Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1939/20.2T8AMD.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE
PESSOA FALECIDA
DIREITO À IMAGEM
FOTOGRAFIA
PUBLICAÇÃO
CONSENTIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O conceito de retrato a que alude o art. 79.º do CC, abrangendo, entre outras, a forma de fotografia, é composto por dois elementos:
- a representação ou reprodução visual ou visível da imagem humana; e
- a recognoscibilidade,
isto é, a reprodução ou representação visual da configuração exterior atual ou passada de uma pessoa, que permita a sua identificação ou reconhecimento, tratando-se, por isso, enquanto conceito integrante do direito à imagem, de um bem de personalidade fortemente objetivado.
2. O direito à imagem constitui um direito de personalidade, absoluto, como os demais direitos de personalidade, pois que não se lhe contrapõe um dever jurídico de pessoas determinadas mas antes uma obrigação universal, com uma dupla componente, positiva e negativa, podendo ser definido:
- na sua componente positiva, trata-se do direito que confere às pessoas a faculdade exclusiva de reprodução, difusão ou publicação da sua própria imagem, com caráter comercial ou não; e,
- na sua componente negativa, trata-se do direito que cada pessoa tem de impedir que um terceiro possa praticar esses mesmos atos sem a sua autorização.
3. A exigência do consentimento justifica-se para proteger a privacidade e a intimidade, assim como o bom nome e a reputação da pessoa, ao mesmo tempo que se pretende limitar a exploração comercial e lucrativa da imagem alheia, devendo as receitas resultantes dessa exploração ser auferidas pelo próprio visado.
4. Sob a proteção do art. 79.º está, não apenas a reprodução do retrato como também a fixação, representação ou reprodução da imagem, assim como qualquer forma de divulgação da mesma, devendo considerar-se retrato, logo sujeita ao consentimento do titular, ou no caso de pré-falecimento deste, das pessoas designadas no n.º 2 do art. 71.º, toda a representação ou fixação da imagem, isto é, a atribuição de suporte, independentemente da técnica utilizada, entendendo-se por exposição do retrato a sua apresentação a um universo de pessoas.
5. Por “lançamento no comércio” do retrato deve entender-se o seu aproveitamento económico, cabendo ao retratado, ou, sendo o caso, às pessoas designadas no n.º 2 do art. 71.º, os termos em que deve ser economicamente aproveitada a sua imagem.
6. Para efeitos de dispensa do consentimento, nos termos do n.º 2 do art. 79.º, em função da notoriedade do retratado, considera-se notória a pessoa que é conhecida pelos indivíduos de um determinado ambiente, pela sua profissão ou cargo desempenhado, seja de âmbito universal, nacional, regional ou local.
7. O titular, a pessoa retratada, ou os seus sucessores, têm, no entanto, o exclusivo de aproveitamento económico da sua imagem, independentemente da sua notoriedade, inexistindo causa justificativa de dispensa do seu consentimento para o aproveitamento económico da sua imagem pela simples razão de ser uma pessoa com notoriedade.
8. No entanto, o n.º 2 do art. 79.º estipula ainda que o consentimento é dispensado quando assim o justifiquem, além de outras, “exigências culturais”, nas quais se incluem as finalidades artísticas.
9. Enquanto que a notoriedade da pessoa retratada e o próprio enquadramento do retrato constituem circunstâncias objetivas de dispensa do consentimento, a “exigência cultural” constitui uma circunstância finalista de tal dispensa, sendo possível conceber-se que a mesma utilização de um retrato prossiga finalidades culturais e artísticas e, simultaneamente, configure uma situação de aproveitamento económico desse mesmo retrato.
10. A publicação e colocação para venda ao público, pela editora 2.ª requerida, de um livro composto essencialmente por fotografias da autoria da 1.ª requerida, também autora do livro, nas quais António Variações aparece retratado nas mais variadas poses, configurando um ato cultural, prossegue também finalidades artísticas, não podendo, no entanto, simultaneamente, deixar de configurar uma situação de aproveitamento económico dos diferentes retratos.
11. É que a publicação do livro em causa, prosseguindo finalidades culturais e artísticas, sendo posto em venda no mercado pelo preço de € 35,00, não pode deixar de representar também um aproveitamento económico dos retratos de António Variações, os quais constituem, por assim dizer, a “alma” do livro, aquilo que “chama” o público a comprá-lo, aquilo que, à partida, nomeadamente para a editora, asseguraria um determinado número de venda e exemplares.
12. Deve, por isso, atender-se às finalidades prevalecentes, só havendo dispensa de consentimento do retratado, ou dos seus sucessores, para o aproveitamento económico de um retrato quando as finalidades culturais sejam manifestamente predominantes, surgindo o aproveitamento económico como um corolário inerente à sua prossecução: é o que sucede no caso concreto.
13. Não obstante algumas das fotografias publicadas no livro retratarem o peito, o abdómen, as pernas, as nádegas e exibirem o contorno do sexo de António Variações, mas sem o exibirem ou ultrapassarem os limites do nu integral, daí não decorre prejuízo para a sua honra, reputação ou simples decoro, nos termos e para os efeitos do n.º 3 do art. 79.º, pois elas correspondem à imagem pública dele enquanto vivo, constituindo um tributo ao artista e ao homem que ele foi em vida, com um estilo peculiar e uma ideia de liberdade muito próprios.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO:
JR intentou a presente ação especial de tutela da personalidade contra TP[1] e L, S.A.[2], alegando, em suma, que é irmão e herdeiro de AR, artisticamente conhecido pelo pseudónimo “AV”.
Nas primeiras semanas do mês de outubro de 2020, teve conhecimento, pela comunicação social, que a 1.ª requerida havia publicado um livro com base na sua convivência com AV, que incluía muitas fotografias do seu irmão, cuja divulgação não foi comunicada ou autorizada por si na qualidade de mandatário dos restantes herdeiros, existindo uma apropriação ilegítima do nome artístico daquele com fins comerciais.
O livro foi editado pela “OL”, propriedade 2.ª requerida, estando à venda no mercado pelo preço de 35 euros.
Nesse livro constam fotografias íntimas de AV, sobretudo retratos e imagens constantes do capítulo “O Corpo”, que são da vida íntima e do foro privado do seu irmão.
Tais imagens ofendem gravemente a memória, a honra e dignidade do seu irmão, tendo chocado e revoltado profundamente os seus herdeiros, pela exploração comercial da figura deste.
As requeridas agiram por meros interesses económicos e financeiros, para obterem lucros e proventos à custa da imagem de AV.
Além disso, nas últimas semanas a 1.ª requerida tem participado em programas de televisão a promover a obra e tem permitido a exibição pública das imagens da vida íntima de AV.
Conclui assim:
«Termos em que e nos mais de direito, ao abrigo dos artigos 70º a 80º do CC e 878º do CPC, vem o requerente requerer que o tribunal decrete as seguintes providências para atenuar e fazer cessar a ofensa aos direitos de personalidade de AR, publicamente conhecido como “AV”:
A) Sejam as Requeridas notificadas da proibição expressa de publicarem novas edições da obra;
B) Sejam as Requeridas notificadas para recolherem todos os exemplares da obra que estejam em stock e nas livrarias distribuidoras, e na posse da Requerida TP, fixando-se prazo e sanção pecuniária compulsória;
C) Seja a Requerida L, como Editora, notificada para vir aos autos identificar os nomes, proprietários e moradas das Livrarias distribuidoras, fixando-se prazo e sanção pecuniária compulsória;
D) Seja determinada a proibição de reproduzir, por qualquer meio, qualquer imagem inserida na obra, nomeadamente através dos meios da Comunicação Social.»
*
As requeridas apresentaram contestação na audiência, conforme estipulado no art. 879.º, n.º 1, do C.P.C., alegando, também em síntese, que a obra não é ofensiva da memória, honra ou dignidade de AV, mas uma homenagem ao artista que marcou a música e a cultura dos anos 80 em Portugal, que ficou na memória dos portugueses pelas suas letras e interpretação, imaginário visual e afirmação da personalidade e imagem contra barreiras e preconceitos morais, alguém à frente do seu tempo.
Tratava-se de um artista que entendia o corpo como parte da arte, sem pudor, uma verdadeira extensão da música que afrontava a mentalidade da época.
O livro da 1.ª requerida é uma obra de arte, nela constando fotografias de AV para as quais o artista pousou, colocando-se no cenário que ela criou, vestindo-se para a mesma, não sendo fruto do momento, mas de um projeto estético-visual da fotógrafa.
A 1.ª requerida era amiga, agente e fotógrafa de AV, tendo-o acompanhado de perto entre os anos de 1981 e 1984.
As fotografias tinham como fim a sua exposição pública, quer para promoção artística de AV quer para o fim que a 1.ª requerida entendesse mais adequado.
As fotografias fazem parte de um grande espólio que foi guardado mais de 40 anos, sendo agora publicadas num livro que visa homenagear o seu amigo e celebrar a sua obra, longe da exploração do corpo.
O lançamento do livro não foi uma surpresa uma vez a utilização das letras dos temas de AV foi autorizada e a requerida pagou pela sua utilização, montante que foi distribuído pelos herdeiros.
Algumas das fotografias da 1.ª requerida, que estavam em casa de AV e nas quais este se exibe de forma similar às agora contestadas, foram encontradas pela família e colocadas em leilão, sem qualquer referência à fotógrafa, sem lhe pedir autorização ou pagar qualquer direito autoral, tendo rendido à família cerca de 35.000,00 euros.
O livro não traz qualquer prejuízo à honra, reputação ou decoro de AV, sendo a exaltação da estética da fotógrafa e do modelo, um complemento da música.
Concluem pugnando pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição dos pedidos.
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Após a realização da audiência foi proferida sentença, que julgou a ação improcedente e absolveu as requeridas dos pedidos.
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Inconformado, o requerente interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1ª O presente Recurso vem da douta Sentença que “julga a presente acção improcedente e, em consequência, absolve as Rés dos pedidos formulados.” e, mais concretamente, vem da síntese da fundamentação, quando o Meritíssimo Juiz “à quo” sustenta que “ as fotografias não constituem uma forma de devassa, não causam qualquer prejuízo para a honra, reputação e decoro de AV nem constituem uma ofensa à dignidade dos parentes e herdeiros”.
2ª – A matéria de facto que o Tribunal “a quo” deu como assente, está condensada nos números 1 a 34 do capítulo IV (Matéria de facto), que aqui se dá por inteiramente reproduzida para todos os efeitos legais. O Tribunal “a quo”, nesta matéria, sintetizou os depoimentos das testemunhas que, no essencial, vertem o que disseram em Tribunal; no que se refere às Testemunhas das RR. todas disseram ser “amigas” da R. TP, algumas delas “amigas íntimas” como declararam; aliás, no que se refere à testemunha MG, o seu depoimento tem de ser apreciado à luz do seu interesse directo na causa, uma vez que é Co-Autora da obra dos autos, tendo celebrado com a R. L uma contrato de edição, pelo que tem interesse económico na divulgação e venda da obra.
3ª – Os pontos 8, 9, 10 e 11 não constituem propriamente matéria de facto, mas tão simplesmente a reprodução de excertos de textos da obra editada pelas RR., ou seja, um conjunto de afirmações imputadas à R. TP, que não foram sindicadas pelo Tribunal nem foram objecto de prova, tanto mais que nem sequer fazem parte ou alguma vez podiam fazer parte da causa de pedir.
4ª – A selecção destes textos tem como único propósito sustentar, alegadamente, uma tese: a tese que o Meritíssimo Juiz “a quo” sustenta, não baseado em factos objectivos mas em opiniões, em teses académicas ou sensibilidades, sejam estéticas sejam culturais..
5ª – Não merecem censura os factos alinhados nos artigos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 31º, 32º, 34º; pelo contrário, merecem censura todos os outros factos, porquanto:
a) No facto 3, o Tribunal comete um erro manifesto uma vez que a “primeira edição” do livro dos autos não ocorreu em Março de 2003 mas somente em Outubro de 2020, quando foi lançado no mercado, como confessam as RR. no ponto 39º do seu articulado; a referência a Março de 2020 é apenas uma data de capa e não o lançamento no mercado. Aliás, a escolha daquela data não é inocente! A notoriedade de AV teve um incremento enorme ao longo de 2019 e 2020 com a realização de vários espectáculos, homenagens e eventos, que são do conhecimento público, para além do filme “V…” dado à luz em Agosto de 2019; por outro lado, em Setembro de 2020 foi publicada outra biografia ilustrada, da autoria do jornalista BH, pela Editora P, facto também do conhecimento público; nessa altura as RR. encontraram a melhor oportunidade de lançamento da obra, aproveitando a onda e para não se sentirem ultrapassadas, visando o maior ganho comercial.
b) No facto 18, o Tribunal dá como assente que AV “gostava do seu corpo e que não tinha vergonha de o mostrar em público”! Trata-se de uma conclusão que não assenta em prova produzida, antes pelo contrário; AV ao longo da sua curta carreira artística mostrou partes do seu corpo que, de forma alguma se podem confundir, aproximar ou assemelhar com as partes do seu corpo publicadas pelas RR., no capítulo “O Corpo”.
c) No facto 19, o Tribunal faz uma apreciação ousada quando refere “discotecas e bares amigos da comunidade gay” sem identificar quais são ou foram as discotecas e bares desse tipo, ainda por cima com uma marca manifestamente discriminatória; que AV participava em festas temáticas, vestindo-se de acordo com o seu imaginário estético – visual não se contesta, tudo o resto é especulação.
d) Quanto aos factos 20 e 21, o Tribunal parte de suposições e não de factos concretos; tendo AV iniciado a sua vida artística em 1981, com a gravação do maxi-single “Estou Além”, é sabido que nessa altura AV tinha um agente artístico e não a TP que só aparece na vida do António mais tarde, mais concretamente em 1982, por altura do lançamento do seu Maxi-single, como a própria R. confessa na sua obra.
e) Quanto aos factos 22 e 23, o Tribunal extraíu meras conclusões que não foram objecto de produção de qualquer prova; nenhuma testemunha depôs sobre essa matéria.
f) Quanto ao facto 24, o Tribunal não refere que a TP tinha a fotografia como hobby como foi referido pelas testemunhas e ela própria reconhece, ou seja: não era fotógrafa, não tinha carteira profissional; o título ou profissão de fotógrafo só se prova mediante a apresentação de uma carteira profissional; como amador,a o seu “domínio da técnica fotográfica” era, por natureza, incipiente, ou seja, próprio de alguém que é amador; o que neste facto é incontestavelmente verdade é que AV “escolhia as roupas e adereços, vestia-se e posava” segundo os seus próprios conceitos estéticos e não por orientação da TP, que não tinha capacidade profissional para o feito; aliás, é sintomático o depoimento da testemunha MR que, de uma forma espontânea, disse que AV é que a “mascarou e que a produziu”, quando fizeram a sessão de fotos na casa de AV, algumas delas publicadas na obra dos autos; AV é que tinha um avançado sentido estético e não a TP; esta limitou-se a captar as imagens que AV produzia!
g) Os factos 25 e 26 são meras conclusões que assentam no testemunho de uma única testemunha e como tal não podem constituir só por si prova suficiente; essa testemunha não identificou nenhuma das fotografias que alegadamente lhe foram apresentadas ou que se destinavam a “preparar a imagem de um eventual futuro álbum musical”; são meras suposições. Tanto assim que nenhuma das fotografias em discussão nos autos, supostamente da autoria da TP, foram usadas nos 2 álbuns produzidos por AV “Anjo da Guarda” (1983) e “Dar e Receber” (1984)!
h) O facto 27 é capcioso na medida em que o Tribunal não refere, como resulta da prova produzida, que, com excepção das fotos do capitulo “O Corpo” da obra dos autos, todas as outras fotografias faziam parte do espólio de AV e foram encontradas pela família na sua casa, sem indicação de qualquer autoria!
i) Quanto ao facto 28, o Tribunal alude as fotografias de tronco “descoberto”, como se isso fosse uma conduta imoral ou provocadora; do referido álbum apenas consta uma foto, em pose artística, em que AV mostra o corpo da cintura para baixo, usando uma “cueca” em que o sexo masculino se percebe; não é aceitável fazer uma generalização; aliás, muitas pessoas so sexo masculino já na altura usavam e usam fatos de banho tipo “tanga” que deixam perceber o órgão sexual masculino sem que isso alguma vez fosse ou seja considerado provocador ou sequer ousado!
j) Quanto aos factos, 29 e 30 o Tribunal não é rigoroso na medida em que não refere que a providência cautelar caducou, como foi alegado e não contestado, uma vez que a TP não intentou a acção principal, da qual dependia a providência cautelar e, por isso, nunca provou, em sede judicial, ser a autora das alegadas fotos!
k) Quanto ao facto 33, o Tribunal também não é rigoroso na medida em que não refere que a “autorização” para a utilização das letras dos temas de AV foi dada “a posteriori”, ou seja, após a obra ter sido publicada, pela intervenção da publisher de AV, RM, Ldª.! Basta compulsar o doc. 20, junto com a Contestação.
6ª – Quanto aos factos não provados, o Tribunal de forma alguma pode dar como não provado que “AV era uma pessoa reservada e tímida” quando é a própria R., TP, que o afirma e confessa na própria obra e várias testemunhas se referiram a essa característica da personalidade de AV; basta compulsar a obra e a síntese dos depoimentos constante da Sentença; dar como não provado que era uma pessoa “avessa a exibicionismos” é uma contradição absoluta; uma coisa é ser exuberante, excêntrico, criativo, outra coisa é ser exibicionista; uma única testemunha disse que era exibicionista; todas as outras afirmaram o contrário!
7ª – O Meritíssimo Juiz “a quo”, para fundamentar o seu aresto, partiu de pressupostos, conclusões, suposições, conceitos e teses, que de, forma alguma assentam na factualidade provada e, sobretudo, no que é público e notório quanto a vida e personalidade de AV.
8ª – Com o devido respeito, uma Sentença Judicial não se pode fundamentar em sensibilidades, conceitos estéticos, vanguardistas ou conservadores, “opinion makers”, teses e muito menos em “amigos” da principal R., TP, que, por razões meramente economicistas, encontrou, ao fim de 36 anos, a melhor oportunidade para “publicar” fotos íntimas do seu “amigo”  AV, traindo a sua confiança e a sua personalidade que descreve, ela própria, como “secreto, discreto”.
9ª – Desde logo, se põe a questão: as fotos do capítulo “O Corpo” não representam exactamente esse lado “secreto, discreto” de AV, que ele queria preservar a todo o custo, não misturando a sua vida íntima, secreta, com a sua vida artística, de cantor/compositor? Esta é a contradição que o Tribunal ignorou completamente.
10ª – Da douta Sentença quase se pode concluir que AV, como frequentava “discotecas e bares amigos da comunidade gay” – ainda que não haja a ousadia de se referir à orientação sexual de AV – tudo é permitido quanto à “exploração” das imagens do seu corpo!
11ª – Com o devido respeito, o Tribunal “a quo” recorre a curiosas asserções, sensibilidades, estéticas e culturais, teses e conceitos para fundamentar a sua decisão, ao arrepio dos mais elementares direitos à imagem e personalidade de pessoas já falecidas, “in casu” de AV, falecido há quase 37 anos! Será que a notoriedade tudo justifica, tudo desculpa, tudo limpa? De forma alguma!
12ª – Elencam-se algumas delas que, na óptica do A., são inaceitáveis, nomeadamente:
a) “a primeira constatação é a de que o livro é uma manifestação de liberdade de expressão e criação artística de TP, com base em fotografias captadas por si, utilizando o domínio da técnica fotográfica e do seu gosto pessoal. Não sendo a questão da propriedade das fotografias o objecto deste litígio, a obra realizada e as próprias fotografias não deixam de ser o produto de uma ideia, de uma técnica, de um gosto pessoal da própria TP, sendo a manifestação da sua própria personalidade, protegido constitucionalmente nos termos supra expostos.”; afirmar que o livro “é uma manifestação da liberdade de expressão e criação artística de TP” é, com o devido respeito, uma conclusão ousada que não cabe em facto algum; é sabido que TP era uma profissional de seguros que tinha como hobby a fotografia; não tem nem nunca teve qualquer capacidade para “criar” qualquer obra; limita-se a apresentar à editora um conjunto de fotografias de AV, supostamente da sua autoria e propriedade e a editora, com a perspectiva de obter um lucro fácil, face à crescente notoriedade de AV, convida a escritora MG, que já tinha editado uma biografia de AV, para compor os textos, com base na narrativa de R. TP e dar um enquadramento literário ao projecto; ficou provado que a TP, como amadora que era, limitava-se a captar as imagens que AV produzia, de acordo com o seu próprio recorte estético e gosto pessoal, mas nunca da TP, sem qualquer habilitação profissional para o efeito. Conclusão: esta primeira asserção assenta em pressupostos errados e é totalmente ilegítima. b) “Algumas das fotografias foram captadas para criarem imagens que pudessem acompanhar o suporte fonográfico e divulgar publicamente o retrato e o projecto musical e estético-visual do artista. E isso acabou por acontecer. Algumas das fotografias foram apresentadas por AV à empresa discográfica. Estas fotografias ajudaram a criar o ideário gráfico do artista, e algumas foram adquiridas à artista.”; esta asserção é totalmente fantasmagórica uma vez que nada foi provado nesse sentido; como é público e notório, nenhuma das fotos publicadas no livro dos autos foi alguma vez utilizada para “acompanhar o suporte fonográfico e divulgar publicamente o retrato e o projecto musical e estético – visual do artista”, basta compulsar as capas dos LP’s “Anjo da Guarda” (1983) e “Dar e Receber” (1984), editados em vida de AV; mais fantasmagórico é ousar afirmar: “e isso acabou por acontecer”; que fotografias foram apresentadas por AV à empresa discográfica? Não se sabe! Nenhuma testemunha as identificou! Mais: afirmar que “estas fotografias ajudaram a criar o ideário gráfico do artista” é inacreditável! Quais fotografias: as que ficaram no “portefólio” da R. TP, “escondidas” ao longo de 36 anos? As que foram encontradas na casa de AV, após a sua morte, e que algumas delas foram objecto de leilão, cuja autoria se desconhecia? Então como é que as fotografais que só foram conhecidas depois da morte de AV “ajudaram a criar o ideário gráfico do artista”? Por último, como se pode alegar que “algumas foram adquiridas à artista”! Qual artista? A TP foi promovida a artista? Que fotografias foram adquiridas? Alguém as identificou?
c) “Não se questiona que as fotografias foram captadas com autorização de AV, que as queria usar publicamente num projecto futuro, o que não terá acontecido por a sua vida ter sido interrompida, ficando as fotos no portfolio da Ré. O que se questiona é a inserção das fotografias num projecto da Ré TP, “a obra dos autos, mais de 35 anos depois da morte de AV, e a própria natureza das fotografias, que incluem a exibição de partes do corpo que normalmente estão cobertas por roupa e em poses que caracterizamos como sensuais e provocatórias, permitindo ver as nádegas e o contorno do sexo, susceptível de chocar alguns gostos pessoais.” Ou seja, as fotografias são publicadas numa obra que não foi concebida ou autorizada pelo artista, que entretanto falecera; Como pode o Tribunal afirmar que “as queria usar publicamente num projecto futuro”? Em que factos ou depoimentos se apoia para tirar esta conclusão? Então AV pretendia usar estas 29 fotos num “projecto futuro” e do seu espólio pessoal, encontrado na sua casa, nem sequer se encontrou uma única destas fotos? Na verdade, como o Tribunal reconhece, o que está em causa, não é um “projecto artístico da Ré TP” mas a “própria natureza das fotografias que incluem a exibição de partes do corpo que normalmente estão cobertas por roupa e em poses que caracterizamos como sensuais e provocatórias, permitindo ver nádegas e o contorno do sexo, susceptível de chocar alguns gostos pessoais”; ou seja, as fotografias são publicadas numa obra que não foi concebida ou autorizada pelo artista, que entretanto falecera! Esta é a questão de fundo! Só o artista, AV, podia “conceber ou autorizar” a publicação dessas fotografias; como não o fez em vida – e jamais o faria – só os seus legítimos herdeiros e familiares têm o direito e a capacidade jurídica para conceder tal autorização, que nunca foi solicitada.
d) “Mas AV, apesar da sua curta vida, foi um dos artistas maiores do século XX português, uma pessoa com grande projecção e notoriedade social, contando com muitos admiradores entusiásticos, despertando interesse de novas gerações no seu projecto musical e visual, que não esmoreceu fruto de tributos que lhe foram sendo prestados no meio musical e não só. Ou seja, a notoriedade do artista dispensa, a nosso ver, a autorização dos familiares de AV para a divulgação das fotografias.”; por um lado, o Tribunal reconhece que o nº 1 do artigo 79º do CC “proíbe a exposiçao...do retrato de uma pessoa, sem o seu consentimento dela e, depois da sua morte, o consentimento depende dos familiares do falecido”; por outro, devido à “notoriedade do artista despensa a autorização dos familiares de AV para a divulgação das fotografias”! Mas então a simples notoriedade justifica que se exponham as nádegas e outras partes íntimas do corpo do falecido, poses sensuais, etc.? Então essa publicação não ofende a honra, a reputação e o decoro da pessoa retratada e da sua memória e personalidade?
e) “Aceitamos que a exibição de retratos peito, abdómen, pernas, nádegas ou exibição do contorno do sexo de uma pessoa, ou a exposição de determinadas poses de uma pessoa falecida pode ser, e muitas vezes é, susceptível de danificar a honra, reputação ou decoro da pessoa retratada e a memória da pessoa. Mas a memória de AV está intrinsecamente ligada à pessoa que foi enquanto esteve viva. Apesar de ter nascido numa família tradicional do Minho, numa época marcada por marcados padrões morais e comportamentais, António … passou como que por uma metamorfose, tornando-se uma pessoa diferente dos demais irmão, estabelecendo-se como barbeiro / Cabeleireiro de homens e mulheres; sobressaindo no espaço público pela forma ousada e exuberante como se vestia, fora dos padrões da moda masculina daquela época; o que se manifestava na sua intimidade e na forma como decorava a sua casa com objectos decorativos num estilo próprio e kitsch. tímido em relação à vida pessoal, era uma pessoa vanguardista, avessa a preconceitos, ciosa da sua liberdade, que gostava do seu corpo e que não tinha vergonha de o mostrar em público, gostando de ser fotografado. Frequentava discotecas e bares amigos da comunidade gay, participando em festas temáticas, em que se vestia de acordo com o seu imaginário estético-visual.”; por um lado, o Tribunal aceita e reconhece que a exibição… de nádegas ou exibição do contorno do sexo de uma pessoa ou a exposição de determinadas poses de uma pessoa falecida pode ser e muitas vezes é susceptível de danificar a honra, reputação e decoro da pessoa retratada e a memória da pessoa para logo construir uma tese em torno da memória de AV e enquanto pessoa viva! Por outro lado, o Tribunal reconhece que era “tímido em relação à vida pessoal” para logo a seguir afirmar ousadamente que, “gostava do seu corpo e não tinha vergonha de o mostrar em público!” Mas pergunta-se: mas que partes do corpo  AV mostrou em público em vida? Nenhuma das consideradas pelo Tribunal mais ousadas, nomeadamente as que constam do capítulo “O Corpo” da obra dos autos! Participar em festas temáticas em que se vestia de acordo com o seu imaginário estético-visual” não é propriamente mostrar as partes do corpo mais íntimas que pertencem ao foro privado e sagrado da pessoa humana; por outro lado, participar em festas temáticas em discotecas, ou seja, numa actividade privada para adultos não é “mostrar o corpo em público”, no sentido geral do conceito.
f) “No início dos anos 80, fez vídeos musicais em que rebolava pelas ondas na areia da praia, usava brincos, adereços metálicos, fazia a sua própria roupa, diferente e colorida, fotografava-se com lama na cara, posava de forma sensual a mostrar partes do corpo descoberto, fotografava-se em festas temáticas do T, foi a um programa de televisão vestido de pijama. Procurou imagens diferentes das convencionais para acompanhar o seu projecto musical. Tinha um projecto para uma capa do LP Anjo da guarda em que está parcialmente despido. tinha ideias vanguardistas que não forma usadas por a sociedade não estar preparada para isso. Considerando todo o exposto, parece-nos que a divulgação das fotografias constantes do capítulo “O Corpo” não são desrespeitadoras da pessoa de AV, não ofendem a memória da pessoa e artista que foi a vda, do amigo que se fez de TP.”; pluralizar “fez vídeos musicais em que rebolava pelas ondas na areia da praia” não é ser rigoroso como se exige a um Tribunal; é do conhecimento público – basta consultar o Youtube – que AV protagonizou um “Clip” na praia para promover o maxi-single e o LP; mas pergunta-se: nessas imagens AV mostrou alguma parte do corpo que se assemelhe às fotos publicadas pelas RR., nomeadamente as que constam do capítulo “O Corpo” da obra dos autos? Objectivamente não! No referido Clip, AV apenas mostra o tronco nu da cintura para cima! Mas então vestir-se de forma criativa, ousada, com adereços metálicos, usar brincos, colocar lama na cara, posar de forma sensual, vestir um pijama num programa televisivo justifica que vale tudo, que se podem publicar fotos íntimas, captadas no foro privado de casa, num registo de cumplicidade com a sua amiga TP, publicação sem consentimento? Mas então o que é que tem a ver a ideia de uma maqueta para a capa de um LP com a natureza das fotos publicadas pelas RR., em que se ultrapassam os limites do decoro?
g) “Não nos parece que as fotografias sejam assim tão diferentes das imagens conhecidas de AV e que os próprios familiares divulgaram publicamente. Depois da morte de AV, a família promoveu a realização de um leilão de objectos pessoais do cantor, onde constam retratos do mesmo, na praia, com o peito descoberto, com peças de roupa justa, fora dos padrões masculinos da época, permitindo ver o contorno do sexo; estão fotografia em sua casa, no espaço da sua intimidade, sobressaindo a cor rosa, sentado na cama, ao lado de um vestido de mulher. Divulgaram e colocaram no comércio essas fotos, pelo que parece pretenderem usa uma bitola mais exigente com a Ré. Além disso, na bibliografia publica por MG, que foi colocada no mercado há vários anos, está publicada uma fotografia de TP em que AV tem a parte frontal do corpo despido, estando o sexo discretamente ocultado atrás de uma planta ornamental. E outra em que o artista está na prais, com uma peça de roupa que mostra o contorno do sexo e a mão perto dele. Não se conhece qualquer reação dos familiares contra estas fotos. Dizem que as fotos dos livro das Rés mostram um pouco mais. Parece-nos que mostram pouco mais do que já se conhecia. Um pouco mais de centímetros revelam as nádegas descobertas.”; mais uma vez o Tribunal constrói uma tese, uma opinião, uma sensibilidade! Basta compulsar o catálogo do Leilão, em que o Tribunal teve a preocupação de indicar o link para consulta, para se constatar que as fotos colocadas em leilão nada têm a ver com as que as RR. publicam na obra dos autos, nomeadamente no capítulo “O Corpo”; a única foto que o Tribunal considera ousada e que, com esse fundamento, valida e sustenta a legitimidade da publicação das RR. é a que está numerada sob número 64, em que o artista usa uma “cueca” subida, com um cinto metálico e em que se percebe o contorno do órgão sexual masculino! Trata-se de uma sessão fotográfica feita em público, na Fonte da Telha, como confessa a R. TP, em que AV, posa em diversos ângulos artísticos! Qual a diferença desta foto em relação ao que nessa altura muitos homens usavam e usam na praia como fato de banho, conhecido como “tanga”? As fotos que as RR. publicaram no capítulo “O Corpo” da obra dos autos, foram captadas no recato de casa, numa sessão privada e a sua publicação é um acto de traição cometido pela sua propalada “amiga” TP, que, abusivamente, traiu a sua confiança, com intuitos meramente comerciais. As fotos publicadas na biografia escrita por MG são de fraca qualidade tendo passado completamente despercebidas e sem qualquer impacto junto da Família e do público; não se trata de usar “uma bitola mais exigente com a Ré”! A questão fundamental destes autos gira em torno de todo um destaque que as RR. deram às partes intimas do corpo de AV, com capítulo próprio, de forma sensacionalista, publicando um conjunto de fotografias das partes mais intimas do seu corpo, em nada comparáveis com as que já antes haviam sido publicadas; as RR. ultrapassaram os limites do “decoro” universalmente aceite, mesmo na sociedade do nosso tempo; ao contrário do que é sustentado na douta sentença, no que se refere ao “decoro” os “centímetros” contam! Na verdade, publicar fotos de AV em que se mostram partes íntimas do seu corpo, nunca antes reveladas, sem o consentimento necessário, é ofender a sua memória, a sua honra, a sua personalidade, o seu legado! Não é, com certeza, esta a imagem que os seus milhares e milhares de fãs tinham de AV, sobretudo as camadas mais jovens que ainda não tinham nascido quando AV faleceu! Não é esta a imagem que alguma vez pudesse sustentar a decisão do Senhor Presidente da Republica ao ter atribuído, a título póstumo, a AV uma das mais altas condecorações do Estado! Estas fotos agridem ostensivamente o decoro e a reserva íntima que todos os seres humanos têm direito a preservar, ainda que a pessoa tenha notoriedade pública! É sintomático o facto de a generalidade dos orgãos de comunicação social, escrita, digital e televisiva, que deram um grande destaque à publicação e divulgação da obra dos autos, terem usado exactamente “uma bitola mais exigente”, na medida em que, salvo raríssimas excepções, não ousaram publicar as fotos das partes íntimas do corpo de AV (mesmo no caso das excepções!), respeitando assim a sua memória, a sua honra e intimidade, numa palavra, respeitaram o direito ao “decoro”, de que todos os seres humanos são credores e a lei protege, apesar da notoriedade!
h) “Como já referimos anteriormente, AV mantinha perante a família uma imagem mais conservadora. Por isso, AV não ia vestido de uma forma exuberante ver a mãe a _____, não misturava família e amigos, nem era acompanhado pelos irmãos na diversão nocturna. Esta imagem de António, que era uma postura mais conservadora perante a família, não é a imagem da pessoa e do artista em que se tornou. Não é a imagem que o ele tinha publicamente quando estava vivo, pelo que pensamos que o direito não deve proteger publicamente uma imagem diferente. O legado de AV não é exclusivamente os poemas e música que criou, mas a imagem que idealizou e projectou, que não é assim tão diferente da pessoa que era. O direito dos familiares a que a dignidade e memória de AV sejam respeitadas está, a nossos ver, salvaguardado. As fotografias não constituem uma forma  de devassa, não causam qualquer prejuízo para a honra, reputação ou decoro de AV nem constituem uma ofensa à dignidade dos parentes e herdeiros.” Exactamente pelo facto de AV, na sua vida terrena “não misturava família e amigos”, como a generalidade das pessoas faz; exactamente pelo facto de AV sempre ter preservado junto da Família uma imagem mais consentânea com os valores e princípios em que todos foram educados, que o Tribunal apelida de “mais conservadora”, exactamente por isso é que o A., os seus irmãos e restantes familiares, “ficaram chocados e revoltados pela exploração comercial da sua figura pelas requeridas”! E não foram só os Familiares que de podiam enquadrar nessa tal “imagem mais conservadora”, sem grande formação académica; foi toda a Família, incluindo o A. e as Testemunhas JRR, Advogado, PJR. Engenheiro, e IR, Gestora, todos licenciados, ou seja, com cultura superior! É disso exactamente que se trata; jamais AV, se fosse vivo, consentiria na publicação das fotografias inseridas no capítulo “o Corpo” da obra dos autos, porque sabia exactamente que essa publicação iria “chocar” os seus irmãos, os seus cunhados e sobrinhos, numa palavra, a sua Família que tanto amava, sem esquecer a sua própria Mãe; o legado de AV é, essencialmente, a sua obra musical e poética; a imagem que criou, como tantos outros artistas, de forma alguma pode justificar a conduta das RR.; ao contrário da tese sustentada, o direito dos familiares a que a dignidade e memória de AV sejam respeitadas não está salvaguardado; as fotografias constituem uma forma de devassa da sua vida íntima que causam prejuízo à sua honra, reputação e decoro e, por essa razão, constituem uma ofensa à dignidade dos parentes e herdeiros que são os únicos e legítimos titulares desses interesses que a Lei protege. O Tribunal, a torto e a direito, compara o que não é comparável para sustentar uma decisão manifestamente contrária à Lei, nomeadamente os artigos 79º e 80º do Código Civil.
13ª - A Sentença sub judice viola frontalmente o disposto nos artigos 70º, 71º, 74º, 79º e 80º do Código Civil e faz uma errada subsunção dos factos ao direito, pelo que deve ser revogada.
Termos em que e nos mais de direito, deve a sentença sub judice ser revogada, julgando-se procedente a acção, com o decretamento de todas as providências cautelares, requeridas contra as RR. mais devem as RR. ser condenadas nas custas e encargos devidos.
Assim se fará...Justiça!».
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As requeridas contra-alegaram, pugnando, em desnecessária e exageradamente extensas conclusões, pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II - ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do C.P.C., que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º, do C.P.C.).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do C.P.C.) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2, ambos do C.P.C.).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
- se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
- se a publicação, no livro intitulado AV, editado pela OL, chancela L, S.A., com a primeira edição de março de 2020, com o ISBN _____, e o depósito legal n.º _____, de retratos e fotografias do artista com aquele pseudónimo, falecido no dia 13 de junho de 1984, sem consentimento dos seus herdeiros, é violadora do direito à sua imagem.
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III - FUNDAMENTOS:
3.1 - Fundamentação de facto:
3.1.1 - A sentença recorrida considerou provado que:
«1 - No dia 13 de junho de 1984, na freguesia de São Domingos de Benfica, concelho de Lisboa, faleceu AR, solteiro, maior, natural da freguesia de Fiscal, concelho de _____, tendo deixado como única herdeira a sua mãe DR;
2 - No dia 17 de maio de 2003, na freguesia e concelho de _____, faleceu DR tendo deixado como herdeiro, entre outros filhos, JR;
3 - Foi publicado o livro com o título AV, editado pela OL, chancela L, S.A., com a primeira edição de março de 2020, com o ISBN _____, e o depósito legal n.º _____, com Fotografia de TP e texto de MG, sendo editor FC, revisor PP e responsável pela paginação e capa JT;
4 - O livro está à venda em livrarias pelo preço aproximado de 35 euros;
5 - Tem o formato e tamanho de um LP, uma capa a lembrar as capas dos LP’s e é feito em papel de qualidade;
6 - O livro tem 119 páginas, de texto e fotografias, estas na esmagadora maioria retratos de AV, estando dividido nos seguintes capítulos: Introdução, O Amigo, O Artista, A Imagem. O Esteta, A Casa, A Barbearia, A Tesoura, O Corpo, Dar & Receber e Dar & Receber (o álbum);
7 - No capítulo denominado O Corpo, constam 29 fotografias, nas quais AV posa para a máquina fotográfica, além do mais, de tronco, parcial ou totalmente, descoberto, e /ou anca, nádega ou coxa descobertas, e / ou com peças de roupa justas que mostram os contornos do corpo, incluindo o sexo, sem, contudo, o mostrar;
8 - No capítulo O Corpo ficou escrito, além do mais, o seguinte: «Enquanto, nas noites de Lisboa, uma juventude livre de amarras e ansiosa por viver novas experiências se deixava apanhar na teia das drogas, do álcool e das noites sem destino certo, o António era diferente. O seu belo corpo musculado não era para destruir nesses excessos. Aliá, ele não bebia, não fumava e não usava drogas. Tinha, no entanto, uma compulsão sexual forte. Nunca o escondeu e chegou mesmo a escrever. “Limpei a cabeça de tudo o que ela não quer / E ao corpo fiz a promessa / Só serve para o que eu quiser” (Perdi a Memória, Dar e Receber, ____)
Com a disciplina e o rigor que pautavam todas as suas decisões e opções, mantinha uma rotina diária de idas ao ginásio e à sauna e uma alimentação saudável. Não digo que essas rotinas servissem, exclusivamente, para se manter na forma esplendorosa com que o conhecemos. Naquela época saunas e ginásios era também locais discretos, onde era fácil conhecer os tais companheiros de uma noite. Era normal no mundo gay. Mas esse era todo um outro registo, num ambiente totalmente parte. Discreto como sempre foi, o António nuca cruzou os amigos com estas personagens de encontros fortuitos. Da mesma forma que não misturou os amigos com a família. (...) Mas as saídas à noite acabaram. E também já não podia acompanhar o António aos espetáculos. Ele é que passou a ir mais à minha casa. As últimas fotos foram lá tiradas. Ele queria imagens mais despojadas, para que o corpo fosse o foco. A estrela principal. Pensou inclusive que estes ensaios poderiam servir de estudo para um futuro álbum;
9 - Na Introdução, TP escreve, além do mais, o seguinte: Este livro precisou de tempo e de espaço, de modo a que as imagens que guardei durante 35 anos, aqui legendadas pelas minhas memórias, possam reafirmar o legado de AV, inesquecível artista e amigo. E de espaço, para estarem criadas condições para concretizar um projeto desta natureza, com a qualidade editorial que merece. Por isso, e apesar das inúmeras propostas que recebi ao longo destes anos para vender ou ceder este espólio em bloco ou em parcelas, soube sempre dizer que ainda não chegara a altura. Agora, é o momento certo! Até porque começamos a ser poucos... e quando as nossas vozes se calarem, o caminho fica completamente livre para a ficção. Eu e todos os que privaram com ele, somos testemunhas do tempo breve da sua passagem por aqui. Tal como ele, vivemos intensamente os anos 80 que, para alguns de nós, começaram na segunda metade da década de 70 quando vivemos a mudança de regime e testemunhámos a emergência de uma sociedade democrática. (...) Foi um tempo breve mas muito intenso, em que tive o privilégio de o acompanhar como amiga agente e fotógrafa. Este livro é o meu modo de homenagear e agradecer pelo tanto que nos deixou. (...) Os seus registos dão bem a noção da grandeza do homem que, e enquanto viveu, não misturou mundos, mas não ostracizou ninguém. Secreto, discreto, educadíssimo, gentil e generoso de um modo que muito pouca gente conhece, e de uma inteligência muito acima da média, num país onde era, e onde continua a ser, muito difícil ser-se diferente, AV marcou-nos a todos. (...).
10 - No capítulo O Amigo está escrito, além do mais, o seguinte: Era uma figura exótica, à qual era impossível ficar-se inferente, mas eu sabia que era cabeleireiro. (...) Um dia o António entrou na loja e foi direito a uma liseuse de cetim cor de rosa, peça íntima feminina que era usada normalmente sobre uma camisa de dormir. Experimentou para ver se lhe servia. Ficou-lhe que nem uma luva. Era fascinante e surreal ver aquele barbudo e musculado, de calças tufadas com pinças, camisola justa, com a liseuse acolchoada e rematada com um laço à frente, a mirar-se ao espelho. Gostou, comprou e levou. (...) Ele era simpático, gentil, afável, de sorriso fácil, muito comunicativo e sem pingo de pretensiosismo. (...) Eu gostava muito dele e ele gostava muito de mim. Falávamos de tudo. Projetos, música, moda, amores, viagens. Trocávamos confidências. Ele era perspicaz e sensível. Falava pouco, era tímido, sabia ouvir. Por exemplo, gostava de saber a minha opinião em relação aos temas mais diversos. Firme nas suas convicções, estava aberto a outros pontos de vista, mas acabava sempre por fazer o que queria, por mais dissonantes que fossem as opiniões dos outros. E tinha quase sempre razão. (...). Assim acabávamos por conviver uns com os outros no final da década de 70 até 1984. Frequentávamos, todos, as noites do Barro Alto e arredores. Ele adorava espetáculos de transformismo, os quais, pela ousadia, cor, graça e pelo inusitado, foram um grande abanão numa Lisboa ainda muito adormecida. Fomos muitas vezes, sempre que eu podia, ao Finalmente Club. Através dele conhecia a Guida Scarlatty, a Ruth Briden, a Lídia Barloff e a Belle Dominique. Seres arrojados e desconcertantes como António a emergirem na sociedade portuguesa, que saía do cientismo de cinco décadas de fascismo. (...);
11 - Nos capítulos denominados A Imagem, O Esteta e A Tesoura, escreveu-se, além do mais, que (...) até que finalmente, chegou a notícia por que tanto esperava. Ia entrar em estúdio. Inconformista e seguro de que pretendia dar de si uma imagem diferente, António recusava a banalizada e desinteressante foto de rosto em grande plano, que constituía o layout habitual das capas de discos. Eu gostava de fotografar e andava quase sempre com a máquina fotográfica a tiracolo. Era uma Olympus OM1. Então, ele disse-me que precisava de uma fotografia para o single de lançamento. Será que eu queria fazer-lhe umas fotos? Claro que disse logo que sim. Há muito tempo desejava fotografá-lo, mas queria que fosse ele a falar do assunto. Já havia fotografado a casa dele e tinha alguns instantâneos do próprio António. Mas nada que eu achasse possível de ser aproveitado. Eram flagrantes de momentos, sem nenhuma preparação ou cuidado. Não serviam para aquele propósito. (...) EM 1982, quando ele levou as minhas fotos à VC, todos ficaram agradavelmente surpreendidos. Finalmente, ali estavam as propostas que entendiam a estética do António. Além disso, aquelas imagens fortes eram um excelente material de promoção do maxi-single com duas músicas emblemática, ‘Estou Além” e “Provo que Lavas no Rio”. Muito apelativas, cheias de cor, as minhas fotografias, segundo todos reconheceram, sublinhavam e refletiam a voz e o projeto musical tão singular do António. (...). Quando fizemos as fotos para a capa do maxi-single de lançamento e escolhemos as imagens para ele levar à editora, ficou ainda a indefinição em relação ao estilo que deveria acompanhar o António e a sua música. Era necessário, segundo ele, criar um símbolo, uma marca que o definisse e o destacasse dos demais. Ele era o AV, já não era o António e o grupo V…. (...) Ele era um modelo fantástico e era muito gratificante fotografá-lo, pois entregava-se e dava sempre o seu melhor. Tinha um sentido estético muito apurado. Acima de tudo, gostava de ser fotografado.
12 - AV é o pseudónimo artístico de AR, que foi um músico e compositor que marcou a música e a cultura nos anos 80 do século XX em Portugal, influenciando a música portuguesa nos anos subsequentes;
13 - Além de singles e maxi-singles, AV gravou e editou os LP Anjo da guarda (1983) e Dar & Receber (1984);
14 - António … nasceu em 1944 numa família tradicional do Minho, tendo vindo para Lisboa com 12 anos de idade;
15 - Fez o serviço militar no Ultramar, esteve emigrado em Londres e na Holanda, tendo regressado em meados dos anos 70, estabelecendo-se como barbeiro / cabeleireiro de homens e mulheres;
16 - Destacava-se no espaço público pela forma ousada e exuberante como se vestia, fora dos padrões da moda masculina daquela época;
17 - Decorava a sua casa com objetos decorativos num estilo próprio e kitsch;
18 - Tímido em relação à vida pessoal, era uma pessoa vanguardista, avessa a preconceitos, ciosa da sua liberdade, que gostava do seu corpo e que não tinha vergonha de o mostrar em público, gostando de ser fotografado;
19 - Frequentava discotecas e bares amigos da comunidade gay, participando em festas temáticas, em que se vestia de acordo com o seu imaginário estético-visual;
20 - A ré TP era amiga de AV, tendo-o acompanhado de perto entre os anos de 1981 e 1984;
21 - Quando AV iniciou o projeto musical, TP fez também de sua agente;
22 - AV procurava afirmar uma estética própria para integrar o seu projeto musical, diferente do enquadramento tradicional da época, assente no seu corpo e imagem;
23 - Por isso e por serem amigos, AV e TP encenavam em conjunto fotografias dele, com a ideia de criarem imagens que pudessem acompanhar o suporte fonográfico e divulgar publicamente o retrato e o projeto musical e estético-visual do artista;
24 - AV escolhia as roupas e adereços, vestia-se e posava para as fotografias, que foram tiradas por TP utilizando o seu domínio da técnica fotográfica e do seu gosto pessoal;
25 - Algumas fotografias foram apresentadas à editora musical para promoção da sua obra;
26 - As fotografias integrantes do capítulo O Corpo foram tiradas com a ideia de preparar a imagem de um eventual futuro álbum musical;
27 - Após a morte de AV, muitos suportes das fotografias captadas por TP foram recolhidos pela família daquele na casa do cantor e vendidas, juntamente com outros itens pessoais do artista, em leilão realizado no ano de 2009, sem indicação da sua autoria;
28 - Das fotografias do catalogo do leilão constavam retratos do artista em que surge de tronco, parcial ou totalmente, descoberto e / ou com peças de roupa justas que mostram os contornos do corpo, incluindo o sexo, sem, contudo, o mostrar;
29 - TP intentou providência cautelar para impedir a venda das fotografias que captou em leilão, que foi declarada procedente;
30 - As fotografias do livro referido em 3. estavam no espólio de TP, que as guardou durante 40 anos;
31 - O lançamento do livro das requeridas teve ampla cobertura mediática, incluindo cobertura televisiva;
32 - No livro denominado “AV, Entre Braga e Nova Iorque”, da autoria de MG, publicado no ano de 2006, constam algumas fotografias do livro objeto dos autos;
33 - A utilização das letras dos temas de AV foi autorizado e a requerida L, S.A. pagou a respetiva retribuição pela sua utilização à editora RMP, no montante de 1.230 euros, que distribuiu aos herdeiros;
34 - O requerente e demais irmãos de António ficaram chocados e revoltados pela exploração comercial da sua figura pelas requeridas.»
*
3.1.2 - A sentença recorrida considerou não provado que:
«1 - AV era uma pessoa reservada e tímida, avessa a exibicionismos;
2 - Jamais apareceu em público desnudado ou em poses ousadas;
3 - A família do artista nunca o aceitou como era, sempre se envergonhou do mesmo e nunca foi capaz de o ver como um artista, ficando presos aos estereótipos fraturantes que se criaram à sua volta;
4 - JR teve conhecimento do livro através da RMP.»
*
3.2 - Do Mérito do recurso:
3.2.1 - Notas prévias:
Este é um daqueles casos, infelizmente não raros, em que, fazendo-se tábua rasa e letra morta do disposto no art. 639.º, n.º 1, do C.P.C., as conclusões reproduzem, ipsis verbis, o texto da motivação do recurso.
Não se justifica, no entanto, convidar o apelante a corrigir as conclusões.
Por outro lado, tanto nas alegações como nas conclusões, pois, como se referiu, estas são copy past daquelas, afirma o apelante que «O presente Recurso vem da douta Sentença que “julga a presente acção improcedente e, em consequência, absolve as Rés dos pedidos formulados.” e, mais concretamente, vem da síntese da fundamentação, quando o Meritíssimo Juiz “à quo” sustenta que “ as fotografias não constituem uma forma de devassa, não causam qualquer prejuízo para a honra, reputação e decoro de AV nem constituem uma ofensa à dignidade dos parentes e herdeiros”.»
Nos termos do art. 627.º, n.º 1, do C.P.C., os recursos são interpostos de decisões judiciais.
Uma decisão judicial é um ato processual[3] pelo qual o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, enuncia uma solução para uma pretensão ou questão jurídica, de mérito ou processual[4], no exercício da função jurisdicional[5].
No entanto, relativamente à «decisão judicial» enquanto objeto do ato processual de revogação importa notar ainda que a sua expressão pode ser variável, consoante o direito positivo e o requerimento do recurso.
Assim, o objeto da revogação (direta) é a parte dispositiva de uma decisão, ou seja, somente o enunciado conclusivo.
Os fundamentos da parte dispositiva de uma sentença, não integram o objeto direto da revogação, o que significa que o recorrente não pode pedir a sua revogação. Isto porque é a parte dispositiva da decisão que afeta a esfera a jurídica do recorrente, com força obrigatória dentro do processo e fora dele quando faça caso julgado material[6].
Diga-se, ainda, que como efeito da procedência do pedido revogatório, em nexo de prejudicialidade com essa procedência, há lugar à prolação de uma nova decisão, sendo que, essa nova decisão substitutiva terá o mesmo objeto da decisão revogada.
Nos recursos de reponderação, como é o caso do presente recurso, a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido (formulado no âmbito do recurso) é na parte de revogação a própria decisão e na da substituição a matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo[7].
É, assim, manifesto o equívoco do apelante na afirmação de que o presente recurso «(...) mais concretamente, vem da síntese da fundamentação, quando o Meritíssimo Juiz “à quo” sustenta que “as fotografias não constituem uma forma de devassa, não causam qualquer prejuízo para a honra, reputação e decoro de AV nem constituem uma ofensa à dignidade dos parentes e herdeiros”.»
Fica a afirmação de que «o presente Recurso vem da douta Sentença que “julga a presente acção improcedente e, em consequência, absolve as Rés dos pedidos formulados.”».
3.2.2 - Da (pretensa) impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Afirma o apelante que os pontos de facto provados sob os n.ºs 8 a 11 «não constituem propriamente matéria de facto, mas tão simplesmente a reprodução de excertos de textos da obra editada pelas RR., ou seja, um conjunto de afirmações imputadas à R. TP, que não foram sindicadas pelo Tribunal nem foram objecto de prova, tanto mais que nem sequer fazem parte ou alguma vez podiam fazer parte da causa de pedir.»
É evidente que os pontos de facto provados sob os n.ºs 8 a 11 são factos jurídicos, constituindo partes, transcrições, excertos, do livro que o apelante pretende ver retirado do mercado e cuja publicação pretende ver proibida, livro esse que foi junto aos autos enquanto prova documental.
A relevância, ou não, daqueles enunciados de facto para a decisão da causa é questão diferente, que aqui e agora não está em apreciação.
Mais afirma o apelante que «não merecem censura os factos alinhados nos artigos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 31º, 32º, 34º; pelo contrário, merecem censura todos os outros factos.»
Quanto ao ponto 3 dos factos provados, afirma o apelante que «No facto 3, o Tribunal comete um erro manifesto uma vez que a “primeira edição” do livro dos autos não ocorreu em Março de 2003 mas somente em Outubro de 2020, quando foi lançado no mercado, como confessam as RR. no ponto 39º do seu articulado; a referência a Março de 2020 é apenas uma data de capa e não o lançamento no mercado», enveredando, em seguida, por considerandos absolutamente irrelevantes no contexto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Ora, aquilo que se afirma no ponto 3. dos factos provados é que «foi publicado o livro com o título AV, editado pela OL, chancela L, S.A., com a primeira edição de março de 2020 (...).»
Tal enunciado corresponde ao alegado pelo próprio apelante no art. 5.º da petição inicial: «Na posse da obra, o requerente pôde verificar que a edição do livro é de Março de 2020 (...).»
Aliás, quem folhear o livro, junto aos autos como prova documental, logo pode ler, na primeira página, a que se encontra imediatamente a seguir à capa, além do mais, o seguinte: «1.ª Edição: Março de 2020.».
Salvo o devido respeito, também em sede de recurso da decisão sobre a matéria de facto, é necessário atentar no que se impugna e como se impugna.
Dispõe o art. 640.º do C.P.C.:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - (...).»
Ora, quanto aos pontos 18., 19., 20., 21, 22., 23., 24., 25., 26., 27, 28., 29. 30. e 33., não basta afirmar que a decisão sobre tais enunciados é merecedora de censura, sendo necessário, quanto a eles, o cumprimento de todos os ónus estipulados no transcrito art. 640.º do C.P.C., o que o apelante não faz, pois não cumpre os fixados nas als. b) e c) do n.º 1.
Por isso, sem necessidade de mais considerandos, por desnecessários, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.2.2 - Enquadramento jurídico:
Dispõe o art. 79.º do Código Civil[8]:
1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.
Tal como refere Menezes Cordeiro, «aqui ocorre a ideia de imagem: a representação de uma pessoa na sua configuração exterior», sendo que «a imagem materializada de uma pessoa é um bem de personalidade fortemente objetivado» permitindo «a imagem a imediata identificação da pessoa de que se trate. O destino que se dê à imagem é, de certo modo, um tratamento dado à própria pessoa. A imagem faz, assim, a sua aparição no palco dos bens de personalidade.»[9].
António Agostinho Guedes salienta que «a formulação do número 1 faria supor que o conteúdo do direito à imagem se esgotaria no direito de impedir a exposição, reprodução ou lançamento no comércio do retrato de uma pessoa sem o seu consentimento; parece, porém, que este artigo deve ser visto em conjunto com outras normas do ordenamento jurídico, nomeadamente os artigos 26.º da CRP, 199.º do CP e 18.º do CT, sem descurar, naturalmente, o direito geral de personalidade consagrado no art. 70.º.
Da conjugação de todas estas normas resulta uma dupla vertente da proteção do direito à imagem. Por um lado, o direito de autodeterminação da imagem exterior (...), e, por outro lado, um direito a definir os termos e condições em que o retrato pode ser captado e utilizado por terceiros.»[10].
Cláudia Trabuco afirma que «no seio da tutela geral da personalidade, é possível individualizar diversos bens jurídicos relativamente autónomos que fazem parte da ideia da personalidade moral, matriz unificante da proteção do ser social que é cada homem», cabendo na tutela da personalidade moral, além de outros, o direito à identidade, sendo, segundo a Autora, «a protecção da imagem física tendencialmente integrada na identidade, na defesa do carácter original e irrepetível de cada homem contra a eventual “manipulação, a desfocagem, contrafacção ou a utilização heterónoma dos seus elementos físicos ou morais”.»[11].
A imagem de uma pessoa, uma vez divulgada, poucas vezes o será de modo abstrato, tratando-se, em regra, de a associar a qualquer notícia ou mensagem que se pretenda transmitir, a qual poderá não ser aprazível para o próprio, donde a emersão de um outro valor: o do bom nome e reputação.
O problema não se coloca, obviamente, se o retratado, previamente, der o seu consentimento esclarecido, ou seja, com o cabal conhecimento daquilo que a sua imagem vai ilustrar[12].
O direito à imagem vem sendo comummente visto como um direito de personalidade com uma dupla componente, positiva e negativa, podendo ser definido:
- na sua componente positiva, como aquele que confere às pessoas a faculdade exclusiva de reprodução, difusão ou publicação da sua própria imagem, com caráter comercial ou não; e,
- na sua componente negativa, como aquele que a pessoa tem de impedir que um terceiro possa praticar esses mesmos atos sem a sua autorização.
O direito da imagem de uma pessoa é, assim, uma forma particular de respeito da sua personalidade, o que nos reporta ao reconhecimento do direito que assiste a cada indivíduo de se opor à publicação dos seus traços fisionómicos se não tiver para tal dado o seu consentimento.
Um tal direito, como os demais de personalidade, constitui um verdadeiro direito absoluto, pois que não se lhe contrapõe um dever jurídico de pessoas determinadas mas antes uma obrigação universal.
Também não se suscitam dúvidas quanto à sua qualificação como direito subjetivo, que se traduz num poder concreto, composto por um conjunto de faculdades reais e potenciais, cujo exercício é deixado à livre decisão do seu titular.
Assim como os restantes direitos subjetivos de personalidade, o direito à imagem comporta uma estrutura essencialmente dual e relacional: com um âmbito de poder e de liberdade, mas também com uma forte componente de responsabilidade, visto que qualquer utilização abusiva da imagem é considerada ilícita pelo ordenamento jurídico[13].
Trata-se, como já referido, de um direito constitucionalmente garantido, a par de outros direitos de personalidade, no art. 26.º, n.º 1, da CRP, podendo ser configurado, como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, sob um duplo ponto de vista:
- como o direito que cada pessoa tem de não ver o seu retrato exposto em público sem o seu consentimento;
- como o direito que o retratado tem de não o ver apresentado em forma gráfica ou através de montagens ofensivas e materialmente distorcidas e infiéis[14].
Ana Filipa Morais Antunes refere que o n.º 1 do art. 79.º «consagra o princípio da proibição da exposição, reprodução, divulgação e lançamento no comércio do retrato de uma pessoa em termos não consentidos. O legislador reserva a cada pessoa a decisão sobre os termos da exposição, reprodução, divulgação e aproveitamento económico do seu retrato. O retrato abrange as diversas formas de identificação visual de uma pessoa.
A exigência do consentimento justifica-se para proteger a privacidade e a intimidade, assim como o bom nome e a reputação da pessoa, o que em nada prejudica a autonomia dogmática do direito à imagem (...). Pretende-se, por outro lado, limitar a exploração comercial e lucrativa da imagem alheia: as receitas resultantes devem ser auferidas pelo próprio visado.»[15].
Consagra-se naquele preceito uma regra básica, qual seja a de o retrato de uma pessoa não poder ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela, tratando-se de um direito pós-eficaz, o que significa que depois da morte da pessoa retratada a autorização compete, pela ordem nele indicada, as pessoas referidas no art. 71.º, n.º 2[16].
No n.º 1 do art. 79.º estipula-se que a exposição, reprodução ou lançamento no comércio do retrato de uma pessoa depende do seu consentimento.
Apesar de na epígrafe do artigo se fazer referência ao direito à imagem, o conceito referencial é o de retrato[17].
Segundo o David de Oliveira Festas, «o conceito de retrato é composto por dois elementos: representação ou reprodução visual ou visível da imagem humana, por um lado; e recognoscibilidade, por outro lado.
(...)
O retrato corresponde a uma representação (visual) da imagem de uma pessoa num determinado tempo e espaço que permite reconhecê-la ou identificá-la (...). Só estão incluídas no conceito de retrato, em sentido técnico, as representações visuais da imagem de uma pessoa e não as descrições escritas ou faladas da sua aparência exterior.
A representação da imagem pode fixar-se numa miríade de suportes, como tela, papel, película ou um sustentáculo de natureza digital. (...).
É fundamental acentuar que o direito à imagem não é dominado por essas preocupações e não incide sobre o suporte em que a imagem se encontra reproduzida. O direito à imagem protege a aparência exterior do retratado como bem de personalidade.
(...)
A aparência é protegida quando fixada num suporte diferente do próprio corpo do titular, independentemente da sua natureza. O suporte (corpóreo ou incorpóreo) em que a imagem se fixa não é objecto do direito à imagem, mas é elemento necessário para que passemos da imagem ao retrato. O retrato só pode nascer quando a aparência se fixe ou surja associada a uma realidade distinta do corpo do titular do direito.
A fotografia de uma pessoa pode estar associada a diversos direitos com titulares potencialmente diferentes: direito de propriedade sobre um eventual suporte corpóreo do retrato (arts. 1302.º ss. e 1336.º ss.); direito de autor sobre a obra fotográfica (arts. 164.º ss. do CDADC); direito de personalidade à imagem (art. 79.º).
No que respeita ao modo de representação da imagem humana, o conceito de retrato deve ser entendido em termos amplos já que o retrato não tem de traduzir exacta e fielmente os contornos fisionómicos da pessoa. Julgamos que este aspecto é particularmente importante. O sentido jurídico de retrato vai além do sentido comum, associado à pintura realista e à fotografia.
Para além disso, a protecção conferida pelo art. 79.º não está limitada a qualquer técnica de representação ou de exibição da imagem, abrangendo todas as formas tecnicamente possíveis.
Estão certamente abrangidas as formas mais tradicionais, como a pintura ou a fotografia (nomeadamente a montagem fotográfica, mais recente). São também abrangidas representações através de esculturas, bonecos, desenhos animados ou caricaturas ou máscaras. Outras formas de exposição da imagem, como o cinema ou a televisão, são também contempladas.»[18].
Na opinião do Autor, que acompanhamos, «o traço decisivo para que estejamos perante um retrato é a identificabilidade ou recognoscibilidade, isto é, que a reprodução ou representação visual da configuração exterior actual ou passada da pessoa permita a sua identificação ou reconhecimento.»[19].
O art. 79.º, n.º 1, cuja redação foi fortemente influenciada pela lei italiana, determina, como se viu, que o retrato da pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o seu consentimento.
Feita a delimitação e concretização do conceito de retrato, é útil tecer agora alguns breves considerandos sobre o significado das expressões “exposição”, “reprodução” e “lançamento no comércio”.
O mencionado preceito refere-se diretamente à reprodução do retrato e não à reprodução da imagem.
Reprodução de imagem e reprodução de retrato têm significados distintos.
A representação ou reprodução da imagem significa a sua incorporação ou fixação num suporte. O retrato é o resultado desse processo de representação ou de reprodução. Por isso mesmo, observámos que o retrato corresponde a uma representação (visual) da imagem de uma pessoa num determinado tempo e espaço que permite reconhecê-la ou identificá-la (m).
Diferentemente, a reprodução do retrato significa a sua cópia ou multiplicação e pressupõe que, anteriormente, tenha havido uma fixação, representação ou reprodução da imagem. A reprodução da imagem é a captação do retrato. Dito de outro modo, o retrato é o resultado da representação ou reprodução da imagem.
Considerando a ratio do preceito, deve entender-se  que está sob a sua proteção não apenas a reprodução do retrato como também a fixação, representação ou reprodução da imagem, assim como qualquer forma de divulgação da mesma, devendo considerar-se retrato, logo sujeita ao consentimento do titular, ou no caso de pré-falecimento deste, como ocorre in casu, das pessoas designadas no n.º 2 do art. 71.º, como decorre da 2.ª parte do n.º 1 do art. 79.º, toda a representação ou fixação da imagem, isto é, a atribuição de suporte, independentemente da técnica utilizada.
Por exposição do retrato deve entender-se a sua apresentação a um universo de pessoas.
O que está em causa é, essencialmente, a exposição pública do retrato, devendo o conceito de exposição e de público ser entendidos em sentido amplo, ou seja, independentemente de a visualização do retrato estar limitada a uma categoria de pessoas ou ser irrestrita, da visibilidade do meio de exposição ou de outros fatores de natureza análoga.
O art. 79.º, n.º 1, faz ainda referência ao lançamento no comércio do retrato.
A expressão “lançamento no comércio” suscita dúvidas: antes de mais, quanto ao que deva entender-se por comércio; depois, quanto ao sentido do lançamento.
Nem no Código Civil, nem na legislação comercial, encontramos a noção de comércio, a qual se encontra ínsita na lei.
O termo “comércio” contido no n.º 1 do art. 79.º deve ser entendido em sentido amplo, sem qualquer limitação proveniente da lei comercial.
“Comércio”, nos termos e para os efeitos do citado preceito, deve, pois, ser entendido como todo o aproveitamento económico do retrato.
Sendo o retrato um bem de personalidade, todos os atos incidentes sobre a imagem, anteriores ou posteriores ao lançamento no comércio, estão sujeitos ao consentimento do titular.
Assim, por “lançamento no comércio” do retrato deve entender-se o seu aproveitamento económico, cabendo ao retratado, ou, reitera-se, no caso deste ter falecido antes do lançamento, às pessoas designadas no n.º 2 do art. 71.º, os termos em que deve ser economicamente aproveitada a sua imagem[20].
O n.º 2 do art. 79.º estabelece uma espécie de limite negativo ao conteúdo do direito à imagem da pessoa visada no n.º 1, no sentido de que nos casos aí previstos, a captação e posterior utilização da pessoa será sempre permitida sem necessidade do consentimento do titular.
Trata-se de uma norma que, por constituir uma restrição ao que parece ser a regra geral dos arts. 70.º e 79.º, deve ser interpretada com a máxima cautela, limitando o direito à imagem na estrita medida do que for necessário para salvaguardar a ratio do n.º 2.
Quer isto dizer que a definição do limite a partir do qual deixa de ser necessário o consentimento tem necessariamente de levar em linha de conta a ratio subjacente a cada uma das situações previstas na hipótese legal da norma[21].
A lei dispensa o consentimento em caso de notoriedade da pessoa retratada.
Vários são os fatores a que pode ficar a dever-se a sua notoriedade, como é o caso dos artistas.
Seguindo Maria da Glória Carvalho Rebelo, podemos definir pessoa notória como «aquela que é conhecida pelos indivíduos de um determinado ambiente, pela sua profissão ou cargo desempenhado, seja de âmbito universal, nacional, regional ou local.»[22].
Não oferece dúvidas a notoriedade de AV, antes e depois da sua morte.
Trata-se de um aspeto cuidadosa e exaustivamente tratado na sentença recorrida, e que ninguém, nomeadamente no universo processual a que se reporta o presente recurso, põe em causa.
A questão que se pode colocar é, no entanto, aquela que se prende com o aproveitamento económico da imagem do retratado; ou seja: a notoriedade da pessoa dispensa o consentimento em caso de aproveitamento económico da sua imagem, apenas sendo possível ao titular do consentimento reagir quando tal aproveitamento seja considerado ofensivo reputação, honra ou decoro daquela pessoa?
O n.º 2 do art. 79.º deve, também ele, ser objeto de interpretação restritiva.
O titular, a pessoa retratada, ou os seus sucessores, têm o exclusivo de aproveitamento económico da sua imagem, independentemente da sua notoriedade, inexistindo causa justificativa de dispensa do seu consentimento para o aproveitamento económico da sua imagem pela simples razão de ser uma pessoa com notoriedade[23].
A este propósito refere Diogo Leite de Campos que «um editor não poderá comercializar, sem o consentimento do interessado, fotografias, ou postais com fotografias, de um político ou de um cantor em voga.»[24].
O n.º 2 do art. 79.º estipula ainda que o consentimento é dispensado quando assim o justifiquem, além de outras, “exigências culturais”.
Enquanto que a notoriedade da pessoa retratada e o próprio enquadramento do retrato constituem circunstâncias objetivas de dispensa do consentimento, a “exigência cultural” constitui uma circunstância finalista de tal dispensa.
É possível conceber-se que a mesma utilização de um retrato prossiga finalidades científicas e, simultaneamente, configure uma situação de aproveitamento económico desse mesmo retrato.
Nas finalidades culturais incluem-se também as finalidades artísticas.
A publicação e colocação para venda ao público, pela editora 2.ª requerida, do livro a que se reportam os presentes autos, composto essencialmente por fotografias da autoria da 1.ª requerida[25], autora do livro, nas quais AV aparece retratado nas mais variadas poses, configurando um ato cultural, prossegue também finalidades artísticas, não podendo, no entanto, ao mesmo tempo, como é evidente, deixar de configurar uma situação de aproveitamento económico dos diferentes retratos.
Ou seja, a publicação do livro em causa, prosseguindo finalidades culturais e artísticas, sendo posto em venda no mercado pelo preço de € 35,00, não pode deixar de representar também um aproveitamento económico dos retratos de AV, os quais constituem, por assim dizer, a “alma” do livro, aquilo que “chama” o público a comprá-lo, aquilo que, à partida, nomeadamente para a editora, asseguraria um determinado número de venda de exemplares.
Num caso como este, deve atender-se às finalidades prevalecentes, só havendo dispensa de consentimento do retratado para o aproveitamento económico de um retrato quando as “finalidades culturais” sejam manifestamente predominantes, surgindo o aproveitamento económico como um corolário inerente à sua prossecução.
Trata-se de uma ponderação que somente caso a caso pode ser efetuada.
Na base desta ponderação deve estar a comprovação de que no mundo de hoje é cada vez mais frequente que a prossecução de finalidades culturais esteja, ainda que acessoriamente, associada a finalidades económicas[26].
No caso concreto, tendo em conta a notoriedade do retratado e as finalidades culturais e artísticas subjacentes ao livro em causa, entendemos estar justificada a dispensa do consentimento dos sucessores de AV.
Tal como pertinentemente se afirma na sentença recorrida, «TP e a editora L criaram e publicaram um livro tendo como título o nome AV, pseudónimo artístico de AR (falecido a 13 de junho de 1984), que foi um músico e compositor que marcou a música e a cultura dos anos 80 do século XX em Portugal (…).
O livro está a ser vendido em livrarias, por um preço aproximado de 35 euros, é composto por 119 páginas de texto e fotografias, a maioria retratos de AV a fazer pose para TP, que era sua amiga e que captou os retratos (...).
Quando AV iniciou o projeto musical TP era a sua agente. Ele procurava afirmar uma estética própria para integrar o seu projeto musical, diferente do tradicional, tendo encenado em conjunto fotografias dele, com a ideia de criarem imagens que pudessem acompanhar o suporte fonográfico e divulgar publicamente o seu retrato e o projeto musical e estético-visual. AV escolhia as roupas e adereços, vestia-se e posava para as fotografias, que foram tiradas por TP utilizando o seu domínio da técnica fotográfica e do seu gosto pessoal. As fotografias foram apresentadas à editora musical para promoção da obra – (...).
O livro tem um capítulo denominado O Corpo onde constam 29 fotografias de AV, onde ele posa para a máquina fotográfica, além do mais, de tronco, parcial ou totalmente, descoberto, e /ou anca, nádega ou coxa descobertas, e / ou com peças de roupa justas que mostram os contornos do corpo, incluindo o sexo, sem, contudo, o mostrar.
A primeira constatação é a de que o livro é uma manifestação da liberdade de expressão e criação artística de TP, com base em fotografias captadas por si, utilizando o domínio da técnica fotográfica e do seu gosto pessoal.
Não sendo a questão da propriedade das fotografias o objeto deste litígio, a obra realizada e as próprias fotografias não deixam de ser o produto de uma ideia, de uma técnica, de um gosto pessoal da própria TP, sendo a manifestação da sua própria personalidade, protegido constitucionalmente nos termos supra expostos.
A segunda constatação é que o livro assenta em imagens físicas da pessoa AR. Tratam-se de retratos captados com autorização expressa ou implícita do retratado, que posava para as fotos em várias situações.
Neste sentido, AV pôde autodeterminar-se em relação à imagem exterior, pôde definir os termos em que o retrato pôde ser captado por TP. Não há violação do direito à imagem.
Algumas das fotografias foram captadas para criarem imagens que pudessem acompanhar o suporte fonográfico e divulgar publicamente o retrato e o projeto musical e estético-visual do artista.
E isso acabou por acontecer. Algumas das fotografias foram apresentadas por AV à empresa discográfica. Estas fotografias ajudaram a criar o ideário gráfico do artista, e algumas foram adquiridas à artista.
O problema surge respeitante a 29 das fotografias, que estão incluídas no capítulo denominado O Corpo. Nestas fotografias, AV posa para a máquina fotográfica, além do mais, de tronco, parcial ou totalmente, descoberto, e /ou anca, nádega ou coxa descobertas, e / ou com peças de roupa justas que mostram os contornos do corpo, incluindo o sexo, sem, contudo, o mostrar.
Não se questiona que as fotografias foram captadas com autorização de AV, que as queria usar publicamente num projeto futuro, o que não terá acontecido por a sua vida ter sido interrompida, ficando a fotos no portfolio da ré.
O que se questiona é a inserção das fotografias num projeto artístico da ré TP, a obra dos autos, mais de 35 anos depois da morte de AV, e a própria natureza das fotografias, que incluem a exibição de partes do corpo que normalmente estão cobertas por roupa e em poses que caraterizamos como sensuais e provocatórias, permitindo ver as nádegas e o contorno do sexo, suscetível de chocar alguns gostos pessoais.
Ou seja, as fotografias são publicadas numa obra que não foi concebida ou autorizada pelo artista, que entretanto falecera.
Como referimos supra, o artigo 79.º, n.º1, do Código Civil proíbe a exposição, reprodução ou lançamento no comércio do retrato de uma pessoa sem o seu consentimento dela e, depois da sua morte, o consentimento depende dos familiares do falecido.
Mas AV, apesar da sua curta vida, foi um dos artistas maiores do século XX português, uma pessoa com grande projeção e notoriedade social, contando com muitos admiradores entusiásticos, despertando interesse de novas gerações no seu projeto musical e visual, que não esmoreceu fruto de tributos que lhe foram sendo prestados no meio musical e não só.
Ou seja, a notoriedade do artista dispensa, a nosso ver, a autorização dos familiares de AV para a divulgação das fotografias.
A linha vermelha é que da exposição e reprodução das fotos não resulte um prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada (n.º3). Que as imagens não desrespeitem a memória de AV.
Aceitamos que a exibição de retratos peito, abdómen, pernas, nádegas ou exibição do contorno do sexo de uma pessoa, ou a exposição de determinadas poses de uma pessoa falecida pode ser, e muitas vezes é, suscetível de danificar a honra, reputação ou decoro da pessoa retratada e a memória da pessoa. 
Mas a memória de AV está intrinsecamente ligada à pessoa que foi enquanto esteve viva.
Apesar de ter nascido numa família tradicional do Minho, numa época marcada por marcados padrões morais e comportamentais, António … passou como que por uma metamorfose, tornando-se uma pessoa diferente dos demais irmãos, estabelecendo-se como barbeiro / cabeleireiro de homens e mulheres; sobressaindo no espaço público pela forma ousada e exuberante como se vestia, fora dos padrões da moda masculina daquela época; o que se manifestava também na sua intimidade e na forma como decorava a sua casa com objetos decorativos num estilo próprio e kitsch. Tímido em relação à vida pessoal, era uma pessoa vanguardista, avessa a preconceitos, ciosa da sua liberdade, que gostava do seu corpo e que não tinha vergonha de o mostrar em público, gostando de ser fotografado. Frequentava discotecas e bares amigos da comunidade gay, participando em festas temáticas, em que se vestia de acordo com o seu imaginário estético-visual.
Escreveu músicas com letras vanguardistas, de algum modo anacrónico em relação à época e contexto em que vivia, influenciado por uma ideia de liberdade, que era desde logo a liberdade de usar o corpo sem preconceitos e dele retirar prazer, não se deixando manietar pelas convenções sociais.
No início dos anos 80, fez vídeos musicais em que rebolava pelas ondas na areia da praia, usava brincos, adereços metálicos, fazia a sua própria roupa, diferente e colorida, fotografava-se com lama na cara, posava de forma sensual a mostrar partes do corpo descoberto, fotografava-se em festas temáticas do T, foi a um programa de televisão vestido de pijama. Procurou imagens diferentes das convencionais para acompanhar o seu projeto musical. Tinha um projeto para uma capa do LP Anjo da Guarda em que está parcialmente despido. Tinha ideias vanguardistas que não foram usadas por a sociedade não estar preparada para isso.
Considerando todo o exposto, parece-nos que a divulgação das fotografias constantes do capítulo O Corpo não são desrespeitadoras da pessoa de AV, não ofendem a memória da pessoa e artista que foi a vida, do amigo que se fez de TP.
As fotografias espelham aquele que foi AV, o artista que estava à frente do tempo dele.
Os familiares não gostaram da divulgação das fotografias por aquilo de mostram do corpo de AV.
Não nos parece que as fotografias sejam assim tão diferentes das imagens conhecidas de AV e que os próprios familiares divulgaram publicamente. Depois da morte de AV, a família promoveu a realização de um leilão de objetos pessoais do cantor, onde constam retratos do mesmo, na praia, com o peito descoberto, com peças de roupa justa, fora dos padrões masculinos da época, permitindo ver o contorno do sexo; estão fotografias em sua casa, no espaço da sua intimidade, sobressaindo a cor rosa, sentado na cama, ao lado de um vestido de mulher. Divulgaram e colocaram no comércio essas fotos, pelo que parece pretenderem usa uma bitola mais exigente com a ré.
Além disso, na bibliografia publica por MG, que foi colocada no mercado há vários anos, está publicada uma fotografia de TP em que AV tem a parte frontal do corpo despido, estando o sexo discretamente ocultado atrás de uma planta ornamental. E outra em que o artista está na praia, com uma peça de roupa que mostra o contorno do sexo e a mão perto dele. Não se conhece qualquer reação dos familiares contra estas fotos.
Dizem que as fotos do livro das rés mostram um pouco mais. Parece-nos que mostram pouco mais do que já se conhecia. Um pouco mais de centímetros revelam as nádegas descobertas.
A intenção de usar as fotografias num projeto musical mostra que ainda se inseriam no projeto artístico de AV. Se as imagens podiam indignar a moral vigente nos anos 80, fortemente homofóbica, parece-nos que, decorridos 40 anos, estas imagens devem ser vistas com outra perspetiva, de maior tolerância, de respeito pela diferença. Não perturbam a moral vigente, como não afetam a honra, reputação ou decoro do artista, sendo, pelo contrário, um tributo ao artista e a uma ideia de liberdade. Um imaginário visual fruto de TP e AV.
O limite do nu integral ou da exibição do sexo não foi ultrapassado.
Como já referimos anteriormente, AV mantinha perante a família uma imagem mais conservadora. Por isso, AV não ia vestido de uma forma exuberante ver a mãe a _____, não misturava família e amigos, nem era acompanhado pelos irmãos na diversão noturna. Esta imagem de António, que era uma postura mais conservadora perante a família, não é a imagem da pessoa e do artista em que se tornou. Não é a imagem que o ele tinha publicamente quando estava vivo, pelo que pensamos que o direito não deve proteger publicamente uma imagem diferente.
O legado de AV não é exclusivamente os poemas e música que criou, mas a imagem que idealizou e projetou, que não é assim tão diferente da pessoa que era.
O direito dos familiares a que a dignidade e memória de AV sejam respeitadas está, a nossos ver, salvaguardado. As fotografias não constituem uma forma de devassa, não causam qualquer prejuízo para a honra, reputação ou decoro de AV nem constituem uma ofensa à dignidade dos parentes e herdeiros».
Subscrevemos inteiramente o transcrito segmento da sentença recorrida, nada mais se tornando necessário acrescentar para concluir que, no caso concreto:
- não era necessário o consentimento dos sucessores de AV para a publicação das fotografias deste, nos termos em que o foram, no livro identificado em 3. dos factos provados;
- da publicação das fotografias no dito livro, não resultou prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro de AV ou dos seus sucessores.
Apenas se conclui no sentido de que, no presente caso, além da manifesta notoriedade do retratado, as “finalidades culturais” subjacentes à edição do livro, contendo as fotografias de AV, são manifestamente predominantes relativamente ao aproveitamento económico que as requeridas possam fazer da sua publicação, pois tal aproveitamento, consistente no produto da venda do livro, deduzidos os custos inerentes à sua edição, não pode deixar de ser considerado um corolário inerente à prossecução daquela finalidade.
***
IV - DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a bem estruturada e fundamentada sentença recorrida.
Custas pelo apelante - arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, do C.P.C.

Lisboa, 6 de julho de 2021
José Capacete
Carlos Oliveira
Digo Ravara
_______________________________________________________
[1] Doravante referida por 1.ª requerida.
[2] Doravante referida por 2.ª requerida.
[3] Segundo Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, p. 91, a decisão judicial é um ato processual enquanto ato que produz, de forma direta, efeito em processo.
[4] Para Loic Cadiet / Emmanuel Jeuland, Droit judiciaire général, Paris, LGDI, 2014, p. 617, a decisão judicial é o «ato pelo qual o juiz se pronuncia sobre uma pretensão jurídica, haja ou não litígio entre duas ou mais pessoas». A noção de decisão judicial abrange também as decisões pronunciadas oficiosamente, sem dedução de pretensão do sujeito processual. Quanto à sua relação com a consequência procedimental uma decisão pode interlocutória e final.
[5] Cfr. Rui Pinto, O Recurso Civil, Uma Teoria Geral, Noção, Objeto, Natureza, Fundamento, Pressupostos e Sistemas, AAFDL, Lisboa, 2017, p. 62.
[6] Idem, p. 65.
[7] Idem, p. 69.
[8] Pertencem a este diploma todos os preceitos que vierem a ser citados sem indicação da respetiva fonte.
[9] Tratado de Direito Civil - IV - Parte Geral - Pessoas - 4.ª Edição, Almedina, 2017, pp. 254-255.
[10] Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, p. 195.
[11] Dos Contratos Relativos ao Direito à Imagem, in O Direito, Ano 133.º, II, 2001, p. 196.
[12] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado cit., p. 256.
[13] Cfr. Cláudia Trabuco, Dos Contratos cit., pp. 405-406.
[14] Constituição da República Portuguesa, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1983, p. 181., apud Cláudia Trabuco, Dos Contratos cit., p. 406. nota 40.
[15] Comentário aos artigos 70.º a 81.º do Código Civil, Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 179.
[16] Tratado cit., p. 258.
[17] Cfr. David de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem / Contributo para um Estudo do seu Aproveitamento Consentido e Inter Vivos, Coimbra Editora, 2009, p. 240. Sobre a diferença entre imagem e retrato, veja-se, na mesma obra, Capítulo I, § 4.°, 7 e 8.1.
[18] p. 242-243.
[19] Do Conteúdo cit., p. 246
[20] Cfr. David de Oliveira Festas, Do Conteúdo cit., p. 271-276.
[21] Cfr. António Agostinho Guedes, Comentário cit., p. 196.
[22] A Responsabilidade Civil Pela Informação Transmitida Pela Televisão, Lex, 1999, p. 91.
[23] David de Oliveira Festas, Do Conteúdo cit., pp. 277-279.
[24] Lições de Direitos da Personalidade, in BFDUC, Vol. LXVII, Coimbra, 1991, p. 191.
[25] Pessoa cujo percurso profissional, conforme consta da contracapa do livro, «esteve sempre ligado à cultura, nomeadamente no campo do audiovisual».
[26] Cfr. David de Oliveira Festas, Do Conteúdo cit., pp. 283-286 e nota 1020.