Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL SALGADO | ||
Descritores: | DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PERIÓDICA ABUSO DO DIREITO CLÁUSULA INTERPRETAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/15/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
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Sumário: | I- No direito real de habitação periódica a taxa de utilização é a contrapartida não apenas da ocupação, para o período acordado, de determinado alojamento como também dos custos de exploração e serviços que permitirão ao titular gozar das vantagens do imóvel durante o referido período como é o caso das despesas de conservação e reparação do espaço e equipamento, consumo de água e luz, manutenção da piscina, healthclub, limpeza, rouparia e demais serviços em função de cada uma das tipologias de exploração. II- Não incorre a A. em abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) por reclamar da Ré, com a qual celebrou contrato-promessa de constituição de direito real de habitação periódica com direito de ocupação imediata, o pagamento das taxas de utilização em dívida não obstante não ter sido proporcionada a ocupação por não ter sido efectuado o pagamento da taxa de utilização em conformidade com cláusula contratual que obriga ao seu pagamento pelo menos um mês antes do início da ocupação. III- É que, para o declaratário normal (artigo 236.º do Código Civil), infere-se da aludida cláusula que o pagamento da taxa de utilização no mês anterior ao da ocupação constitui condição necessária para o gozo da fracção, não estando demonstrado nenhum comportamento por parte da A. de que, não havendo ocupação, ficava a ré desobrigada do pagamento da aludida taxa de utilização. (SC) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO O.[…], S A intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra S.[…] S A pedindo que a R. seja condenada a pagar - lhe a quantia de Esc.6.577.247$00 acrescida de juros de mora, sendo os vencidos até então no valor de Esc.726.494$00, alegadamente devida pelos quantitativos correspondentes às taxas de utilização dos anos de 1994 a 1996 e relativas às fracções semanais no Aparthotel da Oura cuja posição pertence à Ré, por cedência de Rui […]. Citada a R. apresentou contestação e reconvenção, invocando a extinção do crédito por compensação com crédito autónomo sobre a Autora, alegando ainda que a fracção não pode ser utilizada pela Ré desde 16/5/04, propugnando pela sua absolvição e procedência da reconvenção. Na réplica a A impugna a matéria reconvencional e mantém o seu pedido. Seguida a tramitação processual comum, e realizada a audiência de discussão e julgamento, proferiu-se sentença que julgou improcedentes a acção e a reconvenção. A Autora inconformada interpôs recurso, adequadamente recebido como de apelação e efeito meramente devolutivo. Tendo alegado, extraiu as seguintes conclusões: 1.A obrigação do pagamento da taxa de utilização e o direito de utilização das semanas coincidem no tempo, sendo a obrigação de pagamento da taxa sempre temporalmente anterior e condição prévia ao exercício do direito de utilização das semanas por parte do titular do DRHP. 2.A Autora, em face do não pagamento atempado da taxa de utilização, podia presumir, tal como é lhe é permitido pela lei e pelo contrato, que o titular, actualmente a Ré, não tinha mais intenção de usar o seu direito, e por isso, podia dispor, como dispôs, do uso daquele apartamento segundo as suas próprias conveniências. 3.Tendo sido dado como provado que a Ré não procedeu ao pagamento das taxas devidas e relativas aos anos de 1994, 95 e 96, nos montantes que constam dos autos (…), impunha-se que o pedido fosse julgado procedente. 4.Impondo-se a alteração da sentença recorrida, não só deve ser a Ré condenada no pagamento (…) como improcedente a reconvenção (….) 5.Ao decidir como decidiu (….) foi violado por erro de aplicação e interpretação o artº405, nº1, 428, nº2, 853 e 294 do CCivil e artº22, nº2 e 23 do DL 275/03, de 5/8 artº153 do CPEREF. Termina, pugnando pela alteração do decidido para que justamente a Ré seja condenada a pagar à Autora a quantia peticionada. Em contra -alegações a Ré concluiu pelo acerto do julgado. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO A. OS FACTOS A instância recorrida fixou como provada a factualidade seguinte: 1- Em 19/5/86, a Autora e […] celebraram entre si o contrato promessa de constituição de direito real de habitação periódica nºAL 00000/86, pelo qual a Autora prometeu vender àquele e este comprar as fracções semanais FF (….) do apartamento nº000, t5, do Aparthotel ..., sito ... 2-As partes convencionaram entre si o fornecimento pela Autora dos serviços descritos no documento junto, denominado “Normas Gerais de Utilização “, mediante contrapartida pecuniária a pagar pelo promitente comprador, designadamente, uma taxa de utilização devida pela ocupação das fracções referidas destinadas à conservação e manutenção. 3.Ficou acordado que o promitente-comprador podia ocupar as fracções semanais desde então. 4.As taxas de utilização são devidas desde aquela data e são a pagar anualmente. 5.Não foram pagas as taxas devidas e relativas a 1994 (a partir da semana 32), 1995 e 1996 nos montantes constantes dos autos. 6.O promitente-comprador cedeu a favor da Ré a sua posição contratual emergente daquele contrato. 7.Em 28/12/86, a Assembleia Geral da sociedade P.[…] Lda. deliberou afectar ao gerente […] para seu uso exclusivo pessoal e agregado familiar o apartamento referido, imputando a taxa de utilização à sua remuneração como gerente, no valor de 15.000$00. 8.A Ré enviou uma carta à Autora em 12/10/94, que recebeu, mediante a qual lhe comunica que aceita o crédito de 50.000$00 possa ser compensado, além do mais, com o valor das taxas de utilização respeitantes ao apartamento, sendo os créditos sobre a Ré seriam processados mensalmente pela Autora e aceites pela Ré durante os 30 dias imediatos à recepção da respectiva comunicação, que emitiria então uma nota de crédito a favor da Autora, compensando os respectivos efeitos. 9.A Autora, por carta declarou aceitar a proposta da Ré. 10.Rui […] por carta de 10/1/93 comunicou à Autora que cedia à Ré o seu crédito de 15.000$00 sobre aquela. 11.Luís […] endossou à Ré uma letra no valor de 56.700.000$00, sacada por si e aceite pela Autora. 12.Por carta de 20/4/93, a Autora declarou à Ré que, além do mais, as taxas de utilização seriam pagas pela Ré por meio de encontro de contas. 13.A Autora realizou no apartamento referido despesas de conservação e manutenção. 14.Só foi proporcionado pela Autora a ocupação das fracções semanais até Maio de 1994. 15.Desde então o apartamento 443 não pode ser ocupado pela Ré. 16.No apartamento em causa esteve alojada uma funcionária da Autora desde 1994. B. ENQUADRAMENTO JURÍDICO Delimitado o objecto do recurso pelas questões colocadas nas conclusões do recorrente, à parte das que exijam apreciação oficiosa – artº684, nº3 e 690 do CPC, impõe-se a apreciação dos seguintes pontos: - Caracterização do direito real de habitação periódica; - Participação do titular nas despesas de manutenção empreendimento; - Abuso de direito. A sentença sindicada preconizou, que não tendo a Autora proporcionado à Ré o gozo da fracção em causa durante o período versado, não pode exigir dela o pagamento das taxas de utilização, considerando verificado o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Provou-se, com efeito, que a Ré não dispôs do apartamento no período temporal de que era titular, estando nela alojada uma funcionária da Autora. A apelante, ainda assim, insiste no direito de exigir da Ré o valor peticionado, suportando-se na obrigação contratual imposta à Ré na qualidade de titular do direito da referida fracção, mais alegando que o pagamento da taxa de utilização é condição prévia para a disponibilidade da fracção. Não oferece controvérsia nos autos que a relação estabelecida entre as partes se subsumirá à figura legal do direito real de habitação periódica. Procuremos então traçar com brevidade alguns conceitos que auxiliem a tarefa. O direito real de utilização de edifício ou sua fracção integrados em empreendimento turístico por um curto e definido período de tempo em cada ano, também referenciado como direito real de habitação periódica, e comummente identificado pelo termo time-sharing foi regulamentado no nosso sistema pela primeira vez pelo DL 355/81, de 31/12[1] e substituído pelo DL 130/89, de 18/4. À luz do que se encontra implementado, trata-se de um direito real limitado de gozo sobre coisa alheia, podendo na prática, equiparar-se a um regime de propriedade fraccionada, não já por segmentos horizontais, mas por quotas ou fracções de tempo. Donde, a faculdade essencial do titular desse direito, caracterizadora do instituto é a de habitar a unidade de alojamento durante o período de tempo anual estabelecido. Está bom de ver, e é do conhecimento comum, que a execução desse direito pressupõe uma estrutura hoteleira ou equivalente, geradora de despesas a suportar, em parte, pelo titular do direito; isto é, inerente à natureza do direito de habitação periódica, estabeleceu-se a correspectiva obrigação de pagamento referente aos custos da exploração e serviços que permitirão ao titular gozar das vantagens do imóvel durante a fracção temporal que adquiriu, como são as despesas de conservação e reparação do espaço e equipamento, consumo de água, luz, o desfrute de piscina, healthclub, e outros serviços, como limpeza e rouparia, de acordo com cada uma das tipologias de exploração. Observe-se ainda que o contrato invocado nos presentes autos é um mero contrato-promessa de constituição ou venda, a favor da Ré (digo, a favor de terceiro que entretanto cedeu validamente a sua posição contratual àquela) do direito real de habitação periódica relativo às semanas e ao apartamento nele identificado no empreendimento turístico denominado Aparthotel ..., não se está ainda em presença do contrato definitivo de compra e venda de tal direito; no contrato-promessa, porém, partes convencionaram atribuir todos os efeitos do negócio definitivo. Na situação em análise, o contrato promessa que titula a posição da Ré (após cedência de terceiro) foi celebrado em 19/5/86, pelo que é aplicável ao caso sub judicio o disposto no Dec. Lei n. 130/89, de 18 de Abril. No contrato -promessa estabeleceram os outorgantes na clª 2ª uma remissão para o documento anexo denominado “Normas Gerais de Utilização”, que por sua vez, no seu artº5, enuncia entre os deveres do titular, na al) b” pagar a taxa de utilização (prestação periódica durante o mês anterior ao da ocupação do Aparthotel”; e, no seu nº3, estabelece:”o proprietário enviará uma nota de débito referente à taxa de Utilização a qual deverá ser paga pelo menos um mês antes do início de utilização da semana respectiva. “ Assim sendo, o contrato em causa, atento o princípio da liberdade contratual, é idóneo para produzir os efeitos obrigacionais constantes das suas cláusulas, entre os quais se conta o dever de pagar a taxa de utilização e o direito de receber o seu valor até ao mês anterior ao da fracção temporal adquirida, o qual é invocado nos autos pela Autora. Considerou o Sr.Juiz que não tendo a Ré tido o gozo da fracção de Maio de 1994 a Maio de 1996, não se venceram as taxas de utilização anuais que nos autos a Autora reclama, e aquela não tem, portanto, o dever de as suportar, à luz das regras de boa-fé contratual e do instituto do abuso de direito. Haverá então que apreciar se porventura o uso que, no caso em apreço, a Autora está a fazer desse direito não constitui um abuso de direito. Segundo o art.º 334 do CCivil, o abuso de direito existe "quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito" e tem como consequência tornar ilegítimo o respectivo exercício. É ponto assente, que para se verificar abuso de direito na modalidade - venire contra factum proprium, é necessário indagar se quem invoca o alegado direito, a ora Autora, agiu de forma a convencer a Ré, criando-lhe uma expectativa sólida de que, no caso que ora relatamos, estava dispensada do pagamento das taxas de utilização, mantendo apesar disso total disponibilidade sobre a fracção no período contratado, criando-lhe uma situação de confiança, cuja reversão posterior em seu proveito se apresente como clamorosa injustiça. Identificamos então a figura como a existência de uma situação objectiva de confiança, o investimento de confiança e a irreversibilidade desse investimento, e, por último, a convicção por parte do destinatário do factum proprium de que o autor deste se encontrava obrigado a adoptar a conduta prevista, se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados usuais no tráfico jurídico; não esqueçamos, também, que o recurso ao instituto funciona como o”SOS “do sistema e apenas na situação de absoluta ausência de outro meio jurídico para evitar tal resultado. Daí que, resguardado o devido respeito, não poderemos acompanhar a solução jurídica alcançada nos autos, porquanto não se mostram preenchidos os requisitos do abuso de direito consignados no art.º 334 do C. Civil. Com efeito, o abuso de direito impõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: existência do direito; exercício desse direito; excesso, como esse exercício, dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; e que tal excesso seja manifesto. A nota típica do abuso de direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita o fim próprio do direito ou o contexto em que ele deve ser exercido. Importa, pois, que a forma como o titular do direito invocado se proponha exercê-lo "em termos clamorosamente ofensivos da justiça"[2]. Ora, na situação em apreço os factos apurados não permitem ajuizar, por insuficiente demonstração, a presença dos requisitos típicos do abuso de direito. Na verdade, ficou provado que o apartamento durante o período/fracção atribuído à Ré, não esteve na sua disponibilidade. Todavia, para o declaratário normal, face ao teor das referidas “Normas de utilização” decorre que o pagamento da taxa de utilização pelo titular do direito de habitação periódica a favor do proprietário do imóvel constitui, na economia do contrato, contrapartida necessária e prévia para o gozo da fracção ao ano que respeita, daí o seu pagamento (anual) dever ser satisfeito no mês anterior à fracção temporal. No caso, essas taxas de utilização não foram satisfeitas atempadamente pela Ré, que por seu turno, não logrou provar, como lhe competia, em matéria de excepção que a Autora a convencera da desobrigação de tal desiderato, proporcionando-lhe ainda assim o gozo da fracção no período contratado; só isso conduziria à conclusão que vir agora exigir tais quantitativos consubstanciaria clamorosa injustiça. De resto, não ficou provado que a Ré se apresentasse a reclamar o exercício do seu direito sobre a fracção , e, ou que a Autora o tivesse recusado ou impedido de alguma forma, pois que, os factos apurados apenas permitem concluir que a fracção não foi efectivamente utilizada pela Ré naqueles anos e ela não satisfez os valores que lhe eram exigíveis como condicionante da efectivação do seu direito. Resumindo para concluir: Estando convencionado entre as partes, e de harmonia com a natureza e conteúdo legal do direito real de habitação periódica, que a utilização da fracção pressupõe o prévio pagamento anual da quantia denominada taxa de utilização, a simples prova de que a Ré não pode dispor do apartamento nos anos cujo pagamento é peticionado, revela-se insuficiente para legitimar a extinção da obrigação por abuso de direito. Nesse conspecto, verificada a obrigação de pagamento de tais quantias e a mora da Ré na sua liquidação, tem de proceder a demanda. Quanto à reconvenção transitou em julgado a decisão e não é objecto do recurso. III -DECISÃO Pelo que fica exposto, acorda este Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, e em consequência, revogar a sentença na parte em que absolveu a Ré do pedido e condená-la no pagamento do valor peticionado. As custas ficam a cargo da Ré. Lisboa, 15 /05 / 07 Isabel Salgado Roque Nogueira Pimentel Marcos ____________________________________________________________________ [1] Revogou o DL 355/81, de 31/12, alterado pelos DL 358/83, de 4/10 e 130/89, de 18/4, e veio a ser revogado pelo art. 62º do DL 275/93, de 5/8, depois por sua vez alterado pelo DL 180/99, de 22/5. V. Henrique Mesquita, – Uma nova figura real: O direito de habitação periódica -, Revista do Notariado, 1985/2, 181 ss, como, antes, na RDE, VIII, nº1, 39 ss. Reportando-se já ao DL 275/ 93, v. a monografia de Isabel Pereira Mendes, - Direito Real de Habitação Periódica- (1993). Com bem assim interessante referência de direito comparado e distinção de figuras afins, v. Maria Judite Matias,- Do Direito de Habitação Periódica [2] Cfr., o Prof. Menezes Cordeiro, in "Da Boa Fé no Direito Civil", vol. II, pág. 661, o Dr. Cunha de Sá, in "Abuso de Direito", pág. 454, o Dr. Coutinho de Azevedo, in "Do Abuso de Direito", pág. 56 e os Ac.s do STJ de 7.10. 88, in "BMJ" n. 380º, pág. 362, de 21.9.93, in "Col. Jur. - STJ", ano I, tomo 3º, pág. 19, |