Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
378/10.8TBSCR.L1-3
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
TRANSPORTE DE CRIANÇAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Nos termos do artº 55º, nº 1 do Código da Estrada uma criança com 150 cm ou mais de altura mas com menos de 12 anos de idade, transportada em automóvel equipado com cintos de segurança não é obrigada a ser segura por sistema de retenção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
A… foi condenado, por decisão da autoridade administrativa – Director Regional dos Transportes Terrestres – datada de 7.1.2010, na pena acessória de 35 dias de inibição de conduzir, suspensa pelo período de seis meses, pela prática de uma contra-ordenação grave p. e p. nos termos dos artigos 55º nº 1, 138º nº 1, 145º nº 1 al. p) e 147º nºs 1 e 2 do Código da Estrada. 
Inconformado, o arguido interpôs recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial de Santa Cruz.
Liminarmente admitido o recurso, foi designado dia para julgamento. Realizada audiência de julgamento e produzida a prova, foi proferida sentença que decidiu julgar o recurso improcedente, mantendo na íntegra a decisão administrativa.
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Recorre agora o arguido para este Tribunal da Relação, formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:
1 - Deverá ser revogada a douta decisão da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo (como, aliás, defendeu o próprio MP em sede de 1ª instância);
2 - Cuja interpretação da norma legal que a suporta é manifestamente incorrecta;
3 - Considerando que "é obrigatória a utilização do sistema de retenção para crianças até aos 12 anos e até a criança atingir os 150 cm de altura";
4 - Quando, efectivamente, tal conclusão não decorre da letra e do espírito da norma contida no nº 1 do artigo 55° do Código da Estrada, a qual, efectivamente, permite que uma criança com mais de 1,50 cm, mesmo que tenha menos de 12 anos, seja dispensada do uso do dito sistema de retenção (caso presente);
5 - Parece-nos claro que a referida norma, ao tornar cumulativos os dois requisitos que conduzem à obrigatoriedade do uso de dito sistema de retenção, faz com que, no caso vertente, não esteja preenchido o tipo legal de contra-ordenação;
6 - Toda esta nossa posição é, aliás, reforçada com o aduzido no nº 1 do artigo 9° e artigo 7° da Portaria nº 311-A/2005, de 24 de Março, que aprova o Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança, bem como na informação técnica da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que junta se como Doc. 1 e que aqui se dá por integralmente reproduzida;
7 - Por outro lado, a sentença recorrida é omissa quanto aos factos provados e não provados, já que em nenhum deles consta a altura da criança à data dos factos;
8 - Realidade que a torna contraditória na respectiva correspondência com a própria motivação da matéria de facto dela constante;
9 - Em todo este contexto de incerteza, omissão e contradição em que mergulhou a dita sentença, seria altamente conveniente que o Tribunal a quo considera-se, pelo menos, o princípio do "in dubio pro reo”, do qual o recorrente aqui, igualmente, se prevalece.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE DOUTAMENTE SERÃO SUPRIDOS, DEVERÁ SER REVOGADA A DECISÃO ORA EM CRISE,
ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!!!  
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Admitido o recurso, o Ministério Público respondeu, concluindo:
1. O Recorrente vem alegar, em síntese, a alternatividade dos critérios elencados no artigo 55°, n.º 1 do Código da Estrada e a falta de fundamentação da sentença proferida.
2. Entendemos não lhe assistir razão, uma vez que
3.O escopo dos critérios elencados no artigo 55° do Código da Estrada, é o de salvaguardar e assegurar a segurança da criança de idade inferior a 12 anos e de tamanho inferior a 150cm.
4. Pelo que, não observando a criança ambos os critérios ali elencados, o Recorrente sempre cometerá, como cometeu, a contra-ordenação prevista no artigo 55°, n.º 1 do Código da Estrada.
5. Assim, entendemos não assistir razão ao Recorrente, pelo que deverá o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se, desta forma, a douta decisão recorrida.
6. Refere ainda o Recorrente que a douta sentença foi omissa, na factualidade dada como provada, da altura da criança à data da prática dos factos.
7. Vem, desta forma, o Recorrente recorrer da matéria de facto.
8. Ora, o Recorrente não respeitou os requisitos elencados no artigo 412°, n" 3 do Código de Processo Penal, indicando, assim, "Os concretos pontos de facto incorrectamente julgados",
9. "As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida" (artigo 412°, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal) e,
10. "As provas que devem ser renovadas." (artigo artigo 412°, n° 3, al. c) do Código de Processo Penal), “por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n° 2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação." - n.º 4 do mesmo acervo legal.
11. Atendendo a que o Recorrente não observou os requisitos dispostos no supra mencionado preceito legal, entendemos que deverá a sentença proferida ser mantida nos seus precisos termos e caso assim não se entenda, deverá o recorrente ser convidado a suprir tais irregularidades, sob pena de, não o fazendo, ver rejeitado o recurso por si interposto.
12. Termos em que nos louvamos na sentença em crise, que, por tocar todos os pontos essenciais, logrou chegar a uma boa e acertada decisão, fazendo a Justiça no caso concreto, como se impunha.
Pelo exposto, deverá a sentença proferida ser mantida nos seus precisos termos e caso assim não se entenda, deverá o recorrente ser convidado a suprir tais irregularidades, sob pena de, não o fazendo, ver rejeitado o recurso por si interposto.
Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada Justiça.
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Na vista a que se refere o art. 416º nº 1 do Código de Processo Penal a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo pela procedência do recurso e pelo reenvio dos autos à 1ª instância. Salienta:
- A exposição de motivos da lei 53/2004 de 4.11, a qual conferiu nova redacção ao art. 55° do Código da estrada que afirma que “ao nível de uma mais e melhor utilização dos equipamentos de segurança, destaque para as novas condições de utilização de sistemas de retenção para crianças até aos 12 anos e com altura inferior a 1,5m, na medida em que a sinistralidade rodoviária constitui uma das principais causas de mortalidade infantil no nosso país. Com a introdução destas novas normas, procede-se ainda para a transposição para o direito interno da Directiva nº 2003/20/CE do Parlamento Europeu de 8 de Abril."
- Na anterior redacção do art. 55° do CE - introduzida pelo DL 265-A/2001 de 28.9 constava como elemento do tipo apenas a referência a crianças com menos de 12 anos de idade
- Da interpretação conjugada dos art.s 9º nº n1, 7º e 8º da Portaria 311-A/2005 de 24.3, que regulamenta o regime de utilização de Acessórios de Segurança Regulamento Comunitário e dos art.s 13°-A e 130 nº 4 do Regulamento que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2000/3/CE, da Comissão, de 22 de Fevereiro, aprovando o Regulamento de Homologação dos Cintos de Segurança e dos Sistemas de Retenção dos Automóveis (DL 225/2001 de 11.08), resulta a inexistência de sistemas de retenção homologados para crianças com mais de 150 cm ou 36 Kg de peso donde resulta a impossibilidade objectiva e absoluta de as mesmas usarem os sistemas de retenção homologados adaptados ao seu tamanho e peso.
- Chama ainda a atenção para o Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, cujo excerto parcelar transcreve, onde se afirma que “deverá ser implementada a obrigatoriedade do uso de sistema de retenção adequado e devidamente instalado para transporte de crianças até aos 12 anos ou até a criança atingir 150 cm, consoante o facto que ocorrer primeiro, independentemente do lugar em que a criança é transportada".
Conclui assim que o art. 55º do Código da Estrada deve ser interpretado no sentido de que só as crianças que, cumulativamente tenham menos de 12 anos e menos de 150 cm é que devem ser seguras por sistema de retenção homologado e adaptado ao seu tamanho e peso.
Consequentemente, por o Tribunal a quo não ter considerado provada nem não provada a altura do menor na data dos factos, sendo certo que o Recorrente havia invocado que o mesmo tinha a altura de 157 cm, ocorre omissão de pronúncia e insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa.   
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Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal.
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Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (arts. 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal).

II. FUNDAMENTAÇÃO
É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).
No que respeita aos recursos de contra-ordenação, decorre do preceituado nos artigo 66º e 75º nº1 do Regime Geral das Contra-Ordenações aprovado pelo Decreto-Lei 433/82 de 27 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 356/89 de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei 244/95 de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei 323/2001 de 17 de Dezembro e pela Lei n.º 109/2001 de 24 de Dezembro e que passaremos a designar de RGCO), que em matéria de recurso de decisões relativas a processos por contra-ordenações, a 2ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância.
Com efeito, o nº 1 do mencionado artigo 75º estabelece que “se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”.
Assim, o poder de cognição deste tribunal está efectivamente limitado à matéria de direito, funcionando o Tribunal da Relação como Tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal, por força do disposto nos art.s 41º nº1 e 74º nº 4 do RGCO, já que os preceitos reguladores do processo criminal constituem direito subsidiário do processo contra-ordenacional.
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Sintetizando, são as seguintes as questões a resolver:
1. Omissão de pronúncia quanto à altura da criança na data dos factos;
2. Interpretação do tipo.
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São os seguintes os factos provados:
1. No dia 10 de Janeiro de 2008, o recorrente seguia ao volante do veículo de matrícula 00-00-00, na Rotunda da Fazenda, em Machico, nesta comarca;
2. Nestas circunstâncias seguia no banco de trás o seu filho, o qual seguia com cinto de segurança e sem sistema de retenção, vulgo cadeira;
3.  O filho do recorrente, B… nasceu em 31 de Outubro de 1997;
4. O recorrente sabia que o transporte de crianças com idade inferior a 12 anos e altura inferior a 150cm obriga a utilização de sistema de retenção e cinto de segurança.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Inexistem.
O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão da seguinte forma:
Motivação da decisão de facto
Para responder à matéria de facto, o Tribunal atendeu ao conjunto de diligências de prova realizadas em audiência, analisando-as global e criticamente, segundo as regras da experiência comum e da sua livre convicção, nos termos do artigo 127°, do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do artigo 41°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro (alterado pelos Decretos-Lei 356/89, de 17 de Outubro, 244/95 de 14 de Setembro, pela Lei 109/2001, de 24 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro).
Assumiu crucial relevo o relatado pelo recorrente quanto aos termos em que ocorreram os factos, que confirmou, nomeadamente quanto à idade e à altura do seu filho que com ele seguia, associado às informações constantes do seu documento de identificação, cuja cópia consta do auto.
Foi ouvido C…, agente da PSP, que autuou o recorrente, o qual não pôde confirmar a altura da criança, nem tão-pouco a sua idade, informações que recebeu verbalmente do recorrente.
Depuseram ainda D…, vizinho do recorrente, o qual afirmou conhecer o menor.
E procedeu ao seguinte enquadramento jurídico-penal dos factos:
Ao recorrente é imputado o desrespeito da obrigação de transportar uma criança com idade inferior a 12 anos ou com menos de 150 cm de altura, utilizando o sistema de retenção.
Neste âmbito dispõe o artigo 55°, n.º 1, do Código da Estrada que "as crianças com menos de 12 anos de idade e menos de 150cm de altura, transportadas em automóveis equipados com cintos de segurança, devem ser seguras por sistema de retenção homologado a adaptado ao seu tamanho e peso".
Assim, é obrigatória a utilização do sistema de retenção para crianças até aos 12 anos e até a criança atingir os 150cm de altura, impondo, deste modo, a lei a cumulação dos dois requisitos.
É certo que de acordo com o artigo 2° da Directiva 2003/20/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 8 de Abril de 2003, concedeu aos Estados Membros a possibilidade de permitir que crianças com altura inferior a 150cm mas não inferior a 135cm circulem apenas com o cinto de segurança para adultos, colocando a tónica na altura e não na idade. No entanto, tal não foi o entendimento do legislador português, o qual exigiu cumulativamente a utilização de sistema de retenção para crianças com menos de 12 anos de idade e menos de 150cm de altura (anote-se que tal não sucederia caso se tratasse de regulamento comunitário, o qual é de aplicação imediata).
Por último importa referir que, in casu, inexistindo qualquer factualidade apurada quanto ao peso da criança, nem importa analisar a situação das crianças com mais de 36kg e os sistemas de retenção existentes para estas.
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Omissão de pronúncia
Do auto de notícia e da decisão da autoridade administrativa consta que:
Na data, hora e local acima mencionados, o condutor transportava no veículo acima identificado, equipado com cintos de segurança, uma criança com idade inferior a 12 anos e com menos de 150 cm de altura, não utilizando sistema de retenção homologado e adaptado ao seu tamanho e peso.
Porém, como se constata da matéria de facto provada e não provada, não ficou provada nem não provada a altura do menor na data da prática dos factos.
Todavia, analisada a motivação da decisão de facto, poder-se-á concluir que a não inclusão da altura do menor na factualidade provada ou não provada se deve a mero lapso, já que a prova apelidada de crucial do Recorrente incidiu exactamente sobre esse facto e foi associada às informações constantes do bilhete de identidade do menor.
Porém, não se trata de lapso corrigível nesta instância nos termos do art. 380º nº 2 do Código de Processo Penal. Poderia, contudo, o tribunal a quo ter suprido a eventual nulidade nos termos do art. 379º nº 2 do Código de Processo Penal, antes da remessa dos autos a este Tribunal[1].
Essa omissão de pronúncia só é relevante – conduzindo à nulidade da sentença, nos termos do art. 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal – se incidir sobre questão essencial[2] à boa decisão da causa.
De acordo com a posição jurídica assumida pelo MM Juiz a quo, tal elemento nem sequer era essencial: bastava a idade inferior a 12 anos para, independentemente da altura da criança, o Recorrente dever ser condenado.
Por isso, face à controvérsia sobre a essencialidade da questão, importa abordar a questão da

Interpretação do tipo
Nos termos do art. 55º nº 1 do Código da Estrada:
As crianças com menos de 12 anos de idade e menos de 150 cm de altura, transportadas em automóveis equipados com cintos de segurança, devem ser seguras por sistema de retenção homologado e adaptado ao seu tamanho e peso.
Expressando o princípio da legalidade, o art. 2º do RGCO estipula que “só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”.
Uma das decorrências deste princípio é o da determinabilidade do tipo legal – que a lei seja certa e determinada – ou seja, importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição torne objectivamente determinável o comportamento proibido e objectivamente dirigível a conduta do cidadão[3].
Neste contexto, dir-se-á[4] que o legislador se exprime por palavras, as quais quase sempre têm vários sentidos. Dentre a pluralidade de significados comuns e literais das palavras, o aplicador da lei pode mover-se e optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora desse quadro, o aplicador encontra-se já no domínio da analogia proibida[5].
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Face ao supra exposto, importa saber se existe o mínimo de conformidade à letra da lei no entendimento sustentado na decisão recorrida.
Numa primeira e mais apressada leitura poderíamos ser levados a concordar com a posição assumida na sentença recorrida.
A questão está no significado da partícula “e” aposta entre “menos de 12 anos de idade” e “menos de 150 cm de altura”. Esta conjunção coordenativa copulativa não correlativa traduz a existência de um elemento coordenado a um outro elemento e exprime uma relação de conjunção, neste caso, de simples adição. Concretizando, se a criança tiver, cumulativamente (ideia de adição expressa pelo e) menos de 12 anos e menos de 150 cm de altura deve ser segura por sistema de retenção homologado. Donde, se faltar um desses requisitos cumulativos – se a criança tiver mais de 12 anos ou mais de 150 cm – já não é obrigada a ser segura pelo dito sistema de retenção.
A evidência desta interpretação literal resulta mais clara se fizermos o exercício de trocar o “e” pela conjunção coordenativa disjuntiva[6] “ou”. Nesse caso, a lei traduziria o comando de que todas as crianças com menos de 12 anos de idade (independentemente da altura) ou com menos de 150 cm (indiferentemente da idade) devem ser seguras por sistemas de retenção homologado.
Ou seja, é certo, como afirma a decisão recorrida que a lei exige a cumulação dos requisitos. Porém, essa cumulação é exigida mas para que a criança seja obrigada a ser segura por sistema de retenção. Donde se conclui que a ausência de um desses requisitos (idade ou altura) basta para que não seja obrigatório o sistema de retenção.  
A interpretação da lei não deve viver alheada da realidade e deve evitar o absurdo. O entendimento perfilhado pela sentença recorrida levaria à imposição de que crianças com 11 anos mas mais de 150 cm de altura (170 cm, por hipótese[7]) fossem obrigadas a instalar-se em sistemas de retenção (vulgo, cadeirinhas) em que não cabem ou, na inversa, que se discutisse até que idade é que o ser humano é criança e se obrigasse uma criança com 14 anos e 149 cm de altura a viajar com sistema de retenção.
Por outro lado, como decorre do art. 7º nº 1 da Portaria 311-A/05 de 24.3 só existem sistemas de retenção homologados para crianças até aos 36 kg, sendo certo que o art. 9º nº 1 da mesma Portaria cria uma excepção ao art. 55º nº 1 do Código da Estrada, ao permitir que “as crianças a que se refere o nº 1 do art. 55º do Código da Estrada que excedam os 36 kg de peso” utilizem em vez do sistema de retenção homologado, “cinto de segurança e dispositivo elevatório que permita a utilização daquele acessório em condições de segurança”. É manifesto que não se justificaria a utilização de sistema elevatório por quem tivesse mais de 150 cm que até poderia aumentar o risco associado ao transporte da criança.
Refira-se, por fim, em sintonia com o douto parecer da Exma Procuradora-Geral Adjunta que existem mais argumentos no sentido que a interpretação literal já sugere.
No preâmbulo do Decreto-Lei 44/2005 de 23.2, a qual conferiu nova redacção ao art. 55° do Código da Estrada afirma-se: “ao nível de uma mais e melhor utilização dos equipamentos de segurança, destaque para as novas condições de utilização de sistemas de retenção para crianças até aos 12 anos e com altura inferior a 1,5m, na medida em que a sinistralidade rodoviária constitui uma das principais causas de mortalidade infantil no nosso país. Com a introdução destas novas normas, procede-se ainda para a transposição para o direito interno da Directiva nº 2003/20/CE do Parlamento Europeu de 8 de Abril”. E, do art. 48º nº 8 al. b) do Decreto-Lei 225/2001 de 11.08 que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2000/3/CE, da Comissão, de 22 de Fevereiro e aprova o Regulamento de Homologação dos Cintos de Segurança e dos Sistemas de Retenção dos Automóveis, resulta a inexistência de sistemas de retenção para indivíduos com mais de 36 kg. E do Anexo 13º A faz-se a correspondência entre a faixa etária da criança e o seu peso (15 a 36 Kg equivale a 4 a 12 anos de idade).
Também da interpretação conjugada dos art.s 9º nº 1, 7º e 8º da Portaria 311-A/2005 de 24.3, que regulamenta a utilização de Acessórios de Segurança resulta a inexistência de sistemas de retenção homologados para crianças com mais de 36 Kg de peso (a que correspondem os 150 cm de altura) donde resulta a impossibilidade objectiva e absoluta de as mesmas usarem os sistemas de retenção homologados adaptados ao seu tamanho e peso.
Aliás, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária dá conta de algumas das dificuldades no transporte de crianças mais crescidas ou mais pesadas, ao prestar a seguinte informação técnica[8]:
O n.º 1 do artigo 55.° do Código da Estrada estabelece que as crianças com menos de 12 anos de idade e menos de 150 cm de altura, transportadas em automóveis equipados com cintos de segurança, devem ser seguras por sistema de retenção homologado e adaptado ao seu tamanho e peso.
Porém, face à regulamentação internacional - Regulamento n.º 44/03 da Comissão Económica para a Europa das Nações Unidas e Directiva n.º 2003/20/CE apenas existem sistemas de retenção homologados até aos 36 kg, (sistemas do Grupo III, para crianças com peso compreendido entre 22 kg e 36 kg).
O Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança, aprovado pela Portaria n.º 311-A/2005, de 24 de Março, prevê no n.º 1 do artigo 9.° que as crianças com menos de 12 anos de idade e menos de 150 cm de altura que excedam 36 kg de peso devem utilizar o cinto de segurança e dispositivo elevatório que permita a utilização do cinto em condições de segurança.
Este dispositivo elevatório não é um SRC nos termos do disposto do no art.º 7.° do citado Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança, não existindo requisitos técnicos para sua aprovação e consequente utilização.
Assim, considerando que existe um número significativo de crianças nas condições descritas e tendo em conta informação técnica existente sobre protecção e segurança das crianças em situação de acidente, podem estas, utilizar um SRC da classe não integral do grupo III.
Nestas situações em que não é possível sentar, no mencionado sistema por este ser pequeno ou estreito, as crianças com mais de 36 kg deverão utilizar apenas o cinto de segurança nas seguintes condições:
- Altura de pelo menos 135 cm - utilização do cinto de segurança. Por razões de maior segurança apenas deverá ser utilizado o cinto de 2 pontos de fixação se não houver cinto de 3 pontos;
- Altura inferior a 135 cm - utilização do cinto de segurança. Caso o cinto seja de 3 pontos de fixação e a precinta diagonal fique sobre o pescoço da criança é preferível, apesar de baixar o nível de protecção, colocar essa precinta atrás das costas e nunca por debaixo do braço, utilizando apenas a precinta subabdominal.
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Concluindo:
Nos termos do art. 55º nº 1 do Código da Estrada uma criança com 150 cm ou mais de altura mas com menos de 12 anos de idade, transportada em automóvel equipado com cintos de segurança não é obrigada a ser segura por sistema de retenção.
Consequentemente, a decisão recorrida é nula, nos termos do art. 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, por não se ter pronunciado sobre questão essencial: a altura da criança na data dos factos.

III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da 3ª Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, em anular parcialmente a sentença recorrida, nos termos acima expostos, devendo o tribunal a quo suprir a referida nulidade, pronunciando-se sobre a altura da criança transportada, se necessário com produção suplementar de prova, decidindo a final em conformidade com a prova que for efectuada.
Sem custas.

Lisboa, 3 de Novembro de 2010

(elaborado e revisto pelo relator, rubricado
e assinado por este e pelo Ex.mo Adjunto)
 
Jorge Raposo
Sérgio Corvacho
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[1] Como sustenta Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal – Notas e Comentários, pg. 804
[2] Expressão utilizada designadamente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.1.07, no proc. 07P158, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, pg.s 173 e 174.
[4] Com Figueiredo Dias, ob. cit. pg. 176.
[5] “Fundar ou agravar a responsabilidade do agente em uma base que caia fora do quadro de significações possíveis das palavras da lei não limita o poder do Estado e não defende os direitos, liberdades e garantias das pessoas” (ob. cit. pg. 177).
[6] Em que as situações expressas nos elementos coordenados são apresentadas como alternativas.
[7] Hipótese cada vez mais provável, tendo em atenção os percentis de altura constantes dos Boletins Individuais de Saúde.
[8] Transporte de crianças em automóvel, disponível em www.ansr.pt.