Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5850/2008-4
Relator: SEARA PAIXÃO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE TRABALHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/17/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Nos acidentes de trabalho em que existe responsabilidade agravada da entidade patronal e subsidiária da seguradora, esta só responde após excutidos os bens da daquela, conforme resulta do art. 21º nº 2 da apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho por conta de outrem, emitida pela norma regulamentar nº 12/99-R, constante do regulamento nº 27/99, do Instituto de Seguros de Portugal, e em vigor desde 1 de Janeiro de 2000.
(sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Acórdão na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:
           
            Relatório
Nos autos de acidente de trabalho supra referidos, em que é sinistrado A… foi proferida sentença, que transitou em julgado, condenando as Rés nos seguintes termos:
“Pelo exposto, decido julgar a acção procedente e, em consequência, condeno:
A)
A 2ª Ré C…, Ldª, a pagar ao autor, os seguintes valores e prestações:
a) uma pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, no valor de € 420,00, devida desde o dia seguinte à data da alta, ou seja, desde 6.06.2003;
b) uma indemnização diária no valor de € 33,33, pelo período de ITA entre 20/07/2002 e 4/06/2003, no total de € 7.652,24;
c) no pagamento das despesas com as deslocações no valor de € 6,00.
B) Condeno a 1ª Ré Companhia de Seguros …, SA, a pagar ao Autor, os seguintes valores e prestações, a título subsidiário:
a) uma pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, no valor de € 294,00, devida desde o dia seguinte à data da alta, ou seja, desde 6.06.2003;
b) uma indemnização diária no valor de € 16,33, pelo período de ITA entre 20/07/2002 e 4/06/2003, no total de € 5.356,56;
no pagamento das despesas com as deslocações no valor de € 6,00.
C) Sobre todas as quantias em dívida incidem juros de mora à taxa legal, devidos desde as datas dos respectivos vencimentos.

Após várias diligências para entrega do capital de remição, foi a seguradora notificada de que foi designado o dia 10.01.2008 para entrega do capital de remição, e requereu, então (fls. 249/250), que se desse sem efeito a data designada para a entrega do capital até se mostrarem concluídas as diligências em curso para se apurar a existência de bens da entidade empregadora.
Após uma promoção do Ministério Público (fls.254), o Mº Juiz proferiu o despacho de fls. 257/258 que indeferiu o requerido, nos seguintes termos:
“Veio a seguradora, a fls. 249 e segs, requerer que seja dada sem efeito a sua obrigação de pagar o capital de remição calculado, uma vez que a sua responsabilidade é meramente subsidiária e ainda não se mostram concluídas as diligências em curso para apurar a existência de bens da entidade empregadora.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que a seguradora responde logo que haja incumprimento da devedora principal.
Cumpre apreciar e decidir.
Compulsados os autos, verifica-se que na decisão final, devidamente transitada em julgado, a ré seguradora foi condenada como responsável subsidiária, até ao montante da responsabilidade transferida, nos termos do art. 37° da LA T.
Ora, para melhor compreendermos esta responsabilidade subsidiária há que recorrer a dois conceitos de subsidariedade.
A subsidariedade "forte", em que tem de haver um esgotamento de bens do principal responsável.
A subsidariedade "fraca", em que não tem de haver esgotamento de bens da entidade responsável.
Ora, no caso da responsabilidade prevista no art. 37° da LAT, entendemos que estamos face a uma subsidariedade "fraca". Este entendimento baseia-se no facto do legislador não falar expressamente no "beneficio de excussão".
Efectivamente, considerando os interesses que estão em causa no âmbito dos acidentes de trabalho e a obrigatoriedade do seguro, pretendeu-se que a seguradora responda logo, até ao limite da sua responsabilidade, sempre que o devedor primário falhe.
A seguradora depois poderá exercer o direito de regresso contra o devedor primário, só que essa relação jurídica entre os dois devedores não pode prejudicar alguém que se encontra em carência e que necessita e tem direito à pensão, por causa do acidente de trabalho sofrido.
Pelo exposto, entendemos que a seguradora deverá responder perante o sinistrado pelo capital de remição calculado até ao limite da sua responsabilidade, face ao incumprimento do responsável primário.
Nesta conformidade, indefere-se o requerido.
Mais se condena a seguradora na multa de 3 Ucs, pela falta de pagamento não justificada, na diligência que havia sido designada para 10 de Janeiro.   
Custas pelo incidente a que deu causa, a cargo da seguradora, condenando-se ~ a mesma na taxa de justiça de 2 Ucs (art. 16° do CCJ).
Notifique.

B… SA, actual denominação da Companhia de Seguros …, SA, inconformada com o precedente despacho, dele interpôs o presente recurso e termina as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
(…)

O Sinistrado, através do Ministério Público, contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
Face às conclusões da alegação de recurso, que delimitam o objecto deste, a única questão a apreciar é a de saber se a responsabilidade subsidiária da seguradora/agravante pressupõe o esgotamento dos bens do devedor principal.

            Fundamentação de facto:
1. O sinistrado A… no dia 19.07.2002 sofreu um acidente de trabalho pelo qual lhe foi atribuída, por decisão transitada em julgado, a pensão e a indemnização acima referidas.
2. Após a prolação da sentença foi de imediato calculado o capital de remição correspondente quer à pensão atribuída à entidade empregadora quer à pensão da responsabilidade da seguradora e designado dia para a entrega do capital ao sinistrado.
3. No dia 27.06.07, designado para a entrega do capital, não compareceu a entidade empregadora e não se procedeu à entrega do capital.
4. Foi depois designado o dia 2.10.07 para entrega do capital e simultaneamente foram ordenadas diligências com vista a apurar a existência de bens pertencentes à entidade empregadora.
5. No dia 2.10.07 não compareceu a entidade empregadora e a representante da seguradora não se fazia acompanhar dos meios necessários à efectivação da entrega do capital de remição.
6. Entretanto as Finanças informam, a fls. 207, a existência de dois veículos automóveis em nome da entidade empregadora, com as matrículas …e….
7. Foi proferido despacho a condenar a seguradora na multa de 3UCs – fls. 210, pela falta injustificada à diligência de 2.10.07.
8. A Seguradora reclamou da aplicação dessa multa e, após ter sido ouvido o Ministério Público, o Mº Juiz manteve a aplicação da multa – fls. 226.
9. Entretanto foi designado o dia 10.01.08 para entrega do capital.
10.  A seguradora requereu, então, que se desse sem efeito a data designada para entrega do capital até se mostrarem concluídas as diligências em curso para apurar a existência de bens da entidade empregadora.
11.  No dia 10.01.08 compareceram o sinistrado e a representante da seguradora que declarou não se fazer acompanhar do cheque.
12. O MP pronunciou-se no sentido de ser aplicada multa à seguradora por ter faltado injustificadamente à diligência do dia 10.01.08.
13. Foi então proferido o despacho recorrido já acima transcrito.

Fundamentação de direito

Estabelece o nº 2 do art. 37º da Lei 100/99 de 13.09, que é a aplicável ao caso em virtude do acidente ter ocorrido em 19.07.02, que “verificando-se alguma das situações referidas no art. 18º nº 1, a responsabilidade nela prevista recai sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais previstas na presente lei.
O art. 18º nº 1 da LAT refere que quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras dobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações nos caos de incapacidade absoluta, permanente ou temporária e de morte serão iguais à retribuição.
Este artigo prescreve pois uma prestação agravada relativamente às prestações normais que são estabelecidas nos art. 17º e 20º da mesma Lei.
Ora, nos presentes autos, a entidade empregadora foi condenada, por sentença transitada em julgado, no pagamento ao sinistrado de uma pensão e numa indemnização por incapacidades temporárias agravadas por o acidente ter resultado de culpa sua, tendo a seguradora sido condenada, subsidiariamente, numa pensão e indemnização por incapacidades temporárias nos termos normais previstos na lei.
A pensão que é devida ao sinistrado é, em primeira linha, a pensão da responsabilidade da entidade patronal, sendo que a pensão da responsabilidade da seguradora é subsidiária daquela, isto é, só pode ser exigida pelo sinistrado após se verificar a impossibilidade da entidade patronal satisfazer a sua obrigação.
Era o que já referia, a este propósito, Vítor Ribeiro ([1]) embora referindo-se à Lei 2.127 de 3.08.65 (mas que neste aspecto contém regime idêntico): “nos casos de acidente ocorrido por culpa da entidade patronal ou seu representante (Base XVII) não há, como é bom de ver, qualquer sobreposição de formas diferentes de responsabilidade. Isto é, o sinistrado não fica titular de dois direitos ou de duas vias diferentes de reparação sobre a entidade patronal.
Não há portanto que recorrer, nesses casos, a qualquer critério ou mecanismo de prevalência de uma forma de responsabilidade em relação à outra, ou de subsunção de uma na outra (…).
E se, nesses casos a seguradora fica subsidiariamente responsável até ao montante das «prestações normais» aferidas pela responsabilidade objectiva, conforme resulta do nº 4º da Base XLIII e da cláusula 11ª da Apólice Uniforme (Portaria nº 633/71, de 19/11), isso não significa que seja este tipo de responsabilidade que está então a ser accionado.
A responsabilidade subsidiária da seguradora que, de qualquer modo, em tais casos apenas é exigível “depois de excutidos os bens do segurado”, é apenas uma solução legal casuística, determinada por razões de equidade e pela necessidade de garantir ao sinistrado uma medida reparatória mínima em caso de insolvência total ou parcial, da entidade patronal subjectivamente responsável”.
Também no acórdão desta Relação de 5/12/2007 (Ramalho Pinto), disponível em www.dgsi/jtrl.pt, se refere que “assumindo a obrigação imposta à seguradora um cariz subsidiário da principal imposta à entidade patronal, o seu cumprimento beneficia do denominado “benefício da excussão”, que se consubstancia no facto da seguradora só responder pelo pagamento da sua obrigação se e quando se provar que o património da entidade patronal é insuficiente para saldar a sua obrigação”.
Deste modo, nas situações em que existe responsabilidade agravada da entidade patronal e subsidiária da seguradora, esta só responde após excutidos os bens da primeira.
Apesar da lei dos acidentes de trabalho não referir que a responsabilidade subsidiária da seguradora beneficia do benefício da excussão, refere-o expressamente a apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho por conta de outrem, emitida pela norma regulamentar nº 12/99-R, constante do regulamento nº 27/99, do Instituto de Seguros de Portugal, e em vigor desde 1 de Janeiro de 2000, que depois de no nº 1 do artigo 21º referir as situações em que a seguradora tem direito de regresso contra o tomador do seguro, entre as quais se encontra na al. b) “o valor das indemnizações ou pensões legais e demais encargos, quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante ou resultar de falta de observação das regras sobre higiene, segurança e saúde nos locais de trabalho”, afirma no nº 2 do mesmo artigo, o seguinte:
“Nos casos previstos na al. b) do número anterior, a seguradora responde subsidiariamente depois de executados os bens do tomador do seguro, apenas pelas prestações a que haveria lugar sem os agravamentos legalmente estipulados para essas situações e sempre tomando por base a retribuição declarada”.
É assim evidente que nos casos em que a entidade empregadora foi condenada por responsabilidade agravada e a seguradora responde subsidiariamente, só após a excussão dos bens daquela, ou depois de se verificar que não possui bens para satisfazer a obrigação da sua responsabilidade, é que à seguradora pode ser exigido o cumprimento da sua obrigação subsidiária.
Porém, como também é afirmado no referido no citado acórdão, não se exige todavia que essa excussão, quando estão em causa prestações por responsabilidade infortunística laboral, seja verificada após a prévia instauração de uma execução e, muito menos, de um processo de falência ou insolvência, bastando, para tanto, que se verifique uma situação objectiva de impossibilidade da entidade responsável pela reparação, seja por não dispor de capacidade para tanto, por se não conhecer a sua identidade ou paradeiro, ou por a mesma, tratando-se de uma pessoa colectiva, já não exercer qualquer actividade e não dispor de património para o cumprimento das suas obrigações.
Assim, salvo o devido respeito, não subscrevemos o despacho recorrido, já que, subjacente ao mesmo, está a ideia de que basta que o responsável principal falhe o cumprimento da sua obrigação para logo poder operar a responsabilidade subsidiária da seguradora, como se esta fosse uma responsabilidade solidária ou alternativa.
Como se referiu, antes de se poder chamar a responsável subsidiária a cumprir a sua obrigação, impõe-se a averiguação da existência de património da responsável principal e só após se concluir pela impossibilidade desta cumprir a sua obrigação é que a seguradora pode ser interpelada para cumprir.
Ora, no caso dos autos, verifica-se que na promoção do MP que antecedeu o despacho recorrido refere-se que “estão a ser encetadas diligências a fim de se apurar sobre a existência de bens pertencentes à entidade empregadora” (fls. 219).
Verifica-se também da informação da Repartição de Finanças, a fls. 207, a existência de dois veículos automóveis com as matrículas … e …em nome da entidade empregadora.
Assim, face aos elementos dos autos, à data do despacho recorrido, não se podia, ainda, concluir pela inexistência de bens da entidade empregadora, uma vez que as diligências para apuramento de bens da entidade empregadora ainda continuam e até há indícios reveladores de que a entidade empregadora tem bens.
Por isso, deveria ter-se determinado o adiamento da entrega do capital de remição por parte da entidade seguradora, responsável subsidiária, até que se ultimassem as diligências relativas ao apuramento de bens da entidade empregadora.
Tem assim razão a Recorrente, devendo revogar-se o despacho recorrido, inclusive quanto à sua condenação em multa pela falta à diligência do dia 10.01.08.

Decisão:
Nos termos expostos, dando provimento ao agravo, revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que mande intensificar as diligências para averiguação da existência de bens da entidade empregadora até se poder concluir pela sua inexistência.
Sem custas.
Lisboa, 17/07/08

Seara Paixão
Ferreira Marques
Maria João Romba – vencida conforme declaração que junto


Voto de vencida no processo nº 5850/08

Negaria provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido com os fundamentos que dele constam.
Conforme referido pelo Prof. Pedro Romano Martinez em palestra proferida no CEJ em Janeiro último, o estabelecimento de responsabilidade subsidiária não implica necessariamente o benefício de excussão prévia dos bens do responsável primário. É necessário que a lei o determine, como acontecia, aliás, com a lei dos acidentes de trabalho antes de 1965. Desde a lei 2127 a lei deixou de referir, neste âmbito, o benefício de excussão prévia, não o referindo igualmente a lei nº 100/97, o que significa que estamos em presença de uma subsidiariedade fraca, enquanto anteriormente o regime era de subsidiariedade forte.
A Apólice Uniforme, como regulamento que é, não pode prevalecer sobre a lei.
Além do mais, exigindo a lei para tutela dos direitos dos sinistrados do trabalho, um seguro obrigatório de responsabilidade civil, o entendimento de que, nos casos em que haja culpa e portanto responsabilidade do empregador, a responsabilidade subsidiária da seguradora só funciona depois de excutido o património do responsável primário (ou seja, como subsidiariedade forte), pode deixar o sinistrado mais desprotegido do que nos casos em que em que não houve culpa e funciona apenas a responsabilidade pelo risco, o que não pode deixar de considerar-se, de certo modo, absurdo e  iníquo.
Assim, só entendimento de que se trata de um caso de subsidiariedade fraca – e que, logo que o empregador deixe de pagar, a seguradora deve reparar o acidente na medida da responsabilidade que assumiu através do contrato de seguro, ficando com direito de regresso sobre o causador do acidente - protege suficientemente os interesses que a lei visa tutelar, os do sinistrado.
            Lisboa, 17 de Julho de 2008
____________________________________________________________________________________

[1] Acidentes de Trabalho, Reflexões e notas práticas, Rei dos Livros, 1984, pág 232/233.