Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16/11.1TBHRT.L1-7
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: RUPTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO
CONCEITO JURÍDICO
SEPARAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA PARCIAL
Sumário: 1. A rutura definitiva do vínculo matrimonial, com fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, ao abrigo da alínea a) do art.º 1781.º do CC, deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes.
2. No entanto, importa adotar um padrão de exigência nivelado, em termos de sistemática hermenêutica, com as situações previstas nas alíneas a) a c) do citado artigo 1781.º, afora as respectivas especificidades, de forma a prevenir os riscos de algum voluntarismo.
3. O abandono do lar conjugal, por parte do cônjuge demandado, sem que haja qualquer indício sério de reatamento da vida em comum constitui situação grave reveladora de rutura definitiva do vínculo conjugal.
4. O decurso de uma ano consecutivo de separação de facto dos cônjuges, como fundamento do divórcio sem consentimento, nos termos dos artigos 1781.º, alínea a), e 1782.º do CC, enquanto facto constitutivo que é do direito potestativo de requerer o divórcio, deve mostrar-se consolidado à data da propositura da acção, não bastando que seja supervenientemente completado à data do encerramento da discussão em 1.ª instância.
5. Não se tratando, pois, de mera completude ou correção da causa de pedir inicialmente invocada, a sua admissibilidade superveniente atentaria contra as garantias do contraditório, estando, nessa medida, vedada a ampliação daquela causa de pedir pelo artigo 273.º, n.º 1, ressalvado no n.º 1 do artigo 663.º, ambos do CPC.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. AL instaurou, em 11-01-2011, junto do Tribunal Judicial da Comarca de H…, ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra SV, com fundamento em separação de facto por um ano consecutivo e em rutura definitiva do casamento.
2. A R. foi citada editalmente, por desconhecimento do seu paradeiro, não tendo contestado a acção.
3. Citado também o MP em representação da R., o mesmo não apresentou contestação. 
4. Realizada audiência final e decidida a matéria de facto conforme despacho consignado na ata de fls. 57, foi proferida sentença, em 16/05/ 2012, a julgar a ação improcedente.
5. Inconformado com tal decisão, veio o A. apelar dela, formulando as seguintes conclusões: 
1.ª - Dos factos provados estão indubitavelmente verificados os pressupostos exigidos na alínea d) do art.° 1781.° do CC, para se obter a dissolução do casamento, ou seja, a rutura definitiva do casamento.
2.ª - O actual regime de divórcio não exige a verificação de culpa de qualquer dos cônjuges para ser decretado o divórcio sem consentimento do outro cônjuge, e a alínea d) do art.° 1781.° do CC basta-se com “uma situação objectiva e passível de constatação, que revele uma situação de rutura definitiva do casamento".
3.ª - O tribunal “a quo” considerou provado que a recorrida abandonou o lar conjugal levando consigo a filha menor, que deixou de comer, partilhar o leito e sair com o marido, ora A., por isso, até se mostram violados os deveres de coabitação e de assistência, previstos no art.° 1672.° do CC.
4.ª - Estão demonstrados os requisitos para decretar o divórcio sem o consentimento da recorrida - por provados factos que configuram uma situação de rutura definitiva do casamento.
5.ª - Acresce que, à data do encerramento da audiência de discussão e julgamento (18 de abril de 2012) encontrava-se completado o prazo de mais de um ano consecutivo da separação de facto entre os cônjuges, iniciado em 13 de Novembro de 2010.
6.ª - Por força do n.° 1 do art.° 663.° do CPC, incumbia ao tribunal a quo decretar o divórcio sem o consentimento do recorrido, nos termos da alínea a) do art.° 1781.° do CC;
7.ª - A sentença “sub judice” violou, além do mais, os artigos 1672.° e 1781.°, alíneas a) e d), do CC e o artigo 663.°, n.° 1, do CPC.
Pede o apelante que seja revogada a sentença recorrida e decretado o divórcio conforme requerido pelo autor.
6. Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objeto do recurso
Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das con-clusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 684.º, n.º 3, 684.º, n.º 2, e 685.º-A, n.º 1, do CPC, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto.
Dentro desses parâmetros, o objeto do recurso consiste em ajuizar, face à factualidade provada, sobre a verificação dos alegados fundamentos do divórcio:
a) - em primeira linha, quanto à rutura definitiva do casamento;
b) - em segundo lugar, em relação à separação de facto por um ano consecutivo.
III – Fundamentação   
1. Factualidade dada como assente pela 1.ª Instância
Vem dada como provada pela 1.ª Instância a seguinte factualidade:
1.1. Autor e ré contraíram casamento, um com o outro, com convenção antenupcial, em … de 1999;
1.2. A casa de morada de família é atualmente na Rua ….;
1.3. Autor e ré viveram na mesma casa até 13/11/2010.
1.4. Em 13/11/2010, a ré abandonou a . F…, levando consigo a filha menor.
1.5. Autor e ré não comem, não partilham o mesmo leito e não saem juntos desde 13/11/2010
1.6. O autor não tem o propósito de restabelecer a vida em comum com a ré.
2. Convém ainda registar, como contexto processual com algum relevo, o seguinte:  
2.1. Aos autos foi junto o documento de fls. 45 a 53, do qual consta uma sentença proferida, em 19/11/2011, pelo TJH, no processo n.º 3…., instaurado pelo Ministério Público contra SV e AL, com vista à regulação do poder paternal relativamente à menor AD, nascida em 8 de agosto de 2006, filha dos ali requeridos, em que se consignou que, na pendência desse processo, a progenitora se ausentou para o estrangeiro com a filha AD, sem nada comunicar ao tribunal;
2.2. Na referida sentença, foi dado como provado que, no dia 13 de novembro de 2010, a ali requerida desapareceu da Ilha do F…, levando consigo a filha A, mantendo-se desde então incontactável por telemóvel;
2.3. Foi também ali dado como provado que a requerida vive em França, em condições desconhecidas;  
2.4. Na referida sentença, decidiu-se regular o exercício das responsabilidades parentais da menor nos seguintes termos:
a) – as responsabilidades parentais serão exercidas em exclusivo pelo progenitor, com o qual a menor residirá; 
b) – a mãe poderá visitar a menor sempre que o desejar, devendo comunicar tal intenção ao pai, com antecedência mínima de 24 horas e sem prejuízo dos períodos de descanso e estudo daquela;
c) – a mãe pagará, a título de alimentos, a quantia mensal de € 50,00;
d) – em janeiro de cada ano, com início em 2013, a quantia referida em c) será atualizada em 5% ao ano.
3. Do mérito do recurso
Estamos no âmbito de uma ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, duplamente fundada em separação de facto por um ano consecutivo e em rutura definitiva do casamento, ao abrigo do disposto no artigo 1781.º, alínea a) e d), respetivamente, do CC, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, em vigor desde 30/11/2008, e portanto aplicável ao presente processo, instaurado já após essa data.
A decisão recorrida julgou a ação improcedente por considerar não verificada a situação de separação de facto prevista nos artigos 1781.º, alínea a), e 1782.º do CC.
Porém, o apelante contrapõe no sentido de que dos factos provados resulta a verificação de uma situação da rutura definitiva do casamento. E, a par disso, sustenta também que se deve considerar verificada a situação de separação de facto por um ano consecutivo, nos termos previstos na alínea a) do artigo 1781.º do CC, uma vez que esse prazo já se tinha completado à data do encerramento da discussão da causa, o que relevaria nos termos do artigo 663.º do CPC.
Vejamos.
a) – Quanto ao fundamento respeitante à rutura definitiva do casamento
Relativamente ao fundamento estribado na rutura definitiva do casamento, segundo o disposto na alínea d) do artigo 1781.º do CC, relevam quaisquer factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, se traduzam no rompimento da sociedade conjugal sem qualquer propósito de a restabelecer.
O referido normativo, introduzido pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, em vigor desde 30/11/2008, veio consagrar, na nossa ordem jurídica, o designado modelo de “divórcio-constatação da rutura conjugal”, inspirado na “conceção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do matrimónio”[1].
Tal previsão normativa recorta, desse modo, uma facti species ancorada no conceito indeterminado de “rutura definitiva do casamento”, o qual poderá ser preenchido por “quaisquer factos” reveladores dessa rutura.
Nesse conspecto, a aferição do factualismo relevante postula, antes de mais, a determinação do alcance do sobredito conceito indeterminado, de modo a delinear, ainda que sob contornos flexíveis, os seus parâmetros, à luz da ratio legis que lhe está subjacente.
Nesta linha, tem-se vindo a entender que a rutura definitiva do vínculo matrimonial deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respectivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes[2]. Tem-se mesmo acentuado a necessidade de um padrão de exigência nivelado, em termos de sistemática hermenêutica, com as situações previstas nas alíneas a) a c) do citado artigo 1781.º, afora as respectivas especificidades, de forma a prevenir os riscos de algum voluntarismo[3].
Regressando ao caso vertente, dos factos dados como provados colhe-se que:
a) - em 13/11/2010, a ré abandonou a ilha do F…, levando consigo a filha menor.
b) - Autor e ré não comem, não partilham o mesmo leito e não saem juntos desde 13/11/2010;
c) - O autor não tem o propósito de restabelecer a vida em comum com a ré.
É certo que o abandono do lar conjugal, por parte da ré, ocorreu em 13/11/2010 e que a presente ação foi logo intentada em 11/01/2011, ou seja, cerca de dois meses depois, o que poderia levar a concluir que se tratasse porventura de uma situação meramente episódica.
Todavia, ao dar-se como provado que ocorreu tal abandono, e não uma mera saída de casa, esporádica, isso só pode significar que a ré se ausentou com o propósito de não mais regressar ao lar. Aliás, como observa o apelante, o abandono do lar conjugal, por parte de um dos cônjuges, constituía já, no domínio do regime legal pregresso, uma situação objetiva de violação dos deveres conjugais, tida como grave, indiciadora do comprometimento da possibilidade da vida em comum, embora se exigisse então, para além dessa ilicitude, a sua imputação, a título de culpa, ao cônjuge infractor, por via da verificação de inexistência de motivo justificado, o que agora a lei dispensa.
Acresce que, no decurso desta própria ação, nem sequer foi encontrado o paradeiro da ré.   
Por outro lado, embora não se possa trasladar, sem mais, para os presentes autos os factos dados como provados na sentença constante do documento de fls. 45 a 53, o certo é que a regulação das responsabilidades parentais relativas à filha menor do casal, ali decidida, constitui um indício forte de que não existe, por parte, dos cônjuges qualquer propósito de reatar a vida em comum.       
Neste contexto, o próprio propósito do autor de não restabelecer a vida em comum não se traduz numa atitude unilateral meramente subjetiva e voluntariosa, mas encontra respaldo na situação objetiva gerada pelo abandono da ré. Ou seja, em tais circunstâncias, não se mostra exigível ao autor que permaneça atado à virtualidade de um reatamento da vida conjugal, quando nem tão pouco o mesmo propósito se vislumbra por parte da ré.    
Em suma, o abandono do lar conjugal por parte da ré, sem que se verifique qualquer indício sério de reatamento da vida conjugal, afigura-se suficiente para considerar aqui preenchido o conceito de rutura definitiva do vínculo matrimonial.
Perante a factualidade assim provada, a sentença recorrida, limitando-se a equacionar a questão da separação de facto por um ano consecutivo, que teve por não verificada, incorreu em erro de determinação da norma aplicável, ao não reconduzir tal factualidade também ao fundamento previsto na alínea d) do artigo 1781.º do CC.
Termos em que procedem, nesta parte, as razões do apelante.
b) – Quanto ao fundamento da separação de facto por um ano consecutivo
Pretende ainda o apelante que seja considerado, ao abrigo da alínea a) do artigo 1781.º do CC, o fundamento da separação de facto por um ano consecutivo.
Sucede que tal fundamento, embora invocado como causa de pedir concorrente na petição inicial, não ficou factualmente provado nos termos em que vinha alegado.
No entanto, o apelante sustenta que deve ser considerada a superveniência desse prazo à data do encerramento da discussão da causa, nos termos do artigo 663.º do CPC.  
Mas, salvo o devido respeito, não se sufraga aqui tal entendimento.
Não se ignora que alguma doutrina e jurisprudência tem vindo a alinhar naquele entendimento[4]. Porém, ao que supomos, a maioria da doutrina e da jurisprudência vai em sentido contrário, ou seja, no sentido de que o pressuposto da duração temporal da separação se deve verificar à data da propositura da acção.
Com efeito, trata-se de uma disposição de natureza marcadamente substantiva, de resto densificada no n.º 1 do artigo 1782.º do CC, que visa preservar um período de tempo considerado essencial para a consolidação da situação de facto, como que a presumir, juris et de jure, a rutura definitiva do vínculo conjugal, sem envolver, no entanto, a prova específica ou direta desta, como sucede na hipótese prevista na alínea d) do artigo 1781.º[5].
Assim, o pressuposto factual consubstanciado na duração daquele prazo assume aqui a natureza de um facto constitutivo do direito potestativo de requerer o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, essencial para a procedência da acção, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 342.º do CC.   
Ora, o artigo 663.º, n.º 1, do CPC, embora admita a atendibilidade de factos jurídicos supervenientes, mesmo de natureza constitutiva, ressalva, porém, as restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, o que bem se compreende à luz da garantia inerente ao princípio do contraditório.
Nestas circunstâncias, a atendibilidade superveniente daquele pressuposto implicaria a ampliação da causa de pedir, nessa base formulada, que não a sua mera completude ou correção, atentando assim com as garantias do contraditório, o que não é permitido pelo artigo 273.º, n.º 1, do CPC. 
Improcedem, pois, as razões do apelante, não merecendo censura a sentença recorrida, nesta parte.      
IV - Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente apenas quanto ao fundamento da rutura definitiva do casamento, pelo que se decide revogar a sentença recorrida e julgar procedente a acção, declarando-se dissolvido, por divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, o casamento celebrado entre AG e SG, com base no indicado fundamento, devendo, oportunamente, ser comunicada esta decisão à competente conservatória do registo civil.
As custas da acção e do recurso ficam a cargo da R.
Lisboa, 22 de Outubro de 2013
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado   
Rosa Maria Ribeiro Coelho
[1] Vide, a este propósito, o acórdão do STJ, de 09-02-2012, relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Hélder Roque, no processo 819/09.7TMPRT.P1.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[2] A este propósito, vide o acórdão da Relação de Lisboa, de 23-11-2011, relatado pela Exm.ª Juíza De-sembargadora Maria José Mouro, no âmbito do processo n.º 88/10.6TMFUN.L1-2, com as abundantes citações doutrinárias aí citadas, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jjtrl.
[3] Vide as consideração feitas a este propósito no acórdão indicado na nota precedente.
[4] Nesse sentido, veja-se a jurisprudência citada no acórdão da Relação de Lisboa, de 15/05/2012, relatado pelo Exm.º Juiz Desembargador Luís Lameiras, no âmbito do processo n.º 9139/09.6TCLRS.L1-7, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jjtrl.
[5] Vide, neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 15/05/2012, relatado pelo Exm.º Juiz Desembargador Luís Lameiras, no âmbito do processo n.º 9139/09.6TCLRS.L1-7, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jjtrl.