14 de Dezembro de 2007, entre as 18.00 e as 19.00, de modo não concretamente apurado, o arguido … transpôs o muro que rodeia a residência sita na Avenida …, pertença de …, penetrando no jardim, de onde retirou uma escultura em mármore;
4-Na noite de 19 para 20 Abril de 2009, a hora não concretamente apurada, do Solar …, o arguido … retirou dois bustos em pedra mármore, que se encontravam em cima de dois pilares que ladeiam a entrada da porta principal desse Solar;
5-A hora não determinada, mas que ocorreu após as 17 000 do dia 9 de Julho de 2009, de forma não determinada, o arguido … transpôs o muro que ladeia o Museu da Cidade…, penetrando no jardim, de onde retirou quatro (bustos) e quatro colunas/peanhas, que suportavam dois desses bustos que ai se encontravam expostos;
6-Pelas 03.00 do dia 14 de Julho de 2009, da Fonte da ..., inserida no Palácio ..., Largo ..., P..., o arguido … retirou duas figuras, que serviam de bocais da fonte;
7-Agiu o arguido com o intuito de fazer seus os bens supra, o que conseguiu e sabia fazer sem o consentimento e contra a vontade de quem dos mesmos podia dispor;
8-Bens esses que pela sua singular expressão artística sabia fazer parte do património cultural português;
9-E por o saber, tal como a procura de que eram, por tal motivo, alvo, é que os sonegou e comercializou;
10-Muito embora soubesse o … que, por aquele mesmo motivo, de nenhuma forma os podia retirar do espaço territorial português, conforme o fez;
11-Desde 2007 que o arguido se dedica, de uma forma reiterada e sistemática, à prática de factos idênticos, o que primordialmente faz na zona sul e centro do país, o que constitui a fonte principal dos seus rendimentos, com o que se sustenta e à custa da delapidação do património cultural português;
12-Não desconhecia o … possuir uma arma sem que tivesse autorização para a deter, a qual, como sabia, nem sequer manifestara ás autoridades policiais;
2.3. Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção com base nos seguintes meios de prova:
a)Declarações do arguido;
b)Depoimentos das testemunhas ….;
c)Exames periciais: tis 491, 492 a 498, 823, 824, 931 a 938;
d)Fotografias: fls 4, 5, 15 a 19, 22, 25 a 29, 42, 79 a 81, 87 a 104, 110 a 113, 117, 122, 123, 150 a 155, 490, 702, 703, 770 a 784, 789, 790, 862 a 867;
e)Autos de Busca: fls 476 a 482;
f)Documentos: fls 118 a 122, 155, 190, 196 a 242, 244 a 247, 568, 647 a 659,711 a721,734a740,518,519,833a838,938a945;
g)Apenso A;
h)CRC.
i)Relatório Social de fls. 1184.

Apreciação crítica da prova: A valoração da prova constitui uma das operações mais importantes e difíceis em todo o processo judicial. Pressuposto indispensável da decisão a qual se impõe ao julgador como uma tarefa inarredável. Esta exigência é reclamada pelo imperioso restabelecimento da paz jurídica do arguido e comunitária o que faz com esta tarefa deva ser rodeada de especiais cuidados.
No nosso sistema vigora o princípio da livre apreciação o qual se encontra consagrado no art. 127° do CPP, sendo no entanto, submetido a certas regras e restrições que constituem condicionantes da apreciação valorativa. Na verdade, como refere F. Dias, in Direito Processual Penal (1988), 139-140, a valoração da prova há-de ser uma liberdade de acordo com um dever de tal forma que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.

Concretizando:
No que concerne à aquisição das peças e seu posterior transporte para Espanha e entrega ao .., a convicção do Tribunal fundou-se no depoimento do arguido o qual admitiu ter adquirido as peças em causa a uns indivíduos de raça cigana, que não quis identificar por recear represálias. Referiu que, quando adquiriu as peças suspeitou que as mesmas tinham origem ilícita embora os indivíduos lhe tivessem dito que não eram «roubadas», mas, mesmo assim, decidiu adquiri-las e posteriormente transportou-as para Espanha para o seu amigo …. O arguido referiu que pagou as peças aos indivíduos em dinheiro e que não passou nenhum recibo e que não procurou saber mais pormenores sobre a origem das mesmas.
Perante estas declarações o tribunal não ficou com dúvidas, atentas as regras da experiência comum, que o arguido sabia que as peças tinham origem ilícita mas, mesmo assim, com vista a obter uma vantagem patrimonial, decidiu adquiri-las. Na verdade, atentas as circunstâncias em que a compra teve lugar, a forma como foi abordado pelos indivíduos, o facto de não querer revelar a sua identidade, leva-nos a concluir que o arguido sabia que as peças só poderiam ter origem ilícita, nomeadamente da prática de um crime de furto.
As declarações do arguido mostram-se corroboradas pela análise feita aos documentos de fls. 118, 120, 121 e 837, com os quais o arguido foi confrontado, de onde sobressai que os objectos em causa foram transportados pelo arguido e entregues ao … em Espanha.
No que concerne aos objectos adquiridos pelo arguido e sua proveniência, o tribunal teve em atenção as fotografias de fls. 15, 42, 87, 88, 89, 90, 110 a 112, 441, 442, 676, 702.
Em relação aos objectos retirados da residência sita na Rua da ... e solar de …, mostrou-se relevante o depoimento da testemunha …, proprietário dos imóveis em causa, o qual descreveu o local onde se encontravam as estátuas e o escudo papal, a forma como foram retirados e seu valor artístico e histórico.
Quanto aos bustos subtraídos do Museu da Cidade de Lisboa, a convicção do Tribunal fundou-se no depoimento da testemunha …, conservadora do museu, a qual descreveu o local onde se encontravam as estátuas, a forma como foram furtadas, os estragos causados e valor dos mesmos.
Ainda sobre o valor dos prejuízos causados e danos provocados nos bustos mostrou-se relevante o depoimento da testemunha …, funcionária na área de restauro do Museu da Cidade de ..., bem como na análise feita ao documento de fls. 1084 a 1091.
No que diz respeito às bonecas subtraídas da fonte localizada junto do palácio ..., em P..., o tribunal teve em conta o depoimento da testemunha …, conservadora do Museu de P..., a qual informou o local de onde foram retiradas as bonecas, seu valor artístico e histórico e data em que foram subtraídas.
O valor artístico, comercial e histórico das peças em causa extrai-se do auto de exame de fls. 823 dos autos.
Dos depoimentos dos inspectores da Polícia Judiciária, …, sobressai a forma como os objectos foram subtraídos, o percurso que fizeram até Espanha e o local onde foram encontradas e a forma como foram recuperadas. Cumpre referir que estas testemunhas, pelo facto de terem participado na investigação, nomeadamente, por terem estado nos locais dos factos, na busca em casa do arguido e em contacto directo com as autoridades de Espanha, mostraram um conhecimento directo e seguro quanto aos factos que relataram ao tribunal.
Quanto às características da arma o tribunal teve em conta o exame pericial de fls. 932 e quanto à sua propriedade mostrou-se relevante o documento junto no decurso da audiência de julgamento que veio corroborar as declarações do arguido.
As condições pessoais do arguido fundaram-se no relatório social junto aos autos e no depoimento das testemunhas …, amigos e vizinhos do arguido há vários anos.
A ausência de antecedentes criminais resulta do CRC de fls.
No que diz respeito aos factos não provados a decisão do Tribunal resultou do facto de nenhuma prova ter sido produzida no sentido de que o arguido participou nos factos relacionados com a apropriação das peças. Com efeito, o arguido negou esses factos referindo que se limitou a adquirir as peças e as testemunhas inquiridas nenhuma presenciou os factos relacionados com os furtos das peças.
Igualmente não foi feita prova sobre o modo como o arguido transportou as peças para Espanha uma vez que nenhuma das testemunhas presenciou esse facto, nem foi feita qualquer prova no sentido de que o arguido sabia do real valor artístico e histórico das peças em causa.
(…)
Da Perda de Bens
Nos autos encontram-se apreendidos diversos bens e objectos relativamente aos quais importa dar destino.
De acordo com o disposto no artigo 30°, n° 4, da CRP, segundo o qual «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos», princípio acolhido fielmente pelo legislador ordinário no n° 1 do artigo 65° do Código Penal, impede o funcionamento de uma aplicação automática, meramente ope legis, relativamente a efeitos de pena ou penas acessórias.
O princípio constitucional vertido no artigo 30°, n° 4, proíbe que a privação de direitos seja uma simples consequência - por via directa da lei - da condenação por infracções de qualquer tipo - acórdãos do Tribunal Constitucional n° 282/86, in DR, h Série, de 11-11-1986 e n° 284/89, DR, 11-Série, suplemento de 22-06-1989.
Esta orientação foi acolhida pelo STJ no acórdão de uniformização de jurisprudência n° 14/96, de 07-11-1996, in DR, Ia Série - A, de 27-11-1996, e BMJ 461, 54, aí se ponderando que a proibição dos efeitos decorrentes da aplicação automática, seja na sequência da imposição de uma certa pena, seja na de condenação por certos crimes, não obstando a que a lei os preveja «com o conteúdo possível da condenação por determinado crime ou simples consequência, também possível, de uma pena», parte da premissa de que a sua ocorrência em cada caso concreto tenha como pressuposto a apreciação judicial de que, in casu, se mostram adequados e justificados pelas circunstâncias do crime.
Vejamos a situação do veículo de matrícula ….
A perda dos objectos do crime ou instrumentos utilizados na prática do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada. Terá que se verificar a existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto.
Dos factos dados como assentes decorre que o veículo automóvel em causa, pertença do arguido .., aquando da respectiva apreensão, era conduzido pelo próprio e que com ele se deslocou, por quatro vezes, a Espanha transportando os objectos furtados.
Ora, em face desta factualidade há que considerar inexistir qualquer ligação funcional ou instrumental entre o automóvel do arguido e o crime de receptação perpetrado pelo mesmo, uma vez que entre a utilização do automóvel e a prática do crime não se verifica uma relação de causalidade adequada, consabido que sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma. Com efeito, o arguido sempre ter-se-ia deslocado a Espanha utilizando um outro meio de transporte.
Assim sendo, não se verificando aquele pressuposto do perdimento há que ordenar a restituição do veículo ao arguido ….
(…)
2-De harmonia com o disposto no n°1, do art. 412°, do CPP, e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ - Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, D.R. 1 - A Série, de 28/12/1995). São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – art. 403 °, nº 1 e 412°, n°1 e n°2, ambos do CPP. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", Vol. 1, 21 edição, 2000, fls. 335, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (arts. 403°, n.º 1 e 412°, n°1 do CPP), a questão que o recorrente pretende ver conhecida por este Tribunal é, em síntese, a seguinte:
-o acórdão recorrido violou o disposto nos arts.127º e 410º, nº2, als. b) e c), do CPP, devendo ser declarado nulo e ser substituído, nesta parte, por outro que corrija os apontados vícios, e julgue em conformidade, ordenando o perdimento a favor do Estado da viatura apreendida nos autos.

3- Apreciemos.
3.1- Estabelece o art. 109°, n°1 do CP que:
"1. São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, peca sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a morar ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos".
A perda de objectos é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Não se trata de uma pena acessória, porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque não depende sequer da existência de uma condenação. Embora não sendo também uma medida de segurança, pois não se baseia na perigosidade do agente, a perda de objectos é uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes decorrente do objecto (Figueiredo Dias, 1993: 628, e Maia Gonçalves, 2007: 424 anotação 2ª ao art. 109º).
Ora, o veículo cujo perdimento a favor do Estado o magistrado recorrente pede inclui-se no grupo dos denominados "instrumento sceleris" (objectos que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico) E não nos "producta sceleris"- objectos produzidos pelo facto ilícito típico e cujo perdimento é igualmente susceptível de ser declarado, de acordo com a previsão legal da norma referida., sendo que para que seja declaração seja produzida necessário se torna (entre outros requisitos possíveis que, na circunstância, não vêm ao caso) que o objecto em referência, “ pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso" "ofereça sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos facto ilícitos típicos".
Com efeito, e como diz a Exma. PGA no seu Parecer, "O tecido normativo em equação partiu do princípio orientador da perda se apresentar como uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento, advindo a perigosidade não do instrumento em si mas da sua ligação com o agente. E o artigo 109°, na sua concreta aplicação, sempre terá de atender à natureza do objecto e às circunstâncias do caso.
Daí que, ou há perigo de repetição e então há perda de bem, ou, se não ocorre tal pressuposto, procede-se à sua restituição. Não se vislumbram razões para que, por exemplo, no crime ocasional em que o tribunal tem tal juízo como adquirido, não havendo perigo de repetição, se não restitua o bem.
Estando em causa, aqui, a prevenção especial, e não radicando o sentido da perda dos bens nos efeitos que eles possam causar na generalidade das pessoas -, se não há perigosidade criminal deve proceder-se à restituição, assim se contrariando uma certa sacralização social do instrumento do crime" Cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 24.04.02 in wwwdgsi.pt, cujo sumário se transcreve: “A declaração de perdimento dos instrumentos do crime não é automática; só poderá ocorrer quando os respectivos pressupostos se encontrem provados num processo penal que assegure todas as garantias de defesa e assuma uma verdadeira estrutura acusatória. Um dos elementos a que obedece a perda dos objectos que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um crime é que tenham sido utilizados numa actividade criminosa, sujeitando-se à perda tanto a agentes imputáveis como inimputáveis. A perda deverá ocorrer naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento, advindo a perigosidade não do instrumento em si, mas da sua ligação com o agente. Não havendo perigo de repetição não há perda de bem, devendo proceder-se à sua restituição. Julgado extinto por prescrição o procedimento criminal relativamente a uma acusação recebida pelo crime de dano do artigo 308 do Código Penal, em que forem utilizadas armas de caça, e apreendidos os respectivos livretes mas não as armas, mostra-se excluído, por inadmissível, in totum, qualquer averiguação indiciária em termos de uma efectiva comprovação do facto ilícito típico". Haverá pois que restituir os livretes ao seu titular, pois é evidente que, respeitantes a armas legalmente permitidas, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, não se afiguram susceptíveis de por em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem oferecem sério risco de utilização para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.


Deste modo, partindo do princípio que se vem defendendo que sustentar a privação de um direito de natureza civil, como é o caso do direito de propriedade sobre um veículo automóvel, como decorrência automática do cometimento de um crime e independentemente da formulação de um concreto juízo jurisdicional de ponderação das circunstâncias do caso ou de perigosidade do objecto em causa, carece de suporte constitucional Cfr. Acórdãos do tribunal da Relação de Coimbra n°s.176/00 e 202/00, podendo ler-se no primeiro que será de afastar o automatismo no decretamento do perdimento, face ao “princípio segundo o qual se deverá ponderar as adequação e proporção dessa reacção criminal incidente sobre o direito civil de propriedade (quer a título de medida análoga às medidas de segurança, quer como efeito necessário do cometimento do crime, quer como efeito da condenação por um determinado ilícito, o que não importará dilucidar) em face das concretas circunstâncias do caso (cfr., sobre a questão da exigência da proporcionalidade tocantemente às soluções normativas de perda de instrumentos do crime, Figueiredo Dias, (Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime, 1993, & 999)" (sublinhados nossos).
Do mesmo modo, no segundo acórdão acima indicado, se sublinha que "tal exigência de proporcionalidade — a ser entendida em termos análogos aos que se impõem quanto às restantes reacções criminais (e, designadamente, às medidas de segurança) – é justamente posta em relevo pela doutrina, nacional e estrangeira, quanto à aplicação concreta da providência de perda dos instrumentos do crime, mesmo ali onde a lei a limita aos casos em que tais instrumentos sceleris sejam perigosos para a segurança das pessoas, para a moral ou a ordem públicas, ou em que ofereçam sério risco de utilização no cometimento de novas infracções (assim, com mais elementos, J. Figueiredo Dias, ob. cit., & 999; cf. Leal Henriques/Simas Santos, Código Penal anotado, 1° vol., Lisboa, 1995, pág. 749, que põem igualmente o problema da desproporção entre o valor dos bens apreendidos e a natureza ou gravidade do facto ilícito, ressalvando, porém, os casos de perigosidade e a legislação especial na doutrina alemã, v. Hans Yescheck Tratado de derecho penal Parte general vol. II, Barcelona, 1981, &76, pág. 1103, referindo que a apreensão está submetida, não ao princípio da culpa, mas ao da proporcionalidade)" (sublinhados nossos).
, vem-se assinalando a dificuldade colocada ao julgador, na determinação do "crivo do perigo", na certeza de que tal pressupõe "arvorar uma probabilidade, recorrendo a juízos que nos façam concluir sobre a previsão razoável de que os objectos podem ser perigosos, pelo seu inelutável perigo imanente à sua própria característica ou pela ilícita renovação do uso" (cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 16.06.10, P.6/07.9GTCBR-A.C1, in www.dgsi.pt), na certeza de que para a declaração da sua perigosidade não deverá atender-se tão somente à sua natureza e características, mas também às circunstâncias do caso e à sua ligação ao agente do facto ilícito típico.
Conforme se assinala neste acórdão: … "Está, pois, hoje clarificado que a perda é uma espécie de medula de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento, sendo, por conseguinte, fundamental a existência de um perigo típico, de repetição da prática de novos factos ilícitos, o qual não pode ser aferido em abstracto, sob pena de se colocar mesmo em causa o princípio constitucional da presunção de inocência. Em suma: A perigosidade do objecto afere-se de um ponto de vista objectivo, em concreto, ou seja, sob o ponto de vista objectivo da coisa em si mesma considerada mas atendendo às concretas condições em que pode ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos".

No mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, em anotações ao art.109º.
Vejamos agora as circunstâncias em que ocorreu a utilização do veículo pelo arguido, a fim de nos pronunciarmos se deve ser formulado um juízo de perigosidade quanto à sua utilização futura, circunstância que a verificar-se legitimará a correspondente declaração de perdimento de tal viatura.

3.2- Consta da fundamentação conjugada da matéria de facto provada nos factos provados 5, 8, 12, 16 e 19, e acima transcritos, que o recorrido no âmbito da prática dos factos pelos quais foi condenado, transportou para Espanha todos os objectos por si receptados no seu veículo de mercadorias, marca Iveco, modelo Dily 35C18, matrícula …, entregando-os ao arguido … vendendo-lhos e recebendo deste uma quantia monetária a título de pagamento do preço respectivo, ou em alternativa, para que este arranjasse clientes para tais objectos e depois repartissem entre eles o preço da venda.
Por outro lado, consta da decisão que inexiste qualquer ligação funcional ou instrumental entre o veículo pertença do recorrido e por este conduzido, e que com ele se deslocou, por quatro vezes, a Espanha transportando os objectos furtados e o crime de receptação perpetrado pelo mesmo, e cita-se “uma vez que entre a utilização do automóvel e a prática do crime não se verifica uma relação de causalidade adequada, consabido que sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma”, e mais adiante que “Com efeito, o arguido sempre ter-se-ia deslocado a Espanha utilizando um outro meio de transporte”.
Conclusão com a qual não estamos de acordo.
Ora, do que ficou dito retira-se que num primeiro momento é considerado um facto necessário para o cometimento do crime - a utilização de um meio de transporte para os objectos em causa, pesados e que não poderiam ter sido transportados para Espanha por outro meio -, e num segundo momento regista-se que em nenhum dos factos provados consta que “sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma” e que “o arguido sempre ter-se-ia deslocado a Espanha utilizando um outro meio de transporte”. Retira-se, pois, dos factos provados que a viatura em causa foi elemento essencial no âmbito da prática dos factos pelo recorrido, existindo forte ligação funcional e instrumental entre os factos, a viatura e o arguido, já que tudo se consumou no contexto descrito na sentença recorrida, em que se impunha o transporte e a colocação célere dos objectos em Espanha, o que aconteceu nos dias em que (os objectos) foram furtados ou em horas próximas.
Conclui-se, deste modo, que a viatura assumiu papel imprescindível na consumação do crime, já que a receptação tinha como condição sine qua non a venda posterior dos bens, uma vez que o pretendido pelo arguido com a sua conduta (receptação) era a obtenção de lucro com a sua posterior venda e não a apropriação de bens da parte de um coleccionador de obras do estilo.Com efeito, essa venda só foi possível porque os objectos chegaram a Espanha, foram entregues ao arguido …, que os colocou à venda no mercado, recebendo o respectivo pagamento que, após, partilhou com o arguido …, em cumprimento do plano por este traçado para destino dos objectos por si receptados. Ou seja dizer-se que aqueles objectos foram receptados pelo arguido, porque este sabia que o arguido … os iria colocar à venda a fim de receberem e partilharem o produto da sua venda. E que sabia o arguido que necessitava e por isso usou a sua viatura para transportar de forma célere até Espanha os objectos em causa e os entregou ao arguido …: e foi com a sua viatura concreta e não qualquer outra imaginária, que tinha capacidade efectiva de transporte dos objectos em causa (pesados), com a celeridade necessária resultante dos factos provados que mediava o furto dos objectos e a sua entrega em Espanha a …, como o arguido … bem sabia.
Pelo que concluímos que o Tribunal ao ter decidido no sentido de que “sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma” e de que “o arguido sempre ter-se-ia deslocado a Espanha utilizando um outro meio de transporte”, não tem a mínima base de sustentação na factualidade dada como provada e não provada.
Em tese, sempre se poderia dizer em casos como o presente, embora resultasse inequívoco da factualidade provada a identificação do meio de transporte em concreto utilizado e imprescindível para a prática do crime – e não outro meio de transporte possível e imaginário -, que poderia ser utilizado qualquer outro meio que em concreto o não foi. O que conduziria, na prática, à (quase) impossibilidade de apreensão e consequente perda a favor do Estado das viaturas utilizadas em concreto na prática de crimes – apenas, e tão só, porque qualquer outro meio de transporte no seu lugar poderia ter sido utilizado.

E quanto ao juízo de perigosidade e à utilização futura da viatura em transportes de natureza idêntica àqueles que comprovadamente tiveram lugar diga-se o seguinte:

Dos factos provados resulta manifesto que a viatura apreendida, pertença do arguido e por este conduzida, e que com ela se deslocou, por quatro vezes a Espanha transportando os objectos furtados, foi essencial e determinante para a prática e concretização do crime, sem a qual o arguido … não praticaria o crime de receptação, uma vez que este pressupunha a venda dos objectos (não os queria para seu uso ou colecção particular) e o seu transporte quase de imediato, a seguir ao seu furto, para Espanha e entrega ao …; mais se diga que para a prossecução da sua conduta, o arguido tinha ao seu dispor a viatura apreendida.
Ora, por tudo isto, tendo presentes as circunstâncias em que ocorreu a utilização do veículo (transporte para Espanha dos objectos subtraídos) e a reiteração com que o arguido empreendeu a sua conduta, ali se deslocando pelo menos 4 vezes, realizando o mesmo tipo de transporte, a par com a natureza da viatura apreendida (um veículo de mercadorias apto ao transporte de objectos de grande dimensão e peso, como foi o caso dos objectos de ilícita proveniência que nele transportou), entendemos que se encontram preenchidos os pressupostos para que seja formulado um juízo de perigosidade quanto à sua utilização futura em transportes de natureza idêntica àqueles que comprovadamente tiveram lugar, circunstância esta que legitima a correspondente declaração de perdimento de tal viatura.

3.3- Por último, perante a invocação dos vícios ínsitos nas als. b) e c) do nº2 do art. 410º do CPP e o que ficou dito, consigna-se seguinte:
Existe erro notório na apreciação da prova quando o mesmo não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Simas Santos e Leal Henriques, CPP Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova.
Verifica-se quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser desmontado a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O erro notório na apreciação da prova, constitui, pois, uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da experiência comum.
Na dimensão valorativa das regras da experiência comum situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.
É necessário, pois, para se fazer uma avaliação correcta sobre a existência ou não de erro notório na apreciação da prova, sindicar a fundamentação feita dos factos provados e não provados.
Por exemplo, se aparentemente um facto provado pareça estar em contradição com as regras de experiência comum, pode haver uma fundamentação esclarecedora donde se conclua que existiu um correcto julgamento. Pelo que se torna necessário que se explicite claramente as razões que conduziram a um determinado julgamento, a fim de se compreender o que levou o tribunal a ditar que determinado facto se considere provado ou não provado.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, esta só existe quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados. Ou seja, a verificação deste vício consiste na incompatibilidade não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre a declaração de provado e a de não provado relativamente ao mesmo facto ou na declaração de que se provaram duas realidades que, segundo as regras da lógica, se excluem uma à outra, isto é, não podem coexistir. Tratando - se de incompatibilidade entre o que se provou e o que não se provou, haverá contradição, se ambos os juízos incidirem sobre o mesmo objecto, isto é, sobre a mesma realidade de facto, ou seja quando só uma das declarações - provada ou não provada - pode ser verdadeira.
A contradição entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando haja oposição entre o que ficou provado ou não provado e o que é referido na motivação da convicção do tribunal como fundamento da decisão tomada sobre a matéria de facto.
Ora, no caso em apreço, não estão se verificam tais vícios, mas tão só, uma incorrecta subsunção dos factos ao direito. Com efeito, da apreciação da prova efectuada pelo tribunal recorrido, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou, como se extrai dos seguintes segmentos da decisão: ao afastar o preenchimento do elemento “ligação funcional ou instrumental entre o automóvel do arguido e o crime de receptação perpetrado pelo mesmo e a relação de causalidade adequada “entre a utilização do automóvel e a prática do crime”, o tribunal não teve em conta que é regra de experiência comum, e o que se exige a um homem médio, que um indivíduo (o arguido, no caso) que é dono de uma viatura como a apreendida, e que a conduz, ao receber objectos furtados que pretende posteriormente colocar à venda a fim de receber o lucro do pagamento da mesma - venda de objectos que sabia provenientes de furto e que tinham de ser transportados para Espanha quase de imediato para consolidação dos crimes fora do espaço territorial nacional e para a sua posterior venda em Espanha por quem, conhecido do indivíduo em causa tinha as condições necessárias para o efeito, peças essas de peso tal que não podiam ser levadas a “braço” - tem em conta como determinante e condição sine qua non para a prática do crime a utilização de tal viatura necessária para o cometimento e concretização do crime.
Por outro lado, consta da fundamentação conjugada (matéria de facto provada) dos factos 5, 8, 12, 16 e 19 dados como provados, que o arguido, no âmbito da prática dos factos e crimes pelos quais foi condenado, transportou para a Espanha todos os objectos por si receptados no seu veículo de mercadorias, marca Iveco, modelo Dily 35C18, matrícula …, deste modo levando - os e entregando -os ao arguido … vendendo-lhos e recebendo deste uma quantia monetária a título de pagamento do preço respectivo, ou para que este arranjasse clientes para tais objectos e depois repartissem entre eles o preço da venda. Ao invés, consta na fundamentação de direito que inexiste qualquer ligação funcional ou instrumental entre o veículo do arguido (pertença do arguido e por este conduzido, e que com ele se deslocou, por quatro vezes, a Espanha transportando os objectos furtados) e o crime de receptação perpetrado pelo mesmo, “uma vez que entre a utilização do automóvel e a prática do crime não se verifica uma relação de causalidade adequada, consabido que sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma”. “Com efeito, o arguido sempre ter-se-ia deslocado a Espanha utilizando um outro meio de transporte”.

Pelo que o tribunal errou na subsunção dos factos que deu como provados e não provados ao direito aplicável e que o levou a decidir (mal) a entrega da viatura apreendida ao arguido, quando perante tal factualidade, deveria ter declarado a viatura perdida a favor do Estado.

Por tudo o exposto, o recurso merece provimento.
4- Conclusão:
Dest’ arte, tendo presentes as circunstâncias em que ocorreu a utilização do veículo (transporte para Espanha dos objectos subtraídos) e a reiteração com que o arguido empreendeu a sua conduta, ali se deslocando múltiplas vezes, realizando o mesmo tipo de transporte, a par com a natureza da viatura apreendida (um veículo de mercadorias apto ao transporte de objectos de grande dimensão e peso, como foi o caso dos objectos de ilícita proveniência que nele transportou), formula-se um juízo de perigosidade quanto à sua utilização futura em transportes de natureza idêntica àqueles que comprovadamente tiveram lugar, circunstância esta que legitima a correspondente declaração de perdimento de tal viatura, o que se declara.
Pelo que tem razão o magistrado recorrente, sendo o recurso procedente.
5- Por último, quanto à declaração exarada na alínea l) das conclusões da motivação do recurso interposto do acórdão condenatório, o recurso intercalar interposto da decisão que constitui fls.1188 e v°, o mesmo deverá ser apreciado, conforme determinado a fls.1272, no âmbito do processo separado, ao abrigo do estatuído no art.30°., n°.1 als. a) e d) do CPP, para efeito de apreciação da responsabilidade criminal do arguido …, por respeitar justamente a questão relacionada com o documento, em língua espanhola, de fls.1171-1172, razão pela qual, e bem, foi proferido, no âmbito destes autos, tão só despacho de admissão do recurso interposto do acórdão condenatório – cfr. fls.1287.


III.
Por tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência ordena -se o perdimento a favor do Estado da viatura apreendida nos autos (veículo de mercadorias, marca Iveco, modelo Dily 35C18, matrícula …).

Sem custas.

O presente Acórdão foi elaborado em processador de texto e revisto pela Relatora que rubricou.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2011,

Margarida Blasco
Filomena Lima