Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | OLINDO GERALDES | ||
Descritores: | DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/14/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | I. A competência material do tribunal, que corresponde a um pressuposto processual da ação, afere-se pela pretensão jurídica solicitada, o pedido formulado na ação. II. O direito de personalidade tem tutela jurisdicional, nomeadamente no âmbito das providências cíveis. III. O conhecimento da pretensão jurisdicional formulada no procedimento cautelar, enquadrando-se no âmbito de uma providência cautelar de natureza cível, é da competência do tribunal cível. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO: Esmeraldino … instaurou, em 10 de fevereiro de 2015, na Instância Local da Moita, Secção Cível, Comarca de Lisboa, contra Marcos …, procedimento cautelar comum, pedindo, sem audiência prévia do Requerido, que este seja intimado (“condenado”) a desocupar o imóvel sito na Avenida Humberto Delgado, …., em Alhos Vedros. Para tanto, alegou, em síntese, que é dono do referido imóvel, onde reside com o Requerido, seu filho; este, desde há algum tempo, tem partido o recheio da casa, ameaçando pegar fogo à casa, para além de ter vendido objetos de que o Requerente é proprietário e usava nos seus trabalhos de pedreiro; o Requerido ameaçou-o de lhe bater com um pau e, frequentemente, ameaça-o também de morte com facas; contra a sua vontade, instalou na residência uma mulher; o Requerido passa os dias a ofendê-lo e agredi-lo, verbalmente, apelidando-o de “porco, ordinário, velho de um cabrão, não prestas”; para além de ter apelado a diversas entidades, já chamou a GNR, por diversas vezes, durante a madrugada, por não conseguir dormir; o Requerido costuma empurrá-lo com extrema violência, impedindo-o, muitas vezes, de comer; o Requerente, que já foi internado compulsivamente, por ordem do delegado de Saúde, teme não sobreviver à violência física e psíquica a que é sujeito diariamente, necessitando de paz e sossego para viver. Em seguida, a 11 de fevereiro de 2015, foi proferido despacho liminar, que concluiu que a competência, para o conhecimento da matéria dos autos, cabia aos juízos de pequena instância criminal, e ao Ministério Público o exercício da ação penal, determinando, após a extração de certidão e remessa ao Ministério Público, o arquivamento do processo (fls. 33). Não se conformando com esse despacho, recorreu o Requerente e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões: a)A circunstância dos factos poderem ser enquadrados como crime de violência doméstica, não impede o Tribunal de conhecer do procedimento cautelar. b)O art. 70.º, n.º s 1 e 2, do Código Civil, permite ao Requerente lançar mão de um procedimento cautelar de natureza cível, para garantia da integridade física e psíquica. c)Foi violada a garantia de acesso aos Tribunais, prevista no art. 2.º do Código de Processo Civil. Pretende o Requerente, com o provimento do recurso, a revogação do despacho recorrido e o prosseguimento dos autos. Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso foi admitido, após deferimento da reclamação do Apelante. Cumpre, desde já, apreciar e decidir. No presente recurso, está essencialmente em discussão o indeferimento liminar de procedimento cautelar comum, designadamente por incompetência material do tribunal para conhecer do pedido. II – FUNDAMENTAÇÃO: 2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa então conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente acaba de ser especificada. Embora sem tal se afirmar, o despacho recorrido constitui uma decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial, com fundamento, implícito, na incompetência material do tribunal, pois, segundo o mesmo, o competente seria o tribunal criminal. A competência material do tribunal, que corresponde a um pressuposto processual da ação, afere-se pela pretensão jurídica solicitada, isto é, pelo pedido formulado na ação. No caso vertente, o Apelante, instaurando procedimento cautelar comum, pediu que o Apelado fosse “condenado a desocupar o imóvel”, onde reside com o Apelante. Esta pretensão jurídica, independentemente da sua validade, tem clara natureza cível, independentemente do seu fundamento poder basear-se em factos, que tanto podem ser qualificados de natureza cível como de natureza criminal, o que, aliás, sucede com frequência na prática judiciária. O Apelante, pelos factos alegados, baseia o pedido formulado, no procedimento cautelar, na ofensa à sua integridade psíquica e moral e no perigo iminente de ofensa à sua integridade física. O direito à integridade física e psíquica, expresso no art. 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, concede proteção às pessoas contra as ameaças e agressões que consubstanciam lesões da sua integridade física e psíquica (P. PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade, 2006, pág. 70). No objeto do direito à integridade física e psíquica, que reveste grande amplitude, está incluída a saúde em geral, seja na sua extensão física, seja psíquica. A inviolabilidade moral também é protegida no art. 26.º, n.º 1, da Constituição, sob a denominação do direito ao bom nome e reputação. O direito à integridade física, moral e psíquica, que se integra na tutela geral da personalidade, pode surgir em conflito com outros direitos. Não existindo uma hierarquia legal dos direitos, a solução da colisão de direitos passa pelo recurso aos critérios gerais previstos no art. 335.º do Código Civil (CC), numa ponderação das circunstâncias concretas do caso, sendo certo que a jurisprudência tem seguido a jurisprudência de conferir primazia ao direito de personalidade. A tutela da personalidade, com a amplitude que lhe é reconhecida, vem também consagrada, numa cláusula geral e ampla, no art. 70.º do CC, nos termos da qual se protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral (n.º 1). O art. 70.º, n.º 2, do CC, prevê, específica e genericamente, a tutela jurisdicional dos direitos de personalidade. Adjetivamente, o primeiro processo especial é dedicado à tutela da personalidade, nos termos dos arts. 878.º a 880.º do Código de Processo Civil (CPC). Ainda no âmbito do direito substantivo, interessa também ter presente o disposto no art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente sobre o direito ao respeito pela vida privada e familiar, com a densidade conferida pela jurisprudência (I. CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3.ª edição, 2005, págs. 182 e segs.). Naturalmente, o direito de personalidade, com a importância que reveste, não pode deixar de ter tutela jurisdicional, nomeadamente no âmbito das providências cíveis (R. CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, 1995, págs. 472 e segs., e P. PAIS DE VASCONCELOS, Ibidem, págs. 127 e segs.). Neste âmbito, insere-se, claramente, o procedimento cautelar comum, com vista a remover uma situação de perigo de ofensa do direito de personalidade ou a atenuar os efeitos da sua ofensa, com o conteúdo das providências cautelares a poder variar, na decorrência da especificidade de cada caso. Por isso, a pretensão jurisdicional formulada no procedimento cautelar instaurado pelo Apelante enquadra-se, perfeitamente, no âmbito de uma providência cautelar comum, de natureza cível, para cujo conhecimento o Tribunal a quo tem, nos termos da lei, competência material. Deste modo, encontrando-se preenchido o pressuposto processual da competência material do tribunal, não há fundamento, por esse motivo, para o indeferimento liminar do procedimento cautelar, devendo os autos prosseguir os seus termos, se outra razão não houver que a tal obste. Assim, procede a apelação, impondo-se a revogação do despacho recorrido. 2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante: I.A competência material do tribunal, que corresponde a um pressuposto processual da ação, afere-se pela pretensão jurídica solicitada, o pedido formulado na ação. II.O direito de personalidade tem tutela jurisdicional, nomeadamente no âmbito das providências cíveis. III.O conhecimento da pretensão jurisdicional formulada no procedimento cautelar, enquadrando-se no âmbito de uma providência cautelar de natureza cível, é da competência do tribunal cível. 2.3. Tendo o Apelante obtido vencimento e não tendo o Apelado dado causa ao recurso, não há lugar ao pagamento de custas – art. 527.º, n.º 1, do CPC. III – DECISÃO: Pelo exposto, decide-se: Conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando o prosseguimento do processo, se outra razão a tal não obstar. Lisboa, 14 de maio de 2015 (Olindo dos Santos Geraldes) (Lúcia Sousa) (Magda Geraldes) |