Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1375/04.8TYLSB-AM.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
POSSE
FARMÁCIA
LICENCIAMENTO
USUCAPIÃO
ACESSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O estabelecimento comercial – no caso, uma farmácia – sendo uma realidade complexa, constituída por um conjunto de elementos, de natureza corpórea e incorpórea, organizados pelo seu titular (comerciante individual ou sociedade) tendo em vista o exercício de uma específica atividade económica, pode, per se, ser objeto de apreensão e posse, independentemente da conceção que se adote quanto à sua natureza jurídica.
2. A exigência de alvará, prevista no Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31-08, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 75/2016 de 08-11, que estabelece o regime jurídico das farmácias de oficina, constitui um condicionamento legal ao exercício da atividade, que tem na sua base a defesa do interesse público, tratando-se de licenciamento obrigatório; não estamos perante um elemento do estabelecimento que possa eventualmente ser autonomizado deste.
3. O documento autêntico não faz prova plena quanto à veracidade das declarações emitidas pelos outorgantes, podendo provar-se, por qualquer meio, que essas declarações não são verdadeiras – sem necessidade de arguir a falsidade do documento autêntico, uma vez que, usualmente, não é isso que está em causa –, sem prejuízo de algumas limitações estabelecidas na lei (artigo 394º do Código Civil).
4. Tendo o Notário aceitado a realização de uma escritura de justificação, outorgada pela autora em ..., na qual esta declara ser “dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, de um estabelecimento comercial de farmácia”, “com o alvará número (…) registado no Infarmed” em nome da insolvente, enunciando a identidade dos ante possuidores e concluindo que “têm usufruído do referido estabelecimento comercial de farmácia como legítimas proprietárias, pacífica, publicamente, de boa-fé e continuamente, na convicção de possuírem direito sobre coisa própria e exclusiva”, deve considerar-se impugnada essa escritura, para os efeitos a que alude o art.º 101.º do Código do Notariado se, intentando a justificante ação (em 18-05-2018), tendo em vista a afirmação da titularidade do direito de propriedade da sociedade autora sobre esse estabelecimento e a consequente separação desse bem do acervo da massa insolvente em que foi integrado, o AI, em representação da Massa Insolvente deduz oposição e invoca a falsidade de todos os factos atestados pelos declarantes na referida escritura, isto é, o conteúdo do documento, peticionando em conformidade com o disposto no nº 1 do referido preceito.
5. Aquele que se arroga a titularidade do direito de propriedade, na enunciação da causa de pedir, incumbe-lhe articular os factos conducentes à aquisição originária desse direito ou, tratando-se de aquisição derivada, as sucessivas transmissões, com vista a apreciar se o direito já existia no transmitente, até chegar à aquisição originária do domínio.
6. A posse compreende o exercício de poderes de facto sobre a coisa (corpus), com intenção de agir como se fosse o titular do direito (animus) (art.º 1251.º do Cód. Civil) e adquire-se por uma das formas a que alude o art.º 1263.º do Cód. Civil; a posse boa para usucapir é aquela que, sendo pública e pacífica, se mantém por um determinado período que varia, exatamente, em função das caraterísticas da coisa reivindicada (art.ºs 203.º a 205.º e 1293.º a 1301.º do Cód. Civil) e das caraterísticas da posse (art.ºs 1258.º a 1262.º do Cód. Civil).
7. A lei admite que a aquisição por usucapião tenha por base uma posse não titulada e de má-fé: essa caraterização tem apenas influência na determinação do prazo relevante para a produção dos efeitos jurídicos respetivos, associados à aquisição por usucapião. 
8. Na aplicação do instituto da “acessão da posse” (art.º 1256.º, nº 1 do Cód. Civil) a doutrina e jurisprudência mais recente vão no sentido de considerar que a lei não exige, para a acessão na posse, que o vínculo jurídico existente entre o novo e o antigo possuidor seja formalmente válido, exigindo-se apenas, perante posses contíguas ou consecutivas, que a transmissão assente num título que, em abstrato, seja suscetível de fundar a transmissão, colocando-se, pois, o acento tónico na transmissão/entrega da coisa.
9. Quando o demandante articula um conjunto de factos que são relevantes tendo em conta a pretensão que formula, mas, ainda assim, omite outros que também são constitutivos do direito de que se arroga, estamos perante uma causa de pedir insuficiente, o que gera a inviabilidade da ação, com a consequente absolvição do réu do pedido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa
 
I. RELATÓRIO
Ação
Restituição e separação de bens [ [1] ].
Autora/apelante
PI INC, sociedade de direito norte americano, com sede em 619 New York (…) Estados Unidos da América, contribuinte de entidade equiparada estrangeira n.º (…), com sede em Portugal na Rua S … Cartaxo.
Réus/apelados
MASSA INSOLVENTE DE AV, representada pelo administrador de insolvência;
CREDORES da Massa Insolvente e
AV.
Pedido
Que seja reconhecido à autora o direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial Farmácia PSuc., sita na Rua S Cartaxo, e seja ordenada a separação daquele estabelecimento comercial do acervo da Massa Insolvente e a sua restituição à autora.
Causa de pedir
A autora é proprietária e legítima possuidora, com exclusão de outrem, de um estabelecimento comercial, a Farmácia PSuc, apreendida para a massa insolvente, tendo adquirido a mesma por usucapião nos termos do art. 1263.º e 1374.º do C.C., conforme consta da escritura de justificação notarial que outorgou em ... no Cartório Notarial de Alcobaça.
“A propriedade do referido estabelecimento comercial veio à sua posse do seguinte modo” (art. 6.º), conforme indicação que fez verter na escritura de justificação:
- Em 06-08-2004 com retroatividade a 01-07-2004, a insolvente AV trespassou o estabelecimento à sociedade AF, Sociedade Unipessoal, Lda (art. 7.º);
- Em 30-10-2008 a AF, Sociedade Unipessoal, Lda., trespassou à FCF, Sociedade Unipessoal, Lda “tendo, no entanto sido o Sr. AR, divorciado, natural da freguesia de …, concelho de Alenquer, a entrar na posse do mesmo, tal como consta do referido contrato de trespasse e lá designado como proprietário de facto do identificado estabelecimento comercial de farmácia” (art. 9.º);
- Em 16-01-2013 o estabelecimento foi trespassado à sociedade “PG INC – Sucursal em Portugal” (art. 10.º);
- Em 05-02-2013, a “PG INC – Sucursal em Portugal” “trespassou verbalmente o referido estabelecimento comercial de farmácia e respetivo alvará à sociedade” à autora, “não tendo sido reduzido a escrito meramente por impossibilidade das partes” (art. 11.º).
Concluindo que é “proprietária e legítima possuidora” da farmácia desde 05-02-2013, “tendo acumulado a sua posse com as dos anteriores proprietários” (art. 12.º) (sic), “sendo a sua posse titulada, substanciada pela presente escritura de justificação” (art. 14.º) e “[d]e boa-fé, porque a Autora vem possuindo o estabelecimento de farmácia na convicção de não estar a lesar direitos de outrem” (art. 15.º).
Oposição
Apresentada por AV
A requerida contestou, invocando a exceção de litispendência, porquanto a questão suscitada nos autos já foi discutida no apenso X destes autos e é objeto da ação n.º 68/18.3T8CTX, que corre termos no Juízo Local Cível de Alenquer.
Alega que AR “era, portanto, o proprietário de facto da referida farmácia”, e que a insolvente era “uma simples assalariada daquela farmácia, sendo-lhe pago um salário mensal pelo … Sr. … AR (arts. 9.º e 10.º).
Apresentada pela Massa Insolvente/apelada
A requerida contestou excecionando:
- Que a sentença proferida no apenso F) ao processo de insolvência, que julgou improcedente a pretensão formulada pela F, Lda. na ação intentada em 16.06.2009 na qual peticionou o reconhecimento da invocada propriedade da referida farmácia e a sua separação da Massa Insolvente produz efeitos em relação à ora autora, verificando-se a exceção do caso julgado;
- Que a autora, sociedade de direito norte americano, “não faz prova da sua existência jurídica e a personalidade jurídica de (supostas) pessoas coletivas não se presume” (art. 18.º) e que a “falta de personalidade jurídica e judiciária da A. determina a absolvição da R. da instância” (art. 19.º);
- Que a “escritura de justificação notarial que constitui o doc. n. 1 junto com a p.i. é nula, porquanto todos os atos objeto das declarações do justificante e dos declarantes que nela intervieram são atos simulados, que não correspondem a negócios que hajam sido celebrados tendo por objeto a Farmácia P Suc., exarados na referida escritura com o propósito ilícito de subtrair a Farmácia à Massa Insolvente em que se encontra apreendida” (art. 21.º); “[a] falsidade das declarações constantes do documento n. 1 junto com a p.i. visando simular a aquisição por usucapião da propriedade da Farmácia PSuc  gera a nulidade do ato jurídico outorgado, o que expressamente se invoca” (art. 24.º), devendo a nulidade ser declarada oficiosamente pelo Tribunal, sendo do conhecimento deste os factos que a determinam”; a “nulidade da escritura de justificação notarial constitui facto impeditivo do direito que a A. pretende exercer e determina a absolvição da Ré do pedido, o que expressamente se invoca – cf. os artigos 240º, 286º  e 295º, todos do Código Civil e o artigo  576º, n.3 do CPC” (art. 26.º)
Mais invoca que:
- Impugna “a exatidão de todos os documentos juntos com a p.i. e com o subsequente “requerimento probatório” da A. com a Refª 29760269 (junção extemporânea de 8 documentos), por se tratarem de simples reproduções mecânicas, desde já requerendo o confronto de tais documentos com os originais ou as certidões de que foram extraídos- cf. art.º 444º, n. 1 e 3 do CPC” (art. 27.º);
- Impugna “a força probatória do documento n.º 1 junto com a petição inicial, a saber, cópia simples de escritura de justificação notarial relativa à Farmácia PSuc, apreendida na Massa Insolvente e R. nos presentes autos, por serem falsos os factos que nele são atestados, desconformes com a realidade e não serem aptos a produzir os efeitos que deles são extraídos” (art. 28.º).
  Nenhuma das entidades mencionadas na escritura de justificação notarial exerceu a posse pacífica, pública, de boa fé, na convicção de possuir como coisa própria exclusiva o estabelecimento Farmácia P Suc. apreendido na Massa Insolvente.
“Os factos atinentes à propriedade da Farmácia Suc foram amplamente debatidos no Apenso F dos autos de insolvência (ação de separação de bem proposta por F, Lda.), os quais contêm extensa documentação que evidencia as sucessivas modalidades de negócios arquitetadas por F, Lda, por AR ou entidades terceiras com este relacionadas, visando subtrair a Farmácia P Suc à Massa Insolvente” (art. 30.º);
A Farmácia P Suc foi apreendida para a Massa Insolvente de AV imediatamente após a declaração da insolvência, encontrando-se a propriedade da Farmácia ininterruptamente averbada na titularidade da Insolvente desde 1999.
“Não ocorreu qualquer trespasse válido do estabelecimento de Farmácia por parte da titular da propriedade averbada no alvará da Farmácia, a saber, a Insolvente ou, após a declaração da Insolvência, pelo Administrador de Insolvência” (art. 34.º), “[s]endo nulos, por configurarem disposição de bem alheio, quaisquer atos de disposição da Farmácia P, Suc que não hajam sido praticados pelo Administrador de Insolvência” (art. 35.º).
“São falsos todos os factos invocados pela A. nos artigos 3º a 12º  e  14º a 19º da sua p.i. que assim se têm por impugnados” (art. 36.º).
Pede a condenação da autora como litigante de má-fé e conclui nos seguintes termos:
“Em face do exposto, 
a) Deve ser julgado procedente o incidente de verificação do valor da causa e, em consequência, ser fixada à presente ação o valor de um milhão e duzentos mil euros;
b) Deve ser julgada procedente qualquer das excepções dilatórias acima invocadas, com a correspondente absolvição da Ré da instância;
c) Deve ser declarada a nulidade da escritura de justificação junta aos autos como doc. n. 1 pela PI INC (relativa à Farmácia P Suc), com a consequente absolvição da R. do pedido.
Subsidiariamente, caso o Tribunal assim não entenda,
d) deve ser julgada improcedente, por não provada, a ação, com a consequente absolvição da R. do pedido,
e) em qualquer caso, deve a A. ser condenada em multa e no pagamento de indemnização à ora R., por litigar de má fé, em montante a fixar pelo Tribunal em seu prudente arbítrio, de montante não inferior a 10.000,00€
Mais requer a V. Exa:
f) Seja de imediato comunicado à notária que exarou a escritura de justificação outorgada em 6.02.2018, de  fls. ... do Livro 59-J, Dra. AA, no cartório notarial sito na Rua … Alcobaça, que os factos justificados e constantes da referida escritura são objeto de impugnação nos presentes autos – cf. artigo 101º do Código do Notariado”.
Resposta
Em 12-06-2009 autora apresentou resposta, invocando a improcedência das exceções de litispendência e caso julgado, porquanto ainda que exista “identidade de objectos, não existe identidade de sujeitos”, que a autora goza de capacidade judiciária e, quanto à “nulidade da escritura de justificação”, que a autora não invoca factos suscetíveis de fundar a simulação e que a autora não impugnou a escritura de justificação como se impunha em face do art. 101.º do Cód. do Notariado, concluindo pela improcedência da exceção.
Julgamento
Em 15-04-2020 (conclusão de 03-03-2020) foi proferido despacho em que foi fixado o valor da causa e indicação de que “o tribunal pondera conhecer com dispensa de realização de audiência prévia do mérito da causa nos termos do artigo 595.º, nº1 alínea b), 593.º, nº1 e 591.º, nº1 alínea d) podendo as partes no mesmo prazo de 10 dias alegarem o que tiverem por pertinente” [ [2] ].
Após o que, em 25-02-2023 foi proferida sentença em que se julgaram improcedentes as exceções invocadas quanto à personalidade e capacidade judiciária da autora [ [3] ] e quanto à litispendência e ao caso julgado, culminando com o seguinte segmento dispositivo:
“Em face dos fundamentos de factos e de direito supra expostos, o Tribunal decide:
a) julgar a ação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolver os réus do pedido;
b) declarar impugnado o facto justificado na escritura de ..., exarada a fls. ... do Livro de Notas para Escritura Diversas n.º ..., do Cartório Notarial de Alcobaça, por não se ter provado que a autora PI INC, “é dona, com exclusão de outrem, do estabelecimento de farmácia e respetivo alvará, denominada Farmácia P Suc, sita na R no Cartaxo;
c) declarar ineficaz, a escritura de justificação notarial referida b), no que se refere à aquisição, pela aqui autora, do estabelecimento e alvará;
d) julgar verificada a litigância de má fé pela autora e condenar a mesma em 85 uc´s de multa e em indemnização à ré Massa Insolvente a liquidar ulteriormente.
Custas pela autora.
Registe e notifique.
*
Sem prejuízo do transito em julgado desta decisão, solicite-se de imediato, à Ordem dos Notários que divulgue junto de todos os Cartórios Notariais que, na sequência da declaração de insolvência de AV e atento o disposto no artigo 81.º, do CIRE, apenas o Sr. Administrador nomeado nos presentes autos, Dr. JO, tem legitimidade para outorgar qualquer ato de disposição relativamente aos bens integrantes na massa insolvente (remeta cópia da lista dos bens apreendidos).
A comunicação que antecede deverá, ainda, ser feita diretamente, e pessoalmente, à Sra. Notária, Dra. AA, do Cartório Notarial de Alcobaça.
*
Dê conhecimento da presente decisão ao INFARMED para conhecimento”.
Recurso
Não se conformando, a autora apelou, formulando as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido a fls.
II. A douta sentença recorrida considera que o ora recorrente não adquiriu, por usucapião, o estabelecimento de farmácia denominado: “Farmácia P SUC” sito no Cartaxo.
III. Na verdade a douta sentença considerou que o prazo da posse da autora interrompeu-se nos termos do artigo 323.º aplicável ex vi do artigo 1292.º Ambos do Código Civil.
IV. E ainda que quando foi justificada a posse da autora ainda não teriam decorrido o tempo necessário para justificar a aquisição por usucapião.
V. Finalmente entendeu como impugnada a escritura pela Massa Insolvente.
VI. Temos assim, três questões que determinaram a improcedência da pretensão da autora:
a. Interrupção da posse
b. Insuficiência do animus possidendi pelo período mínimo
c. Impugnação da escritura pública.
VII. Começando pela última questão, salvo melhor entendimento, o tribunal a quo decidiu erradamente tal questão.
VIII. Na verdade, a Ré Massa Insolvente veio apenas invocar a nulidade da referida escritura, não aduzindo quaisquer factos que contrariem o vertido em escritura pública.
IX. cabia à ré invocar e provar estes três elementos:
a. a divergência entre a vontade declarada e a vontade real.
b. O     intuito     de     enganar     terceiro
c. E a existência do pacto simulatório
X. E em boa verdade nenhum destes elementos foram sequer alegados, quanto mais demonstrados.
XI. E nem muito menos demonstrou qual era a vontade real dos declarantes.
XII. Até porque, sendo esta uma escritura de justificação notarial não existe um acordo de vontade, mas antes uma declaração unilateral expressa num documento autêntico.
XIII. Ora nos termos do artigo 363.º do Código Civil a escritura em causa é um documento autêntico.
XIV. E como tal nos termos do artigo 371.º do Código Civil fazem prova plena dos factos aí constantes.
XV. Na verdade o mecanismo que a Massa Insolvente, nos termos do artigo 101.º do Código de Notariado, deveria ter utilizado para evitar que a escritura de justificação produzisse os seus efeitos era intentar acção de nulidade.
XVI. Não o tendo feito sibi imputet ibi imputet, si, quod saepius cogitare poterat et evitare, non fecit
XVII.   Ou seja não poderia o tribunal a quo considerar impugnada tal escritura porquanto a mesma, como documento autêntico que é, não foi devidamente impugnada.
XVIII.  Relativamente à segunda questão, do prazo para usucapir, conforme resulta da escritura pública junta aos autos, a autora juntou a sua posse à das anteriores proprietárias.
XIX. Tendo inclusivamente, invocado toda a cadeia de trespasses ocorridos, desde a propriedade da Insolvente até à posse pela Autora.
XX. Assim, a autora demonstrou documentalmente, e juntou testemunhas, que não chegaram a ser ouvidas, que, quer pela sua posse, quer pela acessão das anteriores proprietárias, deteve a posse material do estabelecimento de farmácia de modo público durante mais de 20 anos.
XXI. Ora conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29.11.2016 – Processo 322/13.0TBTND.C1.S1: (in www.dgsi.pt):
a. I - O instituto da acessão da posse previsto no art. 1256.º do CC destina-se a facilitar a aquisição do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo por usucapião.
II - Só a posse pública – a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262.º do CC) – e pacífica – a que foi adquirida sem violência (art. 1262.º do CC) – é susceptível de conduzir à usucapião.
III - A existência ou não de título da posse, bem como a boa ou a má fé, influem apenas na determinação do prazo necessário à usucapião, mas não impedem a sua verificação.
IV - Deste modo, e atenta a sua finalidade, a acessão da posse não exige a validade do título justificativo da transmissão da posse.
V - A falta de alegação, pelas autoras, de actos de posse do antecessor do de cujus, não permite concluir se há ou não há posses susceptíveis de serem juntas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1256.º do CC.
XXII.   Na verdade a douta sentença considerou que a posse era não titulada pelo que a mesma teria que ter a duração de dez anos para conduzir a aquisição do direito de propriedade.
XXIII.  Conclui referido que não se encontrado o estabelecimento comercial na esfera jurídica do trespassante à data de celebração do contrato (estaríamos perante a venda de bem alheio.
XXIV.  Ora, salvo o devido respeito, a douta sentença confunde propriedade com posse.
XXV.   Ora bem não existindo quaisquer bens imóveis que integrem o estabelecimento comercial em causa, temos que aplicar, salvo melhor entendimento, as regras relativamente ao usucapião de móveis.
XXVI.  Por outro lado, nos termos do Decreto-Lei 277/95 de 25-10-1995, os bens móveis sujeito a registo são: os veículos, os navios e as aeronaves – cfr artigo 1.º
XXVII. Pelo que a contrario sensu o Estabelecimento em questão não é um bem sujeito a registo.
XXVIII. E não conforme decido pelo tribunal a quo um bem móvel sujeito a registo.
XXIX.  Na verdade o que era sujeito a registo no domínio da Lei n.º 2125, do Decreto-Lei n.º 48547 e do Decreto-Lei 307/2007 não é Estabelecimento comercial em si.
XXX.   Ainda não se entendendo que a posse fosse titulada e de boa fé a verdade é que o prazo para usucapir seria de seis anos – cfr Artigo 1299.º in fine do Código Civil.
XXXI.  Sendo que nos termos do artigo 1317.º do Código Civil a propriedade retroage ao início da posse.
XXXII. Pelo que quando foi decretada a insolvência e efectuada a apreensão do Estabelecimento pela Massa insolvente já esta não se encontrava na esfera jurídica da Insonvente..
XXXIII. Seja como for a Massa Insolvente apenas tomou posse do mesmo.
XXXIV. Pelo que nada impedia que a aqui recorrente adquirido a propriedade de quem era o seu legítimo proprietário.
XXXV. Finalmente quanto à primeira questão, a da interrupção do prazo para usucapir.
XXXVI. Ora conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça – Processo 399/10.0TCGMR.G2.S1 (in www.dgsi.pt):
“O prazo da usucapião pode interromper-se, tal como a prescrição, por via de um “meio judicial” (para alem da citação ou da notificação), pelo qual se dê conhecimento da oposição àquele contra quem o direito possa ser exercido.
Não sendo bastante a interpelação ou qualquer outra forma de comunicação extrajudicial ao obrigado da cessação da inércia do respectivo titular no exercício do direito.
Sendo, pois, necessária a prática de acto judicial que, directa ou indirectamente, dê a conhecer a intenção do titular de exercer a sua pretensão”
XXXVII.  Ou seja, não é pelo simples facto de existir um processo de insolvência a decorrer, onde se apreendeu o bem a usucapir que é meio suficiente para interromper o prazo de usucapião, teria que existir uma intenção de oposição à formação do direito.
XXXVIII. Pelo que vem alegando, salvo melhor entendimento, pelos argumento supra aduzidos temos que concluir que a ora recorrente é a legítima proprietária do referido estabelecimento de farmácia.
Termos em que, deve o presente recurso obter provimento, revogando-se a douto sentença, substituindo-o por outro que declare a ora recorrente proprietária do Estabelecimento de farmácia e assim se fazendo a V. costumada JUSTIÇA!”
A Massa Insolvente apresentou contra-alegações, invocando que o recurso não tem fundamento e que “adere aos fundamentos fácticos e jurídicos convocados na douta sentença, na parte em que a mesma é impugnada pela Recorrente, oferecendo o merecimento dos autos”.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
A primeira instância deu por provada a seguinte factualidade:
1. AV foi declarada insolvente por sentença proferida no p.p. em 30.10.2008.
2. AR deduziu embargos à insolvência (apenso c) [ [4] ].
3. Foi formalmente apreendido para a massa, em 20.04.2009, o estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia P Suc”, titulado pelo alvará n.º, sito na Rua, ... Cartaxo.
4. O referido alvará encontra-se inscrito a favor da insolvente desde 1999.
5. Em 16.06.2009 a FCF, Lda. intentou ação com vista à separação do estabelecimento da massa, alegando ser proprietário do mesmo (apenso F), a qual foi julgada improcedente [ [5] ] [ [6] ] [ [7] ].
6. Em 14.09.2009, foi deliberado em assembleia de credores que o processo prosseguiria para liquidação.
7. Em 12.05.2017, a PG INC intentou ação com vista à separação do estabelecimento da massa, alegando ser proprietário do mesmo (apenso X), a qual foi declarada extinta por inutilidade superveniente [ [8] ] [ [9] ].
8. Em 11.09.2017, AR intentou ação com vista à separação do estabelecimento da massa, alegando ser proprietário do mesmo (apenso AB), a qual foi julgada deserta [[10] ].
9. Em …, a aqui autora outorgou no Cartório Notarial de Alcobaça, uma escritura de justificação notarial referente ao estabelecimento, na qual declarou que:
“…é dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, de uma estabelecimento comercial de farmácia, denominado “Farmácia P Suc”, a qual passa a ser designada “Farmácia SP”, sita na Rua, na freguesia e conselho do Cartaxo, com o alvará número ..., registado no Infarmed em nome de AV. Que esta AV no dia 06 de agosto de 2004 com retroatividade a um de julho de 2004 trespassou o referido estabelecimento comercial de farmácia e respetivo alvará à sociedade “AF Sociedade Unipessoal, Lda., pessoa coletiva/matrícula ..., com sede na Rua, freguesia e conselho do Cartaxo, com o capital social de cinco mil euros. Que posteriormente no dia 30 de  outubro de 2008 esta sociedade “AF, Sociedade Unipessoal, Lda., trespassou o referido estabelecimento comercial de farmácia e respetivo alvará à sociedade F, CF, Sociedade Unipessoal, Lda. com sede na Praceta, concelho de Alenquer, pessoa coletiva/matrícula ..., tendo, no entanto sido o Sr. AR, divorciado, natural da freguesia de …, concelho de Alenquer, a entrar na posse do mesmo, tal como consta do referido contrato de trespasse e lá designado como proprietário de facto do identificado estabelecimento comercial de farmácia. Que posteriormente o referido alvará e estabelecimento de farmácia veio à posse da sociedade “PG INC – Sucursal em Portugal”, com sede na Rua, freguesia de Linda-a-Velha, concelho de Oeiras, pessoa coletiva/matrícula, ..., por escritura de trespasse outorgada neste Cartório Notarial no dia …, exarada a folhas … e seguintes do respetivo Livro de Notas …. Que em 05 de fevereiro de 2013, a indicada “PG INC – Sucursal em Portugal” trespassou verbalmente o referido estabelecimento comercial de farmácia e respetivo alvará à sociedade pelo ora primeiro outorgante “PI INC”, não tendo sido reduzido a escrito meramente por impossibilidade das partes. Assim sendo, é desde 05 de fevereiro de 2013, a sociedade representada pelo ora primeiro outorgante “PI INC”, antes desta, desde janeiro de 2013 a sociedade “PG INC – Sucursal em Portugal”, antes desta desde 2008, a sociedade “FCF, Sociedade Unipessoal, Lda.”, e antes desta desde 01 de julho de 2004 a sociedade “A, Sociedade Unipessoal, Lda., que têm usufruído do referido estabelecimento comercial de farmácia como legítimas proprietárias, pacífica, publicamente, de boa fé e continuamente, na convicção de possuírem direito sobre coisa própria e exclusiva, sendo assim, a sociedade “PI INC” a titular desse direito, pois vem possuindo o mesmo estabelecimento, sempre na firme convicção de não lesar direitos de outrem, sem a menor oposição de quem quer que seja e com o conhecimento de toda a gente, ostensiva e ininterruptamente desde o seu início, praticando uma multiplicidade de atos que são próprios e inerentes ao direito de propriedade, adquirindo e revendendo os produtos, pagando os respetivos impostos, taxas e licenças, e é quem configura como titular da farmácia junto de diversas entidades que com ela se relacionam, estando desse modo provado que atua dessa forma com convicção de exercer e explorar um direito sobre coisa sua e de ser a dona/proprietária do estabelecimento comercial de farmácia e do seu respetivo alvará”  [  [11]  ].
10. Em 09.05.2018, a PG INC, representada pelo mandatário da aqui autora, juntou ao p.p. a referida escritura pública.
11. Em 18.05.2018, a autora deu entrada da presente ação.
12. Em 31.01.2019, foi tomada a posse efetiva do estabelecimento pelo administrador de insolvência.
13. A PG INC teve como diretor inicial FR.
14. A autora teve como diretor inicial FR.
15. A autora tem como representante da sua Sucursal em Portugal AR.
16. A autora tinha conhecimento que os factos que declarou na escritura de justificação notarial quanto à ausência de oposição à posse dos ante possuidores e à sua não correspondem em parte à verdade.
III- FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº3 do mesmo diploma.
Ponderando a ordem pela qual a apelante suscitou as questões respetivas nas conclusões de recurso, impõe-se apreciar:
- Da outorga de escritura de justificação notarial incidindo sobre um estabelecimento comercial de farmácia: natureza e alcance desse instrumento e impugnação deduzida pela ré Massa Insolvente;
- Da aquisição do direito de propriedade por usucapião: o prazo de usucapião;
- Da aquisição do direito de propriedade por usucapião: a acessão da posse;
- Da aplicação das regras da prescrição: a interrupção prevista no art. 323.º do Código Civil, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem.
Saliente-se que se ateve, na sentença, ao quadro factual assente, indicando-se como segue:
“Ora, independentemente da prova que se pudesse vir a fazer quanto aos factos declarados na escritura, desde logo se descortina que a matéria apurada nos autos obsta à constituição da posse relevante para efeitos de aquisição do estabelecimento por parte da autora”.
Isto é, a primeira instância entendeu que os autos forneciam elementos suficientes para se pronunciar sobre o mérito das pretensões formuladas, sem necessidade de prosseguimento do processo com vista à realização de audiência de julgamento, prescindindo, aliás, depois de ouvir os intervenientes, da realização de audiência prévia, sendo que essa valoração não foi objeto de impugnação por qualquer interveniente.
Assim, é essa factualidade que constitui a base de apreciação desta Relação, sem prejuízo de se atentar integralmente na alegação factual da autora, vertida nos articulados, ponderando-a em abstrato.
 2. Da outorga de escritura de justificação notarial incidindo sobre um estabelecimento comercial de farmácia: natureza e alcance desse instrumento e impugnação deduzida pela ré Massa Insolvente
Partilha-se o entendimento, largamente consensual na doutrina e jurisprudência, que o estabelecimento comercial – no caso, uma farmácia – sendo uma realidade complexa, constituída por um conjunto de elementos, de natureza corpórea e incorpórea, organizados pelo seu titular (comerciante individual ou sociedade) tendo em vista o exercício de uma específica atividade económica [ [12] ], pode, per se, ser objeto de apreensão e posse [ [13] ], independentemente da conceção que se adote quanto à natureza jurídica do estabelecimento comercial [ [14] ].
No caso, consta da factualidade assente, sem impugnação, que “foi formalmente apreendido para a massa, em 20.04.2009, o estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia P Suc”, titulado pelo alvará n.º, sito na Rua, ... Cartaxo” (número 3) e que o “referido alvará encontra-se inscrito a favor da insolvente desde 1999” (número 4), acrescentando-se que em 31-01-2019 o AI tomou “posse efetiva do estabelecimento” (número 12).
Compulsando o apenso G) (apreensão de bens), verifica-se que o mesmo teve início em 04-06-2009, tendo a administradora da insolvência (AI) junto o auto de apreensão, em que fez consignar que ficou “depositária dos bens apreendidos”, sendo que um dos bens apreendidos está descrito, sob a “verba nº35”, nos seguintes moldes:
“Estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia P Suc”, com o alvará nº, de 17 de Julho de 1999, sito na Rua, freguesia e concelho do Cartaxo, englobando o direito ao trespasse e arrendamento da loja sita na Rua Cartaxo, da qual é senhorio o Sr. AR, contribuinte nº 163457590, residente na Praceta, Alenquer, avaliado em 1.200.000,00€”.
Do exposto resulta que o imóvel em que se encontram as instalações do referido estabelecimento comercial de farmácia não integra o estabelecimento, integrando-o, ao invés, constituindo um seu elemento, o direito resultante do contrato de arrendamento celebrado, sendo que o indicado “proprietário” do imóvel (e senhorio), AR não é, de todo, uma pessoa estranha aos presentes autos, bem pelo contrário, como à evidência resulta do processo – cfr. não só os apensos indicados na factualidade dada por assente, como outros apensos [ [15] ].
Também não se visualiza qualquer elemento de facto que permita concluir que fazem parte desse estabelecimento comercial de farmácia, que integra o património da insolvente, apreendido para a massa, quaisquer imóveis ou móveis sujeitos a registo (veículos automóveis, por exemplo).
Quanto ao alvará, em nosso entender, não estamos perante um elemento do estabelecimento, que possa eventualmente ser autonomizado deste. O Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31-08 [ [16] ] estabelece o regime jurídico das farmácias de oficina (art. 1.º); nos termos do art. 25.º as farmácias só podem abrir ao público depois de lhes ser atribuído o respetivo alvará, emitido pelo INFARMED (nº4), sendo que a alteração da propriedade ou a transferência da localização da farmácia dependem de averbamento no alvará (nº5); ainda, nos termos do art. 18.º, nº7 do mesmo diploma, o trespasse ou cessão de exploração da farmácia deve ser averbado no alvará [ [17] ].
Releva anda que, nos termos do art. 19.º-A (“[r]egisto), o “INFARMED organiza e mantém um registo permanentemente atualizado de cada farmácia e das respetivas vicissitudes” (nº1), estando sujeitos a registo:
- “Todos os atos, factos e negócios que este decreto-lei faz depender de registo ou de averbamento no alvará, bem como a constituição, alteração ou extinção de ónus que recaiam sobre a farmácia” (nº2);
- “A identidade do diretor técnico e de quem o substitui nas suas ausências e impedimentos” (nº3).
Nos termos do nº 4 do mesmo preceito, “[o] registo dos atos, factos e negócios jurídicos a ele sujeitos deve ser requerido pela proprietária da farmácia ou, se for o caso, pelo interessado, no prazo de 30 dias a contar da sua prática ou ocorrência”; sem prejuízo, “[o] registo requerido após o decurso do prazo previsto no número anterior não prejudica os direitos entretanto adquiridos por terceiro de boa fé” (nº5).
A exigência de alvará constitui, pois, um condicionamento legal ao exercício da atividade, que tem na sua base a defesa do interesse público [ [18] ], tratando-se de licenciamento obrigatório, de sorte que aquele que adquire a propriedade do estabelecimento comercial de farmácia, beneficia do alvará existente para a mesma [ [19] ]. Como se indicou no acórdão do STJ de 29-10-2019 (processo: 2589/15.0T8STS-A.P1.S1, Relator: Ricardo Costa), no que ora interessa:
“(…) II. O DL 307/2007, de 31 de Agosto, estabelece um procedimento para controlo público da instalação e exploração lícitas das actividades e serviços «de saúde e de interesse público» (art. 2º) prosseguidos pelas farmácias de oficina, a cargo do “Infarmed I.P.”. Esse procedimento conduz à prática de uma típica autorização permissiva (acto administrativo) da autoridade competente, que conduz à emissão (para o proprietário originário) e de averbamento superveniente (em caso de alteração da propriedade ou da titularidade de exploração ou da localização da farmácia) de “alvará”, enquanto pressuposto legal para abertura ao público e manutenção em funcionamento do estabelecimento.
III.  O “alvará” é o acto jurídico instrumental e executivo dessa autorização permissiva, que se traduz num título (sob a forma de documento) comprovativo da prática do acto administrativo de autorização, apto a formalizar (ou externalizar) a atribuição ao seu titular (originário ou superveniente) do direito de exploração do estabelecimento (condicionado ao cumprimento de requisitos substanciais) e do dever geral de cumprimento das obrigações legais de actuação e funcionamento das farmácias de oficina, enquanto actividade de interesse e ordem pública. É título constitutivo da condição jurídico-administrativa para a abertura e manutenção da exploração desse estabelecimento de farmácia, restringida por lei em função do interesse público.
IV. O “alvará” emitido ou averbado não é um elemento ou bem ou meio empresarial do estabelecimento de farmácia enquanto organização produtiva. Antes se radica numa situação jurídica necessária à prossecução da actividade empresarial e que acompanha a circulação negocial da empresa. É requisito (fundante e condicionante) para o aviamento objectivo da empresa. Essa situação jurídica – e o “alvará” em que se constitui como seu título executivo-instrumental – tem valor económico-patrimonial (muito relevante, por corresponder a autorização pública insuprível) e este valor é parte decisiva do valor de negociação ou de mercado do estabelecimento de farmácia concreto – sendo esse valor autonomizável e ponderável enquanto parte do respectivo valor de aviamento [ [20] ] [ [21] ].
Tudo para concluir que não temos por inteiramente percetível, na hipótese em apreço, com as particularidades apontadas – isto é, inexistindo elementos que permitam afirmar a existência de bem imóvel que integre o estabelecimento e/ou de móveis sujeitos a registo – o contexto jurídico em que foi formalizada a referida escritura de justificação, com o conteúdo declarado e assinalado na factualidade dada por assente (número nove), nem, consequentemente, a convocação que é feita na sentença recorrida das normas do registo predial (art. 116.º, do Código do registo Predial) e do Código do Notariado (art. 89.º) que não têm pertinência na presente situação.
Efetivamente, as escrituras de justificação notarial são procedimentos que correm termos em Cartórios Notariais [ [22] ]  e, no Código do Notariado, estão tipificadas  no seu Capítulo II (Actos notariais em especial), Secção II (Escrituras especiais), Subsecção II (Justificações Notariais), aí se regulando a outorga de escritura de justificação “para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial” (art. 89.º), “para reatamento do trato sucessivo no registo predial” (art. 90.º), “para estabelecimento de novo trato sucessivo no registo predial” (art. 91.º) e  “para fins do registo comercial” (art. 94.º) [ [23]  ]; a outorga da presente escritura de justificação, pela apelante, em ..., com o conteúdo descrito no número 9 dos factos provados, não se enquadra em qualquer dessas modalidades.
Afigurando-se que a autora pretenderá, com base nessa escritura de justificação, proceder ao averbamento da pretendida alteração de propriedade no alvará respetivo, da titularidade da insolvente [ [24] ], relevando o que resulta de outros apensos a estes autos [ [25] ] [ [26] ].
O certo é que, sendo a escritura outorgada perante Notário, a quem compete a apreciação das razões invocadas pelo outorgante [ [27] ], assegurando o cumprimento das regras alusivas ao procedimento respetivo [ [28] ], qualquer interessado [ [29] ] pode intentar ação de impugnação judicial, nos termos do art. 101.º do Código do Notariado [ [30] ], não se estabelecendo qualquer prazo de caducidade para a instauração dessa ação, sendo uniforme o entendimento de que se trata de ação de simples apreciação negativa, incumbindo ao requerido, que se arroga titular do direito justificado, a prova dos factos constitutivos desse direito [ [31] ].
No caso, a escritura de justificação data de ... e a presente ação foi instaurada em 18-05-2018, tendo em vista a afirmação da titularidade do direito de propriedade da sociedade autora sobre o estabelecimento comercial em causa (Farmácia P Suc.) e a consequente separação desse bem do acervo da massa insolvente em que foi integrado, por força da declaração de insolvência e subsequente apreensão. Ora, perante a concretização dessa escritura de justificação, assiste inequivocamente à Massa Insolvente a faculdade de impugnar a mesma, não se encontrando obstáculo legal a que essa impugnação possa ser feita no articulado de oposição apresentado pela AI em representação da Massa Insolvente, como aqui aconteceu.
Efetivamente, do articulado da oposição resulta que a AI impugnou o conteúdo da escritura de justificação, invocando que os factos que nesse documento são atestados pelos declarantes são falsos (art. 28.º), concluindo que  “[o]s factos acima descritos e evidenciados nos autos de insolvência e diversos dos seus apensos, assim como os documentos ora juntos evidenciam a falsidade de todos os factos que se pretende atestar na escritura de justificação junta com a p.i. como doc. n. 1, cuja força probatória se tem assim por ilidida” (art. 38.º).
Interpretando esse articulado de oposição, claramente se conclui que a AI não invocou a falsidade da escritura pública que titula a justificação notarial, o que remeteria para o domínio da falsidade do documento (vício que afeta o documento). Nos termos do art. 371.º, n.º 1 do Cód. Civil, o documento autêntico, como é a escritura pública, só faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo – ou seja, os elementos alusivos à parte em que, no documento, se menciona, por exemplo, que o notário o leu, explicou e entregou cópias –, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora – ou seja, a parte correspondente às declarações emitidas perante o notário. No entanto, o documento autêntico não faz prova plena quanto à veracidade das declarações emitidas pelos outorgantes, podendo provar-se, por qualquer meio, que essas declarações não são verdadeiras – aliás, sem necessidade de arguir a falsidade do documento autêntico, uma vez que, usualmente, não é isso que está em causa –, sem prejuízo de algumas limitações estabelecidas na lei – cfr. o art. 394º do Cód. Civil – e a eventual divergência entre o que foi declarado na escritura e a realidade dos factos, não afeta o documento em si mesmo ou, dizendo de outra maneira, a falsidade ideológica ou intelectual não configura hipótese de falsidade do documento/título [ [32] ]. Acresce que, por força dessa impugnação, arrogando-se a autora a titularidade do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial em causa e não gozando a seu favor de qualquer presunção legal, compete-lhe o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito (art. 342.º, n.º 1 do Cód. Civil).
Tanto assim que a Massa Insolvente concluiu a oposição peticionando a comunicação à notária em conformidade com o disposto no número 1 do art. 101.º do Cód. do Notariado, como resulta do que se referiu supra no relatório.
Em suma, tendo o Notário aceitado a realização de uma escritura de justificação, outorgada pela autora em ..., na qual esta declara ser “dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, de um estabelecimento comercial de farmácia”, “com o alvará número (…) registado no Infarmed” em nome da insolvente, enunciando a identidade dos ante possuidores e concluindo que “têm usufruído do referido estabelecimento comercial de farmácia como legítimas proprietárias, pacífica, publicamente, de boa-fé e continuamente, na convicção de possuírem direito sobre coisa própria e exclusiva”, deve considerar-se impugnada essa escritura, para os efeitos a que alude o art. 101.º do Código do Notariado se, intentando a justificante ação (em 18-05-2018), tendo em vista a afirmação da titularidade do direito de propriedade da sociedade autora sobre esse estabelecimento e a consequente separação desse bem do acervo da massa insolvente em que foi integrado, por força da declaração de insolvência e subsequente apreensão, o AI, em representação da Massa Insolvente, deduz oposição e invoca a falsidade de todos os factos atestados pelos declarantes na referida escritura, isto é, o conteúdo do documento, peticionando em conformidade com o disposto no número 1 do referido preceito.
Temos, pois por correta a afirmação vertida na decisão, quando aí se alude como segue:
“Reduzida a escritura pública, constitui, por conseguinte, um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula – cf. arts. 363.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1, ambos do C.C..
Evidentemente, como qualquer outro ato jurídico, também a escritura de justificação notarial é passível de ser impugnada judicialmente, por parte de quem tenha legitimidade, sendo que incumbe ao justificante a prova dos factos constitutivos do seu direito” [ [33] ].
E, consequentemente, a conclusão a que chegou a primeira instância, quando refere:
“Em face do que se deixa exposto, julga-se validamente impugnado o facto justificado na escritura de ..., exarada a fls. ... do Livro de Notas para Escritura Diversas n.º ..., do Cartório Notarial de Alcobaça, por os factos revelarem que a autora não é “dona, com exclusão de outrem, do estabelecimento de farmácia e respetivo alvará, sito na Rua, no Cartaxo”.
Não tem fundamento, pois, a tese vertida nas conclusões de recurso (conclusões V e VII a XVIII), no sentido de que “não poderia o tribunal a quo considerar impugnada tal escritura porquanto a mesma, como documento autêntico que é, não foi devidamente impugnada”, improcedendo tais conclusões.
3. Da aquisição do direito de propriedade por usucapião: o prazo de usucapião
O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (art. 1316.º).
Aquele que se arroga a titularidade desse direito, na enunciação da causa de pedir [ [34] ] incumbe-lhe articular os factos conducentes à aquisição originária do direito de propriedade ou, tratando-se de aquisição derivada, as sucessivas transmissões, com vista a apreciar se o direito já existia no transmitente, até chegar à aquisição originária do domínio [ [35] ].
Como se sabe, a invocação singela de um negócio translativo de propriedade – como é o trespasse, por exemplo –, não é de molde a fundamentar a pretensão de reconhecimento desse direito, a menos que aquele que se arroga a titularidade do direito beneficie de presunção legal [ [36] ] e, como já se referiu, a escritura de justificação notarial também é irrelevante para o efeito em apreço, não sendo suscetível de titular o direito invocado.
A autora invoca uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, a usucapião (art. 1287.º)  [ [37] ]. A posse compreende o exercício de poderes de facto sobre a coisa (corpus), com intenção de agir como se fosse o titular do direito (animus) (art. 1251.º) [ [38] ] e adquire-se por uma das formas a que alude o art. 1263.º; a posse boa para usucapir é aquela que, sendo pública e pacífica, se mantém por um determinado período que varia, exatamente, em função das caraterísticas da coisa reivindicada (arts. 203.º a 205.º e 1293.º a 1301.º) e das caraterísticas da posse (arts. 1258.º a 1262.º) [ [39] ].
Vejamos a conformação dos factos vertida na petição inicial.
A autora invoca:
- Que “administra a farmácia” (art. 17.º), e “materializa os seus atos de posse através do benefício que o estabelecimento lhe proporciona, zelando pela sua conservação, adquirindo e revendendo os produtos, pagando os respetivos impostos, taxas e licenças e é quem configura como titular da farmácia junto de diversas entidades que com ela se relacionam” (art. 18.º); está, pois, suficientemente densificado o elemento objetivo da posse;
- “Atuando assim com a convicção de exercer um direito sobre coisa sua e de ser a dona/proprietária do estabelecimento comercial de farmácia e do seu respetivo alvará” (art. 19.º); está, pois, suficientemente densificado o elemento subjetivo da posse, correspondendo aliás essa formulação àquela que habitualmente é feita pelo reivindicante.
Saliente-se que a autora omite a indicação de outros factos concretizadores, nomeadamente especificando os termos em que exerce a dita “administração”.
Em momento anterior, a autora alegou que “a propriedade do referido estabelecimento comercial veio à sua posse do seguinte modo” (art. 6.º), seguindo a indicação que fez verter na escritura de justificação e a que supra se aludiu (arts. 7.º a 11.º da petição inicial).
Concluindo então a autora que é “proprietária e legítima possuidora” da farmácia desde 05-02-2013, “tendo acumulado a sua posse com as dos anteriores proprietários” (art. 12.º) (sic), “sendo a sua posse titulada, substanciada pela presente escritura de justificação” (art. 14.º) e “[d]e boa-fé, porque a Autora vem possuindo o estabelecimento de farmácia na convicção de não estar a lesar direitos de outrem” (art. 15.º).
Avança-se já que a autora labora em erro notório quanto aos efeitos da escritura de justificação porquanto esta, insiste-se, não tem a virtualidade que a autora lhe aponta, não se reconduzindo a qualquer dos modos de aquisição da posse previstas no art. 1263.º [ [40] ]; a escritura de justificação não confere a posse – nem constitui título de aquisição do direito de propriedade –, pelo que não é por essa via que a autora pode arrogar-se ter uma posse titulada.
Em sede de recurso, a apelante insurge-se contra a sentença recorrida e, reportando-se diretamente ao que configura como “a segunda questão, do prazo para usucapir” (conclusão XVIII), atribui à sentença recorrida raciocínio e valoração que não foi feita (cfr. as conclusões XXII a XXIV), sendo que, lendo a decisão – e aceitando-se que a mesma não será uma peça processual que prime pela clareza de exposição      [ [41] ] – o que se retira da mesma é que o tribunal entendeu que o prazo necessário para a aquisição por usucapião era, no caso, o prazo de seis anos, exatamente como a apelante também indica (cfr. a XXX conclusão).
Assim, lê-se na decisão:
“Por outro lado, ainda que se admitisse por hipótese que tal interrupção não seria oponível à aqui autora, e que a mesma viesse a provar em sede de julgamento que usufrui do estabelecimento desde janeiro de 2013 e de boa fé, o que claramente não ocorre, o tempo necessária para adquirir o estabelecimento por via da sua posse pública, ininterrupta e pacífica, ainda não havia decorrido em fevereiro de 2018 quando outorgou a escritura nem em maio de 2018, aquando da instauração da ação, uma vez que a autora, conforme confessado na p.i., não dispõe de qualquer título e sobre o início da sua alegada posse ainda não tinham decorrido mais de seis (cf. art. 1299.º do C.C.)” (sublinhado nosso).
Como se deu nota, não há qualquer elemento no processo que suporte a conclusão de que fazem parte do estabelecimento comercial bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, podendo seguramente concluir-se que o AI não deu essa indicação nos presentes autos, nem isso se retira do apenso de apreensão, pelo que o prazo relevante para firmar a aquisição por usucapião é o que resulta da aplicação do disposto no art. 1299.º (“[c]oisas não sujeitas a registo”), ou seja, três anos nas situações de posse de boa fé e titulada (“fundada em justo título”) e de seis anos “independentemente da boa fé e de título”.
Entendemos que a posse invocada pela autora é uma posse não titulada.
A posse é titulada quando se funda num negócio abstratamente idóneo para a transferência da propriedade ou de um direito real de fruição, “independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico” (art. 1259.º). O que significa que padecendo o negócio de vício formal, isto é, sendo o negócio nulo por preterição de formalidade legal, a posse não é titulada [ [42] ]. No caso, é a própria autora que alega que a PG INC- Sucursal em Portugal lhe “trespassou verbalmente” o estabelecimento e que esse negócio não foi “reduzido a escrito meramente por impossibilidade das partes” – sem qualquer outra concretização, acrescente-se –, pelo que, fazendo parte do estabelecimento comercial o direito ao arrendamento, como já se referiu, estamos perante negócio que a lei obriga seja reduzido a escrito (art. 1112.º, nº3, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 6/2006, de 27-02), sendo, pois, nulo por vício de forma (art. 220.º), nulidade que é de conhecimento oficioso (art. 286.º).
Assim, a posse presume-se de má-fé (art. 1260.º, nº 2), sendo que a autora não alegou qualquer facto tendente a ilidir essa presunção (art. 350.º), para além da conclusão vertida no referido art. 15.º da petição inicial.
A este propósito, resulta da decisão proferida que o tribunal entendeu que sempre nos situaríamos perante hipótese de posse de má-fé [ [43] ], não se vendo que a autora tivesse contraposto o que quer que fosse a esse respeito, sendo que a factualidade dada por assente e os elementos constantes dos autos suportam essa conclusão.
Assim, o que resulta à evidência do processo é que a intervenção das várias sociedades arrogando-se, ao longo do tempo, sucessivamente, proprietárias do estabelecimento de farmácia, mais não serve senão a causa de AR, que sempre se arrogou como o proprietário de facto do estabelecimento, versus a proprietária de direito, a AV, afigurando-se indiciado que, com esses negócios (trespasses), os intervenientes pretenderam “retirar o estabelecimento da esfera jurídica da devedora e ora insolvente, para defraudar os seus credores, colocando-o “a salvo” (dos credores) na esfera jurídica de outra sociedade (detida exatamente pelas mesmas duas pessoas que eram titulares da vendedora/trespassante), pelo que é incompatível e inadmissível à luz dos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa manter a validade
de um negócio jurídico celebrado em tais termos e com tal fim” [ [44] ] [ [45] ].
Saliente-se a valoração feita pela primeira instância aquando da apreciação do pedido de condenação da autora como litigante de má-fé, pretensão julgada procedente e a que a autora nada contrapôs, quando aí se refere:
“Com feito, é manifesto que a presente ação consubstancia mais um expediente engendrado por AR para transferir para a sua esfera o estabelecimento comercial e respetivo alvará apreendidos para a Massa, à semelhança dos nove recursos interpostos, dos nove incidentes de suspeição deduzidos contra administradores e juízes, das seis providencias cautelar intentadas contra Massa com vista a obstar à apreensão efetiva do estabelecimento, e das mais três ações se separação intentadas contra a Massa”.
Em suma, a lei admite que a aquisição por usucapião tenha por base uma posse não titulada e de má-fé: essa caraterização tem apenas influência na determinação do prazo relevante para a produção dos efeitos jurídicos respetivos, associados à aquisição por usucapião. 
Conclui-se, então, que a usucapião só pode dar-se ao fim de 6 anos (art. 1299.º) pelo que, contabilizada a posse da autora desde a data em que alegadamente adquiriu o estabelecimento, momento que a autora fixa em 05-02-2013, à data de instauração da ação, aquele prazo não se mostrava ultimado.
4. Da acessão na posse
É lícito à autora, no condicionalismo que o processo evidencia, para efeitos de aquisição por usucapião, juntar à sua posse, a posse dos seus antecessores, como defende (conclusões XVIII a XXXIV)?
A aplicação do instituto (“acessão da posse”, epígrafe do art. 1256.º, nº1) não tem sido consensual, afigurando-se-nos no entanto que a doutrina e jurisprudência mais recente vão no sentido de considerar que a lei não exige, para a acessão na posse, que o vínculo jurídico existente entre o novo e o antigo possuidor seja formalmente válido, exigindo-se apenas, perante posses contíguas ou consecutivas, que a transmissão assente num título que, em abstrato, seja suscetível de fundar a transmissão, colocando-se, pois, o acento tónico na transmissão/entrega da coisa; a generalidade dos autores assinala que o fim primordial do instituto é o de facilitar a aquisição por usucapião do direito de propriedade ou de outros direitos reais usucapíveis, tendo natureza facultativa.
Nesse sentido, concluiu-se no acórdão do TRC de 10-12-2020 que “[u]m possuidor atual pode juntar (acessão da posse do art. 1256.º do C. Civil) a sua posse à posse do seu antecessor, caso tenha adquirido a posse deste por qualquer um dos modos de transmissão da posse que o direito reconhece (a tradição e o constituto possessório), independentemente da validade (formal e substantiva ou apenas formal) do título de transmissão”. Lê-se na fundamentação desse aresto:
“A única dificuldade jurídica que emergia estaria na aplicação (ou não) do instituto da acessão (art. 1256.º do C. Civil), ou seja, estaria na possibilidade (ou não) do primitivo R., para computar o tempo de posse necessário à usucapião, poder juntar o seu tempo de posse ao tempo de posse do seu pai (isto é, não ficar o primitivo R. limitado, para efeitos de usucapião, ao seu tempo de posse).
Durante muito tempo, a nossa doutrina [30] – na esteira do defendido primeiro por Manuel Rodrigues [31], no domínio do C. Seabra, e depois, na vigência do atual CC, por Pires de Lima e Antunes Varela [32] – ia no sentido de exigir, para que pudesse haver acessão da posse, que houvesse um “vínculo jurídico” válido (ou, pelo menos, segundo Pires de Lima/Antunes Varela, uma relação jurídica formalmente válida) entre o novo e o antigo possuidor.
Mais recentemente – na linha do defendido por Menezes Cordeiro e José Alberto Vieira[33] – vem-se sustentando que não há fundamento, no direito português atual, para fazer tal “exigência” (para afirmar que, à luz do art. 1256.º/1 do CC, deve haver um “vínculo/negócio jurídico” formalmente válido entre o novo e o antigo possuidor), na medida em que o regime vigente da usucapião prescinde da existência de título, bem como da boa fé (o possuidor sem título e de má fé também usucapem; o prazo é maior, mas também beneficiam da usucapião).
Como observa José Alberto Vieira [34], “(…) se o instituto da acessão visa facilitar o funcionamento da usucapião, (…) não faz qualquer sentido exigir para ela mais requisitos do que aqueles que se colocam à própria usucapião. O Direito português abandonou a exigência de título e de boa fé para efeitos de usucapião e permite que o possuidor formal beneficie desta. (sendo assim), por que razão exigir um título para um instituto (acessão) que atua no âmbito da usucapião, se o regime desta não o faz?”
Observação esta que merece a nossa adesão [35].
A nosso ver, um possuidor atual (…) pode juntar a sua posse à posse do seu antecessor (…), caso tenha adquirido a posse deste por qualquer um dos modos de transmissão da posse que o direito reconhece (a tradição e o constituto possessório), independentemente da validade (formal e substantiva ou apenas formal) do título de transmissão. (…)
Verdadeiramente, o art. 1256.º/1 do C. Civil apenas exige que o adquirente da posse a tenha recebido por transmissão, isto é, que estejamos perante posses consecutivas (que se desenvolvem sem a intromissão de uma posse de terceiro), o que torna escusado falar duma exigência adicional de “continuidade” nas posses (uma vez que é a própria acessão a pressupor a transmissão da posse entre o novo e o antigo possuidor) [ [46] ] [ [47] ] [ [48] ].
No caso e, curiosamente, em termos similares à conclusão a que se chegou no aresto do STJ de 29-12-2016 que a apelante convocou [ [49] ], não releva sequer para o processo a opção por uma, ou outra, orientação, considerando que a autora, em manifesta violação do ónus de substanciação do pedido, omitiu a alegação de qualquer facto pertinente à configuração dos poderes alegadamente exercidos pelos ante possuidores, quer na sua ponderação objetiva, quer subjetiva. 
Efetivamente, a autora limitou-se, na petição inicial, a invocar a outorga da escritura de justificação (artigo 5.º) e, subsequentemente, os títulos de transmissão, conforme consta dos artigos 6.º a 11.º [ [50] ], concluindo então que a autora “é desde 5 de Fevereiro de 2013, proprietária e legítima possuidora com exclusão de outrem do referido estabelecimento de farmácia, tendo acumulado a sua posse com as dos anteriores proprietários” (art. 12.º, a que já se aludiu).
Em suma, nem na petição inicial nem na resposta à contestação a autora alegou factos concretos que, a provarem-se, permitiriam concluir que os titulares anteriores, que identifica, tiveram a posse do estabelecimento de farmácia em causa e que a mesma revestiu as caraterísticas necessárias, isto é, uma posse pública e pacífica, em ordem a que fosse viável a aplicação do instituto da acessão. O que significa que, em resposta à pergunta com que se iniciou esta análise, a autora pode apenas contar com a sua própria posse e essa não perdurou pelo tempo suficiente para permitir a aquisição por usucapião.  
Ora, quando o demandante articula um conjunto de factos que são relevantes tendo em conta a pretensão que formula, mas, ainda assim, omite outros que também são constitutivos do direito de que se arroga, estamos perante uma causa de pedir insuficiente, o que gera a inviabilidade da ação, com a consequente absolvição do réu do pedido.
Concluindo, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes com os assinalados pela primeira instância, mantém-se o juízo valorativo (de improcedência do pedido) feito na sentença recorrida.
5. Da interrupção do prazo para usucapir
Ponderando o exposto, fica claramente prejudicada a apreciação da questão aludida.
*
Pelo exposto e com a fundamentação exposta, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante (art. 527.º, nº1 do CPC).
Notifique.

Lisboa, 17 de outubro de 2023
Isabel Fonseca
Manuel Ribeiro Marques
Fátima Reis Silva  
_______________________________________________________
[1] Ação instaurada em 18-05-2018.
[2] Por requerimento de 30-04-2020 a autora indicou “que nada tem a obstar à dispensa da realização de audiência prévia desde que tal não contenda com o direito de resposta” às exceções, direito que exerceu por articulado apresentado em 12-06-2020, na sequência do despacho de 03-06-2020, com o seguinte teor:
“Não tendo resultado claro do despacho que antecede que o prazo concedido servia igualmente o propósito de possibilitar à autora o exercício do contraditório às exceções invocadas na contestação, concedo para o efeito prazo adicional de 10 dias”.
[3] Lê-se em sede de fundamentação:
“Do que acaba de se referir resulta que uma sociedade comercial, tem personalidade e capacidade judiciárias.
Ora, no caso vertente, de acordo com a documentação junta aos autos resulta que a autora foi constituída no Estados Unidos à luz da Lei do Estado de Delaware, onde tem a sua sede.
Por outro lado, a autora consta inscrita como entidade equiparada estrangeira no registo das PC sob o n.º 980 482 445.
Acresce que resulta, outrossim, da informação pública que a autora tem no nosso país uma representação permanente sob a designação PI INC – Sucursal em Portugal, registada com o NIPC, que tem, aliás, como representante AR, pelo que face aos elementos disponíveis julga-se que, para o efeito, está suficientemente demostrada a sua existência e a personalidade e capacidade judiciárias da autora.
Termos em que improcede a invocada exceção” (sublinhado nosso).
[4] Ação que terminou conforme despacho proferido em 16-04-2009, que julgou válida a desistência apresentada pelo embargante e, consequentemente, julgou extinta a instância de embargos. 
[5] A ação foi contestada pela … (na qualidade de credora, em 22-07-2009), por AV (em 21-09-2009), pela AH (na qualidade de credora, em 21-09-2009) e pela Massa Insolvente (em 22-09-2009); por acórdão do TRL de 11-01-2018, notificado aos intervenientes processuais por comunicação de 12-01-2018 (Relator: Maria José Mouro), foi confirmada a decisão da primeira instância (acórdão publicado in www.dgsi.pt).
[6] Desse processo consta a seguinte factualidade, dada por provada pela primeira instância e não impugnada em sede de recurso:
Com data de 17 de julho de 1999, foi conferido a AV alvará pelo Infarmed – Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento referente ao estabelecimento de Farmácia P Suc (número 7 dos factos provados);
MR é sócio único e gerente da FCF, Lda e é filho de AR (números 8 e 11);
Anteriormente foi gerente dessa sociedade, nomeada por deliberação de 30.10.2008 MO, tendo esta renunciado à gerência com data de 21.11.2008 (números 9 e 10);
Em 17.06.2009 AR apresentou-se à insolvência declarando ser proprietário da referida farmácia e foi declarado insolvente por sentença datada de 15.07.2009 no Processo n.º 897/09.9T2AVR que corre os seus termos no (extinto) Juízo de Comércio de Aveiro (números 12 e 21);
AR não era nem é farmacêutico (número 17);
Dando esse aresto nota dos vários negócios sempre associados à referida farmácia bem como de ato de resolução formulado pela AI.
[7] Nesse aresto indicou-se que: “temos como questões que se nos colocam: se por via do «Contrato de Trespasse» documentado a fls. 9-10, a A. é titular do estabelecimento de farmácia apreendido, uma vez que este bem se encontrava na “disposição” do ali trespassante, devendo o mesmo ser separado da massa; se a apelante deve (ou não) ser condenada como litigante de má fé”.
E, apreciando, para além da confirmação da improcedência da ação, com a fundamentação aí expressa, a Relação manteve igualmente a condenação da autora/apelante FCF, Lda. como litigante de má-fé, assinalando o seguinte:
“Como assinalado na sentença recorrida o único sócio e gerente da apelante é filho de AR. Por outro lado, sabemos que em 31-10-2008 (dia seguinte à declaração de insolvência de AV) fora celebrado entre o referido AR, dessa feita como procurador de AV, e a ora apelante (então representada por MV) um «Contrato de Trespasse» que se reportava ao mesmo estabelecimento de farmácia – a “FP Suc” – conforme documento de fls. 189-192, bem como sabemos que tal negócio foi resolvido por comunicações escritas da Srª Administradora da Insolvência datadas de 21-3-2009.
Verificamos, pois, que se sucederam dois negócios referentes ao trepasse do mesmo estabelecimento em que intervém como trespassária a apelante cujo sócio e gerente é o filho de AR, intervindo também o referido AR, de uma vez como representante da insolvente e de outra em nome próprio. Face ao primeiro negócio celebrado e que veio a ser resolvido, concordamos com a sentença recorrida quando nela se diz que a A. deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, agindo – pelo menos – com culpa grave, se não com dolo”.
[8] Na petição inicial a autora identificou-se como segue: “sociedade de direito norte americano, com sede em Delaware 19703, Estados Unidos da América”, isto é, tendo a mesma morada da autora. 
[9] A decisão que julgou extinta a instância por inutilidade foi proferida em 08-04-2018, sem que tivesse ocorrido a apreciação da pretensão formulada. A autora deduziu requerimento em 17-12-2018 indicando “desistir da instância por inutilidade superveniente da lide” invocando que trespassou o estabelecimento em causa à sociedade PI INC e que esta sociedade já interpôs ação “de separação e restituição de património”, correndo termos sob o apenso AM, isto é, os presentes autos.    
[10] O despacho que julgou deserta a instância, “nos termos do art. 281.º” do CPC, foi proferido em 26-09-2018, na sequência da declaração de insolvência do autor e do posicionamento omissivo deste, uma vez que, notificado conforme despacho proferido em 26-09-2017, para indicar o estado desse processo e a identidade do AI, não teve qualquer outra intervenção no processo.
[11] A autora foi nesse ato representada por FR, que se identificou como casado, natural da freguesia de …, concelho de Alenquer, residente no Largo, freguesia e concelho de Alenquer.   
[12] “O estabelecimento é, como se viu, um conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas, de bens e serviços, organizado pelo comerciante com vista ao exercício da sua actividade mercantil, de sorte que, em última análise, o que o compõe são os elementos aptos ao desempenho da actividade do comerciante e que este agregou e organizou para a realização de tal empresa” (Fernando Olavo, Direito Comercial, 1979, Volume I, p. 262).  
[13] Cfr., ente muitos, o acórdão do STJ de 22-02-2018, processo: 223/12.0TBGRD.C1.S1 (Relator: Tomé Gomes, acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais arestos aqui referidos, sem outra indicação) assim sumariado:
“I. O estabelecimento comercial consubstancia-se num complexo de elementos heterogéneos, corpóreos e incorpóreos, integrados numa organização dinâmica destinada ao exercício de uma atividade económica comercial, configurável como universalidade de direito. 
II. Segundo a doutrina corrente, o estabelecimento comercial como universalidade de direito é passível de posse, de usucapião e de reivindicação da propriedade, mesmo sem o restringir aos simples objetos corpóreos.
III. A propriedade do estabelecimento comercial, enquanto universalidade de direito, não se afere em função de um ou outro elemento integrativo, mas por referência ao conjunto organizado, tanto mais que podem alguns desses elementos não pertencer em propriedade ao titular do mesmo estabelecimento, bastando que ele os possa utilizar ou ter a respetiva disponibilidade para os fins da empresa.
IV. Tendo-se provado apenas que o autor explorou o estabelecimento comercial de julho de 2001 até 2007, tendo praticado, entretanto, alguns atos de remodelação e beneficiação compatíveis com a cedência temporária do mesmo, não é lícito concluir que aquele autor exercera uma posse em nome próprio em termos da propriedade desse estabelecimento”.              
[14] Enunciando Fernando Olavo (obr, cit. pp. 271- 283) as mais significativas: teoria da personalidade, teoria do património autónomo, teoria da universalidade e teoria da organização.  
[15] Cfr., a título exemplificativo, a sentença proferida no apenso Y (incidente de qualificação), que qualificou a insolvência como culposa, confirmada por acórdão desta Relação proferido em 23-02-2020, mormente a factualidade aí dada como assente, incluindo o aditamento feito pela Relação, acórdão assim sumariado:
“1. São pressupostos da qualificação da insolvência como culposa que:
- O devedor – ou o seu administrador, na aceção do art. 6º do CIRE–, pratique ato que tenha criado ou agravado a situação de insolvência;
- O ato seja praticado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, relevando o disposto no art. 4º do CIRE;
- Que o devedor – ou o administrador – tenha agido com dolo ou culpa grave;
2. Sustentando a insolvente, pessoa singular, que nunca foi, de facto, a proprietária de uma farmácia, e que esse direito pertencia a outrem, tendo adquirido o estabelecimento aceitando uma proposta feita por este, dessa forma se contornando a exigência imposta pelo legislador, à data (arts.  29.°, 39.°, 71.° e 83.° do Dec. Lei 48547 de 27-08-1968 e a Base II n.° 1 da Lei 2125 de 20-03-1965), então, outorgando posteriormente uma escritura de confissão de dívida (em 20-11-2003) numa altura em que, saliente-se, se tinha alterado o regime legal que enquadrava o exercício da atividade, a insolvente assumiu uma dívida alheia, responsabilizando-se pessoalmente pelo pagamento do crédito, aparentemente sem causa justificativa para a assunção dessa obrigação.
3. Neste contexto e tendo a insolvente um nível superior de literacia – é licenciada em farmácia, exercendo as funções de Diretora Técnica da farmácia desde 1999, tendo pois, carteira profissional de farmacêutica há vários anos, sendo que é a própria apelante quem refere que “trabalhava e ganhava um salário normal para as funções que exercia” – a outorga dessa escritura, pela qual a recorrente se obrigou a pagar uma quantia que, indiscutivelmente, é de valor elevadíssimo, consubstancia uma atuação que atenta contra as mais elementares regras de prudência, agindo a insolvente com negligência grosseira, logo, com culpa grave”.
[16] Com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 75/2016 de 08-11 (7ª alteração, conforme indicado no art. 1º do diploma).
[17] Artigo 18.º
Trespasse, cessão de exploração, sucessão mortis causa e outras situações transitórias
1 - As farmácias não podem ser trespassadas nem a respetiva exploração ser cedida antes de decorridos cinco anos, a contar do dia da respetiva abertura ao público, na sequência de concurso público.
2 - Ficam excluídas do disposto no número anterior as situações devidamente justificadas perante o INFARMED.
3 - Consideram-se motivos justificados, designadamente:
a) A morte da proprietária;
b) A incapacidade da proprietária;
c) A partilha de bens por divórcio ou separação judicial da proprietária;
d) A declaração de insolvência da proprietária.
4 - O trespasse e a cessão de exploração devem observar forma escrita.
5 - Falecida a proprietária da farmácia, se algum dos seus herdeiros não puder ser proprietário, os mesmos dispõem do prazo de um ano para requerem inventário ou procederem à adjudicação ou alienação da mesma a favor de quem possa ser seu proprietário, sob pena de caducidade do alvará, procedendo-se, entretanto, ao averbamento transitório da farmácia a favor dos herdeiros, em comum e sem determinação de parte ou direito.
6 - O preceituado no número anterior é aplicável com as necessárias adaptações no caso de partilha de bens por divórcio ou separação judicial da proprietária.
7 - Os atos, factos ou negócios jurídicos que impliquem alteração da propriedade da farmácia são comunicados ao INFARMED, pelo outorgante referido no alvará, ou pelo seu procurador, ou por qualquer interessado, no prazo de 30 dias a contar da respetiva ocorrência ou celebração, para efeitos de averbamento no alvará.
[18] Artigo 2.º
Interesse público
As farmácias prosseguem uma atividade de saúde e de interesse público e asseguram a continuidade dos serviços
que prestam aos utentes.
[19] Podendo estar em causa a validade do ato de trespasse. Essa exigência de licenciamento ocorre com outras atividades do setor económico, nomeadamente no setor da restauração, como deu nota o acórdão do STJ de 17-10-2019, processo: 1232/15.2T8ALM.L1.S1 (Relator: Paula Sá Fernandes), assim sumariado:
“I. A Ré, nova titular da exploração do estabelecimento de restauração em causa, não logrou conseguir beneficiar do alvará existente para o mesmo, que havia sido concedido ao anterior titular, e também não o conseguiria obter uma vez que o prédio não dispunha de licença de utilização.
II. O contrato de trespasse incidiu sobre a integralidade do estabelecimento comercial em causa mas em que a actividade comercial nele exercida, relativa à restauração, não se encontrava devidamente licenciada pelas autoridades competentes, sendo assim inválido à luz das referidas normas de licenciamento obrigatório, pelo que está ferido de nulidade, vício susceptível de ser invocado a todo o tempo, e que leva à restituição de tudo o que houver sido prestado com efeitos retroactivos, ao abrigo do disposto nos artigos, 286º, 289º, 1, e 294 do CC”. 
[20] Concluindo-se ainda no referido aresto:
“V. Corresponde ao entendimento de um declaratário normal, diligente e experiente, colocado na posição do declaratário concreto e tendo em conta o comportamento dos declarantes (art. 236º, 1, CCiv.), interpretar a cláusula de constituição de penhor sobre “os direitos emergentes do alvará para funcionamento” de uma farmácia, no âmbito e para o efeito da garantia de um mútuo bancário destinado à prossecução do objecto do estabelecimento farmacêutico, como um penhor sobre o estabelecimento como um todo (admissível e válido à luz do art. 280º do CCiv.), necessariamente privilegiado com essa condição público-administrativa para o respectivo exercício empresarial, devidamente executada pelo “alvará” emitido ou averbado, e não sobre um título que não é susceptível de domínio e apropriação nem transmissível, ainda que com valor integrado no goodwill do estabelecimento susceptível de avaliação. Trata-se igualmente de sentido interpretativo com correspondência objectiva abrangida pelo texto do documento que formaliza o mútuo («mínimo de correspondência», de acordo com o art. 238º, 1, do CCiv.)”.
[21] A questão colocou-se na jurisprudência a propósito da validade do penhor incidindo sobre o alvará, sendo que a posição sufragada no acórdão foi reiterada noutro arestos do STJ, como aconteceu no acórdão de 27-02-2020, processo: 424/12.0TBELV-C.E1.S2 (Relator Pinto de Almeida) – em que, muito sugestivamente, se refere que “[o] alvará de farmácia é, pois, incindível do respetivo estabelecimento, sendo insusceptível de apropriação e transmissão autónoma e individualizada” – e o acórdão de 28-04-2021, processo: 1377/17.4T8OAZ-D.P1.S1 (Relator: José Rainho).
[22] Acórdão do TRL de 23-03-2021, processo: 409/20.3T8SCR.L1-7 (Relator: Ana Rodrigues da Silva), assim sumariado:
1. Toda a sequência de actos que se dirija a um certo fim assume-se como um procedimento, seja ele judicial ou não;
2. Quer a justificação que corre termos junto das Conservatórias do Registo Predial (sucessora da justificação judicial), quer a justificação notarial, são procedimentos no sentido processual do termo;
3. A publicação do extracto da escritura de justificação notarial assume-se como uma formalidade essencial no âmbito de uma sequência de actos e, nessa medida, como parte de um procedimento;
4. Por esse motivo, a emissão de certidão prevista no art. 101º, nº 2 do Cód. do Notariado está abrangida pela suspensão de prazos decretada pela Lei 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção dada pela Lei 4-A/2020, de 6 de Abril.           
[23] Artigo 94.º
Justificação para fins do registo comercial
1 - A justificação, para os efeitos de registo da transmissão da propriedade ou do usufruto de quotas ou de partes do capital social ou da divisão ou unificação de quotas de sociedades comerciais, ou civis sob forma comercial, tem por objecto a dedução do trato sucessivo a partir da última inscrição, ou o estabelecimento de novo trato sucessivo, por meio de declarações prestadas pelos respectivos gerentes ou administradores da sociedade ou pelos titulares dos respectivos direitos.
2 - A justificação a que se refere o n.º 2 do artigo 141.º do Código das Sociedades Comerciais tem por objecto a declaração de dissolução da sociedade.
3 - À justificação a que se refere o n.º 1 é aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 90.º, bem como o disposto no n.º 2 do artigo 89.º, quando for caso disso.
[24] Na escritura de justificação em causa alude-se a esse alvará, com expressa menção de que o mesmo esta “registado no Infarmed em nome de AV”.
[25] Compulsando o apenso AN, verifica-se que:
Em 22-06-2018 a ora autora intentou procedimento cautelar não especificado contra a Massa Insolvente de A V, a AV e os credores da insolvência pedindo que seja decretada a suspensão da tomada de posse do estabelecimento de farmácia até o trânsito em julgado da decisão a ser proferida no apenso AM; por despacho de 27-06-2018 foi indeferido liminarmente o procedimento, decisão confirmada por acórdão desta Relação de novembro de 2018.
Na petição inicial a requerente invocou que “encontra-se pendente junto do Infarmed o pedido de averbamento da propriedade a favor do ora requerente da propriedade do aludido estabelecimento de farmácia” (art. 28.º), sendo que a alegação vertida na petição inicial dos presentes autos constitui repetição do que já havia sido indicado nesse procedimento cautelar (cfr. os arts. 1.º a 21.º do procedimento cautelar).
No requerimento inicial foram juntos três documentos alusivos a procurações forenses, atribuindo poderes ao Dr. CR, todas datadas de 20-04-2018, sendo mandante, na primeira procuração, a ora autora, na segunda PG INC, com a mesma sede da autora e no terceiro documento é mandante o AR.
[26] Compulsando o apenso AQ, verifica-se que:
Em 06-02-2019 a autora intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra a Massa Insolvente de AV, a AV e os credores da insolvência pedindo que “seja ordenada a restituição provisória à requerente da posse do estabelecimento de farmácia” indicado, “bem como condenar-se os requeridos a absterem-se a praticar actos que impeçam ou dificultem o acesso dos requerentes ao referido” estabelecimento de farmácia.
A alegação vertida na petição inicial dos presentes autos constitui repetição do que já havia sido indicado nesse procedimento cautelar (cfr. os arts. 5.º a 20.º do procedimento cautelar); a requerente alega ainda que “o imóvel onde se encontra instalada a farmácia é propriedade da massa insolvente de AR” (art. 46.º) (sublinhado nosso).
Por despacho de 08-02-2019 foi indeferido liminarmente o procedimento, decisão da qual não foi interposto recurso, tendo transitada em julgado.
A requerente juntou, com a petição inicial, um documento, consubstanciando uma declaração do INFARMED, datada de 21-11-2017, com o seguinte teor, no que ao caso se reporta:
“O Conselho Diretivo do INFARMED (…) considerando que:
- Relativamente aos processos de licenciamento da propriedade da (…) Farmácia P Suc, sita no Cartaxo (…); 
- Têm sido rececionadas neste Instituto inúmeras comunicações, requerimentos e exposições, subscritas pelo cidadão AR e pelo cidadão FR, as quais são publicitadas continuamente pelos mesmos junto de diversas entidades públicas;
- Nas publicitadas comunicações, requerimentos e exposições, tem sido colocada em questão a imparcialidade e legalidade da decisão do INFARMED, I.P. de não proceder aos sucessivos averbamentos requeridos pelos referidos cidadãos;
- Declara pela presente, por forma a clarificar publicamente a presente situação, e para os efeitos tidos por convenientes, de acordo com a informação existente neste Instituto, que:
(…)
No que respeita à Farmácia P Suc (…) existem questões prejudiciais a decidir quanto à propriedade da mesma, encontrando-se este Instituto a aguardar respetivamente, a prolação e o trânsito em julgado de decisões judiciais no âmbito dos processos judicias pendente quanto à propriedade daquela farmácia, nomeadamente a prolação da decisão relativa ao processo de insolvência da farmacêutica Drª AV que corre termos no Tribunal da Comarca de Lisboa- Instância Central- 1ª Secção de Comércio – J 1, sob o Nº 1375/014.8TYLSB e o Processo Nº 2129/16.4BELSB, que corre termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, onde a sociedade PG Inc. pretende que o INFARMED, I.P, seja condenado a averbar a propriedade da referida farmácia em seu nome.
3. Acresce que, quanto à sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Oeiras, atual Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste - Oeiras - Instância Local- Secção Cível-J1, no âmbito do Processo N.º 10001/11.8TBOER, já transitou em julgado o Recurso de Revisão interposto pela Massa Insolvente da Drª AV daquela sentença, confirmando-se a sentença que determinou a anulação da sentença proferida no âmbito daquele processo, que havia decidido ser a FCF, Sociedade Unipessoal Lda a proprietária da Farmácia P Suc, retirando toda e qualquer eficácia à sentença então proferida pelo Tribunal Judicial de Oeiras.
4- Pelos motivos supramencionados, o Alvará nº da Farmácia P Suc não se encontra atualizado, estando à presente data e, desde 28 de maio de 1999, a propriedade da Farmácia P Suc, averbada no alvará datado de 22 de maio de 2012, em nome da Farmacêutica Dra. AV, por escritura pública de Trespasse datada de 06 de maio de 1999.
(…)
10 – Este Instituto encontra-se, em observância da norma legal prevista no Artigo 38.º do Código do Procedimento Administrativo, legalmente impedido de proceder a qualquer averbamento no alvará de cada uma das farmácias aqui em questão ou emitir certidões narrativas cujo teor contenda diretamente com as questões que se encontram a aguardar as decisões judiciais relacionadas com a propriedade das mesmas”.           
[27] Artigo 95.º
Apreciação das razões invocadas
Compete ao notário decidir se as razões invocadas pelos interessados os impossibilitam de comprovar, pelos meios extrajudiciais normais, os factos que pretendem justificar.
[28] Cfr. os arts. 96.º a 100.º do Cód. do Notariado.
[29] Entendendo-se que assume essa qualidade qualquer pessoa que invoque a titularidade de direito incompatível com aquele que é invocado pelo justificante, ou qualquer outro interesse juridicamente protegido e que possa ser afetado por via da escritura impugnada. 
[30] Artigo 101.º
Impugnação
1 - Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção.
2 - Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação.
3 - O disposto no número anterior não prejudica a passagem de certidão para efeito de impugnação, menção que da mesma deve constar expressamente.
4 - Em caso de impugnação, as certidões só podem ser passadas depois de averbada a decisão definitiva da acção.
5 - No caso de justificação simultânea, nos termos do artigo 93.º, não podem ser extraídas quaisquer certidões da escritura sem observância do prazo e das condições referidos nos números anteriores.
[31] A questão suscitava-se no âmbito do registo predial, quanto à escritura de justificação com vista à inscrição no registo, e foi resolvida pelo Acórdão de Uniformização da Jurisprudência nº 1/2008, de 04-12-2007, publicado no DR I, 31-03-2008, que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial”.
[32] Segue-se o que já se escreveu no acórdão do TRC de 17-12-2008, processo: 1207/05.OPBTMR.C1 (Relator: Isabel Fonseca).
[33] A afirmação seguinte, feita pela primeira instância, de que “quem invoca um direito titulado por escritura de justificação notarial tem o encargo probatório de demonstrar a aquisição e validade do seu direito, não beneficiando de qualquer presunção de titularidade” (sublinhado nosso), na parte assinalada, não pode ser acompanhada porquanto a escritura de justificação notarial não tem a virtualidade de titular o direito invocado.
[34] Entendendo-se a causa de pedir como “o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido” (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1985, Coimbra: Coimbra Editora, p. 245).
[35] Sobre a diabólica probatio cfr. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2001, Lisboa: Quid Juris, pp. 260-261.
[36] Bastando-lhe, então, a alegação dos factos pertinentes ao funcionamento da presunção.
[37] No art. 13.º da petição inicial alega:
“Tendo adquirido a referida farmácia por usucapião, nos termos do art. 1374.º do C.C.”, com manifesto lapso na indicação do preceito legal.   
[38] A mera detenção ou posse precária não tem a virtualidade de fundar a usucapião, salvo inversão do título da posse (arts. 1253.º e 1290.º).
[39] Conforme referido no acórdão do STJ de 29-11-2016, processo: 322/13.0TBTND.C1.S1 (Relator: Nuno Cameira), convocado pela apelante:
(…) II. Só a posse pública – a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262.º do CC) – e pacífica – a que foi adquirida sem violência (art. 1262.º do CC) – é susceptível de conduzir à usucapião.
III - A existência ou não de título da posse, bem como a boa ou a má fé, influem apenas na determinação do prazo necessário à usucapião, mas não impedem a sua verificação”.
[40] Artigo 1263.º
(Aquisição da posse)
A posse adquire-se:
a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito;
b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor;
c) Por constituto possessório;
d) Por inversão do título da posse.
[41] Lê-se na sentença:
“No âmbito desta ação, as questões a dirimir são, por um lado, saber se deve ser reconhecida à autora a propriedade sobre o estabelecimento comercial em apreço e, consequentemente, se o mesmo deve ser separado da Massa Insolvente. Por outro, importa ainda conhecer o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé no pagamento de uma multa e indemnização à Massa Insolvente”.
Temos por evidente que a Juiz se limitou a enunciar (novamente) as pretensões formuladas pelas partes, mas não indicou quais foram as questões que, sendo suscitadas pelas partes, ou de conhecimento oficioso, se impunha apreciar e teceu a sua fundamentação jurídica sob a epígrafe “IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO”, sem segmentar as matérias apreciadas.
[42] “O art. 1259.º, 1.º, esclarece que, nem a falta do direito do transmitente, nem a falta de validade substancial do negócio jurídico excluem o título. Temos de admitir, a contrario, que a falta de validade formal impede que se fale de título. Se se vender um prédio por escrito particular, a posse em que o comprador se constitui não é titulada” (Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1978, Coimbra: Almedina, p. 278).
No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 1984, Coimbra: Coimbra Editora, p. 19, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2001, Lisboa: Quid Juris, p. 282, Menezes Cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2005,Coimbra: Almedina, p. 91, ainda que defendendo o autor que a solução do legislador, “deixando de fora, apenas, os [vícios] formais”, não é “de iure condendo”, “curial”.    
[43] Cfr. a referência constante da sentença quando se refere:
“Por outro lado, ainda que se admitisse por hipótese que tal interrupção não seria oponível à aqui autora, e que a mesma viesse a provar em sede de julgamento que usufrui do estabelecimento desde janeiro de 2013 e de boa fé, o que claramente não ocorre, o tempo necessário para adquirir o estabelecimento por via da sua posse pública, ininterrupta e pacífica, ainda não havia decorrido em fevereiro de 2018 quando outorgou a escritura nem em maio de 2018, aquando da instauração da ação, uma vez que a autora, conforme confessado na p.i., não dispõe de qualquer título e sobre o início da sua alegada posse ainda não tinham decorrido mais de seis (cf. art. 1299.º do C.C.)” (sublinhado nosso).
[44] Acórdão do STJ de 28-06-2023, processo: 1936/15.0T8VFX-R.L1.S1 (Relator: António Barateiro Martins), assim sumariado:
“I – Não preenche os requisitos/elementos da simulação absoluta o trespasse dum estabelecimento comercial efetuado entre duas sociedades com o fim de desmantelar/esvaziar a trespassante e de defraudar e prejudicar os seus credores: a realização de tal negócio é até, em termos necessariamente efetivos e reais, um instrumento para a consecução do pretendido fim/resultado negocial (desmantelar/esvaziar a trespassante), ao arrepio de toda e qualquer intencionalidade simulatória.
II – Estando provado que a trespassante, entretanto declarada insolvente, alienou o seu estabelecimento comercial “a fim de defraudar as expectativas dos seus credores de poderem ver parte dos seus créditos ressarcidos”, “com intento prejudicial aos interesses dos seus credores” e visando “desmantelar” a trespassante que assim ficou “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, dando-se o caso de as contraentes em tal alienação/trespasse serem sociedades da titularidade, em idêntica percentagem, dos mesmos dois sócios e da trespassária haver sido constituída no próprio dia do negócio e não ter ficado provado o pagamento do respetivo preço, deve entender-se que ocorre ilicitude do fim com que as partes celebram tal negócio jurídico.
III – Um tal negócio, atenta a finalidade do mesmo, configura uma conduta próxima das que estão tipificadas como constituindo crimes de insolvência dolosa do art. 227.º do C. Penal, devendo considerar-se que o fim de tal negócio colide com os princípios que integram a Ordem Pública e que se deduzem de tal tipo criminal e dos preceitos legais (como os arts. 601.º, 605.º e 610.º do C. Civil) que defendem o credor contra os atos de esvaziamento e dissipação do património do devedor.
IV – Ademais, alienar património, para fugir aos credores, em proveito próprio (indireto, na medida em que, através da trespassária, o estabelecimento continuava na titularidade das mesmas pessoas), deixando a alienante/trespassante “sem ativos imprescindíveis ao exercício do seu objeto social”, é um negócio que é eticamente reprovável, que não está de acordo com a decência económica e do inter-relacionamento entre pessoas e cujo fim, por isso, é contrário aos Bons Costumes.
V – Com um tal negócio/trespasse, apenas se visou retirar o estabelecimento da esfera jurídica da devedora e ora insolvente, para defraudar os seus credores, colocando-o “a salvo” (dos credores) na esfera jurídica de outra sociedade (detida exatamente pelas mesmas duas pessoas que eram titulares da vendedora/trespassante), pelo que é incompatível e inadmissível à luz dos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa manter a validade de um negócio jurídico celebrado em tais termos e com tal fim.
VI – Tendo-se provado que a ilicitude do fim é comum aos dois contraentes do negócio, é a globalidade negocial que fica em causa, tendo tal ilicitude do fim negocial como consequência a nulidade do próprio negócio, de acordo e nos termos do art. 281.º do C. Civil”.
[45] Não constitui objeto destes autos a indagação sobre se o bem em causa deve permanecer apreendido à ordem do presente processo de insolvência, como se encontra ou, ao invés, constitui bem da massa insolvente do referido AR; é ao administrador da insolvência deste que compete atuar como julgar pertinente, na defesa dos interesses dos credores respetivos.   
[46] Processo: 1757/17.5T8CVL.C1 (Relator: António Barateiro Martins); a nível do STJ, cfr., no sentido apontado, os acórdãos de 02-12-2014, processo: 94/07.8TBSCD.C1.S1 (Relator: Garcia Calejo) e de  29-11-2016, processo: 322/13.0TBTND.C1.S1 (Nuno Cameira).            

[47] Nesse sentido, Menezes Cordeiro, obr. cit. pp. 131-137. Conclui o autor:
“A acessão na posse é, simplesmente, uma decorrência da transmissão da posse. Noutros termos: para efeitos de usucapião, conta-se o prazo desde o momento da constituição originária da situação possessória e independentemente das eventuais transmissões subsequentes.
A acessão na posse é, apenas, a consequência da regra normal. Como bem explica OLIVEIRA ASCENSÃO, o sentido do artigo 1256.º do Código Civil não é o de facilitar a acessão; é, antes, o de, por excepção, permitir ao interessado não beneficiar da acessão. Assim, quando a sua posse, por ser, por hipótese, titulada, ao contrário da do seu antecessor, conduzisse a prazos mais curtos de usucapião, convir-lhe-ia não invocar a acessão.
O essencial, na acessão, é que a posse se transmita: por isso há “posses consecutivas”. Ora, a transmissão da posse opera, sabidamente:
- por tradição;
- por constituto possessório.
Em parte alguma a lei portuguesa – ou qualquer outra lei que o autor deste estudo conheça – exige, para a transmissão da posse, títulos, negócios ou “vínculos” válidos. Estamos no domínio do possessório e não do petitório”.
Também no mesmo sentido, e de forma muito impressiva, Abílio Vassalo Abreu, A necessidade de uma mudança jurisprudencial em matéria de acessão da posse (Artigo 1256.º do Código Civil), ROA, Out/Dez 2012, Ano 72, Vol. IV, acessível in https://portal.oa.pt/upl/%7Bb3597d0f-6c8b-493c-b23f-d440aa471d6d%7D.pdf.
[48] Defendendo outra orientação, no sentido de que a acessão implica ou pressupõe “uma relação jurídica formalmente válida”, vide Pires de Lima e Antunes Varela, obr. cit., p. 14 e, na jurisprudência do STJ, o acórdão de 08-02-2018, processo: 642/14.7T8GRD.C1.S1 (Relator: Álvaro Rodrigues), em que se concluiu que “[s]endo a posse uma realidade normativa, a acessão na posse pressupõe a validade formal do negócio jurídico translativo da posse”.
[49] Não atentando a apelante no segmento do aresto em que o STJ concluiu que “[a] falta de alegação, pelas autoras, de actos de posse do antecessor do de cujus, não permite concluir se há ou não há posses susceptíveis de serem juntas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1256.º do CC”.
[50] Assim:
“6º A propriedade do referido estabelecimento comercial veio à posse da Autora do seguinte modo:
7º Em 6 de Agosto de 2004, com retroatividade a 1 de Julho de 2004, a insolvente trespassou o referido estabelecimento comercial de farmácia e respetivo alvará à sociedade “AF, Sociedade Unipessoal, Lda”, NIPC, com sede na Rua, freguesia e concelho do Cartaxo;
 8º Posteriormente no dia 31 de Outubro de 2008, esta sociedade “AF, Sociedade Unipessoal, Lda” trespassou a farmácia e respetivo alvará à sociedade “FCF, Sociedade Unipessoal, Lda”, com sede na Praceta, concelho de Alenquer, NIPC 507 881 117;
9º Tendo sido AR, divorciado, residente na Rua, concelho de Alenquer a entrar na posse do mesmo estabelecimento comercial como consta do referido contrato de trespasse e lá designado como proprietário de facto do identificado estabelecimento comercial de farmácia;
 10º O referido alvará e estabelecimento de farmácia, posteriormente, veio à posse da sociedade “PG Inc – sucursal em Portugal”, com sede na Rua, freguesia de Linda-a-Velha, concelho de Oeiras, NIPC, por escritura de trespasse outorgada neste Cartório Notarial no dia 16 de Janeiro 2013, exarada a folhas cento e treze e seguintes do respetivo  Livro de Notas Dezassete – J;
11º E por fim em 5 de Fevereiro de 2013 a PG Inc – Sucursal em Portugal trespassou verbalmente referido estabelecimento comercial de farmácia e respetivo alvará à sociedade “PI Inc”, não tendo sido reduzido a escrito meramente por impossibilidade das partes”.