Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9118/2006-3
Relator: RICARDO SILVA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
FUNDAMENTAÇÃO
PRESSUPOSTOS
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
HOMICÍDIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – Os artigos 374.º e 379.º, do CPP, respeitam exclusivamente à sentença, não tendo cabimento a sua invocação relativamente ao despacho que impõe medidas de coacção, o qual está sujeito, em termos de fundamentação, à disciplina geral do art. 97.º, n.º 4, e específica do art. 194.º, n.º 3, do mencionado Código.
II – Como vem sendo decidido pela jurisprudência desta Relação, a falta de fundamentação de decisão que aplicou medida de coacção constitui irregularidade que, para ser conhecida, tem de ser arguida nos termos do art. 123.º, n.º 1, do CPP, sob pena de sanação do vício.

III – Não padece do vício de falta de fundamentação o despacho que, ao decretar a prisão preventiva do arguido logo após o primeiro interrogatório judicial deste, remete para os fundamentos da medida invocados pelo MP na promoção que imediatamente antecede tal despacho e foi objecto do respectivo contraditório, corroborando-os e dando-os por reproduzidos.

IV - O recurso aos meios de coacção em processo penal respeita os princípios da legalidade (arts 29..º, n.º 1, da CRP e 191.º, do CPP), excepcionalidade e necessidade (arts 27.º, n,º 3 e 28.º, n.º 2, da CRP e 193.º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art. 193.º do CPP), como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.

V - Tal significa que a aplicabilidade da prisão preventiva se restringe aos casos em que, verificado qualquer dos requisitos gerais do artigo 204.º e o requisito especial do artigo 202.º, ambos do CPP, as restantes medidas de coacção se mostram inadequadas ou insuficientes.

VI - As medidas de coacção só devem manter-se enquanto necessárias para a realização dos fins processuais que, observados os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, legitimam a sua aplicação ao arguido e, por isso, devem ser revogadas ou substituídas por outras menos graves sempre que se verifique a insubsistência das circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação (art. 212.º do CPP).

VII - Não se nos levantam dúvidas quanto à proporcionalidade da medida de prisão preventiva, quando aplicada aos casos de homicídio, O bem jurídico tutelado pela punição do homicídio é a vida humana e este, no cotejo com o da liberdade do arguido, é-lhe superior. A vida humana é a base de edificação de todos os direitos, neles incluídos os da personalidade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
I.
1. No Inquérito n.º 836/06.9GAALQ, do Ministério Público (MP) de Alenquer, em acto seguido ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado, em 2006/09/09, no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Alenquer, foi, por despacho do Juiz de Instrução (JI), aplicada ao arguido LS, além do mais, a medida de coacção de prisão preventiva.
O despacho referido é, na parte que ora interessa, do seguinte teor (1):
« A detenção do arguido observou o disposto nos artigos 254 a 256 do CPP, pelo que se julga a mesma válida.
« Foi observado o prazo a que se reporta[m os artigos] 28.º, n.º 1 CRP, e 141.º e 254.º, n.º 1, al. a), CPP.
« Valida-se as apreensões uma vez que se mostra observado art.º 178, n.º 1, CPP.
« Valido igualmente a revista uma vez que se mostra observado art.º 174, n.os 1, 4 e 5, e 175.º, CPP.
« Em face dos elementos constantes dos autos, designadamente o auto de noticia de fls. 3 a 5, o auto de revista constitui (sic) fls. 6 e dos autos de declarações de fls. 10 a 11, 12 e 13 a 14 e ainda dos autos de apreensão de fls. 15 a 17 e ainda das declarações do arguido, corrobora-se e dá-se por reproduzida (sic) os fundamentos fácticos, conclusivos e jurídicos expostos pela Digna Magistrada do Mº Público.
« Relativamente ao segundo crime referido pelo Digna Magistrada M.º Publico, a moldura penal em abstracto é de 2 anos e 4 meses a 16 anos e 8 meses.
« Pelo menos, o segundo crime em apreço constitui um ilícito, para alem do que fica dito pela Digna Magistrada do MP, que gera ainda intranquilidade nas populações, daí que seja patente a necessidade de aplicação ao arguido de uma medida [de] coacção para alem do comum TIR.
« Cotejando as medidas de coacção previstas no CPP a as exigências cautelares do caso em apreço afigura-se que a prisão preventiva é, por ora, a única medida adequada e proporcional ao caso em apreço.
« Não é previsível que ao arguido, em sede de julgamento, venha a ser imposta pena não privativa de liberdade, mais sendo [im]previsível face à moldura penal acima referida, a que irá certamente acrescer uma pena pela prática do crime inicialmente qualificado pela Digna Magistrada do M.° Público, que a pena única venha a ser suspensa atento o que se dispõe o art. 50, n.º 1, do C. Penal.
« Acresce que não existem motivos para crer na existência de qualquer causa [de] isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.
« Pelo exposto, determina-se que o arguido aguarde a ulterior tramitação do processo sujeito as medidas de coacção [de] TIR, já prestado nos autos, e ainda a prisão preventiva, por se afigurar que se [são]) estas as adequadas e necessárias, reforça-se, por ora, às exigências cautelares do caso em apreço (art. 193 196, 202. 204, al. b e c).
« (…)»
2. Inconformado com a decisão referida, dela recorreu o arguido LS:
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
« 1°) O despacho recorrido não se encontra fundamentado, de facto e de direito, como é imposto pelo artigo 97º n.º 4 do C.P.P.
« 2°) Tal despacho por tal motivo, é nulo, nos termos do disposto nos artigos 374.º n.º 2 e 379 n.° 1 ambos do C.P.P., devendo, por isso, ser revogado.
« 3°) Acresce que os indícios da prática pelo ora recorrente dos crimes do autos (principalmente o crime de homicídio qualificado sob a forma tentada! são por ora manifestamente exíguos - cfr Princípio de Inocência do arguido.
« Só uma investigação exaustiva e não preguiçosa poderá aquilatar da real intenção do arguido recorrente quando efectuou os disparos que, repita-se, atingiram acidentalmente a sua esposa.
« 4°) Por tal motivo não devia o recorrente ser sujeito à medida de coacção mais grave prevista pelo ordenamento jurídico Português (Prisão Preventiva).
« 5°) Assim, deve o recorrente aguardar os ulteriores termos do processo, sujeito a uma medida de coacção não detentiva da liberdade. O nosso sistema penal ensina-nos que investiga-se para prender e não se prende para investigar.
« 6°) Ao decidir como decidiu, violou o despacho recorrido os artigos 32°, n.º 1,da CRP, 97° n.°4, 193 n.°s 1 e 2, 204 , todos do C.P.P.»
Terminou pelo pedido de revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que permita ao recorrente aguardar em liberdade provisória os ulteriores termos processuais, mediante apresentação diária ou semanal no O.P.C. da área da sua residência, ou, em alternativa, que o sujeite à obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, possibilitando-lhe, contudo, o exercício da sua actividade profissional durante o horário normal de trabalho.
3. Admitido o recurso, o MP apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.
4. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto (PGA) foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu.
6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo decidir.

II.

1. Se considerarmos as conclusões da motivação do recurso, que, como é consabido, atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, as questões postas no mesmo, são as da invocada nulidade do despacho que aplicou a medida de coacção ao recorrente e a da insuficiência de indícios da prática, pelo arguido, dos crimes dos autos, maxime, do de homicídio qualificado na forma tentada.
Porém, ainda que não tenha levado tal tema às conclusões, o certo é que o arguido não deixa de impugnar a verificação dos perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, pelo que voltaremos a estas questões, sendo o caso, por as mesmas constituírem condições necessárias da aplicação de qualquer medida de coacção e não ser, de facto, possível proferir decisão de mérito sobre medidas de coacção sem ponderar tais elementos.
2. Pretende o recorrente que o despacho recorrido não foi fundamentado como impõe o artigo 97.º, n.º 4, do CPP e que, por isso, é nulo, nos termos do disposto nos art.os 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, ambos do CPP.
Há que notar que, como refere o Ex.mo PGA no seu douto parecer, os art.os 374.º e 379.º do CPP respeitam exclusivamente à sentença, não tendo cabimento a sua invocação relativamente a decisão que impõe medida de coacção, que está apenas sujeita à disciplina, geral, do art.º 97.º, n.º 4, e, específica, do art.º 194.º, n.º 3, do CPP.
E que, com vem sendo decidido pela Jurisprudência desta Relação e secção, a falta de fundamentação de decisão da natureza daquela que está em apreço constitui irregularidade que, para ser conhecida, teria de ser arguida nos termos do disposto no art.º 123.º, n.º 1, do CPP, o que, no, caso, não sucedeu, pelo que o acto sempre se teria convalidado. Neste sentido, v. g., os Acórdãos de 2003/07/17 – proc. n.º 5669/03; de 2004/06/30 – proc. n.º 5405/04; e de 31-05-2006/05/31 – proc. n.º 4309/06, todos da 3.ª secção.
O Tribunal Constitucional (TC), em recurso – ainda actual – que versava sobre situação quase idêntica à dos presentes autos e no qual, além do mais, o recorrente invocava a inconstitucionalidade das normas dos art.os 97.º, n.º 4, e 197.º, n.º 3, ambos do CPP, quando invocadas no sentido de que elas autorizam a simples remissão para as razões invocadas pelo MP noutro momento processual anterior, achando-se com ela preenchido o dever constitucional de fundamentação das decisões que decretam a prisão preventiva, negou provimento ao recurso e afirmou que a norma do art.º 123.º, n.º 1, do CPP não viola o art.º 250.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) nem qualquer outra que assegure os direitos de defesa do arguido. Escreveu-se então: «O erro do recorrente parece aqui residir no facto de entender, por um lado, que as exigências de fundamentação expressas no CPP, porventura impeditivas da fundamentação por remissão, se convertem em exigências constitucionais e, por outro, que a nulidade é o único nível de desvalor admissível para qualquer tipo de deficiência sem que se deva ter em conta se ela atinge, e em que grau, a razão de ser e o fim último da imposição constitucional.» (2)
3. Acresce que o despacho recorrido não é, em nosso entender omisso de fundamentação. Nele se declarou corroborar-se e se deram como reproduzidos os fundamentos expostos pela Magistrada do MP, na promoção que antecedeu o dito despacho (3), a qual foi, aliás, objecto do exercício de contraditório pelo defensor do arguido.
Ora, tal promoção é muito circunstanciada, quer quanto à análise da prova e das declarações do arguido, no sentido de concluir pela indiciação de facto, quer quanto à qualificação jurídica dos factos indiciados, quer, ainda, quanto aos fundamentos de aplicação das medidas de coacção propostas.
A estas razões acrescentou, ainda, o Ex.mo Juiz prolator do despacho, os seus próprios argumentos, na parte não coberta pela promoção cujos fundamentos fez seus.
Tudo isto resulta claramente do auto de interrogatório de arguido, já que não existe uma solução de continuidade física, nos actos processuais, entre o interrogatório propriamente dito, a promoção do MP, o contraditório do defensor e o despacho do JI. Tudo são actos encadeados, consignados num único auto, firmado a final pelos intervenientes.
Ora, assim sendo, quando as razões de um despacho já constam, na forma de fundamentos da promoção que o antecede, do auto em que mesmo despacho vai ser exarado, não faz muito sentido, até por razões de celeridade e economia, reproduzir as mesmas razões – ainda que, onde o possa ser, por outras palavras – com o único propósito de assegurar a correcção meramente formal de um despacho. Correcção formal a qual ninguém poria em dúvida estar garantida, se, em vez de, nele, se terem dado por reproduzidos os fundamentos da promoção, se tivesse recorrido à reprodução escrita, ainda que ipsis verbis, de tais fundamentos. Porque ao Juiz não está interdito usar as formas de expressão de outrem, na afirmação dos motivos que tem como válidos.
Que saibamos, não proíbe expressamente a lei, que, em peças processuais, sejam reproduzidas outras peças, que, assim, passam a integrar a primeira. Por razões de celeridade – justificáveis, sobretudo, no tempo em que os autos eram manuscritos ou tipografados – estabeleceu-se a praxe de, em vez de se proceder à reprodução, se assinalar, simplesmente, que tal ou tal trecho ou documento, se dava como reproduzido, no local em causa, passando tal fórmula a valer pela inserção das peças propriamente ditas, que passavam a fazer parte daquela em que isso acontecia, apenas pela referência para os originais.
Os inconvenientes desta técnica são os de a peça em que ela se pratica, para estar completa, dever ser acompanhada de todos os trechos e documentos originais para onde remete e de poder acontecer que mediante múltiplas remissões, a própria peça se tornar inextricável ou de leitura muito árdua.
Por isso, em peças decisórias, em que a clareza é vital, a fundamentação por remissão se tem por incorrecta. É patente o risco de a decisão acabar por ser transmitida truncada de elementos que lhe servem de fundamento, vitais para a sua compreensão, o que, à la longue, acaba por trazer enormes transtornos.
Mas isso não se passa no caso presente em que o despacho decisório e a promoção para que remete estão juntos como irmãos siameses, quer no processo, quer acompanhando-se sempre que forem emitidas certidões do “auto de primeiro interrogatório de arguido detido”.
Também para o direito de defesa do arguido não resulta nenhuma perda pelo uso da técnica em questão, já que tudo se passa num período temporal condensado, em que o arguido tem percepção directa e sucessiva quer dos argumentos e demais termos da promoção, quer da decisão que para ela remete, com a vantagem de, no mesmo lapso de tempo, se poder pronunciar sobre a promoção do MP, admitindo ou impugnado os factos, comentando a sua qualificação jurídica, opondo—se, porventura, às medidas de coacção pedidas e adiantando a sua própria visão de todos estes vectores: factos ocorridos, crimes verificados e medidas de coacção a aplicar.
Ora, para concluir, confrontado o despacho recorrido e os fundamentos da promoção para que remete e que dá como reproduzidos, há que conceder que não lhe falta fundamentação, concorde-se ou não com ele.
4. Impugna o recorrente a existência de indícios da prática, por ele, de um crime de homicídio qualificado tentado. Para isso, remete-se para a tese de que os disparos, por si feitos, atingiram acidentalmente a vítima, sua mulher.
Porém, os elementos que constam dos autos, referidos, aliás, na fundamentação do despacho recorrido, apontam de forma clara para que o arguido tenha disparado voluntariamente contra a sua mulher (e não para o ar).
Disse o ora recorrente, no interrogatório que precedeu o despacho recorrido, que disparou para o ar – quatro vezes –, a três ou quatro metros da vítima, quando corria atrás dela.
Mas esta versão não encaixa minimamente com a averiguação dos factos disponível nos autos. Desde logo, se o recorrente apenas quisesse assustar – que outro fim poderiam ter os disparos para o ar, numa situação de conflito ? – não se justifica que ele continuasse a correr atrás da mulher enquanto disparava! A confessada correria no encalço da mulher deixa entrever mais do que a mera intenção de pregar um simples susto.
Além disso, a versão do recorrente deixa por explicar como é que a mulher foi atingida pelos disparos na face. E, ao que parece, mais do que uma vez! Resulta dos elementos cínicos hospitalares juntos ao processo que a vítima apresentava dois ferimentos, na cara: um, com projéctil, ao nível da região supramentoniana e outro, sem projéctil, ao nível da região nasal (cfr. fls. 85).
Que o recorrente no momento dos disparos se encontrava com ânimo de agredir, resulta dos depoimentos das testemunhas AM (fls. 63) e NS – filho do recorrente – (fls. 66). E que ele, nessa altura, não encarou o sucedido como um acidente, está patente no facto de, logo a seguir, se ter refugiado em casa, furtando-se ao contacto com a força da GNR que tomou nota da ocorrência, como consta do respectivo auto de notícia.
Nestas circunstâncias é legítimo estabelecer a presunção de facto de que o recorrente agiu com intenção de por termo à vida da vítima, ou pelo menos de lhe causar ofensas físicas graves, em resultado das quais eventualmente, pudesse sobrevir a morte da atingida, já que tal resultado é normal e frequente em idênticas situações, o que é bem conhecido da generalidade das pessoas com um conhecimento normal das coisas, não havendo motivo para pensar que o não fosse do recorrente.
Há, assim, em resumo, indícios fortes da prática, pelo arguido, ora recorrente, de um crime de homicídio tentado.
Já é muito duvidoso que o homicídio tentado venha a ser qualificado nos termos do disposto no art.º 132.º do CP, sendo certo que não é de excluir que o possa vir a ser, dependendo das circunstâncias, em que decorreu a acção, que vierem a apurar-se.
Em todo o caso, por ora, sufragamos, apenas, a existência de indícios da prática de um homicídio tentado simples, punível com a pena de 1 ano 7 meses e 6 dias a 12 anos de prisão.
Já quanto ao crime de detenção de arma proibida – art.º 3.º da Lei 5/06 de 3/2, com referência ao art. 2.º, n.º 1, al. o) e t), – não há qualquer dúvida quando à fortíssima indiciação da sua prática pelo recorrente. O argumento de que o recorrente iria legalizar a arma é pueril!
5. Não há dúvida de que as molduras penais aplicáveis aos dois crimes cuja autoria, em concurso, efectivo, está indiciada na acção do recorrente suportam – tendo-se presentes as regras da punição do concurso –, em abstracto, a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto no 202.º, n.º 1, al. a), do CPP. Suportá-la-ia, de resto, sempre, a pena individualmente aplicável ao crime de homicídio tentado.
Quanto ao mais,
O recurso aos meios de coacção em processo penal respeita os princípios da legalidade (art.os 29.º, n.º 1, da CRP e 191.º do CPP), excepcionalidade e necessidade (art.os 27.º, n.º 3 e 28.º, n.º 2, da CRP e 193.º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art.º 193.º do CPP), como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32.°, n.° 2, da Constituição.
Esta natureza significa que a aplicabilidade da prisão preventiva se restringe aos casos em que, verificados qualquer dos requisitos gerais do artigo 204.° e o requisito especial do artigo 202.°, ambos do CPP, as restantes medidas de coacção se mostram inadequadas ou insuficientes.
As medidas de coacção só devem manter-se enquanto necessárias para a realização dos fins processuais que, observados os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, legitimam a sua aplicação ao arguido e, por isso, devem ser revogadas ou substituídas por outras menos graves sempre que se verifique a insubsistência das circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação (artigo 212.° do CPP).
Não se nos levantam dúvidas quanto à proporcionalidade da medida de prisão preventiva, quando aplicada aos casos de homicídio. O bem jurídico tutelado pela punição do homicídio é a vida humana e este, no cotejo com o da liberdade – do arguido é-lhe superior. A vida humana é a base de edificação de todos os direitos, neles incluídos os da personalidade.
Já quanto à necessidade, há que ver:
– Não se nos afigura que exista um importante receio de fuga, do arguido recorrente, O perigo de fuga tem de ser objectivo e a fuga, hoje, com o incremento da cooperação internacional em matéria penal, torna-se mais difícil para as pessoas comuns. Não há nos autos elementos concretos de que o arguido possa ou tenha intenção de tentar fugir.
– Também os perigos de perturbação do decurso do inquérito, ou para a aquisição, manutenção ou veracidade da prova, não são patentes.
– Já os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas existem e são graves. O arguido recorrente mostra, através da acção que os autos indiciam, um temperamento violento e descontrolado. As explicações que deu para os seus actos resumem-se em motivos fúteis Os crimes relacionados com a violência doméstica, apresentem a temível característica de se manifestarem reiteradamente, com os mesmos intervenientes, de forma sucessivamente mais grave, até aos desfechos mais trágicos, como quase foi o caso, no dos presentes autos. E o arguido não deu mostras de qualquer sentido crítico ou contrição, relativamente à acção indiciada.
Acresce ao já dito que não existem, no caso, outras medidas de coacção que, em lugar da prisão preventiva, possam obstar à continuação criminosa. A própria detenção domiciliária, vistas as relações familiares entre arguido e vítima, está excluída, por natureza.
Face ao que, estão preenchidas as condições de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva previstas nos art.os 193.º, n.º 2, e 204.º, al. c), ambos do CPP.
III.
Termos em que, acordamos em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Condena-se o recorrente no pagamento de 4 UC.
Lisboa, 2006/01/17
(Ricardo Silva)
(Rui Gonçalves)
(João Sampaio)



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1.-Deixou-se, tanto quanto possível, intacto o texto do despacho, tal como consta do respectivo auto, tendo--se retocado, apenas, o que se considerou ser manifesto lapso e só na medida indispensável a possibilitar uma leitura coerente do mesmo despacho.

2.-Cfr. o Acórdão do TC n.º 14700, de 21 de Março de 2000 Proc. nº 56/00, 1ª Secção, Relator: Consº. Artur Maurício, com um voto de vencido, consultável em http/W3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos00/001/200/14700.htm

3.-Promoção essa com o seguinte teor: «Indiciam os autos fortemente e desde já a pratica pelo arguido da autoria material e sob a forma consumada de um crime previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.º 3.º da Lei 5/06 de 3/2, com referência ao art. 2.º, n.º 1, al. o) e t), do mesmo diploma legal e ainda, em concurso real e sob a forma tentada de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.os 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Com efeito não se admite como crível a versão trazida aos autos pelo arguido no que concerne, designadamente, à ausência de intenção de atingir a sua esposa pois que os disparos para o ar que diz ter efectuado não seriam adequados a atingi-la na zona do rosto como veio a acontecer. Acresce que o seu depoimento também não é coincidente com a versão que foi trazida aos autos pelas testemunhas já inquiridas, designadamente quando estas referem que o arguido efectuou um último disparo, já sem munições, em direcção ao seu filho.
Assim, atendendo às características da arma utilizada pelo arguido, à zona do corpo atingida e à direcção do disparo, mostra-se, como se referiu, fortemente indiciada a intenção dolosa do homicídio.
Entendemos ainda, que o mesmo deve ser qualificado nos termos do art.º 132.º C. Penal porquanto as razões apresentadas pelo arguido não se mostram minimamente adequadas a justificar o acto quer porque carecem em si de fundamento quer porque o mesmo não se encontrava no momento sob a ameaça de um perigo que justificasse qualquer tipo de ofensa, designadamente com uma arma de fogo, acresce que as circunstâncias elencadas nos n.º 2 do 132.º, não revestem carácter taxativo pelo que é igualmente relevante para considerarmos especial censurabilidade da conduta o facto de ter disparado contra a sua própria esposa.
Relativamente aos restantes factos descritos que pudessem eventualmente integrar ilícito criminal cumpre referir que importa realizar ulteriores diligências de inquérito com vista a apurar se o arguido conhecia ou não que a arma já não dispunha de munições ao momento em que efectuou o disparo contra a pessoa do seu filho e quais as circunstâncias em que entrou na posse da faca que lhe foi apreendida. Por outro lado poderá ainda a vir ser exercido procedimento criminal, caso o lesado exerça o seu direito de queixa, relativamente aos factos reveladores de um crime de ameaças previsto e punido pelo art.º 153.º Código Penal.
Todo o circunstancialismo descrito nos autos torna evidente que nenhuma outra medida de coação à excepção da prisão preventiva poderá assegurar as exigências cautelares que o caso requer.
Com efeito, das razões já aduzidas afigura-se-nos que a personalidade revelada pelo arguido oferece perigo de repetição de actos idênticos, para que (sic) a própria natureza dito crime e forma como foi cometido indiciam ainda perigo concreto de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, caso o arguido permaneça em liberdade.
A prisão preventiva é aplicada à situação, atenta a moldura penal abstracta que os crimes oferecem e existência dos perigos enunciados pelo que é adequada e proporcional à sua gravidade.
Idênticas razões de facto e de direito fazem prever que em julgamento venha a ser aplicada ao arguido uma prisão efectiva.
Termos em que se requer a sujeição do arguido a TIR e prisão preventiva, ao abrigo dos art. 191.º a 193.º e 196.º, 202.º. e 204.º, al. c), todos do CPP.»