Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11176/2005-6
Relator: GIL ROQUE
Descritores: FUNDAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – O elemento personalizado duma fundação é o património que o fundador afecta à satisfação do seu fim.

II – Tendo um dos membros fundadores da Fundação – Viver - Cultura e Desporto conta a Intolerância e a Droga pago antecipadamente os contributos relativos a uma das anuidades que se havia comprometido efectuar anualmente, é lícita a sua recusa do pagamento das anuidades subsequentes, por ter solicitado a sua desvinculação da instituição antes da constituição da Fundação por escritura pública, mesmo que essa recusa, seja contra a orientação definida nos estatutos aprovados posteriormente (artºs 168º e nº5 do 185ºdo C.C.).

III – Antes da Fundação se constituir, as pessoas que dela faziam parte, organizadores e administradores, enquadam-se no âmbito as comissões especiais.
Sendo a Ré uma das subscritoras, os donativos efectuados por ela à Autora, antes desta estar constituída, mas que se encontrava em vias de constituição e veio a ser constituída, não lhes devem ser restituídos.
Só seria licito exigir a restituição dos valores que subscreveu e entregou, se por qualquer motivo o fim para que a comissão se constituiu não se tivesse realizado.

IV – Os donativos constituem uma obrigação natural porque se fundam num mero dever de ordem moral ou social,, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça , não estando sujeito ao regime das obrigações civis. Aquilo que for prestado espontaneamente não pode ser repetido.
Trata-se de um dever de justiça, que nem sempre é de natureza comutativa, como é por demais evidente.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - RELATÓRIO:
1- FUNDAÇÃO VIVER- CULTURA E DESPORTO CONTRA A INTOLERÂNCIA E A DROGA, com sede na Rua Nossa Senhora dos Remédios, n.° 309, r/c Dt.° 2775 Carcavelos representada pelo seu presidente do Conselho de Curadores, Dr. Victor Montoya de Sousa, divorciado, gestor, residente na Rua Dr. Joaquim de Almeida, n.°670, 2.° dt.°, 2775 Carcavelos vem propor a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra, MULTIOPTICAS DE GESTÃO, S.A., com sede na Rua do Carmo, 102, 1200 Lisboa, alegando, em síntese, o seguinte:
A Ré solicitou a sua inscrição como Membro Benemérito de Honra, à Fundação, tendo sido aceite como tal, no dia 22 de Julho de 1999. Com tal aceitação, a Ré passou a integrar os membros Beneméritos de Honra da aqui Autora, tendo procedido ao pagamento da contribuição anual, referente à anuidade de 1999/2000, no valor de 900 000$00, em três parcelas trimestrais, prestação essas que se obrigou a cumprir anualmente.
Sucede que os Estatutos da Autora prevêem no seu artigo 10.° n.° 5 que os membros solicitem a sua saída, ficando desta forma desobrigados de efectuar o pagamento da contribuição anual, desde que comuniquem tal intenção à Fundação até trinta dias antes do fim do prazo para pagamento da anuidade em curso. Ora, a Ré não cumpriu o que os estatutos prevêem, no que se refere ao afastamento de qualquer membro. Assim, a Ré continua a ser membro da Fundação pelo que estão em dívida as anuidades de 2002 e 2003, no valor de € 16 854,71. Termina pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 36 494,88, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Devidamente citada a Ré veio contestar alegando, em síntese, que a desvinculação da Ré é anterior à própria constituição da Autora pelo que a Ré nada tem de pagar as anuidades em causa. A ré comunicou, por carta datada de 24 de Junho de 1999, que não pretendia ser sócia fundadora da Fundação Viver.
Vem ainda deduzir pedido reconvencional, no sentido de lhe ser restituída a quantia que pagou dado que, à data desses pagamentos, a Autora não tinha existência legal e não havia estatutos vinculativos para a Multiópticas de Gestão, S.A.
Foi realizada a audiência preliminar, onde, na impossibilidade de se obter a conciliação das partes, foram fixados os factos assentes que se decidiu serem suficientes para proferir decisão de mérito.
Proferida a decisão, nela se julgou a acção improcedente por não provada e em consequência foi a Ré absolvida do pedido.
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2 – Inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso a Autora e Ré, sendo o desta subordinado, que foram admitidos e oportunamente foram apresentadas as alegações e contra alegações, sustentando uma e outra as posições defendidas nos articulados, que nos dispensamos de aqui reproduzir.

- Nas contra alegações as recorridas reiteram os fundamentos usados nas alegações.
- Corridos os vistos e tudo ponderado, cabe apreciar e decidir.

II-FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos provados:
A matéria de facto dada como assente no Tribunal recorrido é a seguinte:
1 - Por escritura pública celebrada no dia, 07 de Outubro de 1999, foi constituída uma fundação com a denominação "Fundação Viver Cultura e Desporto contra a Intolerância e a Droga", conforme documentos juntos de fls. 164 a 171, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. A));
2 - A referida fundação rege-se pelos estatutos que, entretanto, foram alterados por escritura celebrada em 31 de Outubro de 2001, conforme documento junto de fls. 11 a 21, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al B));
3 - Em 02 de Março de 1998, a Ré solicitou a sua inscrição como Membro Benemérito de Honra da referida fundação, conforme documento junto a fls. 26, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido ( al. C));
4- Os estatutos entregues à Ré na data da inscrição, constam do documento de fls. 68 a 73, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. D));
5 - Tal pedido foi aceite pela Autora (al.E));
6- Em 02 de Março de 1998, a Ré procedeu ao pagamento da quantia de Esc. 900.000$00, correspondente à taxa de inscrição, conforme documento de fls. 29, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. F));
7- A Ré pagou à Autora, em 06 de Julho de 1999, a quantia de Esc.900.000$00, referente à contribuição anual de 1999/2000, como membro fundador de honra da fundação, conforme documento de 30., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. G));
8 - No dia 06 de Julho de 1999, a Ré pagou à Autora a quantia de Esc. 225.000$00 como "taxa de 25% de acréscimo, por diferimento de três meses, no vencimento da contribuição anual, conforme estatutariamente estabelecido", nos termos do documento de fls. 31, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. H));
9 - No dia 14 de Junho de 1999, a Ré remeteu à Autora, que a recebeu, uma carta com o teor constante do documento de fls. 82, no qual refere, a dado passo que, "vimos por este meio renunciar ao protocolo que temos com V. Exas. O mesmo é dizer que, a partir do pagamento da quota de 1999, não teremos de pagar mais nada e deixaremos de ser associados de honra da Fundação Viver" (al. I));
10 - A Fundação Viver respondeu a tal carta com a carta constante de fls. 83-84, datada de 21 de Junho de 1999, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. J));
11- Por carta datada de 24 de Junho de 1999, a Ré reitera que não pretende ser sócia fundadora da Fundação Viver (al. L));
12- Em Junho de 1999, Victor de Sousa, na qualidade de presidente da Comissão Instaladora, remeteu um fax à Ré com o teor constante de fls. 86 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. M)).

B) Direito aplicável:
Apreciaremos em primeiro lugar o recurso principal interposto pela Autora, e depois o subordinado interposto pela Ré (art.º 682.º do CPC).
1- Recurso da Autora:
Da leitura e apreciação das alegações e das conclusões que a Autora delas tira, verifica-se que a sua discordância da decisão recorrida, assenta essencialmente no facto de na decisão não se ter entendido que a Ré era obrigada a continuar a permanecer como membro benemérito da fundação, mesmo depois de ter manifestado a sua vontade de se desvincular dessa obrigação. Atendendo a que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões como resulta do disposto nos art.º 684º nº3 e 690º nºs 1 e 4 do Cód. Proc. Civil e vem sendo orientação da jurisprudência (1), a elas nos cingiremos.
A Apelante começa nas conclusões por salientar que é uma fundação que se rege pelos seus estatutos e procura de seguida evidenciar a diferença entre os conceitos de associação e fundação, colocando em evidência que, “o elemento personalizado desta é o património que o fundador afecta à satisfação de um fim, que por isso a transcende ”, para desse modo, afastar a aplicação à situação em apreciação, a previsão do disposto n.º3 do art.º46.º da Constituição da República.
Ora, independentemente da noção legal do que seja uma associação e uma fundação, há que ter em conta que a Autora apenas se constituiu em 7 de Outubro de 1999 e que os seus estatutos alterados por escritura pública de 31 de Outubro de 2001, só entraram em vigor, mesmo na sua versão original, a partir da sua constituição, sendo certo que a Réu renunciou à sua qualidade de Membro Benemérito de Honra da Fundação, a partir de 14 de Junho de 1999, e apesar da insistência da Autora para que a Ré se mantivesse, esta reiterou a sua vontade de não continuar a ser membro ou sócia fundadora da Autora, por carta de 24 de Junho de 1999, ou seja, antes da sua existência legal (factos provados n.ºs 1, 2, 9 e 11).
É em nosso entender irrelevante se a Ré na manifestações de vontade de não pertencer à fundação, utilizou ou não a linguagem técnica ou se um fundação tem ou não as mesma características que uma associação. Tal facto não interessa, para aferir da bondade de decisão recorrida.
O que interessa na apreciação e decisão, é que a Ré renunciou à sua qualidade de membro da Fundação e informou esta de forma clara e inequívoca que, “ a partir do pagamento da quota de 1999, não teremos de pagar mais nada e deixaremos de ser associados de honra da Fundação”. Esta manifestação de vontade é inequívoca e foi transmitida à autora, antes da sua constituição como fundação, ou seja antes dos seus estatutos terem entrado em vigor.
Por outro lado, não estando ainda a fundação constituída por escritura pública à data da em que a Ré renunciou à sua qualidade de seu Membro de Honra, sempre haveria que ter em consideração que aos estatutos e suas alterações é aplicável o disposto na parte final do artigo 168.º, por força do disposto no n.º 5 do artigo 185.º do Código Civil, que define a forma da constituição das associações.
A apelante sustenta que a Ré se comprometeu a fazer doações anualmente de bens móveis a seu favor e que tais bens ficariam a constituir património seu e é verdade.
Mas esse facto não impede como acertadamente se decidiu, que a Réu, quando o entenda deixe de continuar a fazer essas prometidas doações, porquanto, o imperativo constitucional que determina que ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela, é obviamente aplicável, também às fundações.
Na verdade, da matéria de facto dada como assente resulta que a Ré solicitou sua inscrição como Membro Benemérito da "Fundação Viver Cultura e Desporto contra a Intolerância e a Droga" em, 2 de Março de 1998, tendo nessa data pago a quantia de 900.000$00 e em 6 de Julho de 1999, a quantia de 1.125.000$00 (900.000$00+225.000$00) (factos provados n.ºs 3, 6, 7 e 8), mas isso, não significa que fique vinculado definitivamente.
Acontece que a Ré no dia 14 de Junho de 1999, havia remetido uma carta à Autora, que ela recebeu, na qual lhe diz além do mais: "vimos por este meio renunciar ao protocolo que temos com V. Exas. O mesmo é dizer que, a partir do pagamento da quota de 1999, não teremos de pagar mais nada e deixaremos de ser associados de honra da Fundação Viver"(facto provado n.º9).
O que está aqui em apreciação é que em dado momento, a Ré entendeu que não devia, por razões que se desconhecem, nem cabe aqui apreciar, entendeu renunciar à sua qualidade de membro da fundação e em consequência, não continuar a contribuir anualmente com os valores referidos (bens móveis) para a Fundação, e fê-lo, de forma inequívoca, antes da escritura de constituição e aprovação dos seus Estatutos, pelo que não é juridicamente correcto aplicar-se ao caso em apreciação, as regras fixadas nos Estatutos da Fundação, sabendo-se que a desvinculação ocorreu antes da sua aprovação e como é por demais evidente os Estatutos da Fundação não se aplicam rectroactivamente nem à Ré, nem aos restantes membros, uma vez que é de elementar conhecimento jurídico, que a lei só dispõe para o futuro (art.º12.º n.º1 do Código Civil).
É por isso irrelevante que na sentença recorrida se tenha dito que a Ré se “associou” e que a expressão seja no entendimento da Autora a juridicamente adequada, uma vez que mesmo considerando-se que as entregas efectuadas pela Ré a favor da Autora foram doações, e como tal devem ser consideradas, o princípio de que em qualquer altura o doador de bens a doar futuramente, pode sempre deixar de o fazer, seja favor de uma associação de caridade ou de uma fundação, é, a nosso ver, lícito e indiscutível, não tendo qualquer cabimento no caso em apreciação o disposto no preceituado nos art.ºs 255.º e 256.º do Código Civil, referidos pela Apelante na 11.ª conclusão, não se vislumbrando porquê.
Por tudo o que se deixa dito, improcedem todas as conclusões alinhadas pela Autora e em consequência, improcede o recurso, por as questões aludidas pela apelante não terem qualquer cabimento.
2 – Recurso a Ré :
A Ré começa por afirmar logo na primeira das conclusões que tira das alegações, que “os deveres de ordem moral e social que, “os deveres de ordem moral e social que relevam para caracterizar a obrigação natural são apenas os que correspondem a um dever de justiça (comutativa)”.
Desde já se adianta que a Ré não tem razão nem quanto ao seu entendimento sobre o regime do direito natural, nem quanto ao invocado direito à restituição da quantia que voluntariamente entregou à “Fundação Viver Cultura e Desporto contra a Intolerância e a Droga".
Na verdade a obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever e ordem moral ou social , cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça, não estão sujeitas ao regime das obrigações civis e o que for prestado espontaneamente, não pode ser repetido (restituído)(art.ºs 402 .º a 404.º do Cód.Civil).
Embora se entenda que as obrigações naturais são as que correspondem a um dever de justiça mas não que esse dever seja sempre de natureza comutativa, como pretende a Ré.
Com efeito, a noção de obrigação natural que resulta dos citados preceitos legais é que a prestação em causa “não seja judicialmente exigível”, que se baseie num “dever moral ou social ” e que o seu cumprimento corresponda a um “dever de justiça”.
Resulta daqui que as obrigações naturais constituem, casos intermédios entre puros deveres de ordem moral ou social os deveres jurídicos. A justiça não representa um único interesse, que a vida põe ao direito. Além dela, a justiça preocupa-se com outros valores, como a “certeza, a segurança e a praticabilidade das soluções”, havendo deveres de justiça que não configuram deveres cujo cumprimento é reclamado pela justiça, embora não sejam impostos pelo direito, como acontece com as disposições fiduciárias e nas sentenças injustas (2). Não são por isso apenas os deveres de justiça, aqueles consequentes da justiça comutativa, como entende a Ré.
De qualquer modo, tendo em conta que na data em que foram efectuados os donativos pela Ré à Autora, esta ainda não estava constituída, e se encontrava em vias de constituição, as pessoa que dela faziam parte (organizadores e administradores) e enquadram-se no âmbito das comissões especiais, sendo a Ré uma das subscritoras. Sendo assim, só seria lícito à Ré exigir o valor que subscreveu, se não tivesse sido cumprido, por qualquer motivo, o fim para que a comissão foi constituída (art.º 200.º n.º3 do Cód. Civil). Isso não aconteceu, uma vez que se mostra provado que a Fundação se constituiu em 7 de Outubro de 1999.
É evidente que todas as quantias entregues pela Ré os organizadores para a Fundação que acabou por se constituir, foram-lhes entregues de livre e espontânea vontade, pelo que não tem o direito a que esses valores lhe sejam restituídos, quer se concorde ou não que constituem obrigação natural e que integram conceito desta figura jurídica.
Assim, sem necessidade de mais alongadas considerações, improcedem todas as conclusões que a Ré tira das suas alegações e em consequência julga-se também improcedente o recurso subordinado.

III- DECISÃO:
Em face de todo o circunstancialismo descrito e das aludidas disposições legais, julgam-se improcedentes ambos os recursos interpostos pala Autora e pela Ré, confirmando-se e em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela A. e R na proporção de 2/3 e 1/3 respectivamente.


Lisboa, 15 de Dezembro de 2005

Gil Roque
Arlindo Rocha
Carlos Valverde



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(1).-Vejam-se entre outros os Acs. STJ. de 2/12/82, 25/07/86, 3/03/91, 29/05/91 e 4/02/93, do STA de 26/04/88 (in BMJ, n.º 322º- 315, 359º-522, 385º- 541, Acórd.Doutrin.364-545, Col.Jur./STJ,1993, 1º-140 e Ac.Dout.,322 -1267 respectivamente).

(2).-Prof.º Almeida Costa – Direito das Obrigações- pgs. 150 e segs. 7.ª Edição - Almedina – Coimbra.