Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7543/2007-1
Relator: JOÃO AVEIRO PEREIRA
Descritores: MÚTUO
RESTITUIÇÃO
PRESTAÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO
PERDA
PRAZO
INTERPELAÇÃO
CAPITALIZAÇÃO DE JUROS
JUROS REMUNERATÓRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I – O vencimento imediato de todas as prestações ainda em dívida, por falta de pagamento de uma delas, é justificado com a quebra da relação de confiança em que assenta o plano de pagamento calendarizado.
II – Mas o credor não está dispensado de interpelar o devedor para que este cumpra imediatamente a totalidade da dívida, manifestando assim a vontade de aproveitar o privilégio do vencimento antecipado que a lei lhe concede.
III – Não se provando tal interpelação, os efeitos do artigo 781.º do código civil só se aplicam a partir da citação, data em que o devedor toma efectivamente conhecimento da opção do credor pelo vencimento antecipado de todas as prestações vincendas.
IV – Num mútuo oneroso, em que a obrigação de restituir se reparte por uma pluralidade de prestações, cada uma de capital e juros remuneratórios, o disposto no artigo 781.º aplica-se apenas à parte correspondente ao capital, pois só o pagamento deste foi fraccionado no tempo.
V – O incumprimento de uma prestação de juros remuneratórios não implica o vencimento das subsequentes, pois, correspondendo estas a períodos futuros, ainda não estão constituídas ao tempo daquele incumprimento.
VI – Dada a diferente natureza das obrigações de capital e de juros, a falta de pagamento destes não acarreta o vencimento imediato do capital em dívida.
JAP
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
B, S.A., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra L e mulher C, pedindo a condenação solidária dos réus a pagar à A. Euros 3.706,68, acrescidos de 524,31 euros de juros vencidos até dia 31-12-2003 e 20.97 euros de imposto de selo sobre estes juros e ainda os juros vincendos sobre aquela primeira quantia, à taxa anual de 21,97%, desde 1-1-2004 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4% sobre estes juros recair.

Os Réus, citados, o primeiro por carta com A.R e a segunda por éditos, não contestaram. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção em parte procedente, condenando os réus, solidariamente entre si, a pagarem à autora a quantia de 3.706,68 euros, acrescida de juros à taxa legal de 4% vencidos desde 11-05-2003 até integral pagamento e, bem assim, do imposto de selo que, à taxa legal de 4%, sobre os juros recair.

Inconformado, o Ministério Público apelou para este Tribunal, em representação da ré ausente, concluindo assim as suas conclusões:
1.a É entendimento pacífico da Doutrina e Jurisprudência que a norma do artigo 781° do Código Civil visa proteger o interesse do credor que, perante a falta de pagamento de uma das prestações no prazo respectivo, concede àquele o benefício de não se manter sujeito aos prazos contratualmente escalonados.
2.a O artigo 781.° do Código Civil não antecipa, por si só, o momento do vencimento das restantes prestações, dependendo essa antecipação da interpelação do credor para integral pagamento da dívida.
3.a No caso em apreço não foi realizada qualquer interpelação extrajudicial, sendo a primeira interpelação para pagamento conhecida nos autos a da citação.
4.a Assim sendo, o vencimento das prestações 3.a à 21.a ocorreu nas datas contratualmente previstas, e as restantes, 22.ª à 48.ª prestações, na data em que ocorreu a citação efectuada no âmbito deste processo, ou seja, em 09/12/2004.
5.a Sendo o mútuo oneroso e achando-se o prazo estabelecido a favor de ambas as partes, o credor ao exigir o vencimento antecipado está a renunciar ao prazo estabelecido a seu favor e, desta forma, cai dentro do âmbito de aplicação do artigo 781.° do Código Civil, abdicando dos juros correspondentes às prestações antecipadamente vendidas, já que o vencimento desses juros dependeria do decurso do tempo.
6.a As 48 prestações fixadas no contrato de mútuo no valor de € 80,58 englobam capital, juros remuneratórios, uns valores mensais de prémios de seguro e de "protecção total Banco Mais".
7.a Os juros remuneratórios correspondem ao preço do empréstimo do dinheiro, isto é, à contrapartida a pagar ao credor pelo capital disponibilizado.
8.a A natureza distinta das dívidas de juros e capital impõe que o disposto no artigo 781.° do Código Civil tenha a ver apenas com o capital e não com os juros, não determinando, por isso, o vencimento antecipado da prestação de juros.
9.a Assim, a A. ao exercer a faculdade prevista e no artigo 781.° do Código Civil, provoca, tão-só, o vencimento da totalidade das prestações de capital, não sendo devidos os juros remuneratórios das prestações de capital cujo vencimento é antecipado, nem os demais encargos nelas incluídos, como prémios de seguros, mas apenas nas prestações vencidas, havendo que distinguir as dívidas de capital e de juros.
10.ª Foram violadas as disposições legais dos artigos 781.°, 561.° e 805.°, ambos do Código Civil.
11.a Pelo exposto deve a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue a acção parcialmente procedente nos termos indicados.
A Recorrida apresentou as suas contra-alegações, concluindo pela manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as seguintes questões que se retiram das conclusões da Recorrente: 1) se a falta de pagamento de uma prestação do contrato determina o vencimento imediato e automático de todas as prestações, sem necessidade de qualquer interpelação; 2) se esse vencimento abrange também os juros remuneratórios do capital já incluídos nas prestações, ou se se restringe às prestações de capital.

II – Fundamentação
A – Factos provados.
1. A A., no exercício da sua actividade, por contrato constante de título particular, datado de 28 de Janeiro de 2003, concedeu aos RR. L e C crédito pessoal directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado aos ditos RR. a importância de Euros 2.500,00.
2. Nos termos do contrato assim celebrado entre o A e os referidos RR. L e C, o A emprestou aos RR. a dita quantia de Euros 2.500,00, com juros à taxa nominal de 17,97% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como os prémios de seguro de vida, serem pagos em 48 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10 de Março de 2003 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.
3. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem irrevogável logo dada pelo referido R. L ao seu Banco – mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para conta bancária logo indicada pelo ora A.
4. Os referidos RR., das prestações referidas, não pagaram a 3ª e seguintes, vencida a primeira em 10 de Maio de 2003.
5. Os referidos RR. não providenciaram às transferências bancárias referidas – que não foram feitas – para pagamento das ditas prestações, e nem os referidos RR., ou quem quer que fosse por eles, as pagou à A..
6. Conforme consta do referido contrato, o valor de cada prestação era de Euros 80,58.

B - Apreciação jurídica
1) Se o vencimento imediato e automático de todas as prestações dispensa interpelação
O art.º 781.º do código civil dispõe que «se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas». A perda pelo devedor do benefício do prazo em relação às prestações ainda em dívida é justificada com a quebra da relação de confiança em que assenta o plano de pagamento calendarizado. A partir daquela falta causal, o credor fica com o direito de exigir essa prestação e as subsequentes ainda não vencidas, mas não está dispensado de interpelar o devedor para que este cumpra imediatamente a totalidade da dívida. O credor tem, portanto, de manifestar ao devedor a sua vontade de aproveitar este privilégio que a lei lhe concede (cf. A. Varela, Das Obrigações em geral, 2.º vol., 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 1980, pp. 52-53). Este vencimento imediato das restantes prestações não exclui a necessidade de interpelação, por se tratar de uma faculdade do credor que ele pode exercer ou não. E, assim sendo, é a partir da interpelação que os efeitos da mora devem começar a contar. Portanto, o que ocorre é uma exigibilidade imediata dessas prestações e não que a data do seu vencimento passe a ser a da prestação faltosa. Por outro lado, se no contrato as partes estipularam que o não pagamento de uma das prestações implicava o vencimento imediato das restantes, é de entender, ainda mais num contrato de adesão, que remeteram para o conteúdo do art.º 781.º, com o sentido atrás indicado, e não que acordaram o seu vencimento automático – cf. Ac. STJ de 14-11-2006, proc.º n.º 2911/06, 2.ª sec., www.dgsi.pt/jstj.
Portanto, não se tendo provado que, a seguir ao vencimento da 3.ª prestação contratual, a A. mutuante interpelou a Ré exigindo-lhe o pagamento de todas as prestações vincendas, os efeitos do referido art.º 781.º apenas se aplicam a partir da citação, data em que a Ré tomou efectivamente conhecimento da opção da A. pelo lançamento da bomba atómica sobre o contrato, ou seja, pelo vencimento antecipado de todas as prestações ainda em dívida.

2) Se o vencimento imediato e automático de todas as prestações abrange também os juros remuneratórios do capital já incluídos nas prestações.
A estatuição do art.º 781.º apoia-se na referência expressa a uma dívida e a uma obrigação liquidável em prestações. Trata-se, pois, de uma dívida ou obrigação unitária cujo cumprimento pode ser fraccionado em duas ou mais vezes. Desde logo, não resulta da lei que neste conceito de obrigação estejam incluídos acréscimos legais ou convencionais extrínsecos ao conteúdo dessa obrigação e que têm a sua causa na privação do capital pelo credor, associada ao tempo que decorre até à efectivação do pagamento. Estes acréscimos servem para remunerar o credor pela privação do capital (juros remuneratórios) ou para castigar o devedor por não cumprir em devido tempo (juros moratórios). Por aqui se vê que as obrigações de capital e as de juros têm efectivamente natureza e funções diferentes, pelo que não cabem as duas na previsão do artigo em causa.
Com efeito, os juros, ao contrário do capital, não são prestações de uma obrigação unitária nascida do acto de celebração do contrato e cujo cumprimento se fraccione. Pelo contrário a obrigação de juros, dependente como está do factor tempo cronológico, só se vai constituindo ao longo da vida do empréstimo. Na hipótese de este ter morte súbita, como no caso sub judicio, o mutuante não pode querer receber a totalidade do capital ainda em dívida e todos os juros remuneratórios, como se a execução do contrato continuasse normalmente até termo do prazo inicialmente acordado. É que apesar de o mútuo ser oneroso e, por conseguinte, o prazo ser estabelecido no interesse de ambas as partes, ao optar por exigir todas as prestações de uma só vez, o mutuante renuncia ao seu prazo. A técnica de aglutinar prestações de capital com juros a vencer, em cada período, e denominar o conjunto assim formado de prestação mensal e sucessiva pode induzir a ideia errada de que tudo está ao abrigo do citado artigo 781.º.
Portanto, num mútuo oneroso em que a obrigação de restituir se reparte por uma pluralidade de prestações, cada uma delas composta por capital e juros remuneratórios, como no caso em apreço, o disposto neste artigo apenas é aplicável à parte do capital, pois só o cumprimento deste é que foi fraccionado no tempo. Quanto aos juros remuneratórios, sendo prestações periódicas, o incumprimento de uma delas não implica o vencimento das subsequentes. Isto porque, correspondendo estas últimas a períodos futuros, ainda não estão constituídas ao tempo daquela que não foi cumprida e que origina o efeito dominó quanto às restantes (cf. Ac. STJ de 14-11-2006, cit.). Além disso, dada a diferente natureza das obrigações de capital e de juros, a falta de pagamento destes não acarreta o vencimento imediato do capital em dívida, ainda que se trate de dívidas estreitamente conexas entre si (cf. A. Varela, ob. cit., p. 54).

3) Conclusão
Nesta conformidade, e de harmonia com a suprema jurisprudência maioritária, num mútuo liquidável em prestações em que se incluem juros remuneratórios, o não pagamento dos juros incluídos nessas prestações não implica o vencimento imediato dos incluídos nas prestações vincendas (cf. acs. do STJ de 11-10-2005, proc.º n.º 2461/05, 7.ª sec.; de 14-09-2005, proc.º n.º 493/05, 1.ª sec., e de 14-11-2006, proc.º n.º 2718/06, 1.ª sec., todos em www.dgsi.pt/jstj).
Por outro lado, não tendo a mutuante, ora recorrida, interpelado a mutuária, ora recorrente, para esta pagar de imediato todas as prestações vincendas, verifica-se que a mora em relação a essa prestações só se iniciou com a interpelação judicial substanciada na citação e não a partir da data de vencimento da prestação (a 3.ª) que despoletou a perda do benefício do prazo.
Assim, para além desta última prestação, até à citação ainda se venceram, nos respectivos prazos contratuais, da 4.ª à 21.ª prestações compostas de capital, juros e imposto, no valor de € 1531,02 (19 x € 80,58). As restantes venceram-se todas em 9-12-2004, data da citação edital da Ré (fls. 77) e o seu valor será a liquidar, sem juros remuneratórios. Finalmente, o recurso da Ré mulher aproveita ao Réu marido, pois em caso de litisconsórsio necessário o recurso aproveita aos compartes não recorrentes e, mesmo fora deste litisconsórcio, quando a condenação tenha sido solidária, como neste caso, tudo nos termos dos art.ºs 28.º, 28.º-A, n.º 3 e 683.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do CPC.

III – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revoga-se em parte a sentença recorrida e condenam-se os Réus solidariamente a pagar à Autora:
1) a quantia de 1.531,02, acrescida de juros de mora à taxa legal até integral pagamento e do imposto de selo que incidir sobre tais juros;
2) a quantia que se apurar em execução de sentença relativa a cada uma das prestações da 22.ª à 48.ª, acrescida de juros de mora, até integral pagamento, e do imposto de selo sobre tais juros.
3) No mais absolvem-se os Réus do pedido.
Custas pela Autora.
Notifique.
Lisboa, 22.1.2008
João Aveiro Pereira
Rui Moura
Folque de Magalhães (vencido porque considero que o art. 781º do CC não exige interpelação prévia à exigência de antecipação, bem como engloba o capital e o fim remuneratório)