Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3900/2007-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Os tribunais competentes para a preparação e julgamento de uma acção de interdição por anomalia psíquica são (em Lisboa) as varas cíveis e não os juízos cíveis.

(SC)
Decisão Texto Integral:          Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa



     I. RELATÓRIO

O Ministério Público instaurou, junto das Varas Cíveis de Lisboa, acção declarativa constitutiva de interdição por anomalia psíquica, com processo especial, contra […], residente em Lisboa, pedindo que se declare a interdição deste. Atribuiu à acção o valor de € 14.963,95.

No primeiro despacho judicial proferido o Sr. Juiz proferiu despacho judicial, em que concluiu pela incompetência daquela Vara Cível, em razão da forma de processo, ordenando a respectiva remessa do processo, para efeitos de distribuição, aos Juízos Cíveis de Lisboa.

O despacho proferido tem o seguinte teor:

“Sendo proposta, originariamente, uma acção declarativa comum cujo valor exceda a alçada da Relação ( € 14.963,94) corresponde-lhe a forma de processo ordinário — Artigos 4°, n°2, 462° do Código de Processo Civil e 24°, n°1 da LOTJ.

Nos termos do Artigo 97°, n°1, alínea a) da Lei n° 3/99, de 13 de Janeiro, compete às Varas Cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo.

Daqui resulta que as razões de atribuição de competência às Varas Cíveis decorrem de um duplo critério cumulativo: valor superior à alçada do Tribunal da Relação a que acresce a previsão da intervenção do tribunal colectivo. Só o valor é, de per si, inidóneo para a atribuição de competência à Vara Cível. Assim, ninguém questiona que um processo de inventário de valor superior a € 14.963,94 é da competência dos Juízos Cíveis. Nesse tipo de processo e noutros, não prevê a lei sequer a ocorrência de julgamento (Artigos 652° e 653° do Código de Processo Civil).

Noutros tipos de processo, prevê a lei que, a partir de determinada fase haja uma alteração na tramitação, passando o processo a seguir a tramitação do processo ordinário, v. g., acção de interdição (artigo 952º, nº 2 do Código de Processo Civil) e prestação de contas (Artigo 1017°, n°1 do Código de Processo Civil ) ( processos não originariamente sujeitos à forma de processo ordinário).

Para este último tipo de processos prevê o n°4 do mesmo Artigo 97° que "São ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, e determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo." Ou seja, distingue a lei entre os processos que são originariamente da competência das Varas Cíveis e os que, não sendo originariamente da competência das Varas Cíveis, são remetidos às Varas nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do Tribunal Colectivo. O momento determinante da remessa à Vara Cível é o da realização do julgamento ("São ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução (...)".

Qual a razão desta atribuição de competência específica para o julgamento à Vara Cível e não ao Juízo Cível ou, mutatis mutandis, ao Juiz de Círculo e não ao Juiz de Comarca?

Colhemo-la nos Artigos 45° e 46° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n° 21/85, de 30.7.: os juízes das varas, tal como os juízes de círculo são nomeados de entre os juízes de direito com mais de dez anos de serviço e classificação não inferior a Bom com distinção. Ou seja, o legislador -- atento o valor dos interesses em discussão entende que o julgamento deve ser feito por juiz com mais experiência e mérito, associando a estes a Ideia de maior preparação técnica, maturidade e idoneidade. Conforme refere LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum, À luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2000, pg. 273, Nota 10, "( o . ) o presidente do tribunal colectivo é normalmente um juiz mais experiente do que o da causa , justificando-se que intervenha nas acções de maior valor (...)".

Por sua vez, o Artigo 646°, n° l do Código de Processo Civil prescreve que a discussão e julgamento da causa são feitos com intervenção do tribunal colectivo se ambas aspastes assim o tiverem requerido.

Se as partes não requererem ambas a intervenção do tribunal colectivo (situação mais frequente), então rege o disposto no n°5 do Artigo 646° do Código de Processo Civil, segundo o qual "Quando não tenha lugar a intervenção do colectivo, o julgamento da matéria de facto e a prolação da sentença final incumbem ao juiz que a ele deveria presidir, se a sua intervenção tivesse tido lugar" (sublinhado nosso). Assim, nos processos a que se reporta o n°4 do Artigo 97° da LOTJ competirá ao Juiz da Vara Cível o julgamento da matéria de facto e a prolação da sentença final, apenas, e não a restante tramitação do processo. O que é confirmado também pelo n°5 do Artigo 97° da LOTJ.

O que se compreende porquanto o tribunal colectivo é presidido, nos tribunais em que o colectivo é constituído por juízes privativos, pelo juiz do processo, competindo ao presidente efectuar o julgamento e proferir a sentença final nas acções cíveis – cfr. Artigos 105°, n°3, 107°, n°1, alínea b) e 108°, n°, alíneas a) a d) da LOTJ.

Na verdade, a LOTJ distingue entre a preparação das acções e o respectivo julgamento (cfr. Artigos. 97°, n°1, alínea a), n°4, 105°, n°3 e 108°, n° l, alíneas c) e d) ), só podendo caber às Varas Cíveis – com ou sem intervenção de colectivo – o julgamento e não a preparação de processo que não seja originariamente da sua competência. Exceptua-se a esta regra a remessa às Varas Cíveis das acções declarativas sumárias (originariamente instauradas nos Juízos Cíveis) em que, por via da reconvenção, se altera o valor para quantia igual ou superior a € 14.963,94 (Artigos 308°, n°2 do Código de Processo Civil e 97°, n°3 da LOTJ), caso em que a acção passa a ser também preparada pela Vara Cível.

Qualquer outra interpretação colide, inapelavelmente, com o disposto nos Artigos 97°, n° 1, alínea a), n°4, 105°, n°3, 107°, n° l, alínea b) e 108°, n°, alíneas a) a d) da LOTJ, cabendo presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados — Artigo 9°, n°3 do Código Civil.

Flui de todo o exposto que - no que tange aos processos não originariamente sujeitos à forma de processo ordinário e com ressalva do que ficou dito sobre a alteração do valor na sequência de reconvenção - as Varas Cíveis só são competentes para o respectivo julgamento e prolação de sentença (Artigos 97°, n° 1, alínea a) , r °4 , 105°, n°3, 107°, n°l, alínea b) e 108°, n°, alíneas a) a d) da LOTJ), cabendo a respectiva preparação aos Juízes Cíveis ( competência residual nos termos do Artigo 99° da LOTJ)

Já foi decidido que a explicitação decorrente da parte final do n°2 do Artigo 7° do Decreto-lei n° 32/2003, de 17.2. ( "aplicando-se a forma de processo comum") tem de significar que não pode prescindir-se do concurso dos referidos Artigos 97°, n°, al, alínea a) e n°4 e 106°, alínea b) da Lei n° 3/97 bem como do Artigo 646° do Código de Processo Civil pelo que o processo só deve ser remetido às varas Cíveis para julgamento na eventualidade das partes requererem a intervenção do tribunal colectivo e de não ocorrerem as excepções previstas no Artigo 646°, nos. 1 e 2 do Código de Processo Civil - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.1.2005, Francisco Magueijo, CJ 2005 - I, pg. 103.

Por nós, temos que essa aplicação da forma de processo comum não implica, consoante já vimos, que sendo o valor da dívida superior a € 14.963,94 tal acarrete, automaticamente, a competência da Vara Cível pois, consoante vimos, a competência da Vara Cível não decorre automaticamente de um valor do processo superior a € 14.963,94.

Assim, nos termos das disposições conjugadas dos Artigos 97°, n° 1, alínea a) , art° 4º , 105°, n°3, 107°, n°1, alínea b) e 108°, alíneas a) a d) da LOTJ e 68° e 952° n°2 do Código de Processo Civil, nos processos especiais de interdição só compete às Varas Cíveis efectuar o julgamento e a prolação de sentença, devendo os processos ser remetidos pelo Juízo Cível à distribuição pelas Varas apenas quando estiver preparado para marcação de julgamento, o que se consigna.

Na mesma linha de raciocínio que defendemos, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.9.2006, Amaral Ferreira, publicado na CJ 2006 — IV, pgs. 155-156. Desse Acórdão, extractamos os passos mais significativos:

(...) a acção de interdição, porque é uma acção sobre o estado das pessoas (Arts. 138° a 151' do Código Civil ) , excede o valor da alçada da Relação, mas porque se trata de um processo especial é regulado:

a) em primeiro lugar, pelas disposições contidas nos Arts. 944° a 958° do Código de Processo Civil ;
b) em segundo lugar, se estes artigos não forem suficientes, pelas disposições gerais e comuns;
c) em terceiro lugar, pelas normas relativas ao processo ordinário (Arts. 467° e segs.).

Daí que a acção de interdição só terá seguimento como ordinária se, findos os articulados e o exame, a acção tiver sido contestada , ou o processo , em qualquer caso, não oferecer elementos suficientes (Art. 952° do Código de Processo Civil )".

Em sentido totalmente não coincidente, referiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.5.2003, Granja da Fonseca, acessível em www.dgsi.pt/jtrl, que se trata de uma acção que não é originariamente da competência das Varas Cíveis mas que, em determinada fase da sua tramitação, pode ser remetida para as mesmas. Em sentido parcialmente equivalente veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de
20.4.2006,
Teles de Menezes, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.

A incompetência em razão da forma do processo é de conhecimento oficioso – Artigo 110°, n°2 do Código de Processo Civil.”

Inconformado, o Mº Público interpôs recurso de tal decisão, no âmbito do qual apresentou as seguintes conclusões:

1. As Varas Cíveis são Tribunais de Competência específica, competindo-lhes a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação, para as quais a Lei preveja a Intervenção do Tribunal Colectivo, conforme o disposto nos arts. 96° e 97° da LOFTJ.
2. Tal competência fixa-se no momento em que a acção é proposta, nos termos do disposto no art. 2° da LOFTJ.

3. As acções especiais de interdição por anomalia psíquica, como a destes autos, têm valor superior ao da alçada do Tribunal da Relação - art. 312° do C.P.Civil.

4. Os arts 952° n° 2 e 646° nº 1 do C.P.Civil prevêem a hipótese de intervenção do Tribunal Colectivo no julgamento, posto que este deverá seguir os termos do processo ordinário.

5. Assim, estão verificados todos os requisitos que atribuem competência às Varas Cíveis para conhecer das acções especiais de interdição por anomalia psíquica.

6. Não releva, para excepcionar essa competência, o argumento de poder não haver contestação ao pedido (ou de se aceitarem os factos deduzidos na p.i.), pois a Lei não encara essa circunstância como requisito de competência. bastando-se com a susceptibilidade de intervenção do Tribunal Colectivo.

7. Igualmente, em nada releva para a excepção dessa competência, o disposto no art 97° n° 4 da LOFTJ, pois este destina-se a situações de causa superveniente e, deste modo, em nada afasta a aplicação do n° 1 do dito preceito, a todos os casos que se integrem, ab initio na previsão da norma.

8. A douta decisão agravada ao declarar a incompetência da […] Vara Cível de Lisboa, para conhecer desta acção especial de interdição por anomalia psíquica, remetendo-a aos Juízos Cíveis de Lisboa, fez incorrecta interpretação dos arts 22°, 96°, 97° n° 1 al a) e 99° da LOFTJ e, bem assim, dos art°s 952° n° 2 e 646° n° 1 do C.P.Civil, normas que assim foram violadas.

9. Sendo assim, como entendemos que é deve a Decisão em apreciação ser alterada e substituída por outra que decida em conformidade.

     O Sr. Juiz da 1ª Instância proferiu despacho a sustentar a manutenção da decisão em apreciação.

     Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
    

    

     II. FUNDAMENTAÇÃO

     A única questão em discussão no presente recurso prende-se com a apreciação e definição de qual é o Tribunal competente, em Lisboa, para preparar e julgar as acções especiais de interdição.

     Dispõe o art. 267º/1 do CPC que: “a instância inicia-se pela propositura da acção e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida na secretaria a respectiva petição inicial […]”, fixando-se, nesse momento, a competência do Tribunal – art. 305º/2 do CPC.

     Nos termos do art. 68º do CPC “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo valor ou pela forma de processo aplicável, se inserem na competência dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, estabelecendo este Código os casos em que às partes é lícito prescindir da intervenção do colectivo”.

O art. 99º da Lei 3/99, de 13.Janeiro dispõe que: “compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam de competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível”.

     Por sua vez, refere o art. 97º/1/a da Lei 3/99, de 13.Janeiro que compete às varas cíveis “a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo”.

     As acções especiais de interdição, enquanto acções declarativas constitutivas, têm em vista o reconhecimento e declaração de interdição devendo, pois, ser consideradas como acções sobre o estado das pessoas, nos termos e para os efeitos do art. 312º do CPC.

     E foi tendo por base este mesmo pressuposto que o Ministério Público, na petição inicial apresentada, atribuiu à mesma, o valor de € 14.963,95.

Verificando-se, assim, o primeiro dos requisitos da citada disposição legal.

Por outro lado, está expressamente prevista na tramitação desta acção especial que, caso não seja objecto imediato de decisão, seguirá os termos do processo ordinário, posteriores aos articulados – art. 952º do CPC – o que desde logo pressupõe a possibilidade de intervenção do Tribunal Colectivo.

     E esta possibilidade não importa, como não poderia deixar de ser, que tenha necessariamente de haver a intervenção do Tribunal Colectivo para a decisão a proferir, tanto mais que, como é a solução processual que actualmente vigora, tal intervenção apenas ocorrerá caso haja expresso pedido de ambas as partes nesse sentido – art. 646º/1 do CPC – o que sucede, aliás, em qualquer outra acção ordinária, ainda que não observe tramitação especial.

     Acresce que, conforme resulta já do acima exposto, que a possibilidade de tal intervenção deve ser reportada ao momento em que a acção é instaurada, conforme dispõe o art. 22º/1 da Lei 3/99, de 13.Janeiro, que estabelece: “a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente”.

     Conclui-se, pois, que basta a mera possibilidade de intervenção do Tribunal Colectivo para se considerar como verificado o segundo dos requisitos que concede competência para a tramitação e decisão da presente acção às varas cíveis de Lisboa (neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.Julho.2006, Proc. 6121/2006-8 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.Março.2006, Proc. 2064/2006-7, ambos em www.dgsi.pt/jtrl).



     III. DECISÃO

     Face ao exposto, concede-se provimento ao agravo e, em conformidade, revoga-se a decisão impugnada que deve ser substituída por outra que considere […] Vara Cível de Lisboa […] competente para conhecer, preparar e julgar a presente acção especial de interdição respeitante a […].

     Sem custas.


                       
                            Lisboa, 05 de Junho de 2007


                            Dina Maria Monteiro

                            Luís Espírito Santo

                            Isabel Salgado