Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
77/15.4T8MTA.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. A competência material do tribunal, que corresponde a um pressuposto processual da ação, afere-se pela pretensão jurídica solicitada, o pedido formulado na ação.
II. O direito de personalidade tem tutela jurisdicional, nomeadamente no âmbito das providências cíveis.
III. O conhecimento da pretensão jurisdicional formulada no procedimento cautelar, enquadrando-se no âmbito de uma providência cautelar de natureza cível, é da competência do tribunal cível.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO:

Esmeraldino … instaurou, em 10 de fevereiro de 2015, na Instância Local da Moita, Secção Cível, Comarca de Lisboa, contra Marcos …, procedimento cautelar comum, pedindo, sem audiência prévia do Requerido, que este seja intimado (“condenado”) a desocupar o imóvel sito na Avenida Humberto Delgado, …., em Alhos Vedros.

Para tanto, alegou, em síntese, que é dono do referido imóvel, onde reside com o Requerido, seu filho; este, desde há algum tempo, tem partido o recheio da casa, ameaçando pegar fogo à casa, para além de ter vendido objetos de que o Requerente é proprietário e usava nos seus trabalhos de pedreiro; o Requerido ameaçou-o de lhe bater com um pau e, frequentemente, ameaça-o também de morte com facas; contra a sua vontade, instalou na residência uma mulher; o Requerido passa os dias a ofendê-lo e agredi-lo, verbalmente, apelidando-o de “porco, ordinário, velho de um cabrão, não prestas”; para além de ter apelado a diversas entidades, já chamou a GNR, por diversas vezes, durante a madrugada, por não conseguir dormir; o Requerido costuma empurrá-lo com extrema violência, impedindo-o, muitas vezes, de comer; o Requerente, que já foi internado compulsivamente, por ordem do delegado de Saúde, teme não sobreviver à violência física e psíquica a que é sujeito diariamente, necessitando de paz e sossego para viver.

Em seguida, a 11 de fevereiro de 2015, foi proferido despacho liminar, que concluiu que a competência, para o conhecimento da matéria dos autos, cabia aos juízos de pequena instância criminal, e ao Ministério Público o exercício da ação penal, determinando, após a extração de certidão e remessa ao Ministério Público, o arquivamento do processo (fls. 33).

Não se conformando com esse despacho, recorreu o Requerente e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
a)A circunstância dos factos poderem ser enquadrados como crime de violência doméstica, não impede o Tribunal de conhecer do procedimento cautelar.
b)O art. 70.º, n.º s 1 e 2, do Código Civil, permite ao Requerente lançar mão de um procedimento cautelar de natureza cível, para garantia da integridade física e psíquica.
c)Foi violada a garantia de acesso aos Tribunais, prevista no art. 2.º do Código de Processo Civil.

Pretende o Requerente, com o provimento do recurso, a revogação do despacho recorrido e o prosseguimento dos autos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, após deferimento da reclamação do Apelante.

Cumpre, desde já, apreciar e decidir.

No presente recurso, está essencialmente em discussão o indeferimento liminar de procedimento cautelar comum, designadamente por incompetência material do tribunal para conhecer do pedido.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa então conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente acaba de ser especificada.

Embora sem tal se afirmar, o despacho recorrido constitui uma decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial, com fundamento, implícito, na incompetência material do tribunal, pois, segundo o mesmo, o competente seria o tribunal criminal.

A competência material do tribunal, que corresponde a um pressuposto processual da ação, afere-se pela pretensão jurídica solicitada, isto é, pelo pedido formulado na ação.

No caso vertente, o Apelante, instaurando procedimento cautelar comum, pediu que o Apelado fosse “condenado a desocupar o imóvel”, onde reside com o Apelante.

Esta pretensão jurídica, independentemente da sua validade, tem clara natureza cível, independentemente do seu fundamento poder basear-se em factos, que tanto podem ser qualificados de natureza cível como de natureza criminal, o que, aliás, sucede com frequência na prática judiciária. 

O Apelante, pelos factos alegados, baseia o pedido formulado, no procedimento cautelar, na ofensa à sua integridade psíquica e moral e no perigo iminente de ofensa à sua integridade física.

O direito à integridade física e psíquica, expresso no art. 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, concede proteção às pessoas contra as ameaças e agressões que consubstanciam lesões da sua integridade física e psíquica (P. PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade, 2006, pág. 70).

No objeto do direito à integridade física e psíquica, que reveste grande amplitude, está incluída a saúde em geral, seja na sua extensão física, seja psíquica.

A inviolabilidade moral também é protegida no art. 26.º, n.º 1, da Constituição, sob a denominação do direito ao bom nome e reputação.

O direito à integridade física, moral e psíquica, que se integra na tutela geral da personalidade, pode surgir em conflito com outros direitos.

Não existindo uma hierarquia legal dos direitos, a solução da colisão de direitos passa pelo recurso aos critérios gerais previstos no art. 335.º do Código Civil (CC), numa ponderação das circunstâncias concretas do caso, sendo certo que a jurisprudência tem seguido a jurisprudência de conferir primazia ao direito de personalidade.

A tutela da personalidade, com a amplitude que lhe é reconhecida, vem também consagrada, numa cláusula geral e ampla, no art. 70.º do CC, nos termos da qual se protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral (n.º 1).

O art. 70.º, n.º 2, do CC, prevê, específica e genericamente, a tutela jurisdicional dos direitos de personalidade.

Adjetivamente, o primeiro processo especial é dedicado à tutela da personalidade, nos termos dos arts. 878.º a 880.º do Código de Processo Civil (CPC).

Ainda no âmbito do direito substantivo, interessa também ter presente o disposto no art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente sobre o direito ao respeito pela vida privada e familiar, com a densidade conferida pela jurisprudência (I. CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3.ª edição, 2005, págs. 182 e segs.).

Naturalmente, o direito de personalidade, com a importância que reveste, não pode deixar de ter tutela jurisdicional, nomeadamente no âmbito das providências cíveis (R. CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, 1995, págs. 472 e segs., e P. PAIS DE VASCONCELOS, Ibidem, págs. 127 e segs.).
Neste âmbito, insere-se, claramente, o procedimento cautelar comum, com vista a remover uma situação de perigo de ofensa do direito de personalidade ou a atenuar os efeitos da sua ofensa, com o conteúdo das providências cautelares a poder variar, na decorrência da especificidade de cada caso.

Por isso, a pretensão jurisdicional formulada no procedimento cautelar instaurado pelo Apelante enquadra-se, perfeitamente, no âmbito de uma providência cautelar comum, de natureza cível, para cujo conhecimento o Tribunal a quo tem, nos termos da lei, competência material.

Deste modo, encontrando-se preenchido o pressuposto processual da competência material do tribunal, não há fundamento, por esse motivo, para o indeferimento liminar do procedimento cautelar, devendo os autos prosseguir os seus termos, se outra razão não houver que a tal obste.

Assim, procede a apelação, impondo-se a revogação do despacho recorrido.

2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I.A competência material do tribunal, que corresponde a um pressuposto processual da ação, afere-se pela pretensão jurídica solicitada, o pedido formulado na ação.
II.O direito de personalidade tem tutela jurisdicional, nomeadamente no âmbito das providências cíveis.
III.O conhecimento da pretensão jurisdicional formulada no procedimento cautelar, enquadrando-se no âmbito de uma providência cautelar de natureza cível, é da competência do tribunal cível.

2.3. Tendo o Apelante obtido vencimento e não tendo o Apelado dado causa ao recurso, não há lugar ao pagamento de custas – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se:

Conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando o prosseguimento do processo, se outra razão a tal não obstar.


Lisboa, 14 de maio de 2015

(Olindo dos Santos Geraldes)
(Lúcia Sousa)
(Magda Geraldes)