Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14691/16.7T8LSB.L1-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: DIREITOS REAIS
DIREITO DE SUPERFÍCIE
TIPICIDADE
REGISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-Sendo absolutamente lícita a transmissibilidade do direito de superfície – vide artigo 1534º, do Código Civil -, a estipulação contratual de um prazo de vigência inferior ao previsto para o direito do superficiário cedente contende efectivamente com o conteúdo essencial da tipologia do direito real menor, afectando-o decisivamente na sua própria anatomia.
II - Através da diversidade de prazos de vigência dos direitos de superfície que (aparentemente) se sucedem, acaba por se gerar uma situação jurídica nova, perfeitamente atípica, em que o superficiário cedente mantém formalmente essa sua qualidade, para a vir a consolidar mais tarde, definitivamente, com a extinção precoce, pelo decurso do prazo inferior ao seu, do direito de superfície que havia transmitido ao cessionário.
III - Enquanto a cessão típica do direito de superfície implicaria a extinção das utilidades associadas ao direito de superfície do cedente – que transmitindo-o pelos 50 anos previstos deixaria de manter tal posição jurídica -, já a solução inovatória encontrada pelos celebrantes cria uma nova configuração real do direito de superfície – um direito de superfície sobreposto a outro direito superfície, com ele co-existente (e que, não obstante cedido, persiste, revitalizando-se a prazo) –, a que nenhuma norma substantiva confere o necessário respaldo típico.
IV - O negócio em causa manterá, portanto e apenas, os seus efeitos obrigacionais, não recolhendo a imprescindível base legal para, enquanto direito real, ser objecto de registo na Conservatório do Registo Predial, impondo-se dessa forma a respectiva recusa ao abrigo do artigo 69º, nº 1, alínea c), segundo o qual: “o registo deve ser recusado (…) quando se verifique que o facto constante do documento já está registado ou não está sujeito a registo”.
VI - Relativamente à necessidade propalada pela apelante no sentido de evitar que o direito de superfície, enquanto direito real, fique condenado a ser uma realidade jurídica imutável, devendo adaptar-se aos ajustamentos que as partes pretendam introduzir com vista a melhor servir os seus interesses, a mesma será porventura plenamente curial no plano do direito a constituir, o que, contudo, não desonera os tribunais, enquanto órgãos de soberania vinculados constitucionalmente à aplicação da lei vigente, de optar pela solução jurídica que importaria quiçá modificar por via legislativa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão em texto integral

     
Assunto: Transmissão do direito de superfície por um período temporal diverso (mais curto) que o vigente no direito real de gozo do transmitente. Violação do princípio da tipicidade – numerus clausus - dos direitos reais (artigo 1306º, do Código Civil). Recusa da sujeição do facto a registo, ao abrigo do artigo 69º, nº 1, alínea c), do Código de Registo Predial.


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de ... ( 7ª Secção ).

                 I – RELATÓRIO.
A ... PORTUGUESA, S.A. impugnou judicialmente a decisão da Exma. Conservadora do Registo Predial de ... que recusou o registo pretendido pela ora Recorrente através da apresentação n.º 1001 de 2015/11/24 da transmissão do direito de superfície a seu favor sobre o prédio descrito sob o n.º 3038/20030410.
Previamente havia sido interposto recurso hierárquico que foi indeferido.
Remetidos os autos a este Tribunal, o Ministério Público elaborou parecer pugnando pela improcedência do recurso.
 Foi proferida sentença, datada de 3 de Novembro de 2016, julgando improcedente a impugnação judicial apresentada pela ... PORTUGUESA, S.A. e confirmando na íntegra a recusa do registo requerido pela AP. 1001 de 2015/11/24, referente ao prédio descrito sob o n.º 3038/20030410, da freguesia de ... (cfr. fls. 116 a 123).
A impugnante apresentou recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 140).
Juntas as competentes alegações, a fls. 128 a 142, formulou a apelante as seguintes conclusões:
A) O artigo 1524º do Código Civil permite que o Direito de Superfície possa ser temporário ou perpétuo e, de igual modo “o direito de superfície, em qualquer dos seus momentos, é alienável, quer por acto entre vivos, quer por morte”.
B) Estamos perante um tipo de direito real e que, tendo em conta o princípio de numerus clausus contido no artigo 1306º/1 do Código Civil, a modelação do tipo real por via da vontade dos particulares não pode “alterar os elementos que pertencem à própria definição do tipo de cada direito real”.
C) Quer no contrato base (celebrado entre o Município de ... e o ... ... e ...), quer no contrato subsequente (celebrado entre o ... ... e ... e a ... Portuguesa, S.A.), estamos perante a constituição de um direito de superfície temporário (no primeiro caso) e a transmissão do mesmo direito de superfície, igualmente com prazo temporário, embora mais curto do que o primeiro.
D) O direito de superfície que consta do clausulado do contrato corresponde integralmente ao tipo legal previsto no artigo 1524º do Código Civil, e, bem assim, o disposto no artigo 1525º do Código Civil relativamente à determinação do objecto do direito de superfície. A isto acresce que o direito de superfície constituído no contrato inicial é temporário e o contrato subsequente também o é, mantendo-se nos limites do direito de superfície do contrato base. Ou seja, o que foi transmitido (pelo ...) o que se recebeu e nos limites daquilo que o Município transmitiu.
E) A circunstância de ser transitória ou perpétua não faz parte da natureza do tipo legal em análise, sendo que apenas seria acertada a decisão se o contrato celebrado tivesse sido para além daquilo que tinha sido constituído no direito de superfície, o que não aconteceu.
F) Donde se conclui que, sendo o direito de superfície transmissível por acto entre vivos (cfr. artigos 1524º, 1528º e 1534º do CC) e estando a correspondente aquisição sujeita a registo, de acordo com o disposto no artigo 2º/1/a) do C.R.P., mal andou a douta sentença sob recurso que julgou improcedente a impugnação apresentada.
G) Mas mesmo que se entenda que o carácter temporário ou perpétuo faz parte da natureza do tipo legal ainda assim à mesma conclusão chegaremos, já que o direito de superfície não está, nem pode estar, condenado a ser uma realidade jurídica imutável.
H) Às partes assiste o direito de proceder a ajustamentos àquele direito que sirvam melhor os seus interesses, dentro dos limites de conformação consentidos pelo já aqui muito citado princípio da tipicidade (cfr. artigo 1306º do CC).
I) Às partes é legalmente permitido desenvolver e aditar cláusulas negociais que sirvam melhor a sua realidade concreta, sem que de tal circunstância se possa concluir, sem mais, pelo desvirtuamento da natureza do direito que se pretende transmitir.
J) Revertendo para o caso que nos ocupa, verifica-se que as partes contratantes respeitaram a natureza do direito de superfície inicialmente constituído, avultando entre elas, a natureza temporária que o caracteriza.
K) O direito de superfície constituiu-se como temporário e transmitiu-se como temporário, pelo que o direito de superfície se mantém substancialmente o mesmo, tendo apenas as partes ajustado o prazo de duração da referida transmissão, reduzindo-o.
L) A douta sentença sob recurso violou assim o disposto nos artigos 1307º/2, 1524º, 1528º e 1534º do CC) e o artigo 2º/1/a) do C.R.P.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e revogado o acto de recusa do registo requerido pela apresentação n.º 1001 de 2015/11/24, referente ao prédio descrito sob o n.º 3038/20030410, da freguesia de ... (posteriormente confirmado, em sede de recurso hierárquico, pelo despacho de 22/04/2015 do Senhor Presidente do Conselho Directivo, ainda que com diferente fundamento legal), por violação do disposto no artigo 2º, nº 1, alínea a) do Código do Registo Predial.

 
II – FACTOS PROVADOS.
Foi dado como provado, em 1ª instância, que:
1 – A Impugnante ... PORTUGUESA, S.A., requereu junto da Conservatória do Registo Predial de ... o registo de transmissão do direito de superfície a seu favor sobre o prédio descrito sob o n.º 3038/20030410, pelo preço de € 500.000,00 e pelo prazo que medeia entre as zero horas do dia 10 de Maio de 2008 e o dia 30 de Junho de 2017.
2 - O pedido de registo foi instruído com prova matricial, certidão permanente da sociedade apresentante e fotocópia certificada da escritura denominada de “Cessão do direito de superfície” outorgada em 9 de Maio de 2008 pelo Notário Pedro Nunes Rodrigues, a fls. 67 do Livro 113-A.
3 – Sobre tal pretensão, a Exma. Conservadora exarou despacho de recusa, sustentado nos artigos 43.º, 68.º, 69.º, n.º 2 e 71.º do Código de Registo Predial, nos seguintes termos: “Recusado o acto requerido pelo facto de o mesmo já ter sido apresentado a registo, pela Ap. 16 de 2008/05/21, com base nos mesmos documentos, nomeadamente escritura de cessão do direito de superfície, o pedido ser o mesmo, e os motivos que levaram à recusa à data, se manterem atualmente os mesmos.”
4 – O despacho referente à Ap. 16, de 2008/05/21 foi fundamentado nos seguintes termos: “Recusado por não estar sujeito a registo o facto titulado nos documentos apresentados. Notifique-se. Art. 68.º e 69.º/1/c), CRP”.
5 – Por não concordar com o despacho de qualificação proferido pela Exma. Conservadora de recusa do acto praticado, por entender que o facto se encontra sujeito a registo, a ora Impugnante interpôs o competente recurso hierárquico.
6 – Por despacho do Exmo. Presidente do Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, proferido a 22 de Abril de 2016, foi homologado o parecer pelo Conselho Consultivo e, em sequência, indeferido o recurso hierárquico apresentado pela ora Impugnante.
7 - Em termos descritivos, o prédio n.º 3038/20030410 é um prédio urbano, composto por posto de abastecimento de combustíveis, sendo a A.C. de 187,35 m2 e a A.D. de 3412,65 m2. Por parte das inscrições o prédio contém duas inscrições de aquisição a favor do Município de ... (AP. 1 de 1964/05/18 e AP. 1 de 1972/10/26), uma inscrição de direito de superfície a favor do ... ... e ... (AP. 52 de 2003/04/10) e uma anotação de recusa da transmissão do direito de superfície (AP. 16 de 2008/05/21).
8 – O extracto da inscrição do direito de superfície contém as seguintes menções:
“PRAZO: 50 anos, consecutivos, contados a partir de 29 de Dezembro de 1986, prorrogável por vontade do superficiário por períodos de 35 anos, desde que a Câmara Municipal de ... não necessite do terreno para obras de renovação ou outro fim de interesse público.
OBRIGAÇÕES DO SUPERFICIÁRIO: O superficiário obriga-se a construir um posto de abastecimento de combustíveis, devendo as obras ter início no prazo de 2 anos e estarem concluídas no prazo de 5 anos, a contar de 29 de Dezembro de 1986, sob pena de reversão para a Câmara, podendo qualquer destes prazos serem prorrogados.”
9 – Por escritura pública denominado “CESSÃO DE DIREITO DE SUPERFÍCIE”, lavrada em 9 de Maio de 2008, foi realizado o seguinte negócio jurídico:
“... ... e ..., titular do direito de superfície inscrito pela AP. 52 de 2003/04/10 no prédio n.º 3038/20030410, freguesia de ..., concelho de ..., composto de posto de abastecimento de combustíveis, pelo preço de 500.000,00€, cede a ... Portuguesa, S.A., o identificado direito de superfície, direito este que tem por objecto um posto de abastecimento de combustíveis ao público e respectivos serviços de assistência complementares e por todo o tempo que mediar entre as zero horas do dia de amanhã e o dia trinta de Junho de 2017, o qual aceitou o contrato.”
10 – Do documento complementar constam as seguintes cláusulas:
“Objecto – UM. O ... transmite à ..., que aceita livre de quaisquer ónus ou encargos, o direito real de superfície de que é titular, atrás identificado, transmissão esta que abrange a inerente obra superficiária constituída pelo “Posto de Abastecimento”, com inerentes edifícios, obras, equipamentos e zonas acessórias e de apoio (…)
Prazo – A transmissão ora efectuada produzirá efeitos a partir das zero horas do dia de amanhã e vigorará até 30 de Junho de dois mil e dezassete.
Entrega da obra superficiária – Considerando que, por escritura de trinta e um de Março de mil novecentos e noventa e três, o ... cedeu à ... a exploração temporária do “Posto de Abastecimento”, pelo prazo de dez anos, já prorrogado até à presente data a entrega da obra superficiária objecto deste contrato é pelo ... feita sem qualquer solução de continuidade relativamente ao referido Contrato de Cessão de Exploração.
Exploração – O regime de funcionamento e exploração do “Posto de Abastecimento” será, em todos os seus aspectos, da livre escolha da ..., a qual poderá, designadamente, consoante preferir, proceder directamente à respectiva exploração ou conceder a terceiro ou terceiros (…) a exploração do estabelecimento (…).
Efeitos da extinção do direito de superfície – Extinto o direito de superfície, pelo decurso do prazo – ou por qualquer outra causa que não seja o encerramento do “Posto de Abastecimento” – a obra superficiária constituída pelo Posto de Abastecimento reverterá para o ... (…).
Direito de preferência – O ... desde já assume a obrigação, à qual expressamente é atribuída eficácia real, de, extinto o direito de superfície, por qualquer causa, a até um ano após tal extinção, dar preferência à ... em nova transmissão do direito de superfície, ou na celebração de qualquer negócio real ou meramente obrigacional, que visa proporcionar a terceiro ou terceiros a exploração do posto de abastecimento (…)”.
  
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:
 Transmissão do direito de superfície por um período temporal diverso (mais curto) que o vigente no direito real de gozo do transmitente. Violação do princípio da tipicidade – numerus clausus - dos direitos reais (artigo 1306º, do Código Civil). Recusa da sujeição do facto a registo, ao abrigo do artigo 69º, nº 1, alínea c), do Código de Registo Predial.
Passemos à sua análise:
A recusa do registo do facto apresentado pela ora recorrente assentou, segundo a posição assumida pela Conservatória do Registo Predial em causa, na seguinte ordem de razões:
O superficiário só pode transmitir o direito de superfície que ficou conformado pelo título constitutivo, com aquela finalidade específica e, sendo temporário, com o seu prazo específico.
O direito das coisas tende a oferecer-se não apenas em tipos característicos, mas a oferecer-se numa tipologia taxativa, num elenco fechado de formas ou de direitos.
A autonomia privada na modificação dos direitos reais tem como limite o princípio do numerus clausus, não podendo ser alterados os elementos que pertencem à própria definição do tipo de cada direito real.
Constituindo o recurso às normas sobre o direito de propriedade regime subsidiário aplicável ao direito de superfície, cumpre tomar em consideração que o artigo 1307º, nº 2, do Código Civil, só admite a propriedade temporária nos casos previstos na lei.
Esta transmissão do direito de superfície com a fixação de um prazo inferior ao que vigente para o superficiário cedente constitui uma situação de propriedade temporária não especialmente prevista na lei e, nessa medida, nula, por violação do princípio do numerus clausus, o que legitima a recusa do respectivo registo ao abrigo do artigo 69º, nº 1, alínea d) do Código de Registo Predial, onde se refere: “o registo deve ser recusado quando for manifesta a nulidade do facto”.
Apresentada a competente impugnação judicial, o juiz a quo julgou-a improcedente.
Justificou essencialmente:
O ora recorrente não pretende substituir-se na posição do superficiário primitivo (cujo direito se manterá incólume até 2036), visando apenas uma modificação objectiva do direito de superfície já existente.
Ou seja, pretende a constituição de um novo direito real de superfície a nascer do anterior, sem o intuito de o modificar (uma vez que este manter-se-á inalterado após a vigência do direito de superfície do cessionário).
Trata-se de um direito de superfície dentro de outro direito de superfície, restringindo temporalmente o antecedente.
Tal só seria admissível nos casos expressamente previstos na lei, tal como sucede no regime do direito de propriedade, e tal não se verifica na situação sub judice.
Pelo que o direito ora constituído reveste natureza meramente obrigacional, nos termos do artigo 1306º, nº 1, do Código Civil, o que justifica a recusa do facto levado a registo, ao abrigo do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea c), segundo o qual: “o registo deve ser recusado (…) quando se verifique que o facto constante do documento já está registado ou não está sujeito a registo”.
Nas suas alegações de recurso, sustenta a apelante:
 Quer no contrato base (celebrado entre o Município de ... e o ... ... e ...), quer no contrato subsequente (celebrado entre o ... ... e ... e a ... Portuguesa, S.A.), estamos perante a constituição de um direito de superfície temporário (no primeiro caso) e a transmissão do mesmo direito de superfície, igualmente com prazo temporário, embora mais curto do que o primeiro.
 O direito de superfície que consta do clausulado do contrato corresponde integralmente ao tipo legal previsto no artigo 1524º do Código Civil, e, bem assim, o disposto no artigo 1525º do Código Civil relativamente à determinação do objecto do direito de superfície. A isto acresce que o direito de superfície constituído no contrato inicial é temporário e o contrato subsequente também o é, mantendo-se nos limites do direito de superfície do contrato base. Ou seja, o que foi transmitido (pelo ...) o que se recebeu e nos limites daquilo que o Município transmitiu.
 A circunstância de ser transitória ou perpétua não faz parte da natureza do tipo legal em análise, sendo que apenas seria acertada a decisão se o contrato celebrado tivesse sido para além daquilo que tinha sido constituído no direito de superfície, o que não aconteceu.
 Mas mesmo que se entenda que o carácter temporário ou perpétuo faz parte da natureza do tipo legal ainda assim à mesma conclusão chegaremos, já que o direito de superfície não está, nem pode estar, condenado a ser uma realidade jurídica imutável.
 Às partes assiste o direito de proceder a ajustamentos àquele direito que sirvam melhor os seus interesses, dentro dos limites de conformação consentidos pelo já aqui muito citado princípio da tipicidade (cfr. artigo 1306º do CC).
 Às partes é legalmente permitido desenvolver e aditar cláusulas negociais que sirvam melhor a sua realidade concreta, sem que de tal circunstância se possa concluir, sem mais, pelo desvirtuamento da natureza do direito que se pretende transmitir.
 Revertendo para o caso que nos ocupa, verifica-se que as partes contratantes respeitaram a natureza do direito de superfície inicialmente constituído, avultando entre elas, a natureza temporária que o caracteriza.
 O direito de superfície constituiu-se como temporário e transmitiu-se como temporário, pelo que o direito de superfície se mantém substancialmente o mesmo, tendo apenas as partes ajustado o prazo de duração da referida transmissão, reduzindo-o.
Apreciando:
Relativamente à transmissão do direito de superfície operada através da escritura pública realizada em 9 de Maio de 2008 pelo ... ... e ... (titular de um direito de superfície constituído em seu favor pelo prazo de 50 anos contados a partir de 29 de Dezembro de 1986) à ... Portuguesa, S.A., pelo período temporal compreendido entre as zero horas do dia 10 de Maio de 2008 e o dia 30 de Junho de 2017, dúvidas não se suscitam acerca da produção de efeitos meramente obrigacionais associados ao negócio jurídico livremente firmado entre os celebrantes.
A questão a decidir está em saber se a aquisição translativa do direito de superfície por um período temporal inferior ao vigente relativamente ao superficiário cedente (permitindo-lhe manter inalterável a sua posição jurídica pelo período contratual estabelecido – 50 anos) gerará, ou não, uma situação real nova, não legalmente prevista, susceptível de afrontar o princípio da tipicidade dos direitos reais, consignado no artigo 1306º, nº 1, do Código Civil, legitimando nessa medida a recusa da sua sujeição a registo.
Vejamos:
Estabelece o artigo 1306º, nº 1, do Código Civil:
“Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional”.
Referem Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume III, páginas 95 a 98: “Por força do nº 1 deste artigo, todo o direito com carácter real, quer assuma a forma de uma restrição ao direito de propriedade, quer a de um parcelamento deste direito, só é admissível se estiver previsto na lei. O negócio de constituição de um direito real não previsto é, pois, nulo, se dele resultar um parcelamento da propriedade, e produz efeitos obrigacionais, se dele nascer uma pura restrição ao direito de propriedade de outrem (…)
São sobejamente conhecidas as razões que justificam a adopção de numerus clausus.
Por um lado, sabe-se que a natureza absoluta dos direitos reais pode constituir um embaraço à livre circulação dos bens, dificultando em certos termos o comércio jurídico.
Por outro lado, a experiência mostra que a contitularidade de direitos sobre a mesma coisa tem graves inconvenientes, tanto do ponto de vista económico, como no aspecto social; não é a forma jurídica que se presta à mais perfeita exploração dos bens e é causa frequente de atritos que se reflectem no próprio rendimento individual e social dos bens.
Por último, os direitos reais constituem os instrumentos jurídicos que servem de suporte à exploração da riqueza existente em cada País, e os Estados chamam a si, em lugar de a deferirem ao simples critério dos particulares, a definição legal desses instrumentos, nomeadamente no que toca à propriedade imobiliária”.
Sobre esta mesma matéria, escreve igualmente José Alberto González, in “Direitos Reais e Direito Registral Imobiliário”, a páginas 525 a 531:
“ (…) A consagração deste numerus clausus implica que ou o acto jurídico em consideração dá origem a um dos direitos reais constantes do elenco legal ou, então, na melhor das hipóteses, o direito eventualmente constituído não é real (…) a lei não se limitou a enunciar e a descrever certos modelos de direitos reais; excluiu também a possibilidade de, designadamente através de negócio jurídico, se criarem modelos nela não previstos: nisto consiste a taxatividade (…) A enumeração legal a que se sujeitam os direitos reais, sendo taxativa, é, no entanto, aberta. Quer isto dizer que os particulares, ao abrigo do princípio da autonomia privada (artigo 405º), podem modelar o conteúdo do direito real, contanto que não alterem o tipo legal, nem infrinjam outras normas imperativas (artigo 294º). (…) só se pode falar de modelação do conteúdo do direito real quando a intervenção dos particulares se inscreva nesse conteúdo. O que supõe que o âmago construído negocialmente acompanhe o próprio direito real – só assim será conteúdo do direito real. Por conseguinte, qualquer cláusula introduzida pelas partes que seja dotada de eficácia meramente obrigacional não fará parte do conteúdo do direito a que as partes a associaram. (…) Para que certas cláusulas negociais façam verdadeiramente parte do direito real ao que se ligam é necessário que a lei permita a sua inserção no conteúdo do referido direito (…) apenas naquelas circunstâncias em que, pela própria natureza das coisas, caiba por inteiro aos intervenientes no acto estabelecer o que faz e o que não faz parte do conteúdo do direito real (como, por exemplo, no que concerne ao modo de exercício das servidões – artigo 1564º), é que a autonomia privada se evidencia. Só situações deste género estão fora do âmbito da disposição contida no nº 1 do artigo 1306º”.
Na situação sub judice, a estipulação relevante (para a questão que nos ocupa) a que as partes procederam, no legítimo exercício da sua autonomia privada (artigo 405º, nº 1, do Código Civil), reporta-se essencialmente à fixação de um prazo de vigência do direito de superfície - cedido ao novo superficiário - inferior ao período temporal previsto para o superficiário cedente.
Ou seja, em vez de o superficiário cedente realizar a transmissão do direito de superfície de que era titular nos exactos termos em que o constituiu – pelo prazo de cinquenta anos -, ficou convencionado pelos celebrantes que o direito de superfície vigoraria agora, afinal e diferentemente, por um período temporal inferior.
Existirá aqui, por esta via, alguma violação do princípio da tipicidade previsto no artigo 1306º, nº 1, do Código Civil?
Afigura-se-nos que, face à lei vigente, a resposta terá que ser forçosamente afirmativa.
Conforme salientam Rui Janeiro e António Gameiro in “Direitos Reais. Parte Geral. Figuras Afins. Perspectivas práticas”, a página 68 a 69: “(…a lei não permite a existência de direitos reais que não se encontrem devidamente previstos, porquanto o número de direitos reais possíveis, consiste num sistema fechado (…) Pelo numerus clausus, a lei apresenta-nos um quadro de direitos reais individualizados, ou seja, os únicos possíveis. Contudo, tais direitos reais, não são, evidentemente, os direitos que concreta, e, individualmente, assistem às diversas pessoas da sociedade jurídica, sendo, outrossim, “figurinos” dos direitos que aproveitarão, posteriormente, aos particulares, ou, numa palavra, são tipos legais de direitos reais. As normas que estatuem direitos reais, não o fazem em geral, e abstractamente, sob pena de se seguir uma ilimitação de direitos, não o fazendo, igualmente, em concreto, pois, se o realizassem, não seriam normas. Fazem-no tipicamente, resultante da tipicidade normativa dos direitos reais. A tipicidade dos direitos reais diz respeito simplesmente à compleição dos mesmos. Utilizando a definição, por nós propugnada, de direitos reais, diremos que é típico aquilo em que consiste a afectação jurídica da coisa corpórea, isto é, a forma que essa afectação reveste, do ponto de vista anatómico”.
Ora, sendo absolutamente lícita a transmissibilidade do direito de superfície – vide artigo 1534º, do Código Civil -, o certo é que a estipulação contratual de um prazo de vigência inferior ao previsto para o direito do superficiário cedente contende efectivamente com o conteúdo essencial da tipologia deste direito real menor, afectando-o decisivamente na sua própria anatomia.
Salienta A. Santos Justo, in “Direitos Reais”, página 36: “(…) este princípio (da tipicidade) deve ser conciliado com os chamados “tipos abertos”, nos quais os particulares interessados gozam de alguma liberdade na fixação do seu conteúdo, ora alargando ora restringindo as faculdades reconhecidas aos titulares dos correspondentes direitos. No entanto, essa conciliação postula um limite natural naquela liberdade: não pode ir ao ponto de descaracterizar o tipo de direito real, rompendo com os seus traços essenciais e subvertendo-o”.
 Note-se que através da diversidade de prazos de vigência dos direitos de superfície que (aparentemente) se sucedem, acaba por se gerar uma situação jurídica nova, perfeitamente atípica, em que o superficiário cedente mantém formalmente essa sua qualidade, para a vir a consolidar mais tarde, definitivamente, com a extinção precoce, pelo decurso do prazo inferior ao seu, do direito de superfície que havia transmitido ao cessionário.
Ou seja, enquanto a cessão (típica) do direito de superfície implicaria a extinção das utilidades associadas ao direito do cedente – que transmitindo-o pelos 50 anos previstos deixaria de manter tal posição jurídica -, já a solução inovatória encontrada pelos celebrantes cria uma nova configuração real do direito de superfície – um direito de superfície sobreposto a outro direito superfície, com ele co-existente (e que, não obstante formalmente cedido, persiste, revitalizando-se a prazo) –, a que nenhuma norma substantiva confere o necessário respaldo típico.
Conforme escreve Orlando de Carvalho in “Direitos das Coisas”, página 182: “(…) o direito das coisas tende, não apenas a oferecer-se em tipos característicos, mas, (…) a oferecer-se numa “tipologia taxativa”, num elenco fechado de formas ou de direitos”.
Ora, o superficiário que o deixaria de ser pela transmissão do direito que lhe permitia (na sua tipologia própria) o gozo da coisa, passa a superficiário em estado latente, com a segurança de vir a recuperar a prazo as específicas utilidades do direito transmitido – no fundo, como se o não o tivesse transmitido a terceiro.
Entrega-o nunca o largando, sabendo que lhe será, a prazo certo, automaticamente restituído.
Salienta Rui Pinto Duarte, in “Curso de Direitos Reais”, a página 39: “(…) a tipicidade (enquanto numerus clausus) é mesmo co-essencial aos direitos reais. Se estes se caracterizam por consistirem em certas formas de aproveitamento dos bens – para gozo ou garantia – oponíveis a todos, parece difícil conceber que o legislador possa deixar a criação de novos tipos de direitos reais na disponibilidade dos sujeitos privados. O legislador pode delinear os direitos reais como tipos mais abertos ou mais fechados, mas não poderá atribuir aos sujeitos privados o poder de criação de tipos não previstos na lei”.
Afigura-se-nos manifesto que inexiste na lei, no âmbito específico e no particularmente confinado domínio dos direitos reais, figura típica que preveja e contemple esta invulgar situação, tal como as partes criativamente a configuraram.
Refere Luís Menezes Leitão, in “Direitos Reais”, páginas 19 a 20: “A tipicidade implica assim uma limitação do número de realidades que podem ser qualificadas como direitos reais, não podendo resultar do costume ou da autonomia privada, tendo que ser a lei a criar os direitos inseridos nessa categoria. A tipicidade restringe-se, no entanto, à criação dos direitos reais, não abrangendo os negócios reais. (…) A infracção à regra da tipicidade implica nos termos do artigo 1306º, nº 1, in fine, que aos novos direitos assim criados não seja atribuída eficácia real, mas eficácia meramente obrigacional, sendo este um caso de conversão legal, que foge aos pressupostos do artigo 293º”.
O negócio em causa manterá, portanto e apenas, os seus efeitos obrigacionais, não recolhendo a imprescindível base legal para, enquanto direito real de gozo, ser objecto de registo na Conservatório do Registo Predial, impondo-se dessa forma a respectiva recusa ao abrigo do artigo 69º, nº 1, alínea c), segundo o qual: “o registo deve ser recusado (…) quando se verifique que o facto constante do documento já está registado ou não está sujeito a registo”.
Por fim, relativamente à necessidade propalada pela apelante no sentido de evitar que o direito de superfície, enquanto direito real, “fique condenado a ser uma realidade jurídica imutável, devendo adaptar-se aos ajustamentos que as partes pretendam introduzir com vista a melhor servir os seus interesses”, a mesma será porventura plenamente curial no plano do direito a constituir, conforme tem vindo a assinalar grande parte da doutrina (por todos, vide Orlando Carvalho, in obra citada supra, a páginas 183 a 197; Oliveira Ascensão, in “Direitos Civil. Reais.”, páginas 154 a 155).
O que, contudo, não desonera os tribunais, enquanto órgãos de soberania vinculados constitucionalmente à aplicação da lei vigente, de optar pela solução jurídica que importaria quiçá modificar por via legislativa.
Pelo que improcederá a presente apelação.


IV - DECISÃO: 
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa., 6 de Junho de 2017.

 
(Luís Espírito Santo).
                                                        


(Conceição Saavedra).


(Cristina Coelho).